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Winnicott na Escola de São Paulo Elsa Oliveira Dias Zeljko Loparic (orgs.) © by DWW editorial para a edição em língua portuguesa 1ª. edição: maio de 2011 eISBN: 978-85-62487-07-1 (on line) Diretores: Elsa Oliveira Dias (elsadias@uol.com.br) Zeljko Loparic (loparicz@uol.com.br) Conselho editorial: Ariadne Moraes (ariadne.moraes@uol.com.br) Caroline Vasconcelos Ribeiro (carolinevasconcelos@hotmail.com) Conceição A. Serralha (serralhac@hotmail.com) Eder Soares Santos (edersan@hotmail.com) Oswaldo Giacoia Junior (ogiacoia@hotmail.com) Róbson Ramos dos Reis (robsonramosdosreis@gmail.com) Roseana Moraes Garcia (roseanagarcia@uol.com.br) Vera Laurentiis (veralaurentiis@terra.com.br) Coordenação editorial: Meire Cristina Gomes (meire@sbpw.com.br) Diagramação digital: Microart Com. Editoração Eletrônica Ltda. (www.microart.com.br) Capa: Sandra Rosa Texto em conformidade com o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária Eliana Marciela Marquetis – CRB-8 nº 3573 Winnicott na Escola de São Paulo [recurso eletrônico] / Elsa Oliveira Dias e Zeljko Loparic (orgs.). – São Paulo : DWW Editorial, 2011. v.: digital. - (Coleção Psicanálise Winnicottiana) eISBN 978-85-62487-07-1(on line) 1. Winnicott, D. W. (Donald Woods), 1896-1971. 2. Psicanálise. 3. Psicologia educacional. 4. Psicologia infantil. I. Dias, Elsa Oliveira. II. Loparic, Zeljko. III. Série. 21 CDD 150.195 370.15 155.4 Índice para catálogo sistemático Psicanálise 150.195 Psicologia educacional 3790.15 Psicologia infantil 155.4 DWW editorial Rua João Ramalho, 146 – Perdizes mailto:elsadias@uol.com.br mailto:loparicz@uol.com.br mailto:ariadne.moraes@uol.com.br mailto:carolinevasconcelos@hotmail.com mailto:serralhac@hotmail.com mailto:edersan@hotmail.com mailto:ogiacoia@hotmail.com mailto:robsonramosdosreis@gmail.com mailto:roseanagarcia@uol.com.br mailto:veralaurentiis@terra.com.br mailto:meire@sbpw.com.br http://www.microart.com.br/ CEP 05008-000 – São Paulo – SP Tel.: (11) 3676-0635 E-mail: dwweditorial@sociedadewinnicott.com.br www.dwweditorial.com.br mailto:dwweditorial@sociedadewinnicott.com.br http://www.dwweditorial.com.br/ Sumário Prefácio Sobre os autores Parte I Surgimento do paradigma winnicottiano De Freud a Winnicott: aspectos de uma mudança paradigmática Zeljko Loparic 1. O paradigma freudiano 2. A crise do paradigma freudiano e os principais resultados da pesquisa revolucionária de Winnicott 3. Detalhamento de alguns aspectos teóricos da revolução winnicottiana Referências A irritabilidade (Reizbarkeit) como característica distintiva do aparelho psíquico de Freud João Paulo F. Barretta 1. Introdução 2. O aparelho psíquico na primeira tópica (cap. VII de A interpretação dos sonhos) 3. A característica essencial do aparelho psíquico freudiano: a Reizbarkeit 4. Os problemas clínicos enfrentados pelo modelo de 1900 e a solução freudiana 5. Conclusão Referências Winnicott e uma psicanálise sem metapsicologia Leopoldo Fulgencio 1. Introdução 2. Natureza, função e características dos conceitos meta- psicológicos para Freud 3. Os sentidos do termo metapsicologia na obra de Winnicott 4. Críticas de Winnicott aos conceitos de pulsão de vida (Lebenstriebe) e de morte (Todestriebe) 5. A redescrição do conceito de instinto e o abandono do conceito de pulsão (Trieb) 6. A substituição do conceito de pulsão (Trieb) 7. O abandono da noção de aparelho psíquico 8. O abandono do conceito de libido como uma energia psíquica 9. A substituição da teorização metapsicológica pela factual Referências Winnicott e o Middle Group: a diferença que faz diferença Ariadne Alvarenga de Rezende Engelberg de Moraes 1. Psicanálise britânica 2. Winnicott: dissidência política ou teórica? 3. Rompimento com Klein 4. Winnicott e os teóricos das relações objetais: a diferença 5. A diferença compreendida como contribuição teórica Referências Winnicott e Heidegger: relações entre o amadurecimento pessoal e a acontecência humana Eder Soares Santos 1. Introdução 2. Relação entre a teoria psicanalítica de Winnicott e a filosofia de Heidegger 3. Relação entre a teoria do amadurecimento e a psicanálise tradicional 4. Heidegger e Winnicott: relação de interlocução 5. A acontecência humana e o amadurecimento pessoal: relação conceitual 6. Mudança de paradigma em Winnicott 7. Considerações finais Referências Heidegger e Winnicott: pensadores da origem (Anfang) Caroline Vasconcelos Ribeiro Referências Parte II Articulação do paradigma winnicottiano A teoria winnicottiana do amadurecimento como guia da prática clínica Elsa Oliveira Dias 1. Introdução 2. A teoria do amadurecimento como guia da ação terapêutica 3. A teoria do amadurecimento 4. Critérios para uma classificação dos distúrbios psíquicos 5. As diferentes naturezas de um mesmo distúrbio segundo a teoria do amadurecimento Referências O ambiente winnicottiano Conceição A. Serralha de Araújo 1. O ambiente na obra de Winnicott 2. Winnicott e Freud 3. Considerações finais Referências Condições traumáticas na relação mãe-bebê Orestes Forlenza Neto Referências A questão do suicídio na teoria de D. W. Winnicott Flávio Del Matto Faria Referências O papel do pai no processo de amadurecimento em Winnicott Claudia Dias Rosa 1. Introdução 2. A presença do pai no período de dependência absoluta 3. A presença do pai no período de dependência relativa 4. A presença do pai no estágio do concernimento 5. A presença do pai no estágio edípico Referências A incerta conquista da morada da psique no soma em D. W. Winnicott Vera Regina F. de Laurentiis Referências A teoria do amadurecimento pessoal de D. W. Winnicott e a fisioterapia Maria Emília Mendonça 1. No que consiste a teoria winnicottiana do amadurecimento pessoal 2. Os primeiros estágios do amadurecimento pessoal 3. A compreensão dos primeiros estágios do amadurecimento pessoal e a fisioterapia 4. Cenário atual da prática do fisioterapeuta 5. Vinheta de um tratamento fisioterápico com a presença de questões complicadoras 6. Como se dá a formação do fisioterapeuta 7. D. W. Winnicott falando diretamente aos fisioterapeutas 8. Possíveis aproximações entre o pensamento de Winnicott e aspectos da fisioterapia Referências Parte III Exemplares do paradigma winnicottiano O caso B: a mãe perfeita e a constituição do si-mesmo Gabriela Galván Referências Os elementos masculino puro e feminino puro na clínica: a história de Vítor 1. Introdução 2. Com um pé em cada canoa 3. Considerações finais Referências O manejo de Winnicott no caso Philip Maria de Fátima Dias 1. Introdução 2. Diagnóstico 3. A história de Philip 4. O manejo 5. Conclusão Referências O uso da consulta terapêutica na clínica da tendência antissocial Roseana Moraes Garcia 1. A tendência antissocial 2. As consultas terapêuticas 3. Luana 4. Primeira entrevista com a mãe 5. Consulta terapêutica com Luana 6. Segunda entrevista com a mãe 7. Comentários Referências Um caso clínico: sobre as repercussões derivadas da atitude de cuidado no início da apresentação de sintomas antissociais Alice McCaffrey Busnardo 1. O caso clínico de Pedro 2. O Jogo de Varetas 3. Trechos de sessões 4. Desdobramentos 5. Considerações finais Referências A construção do eu de crianças cegas congênitas Maria Lucia Toledo Moraes Amiralian 1. A teoria do amadurecimento e a construção do eu da criança com cegueira congênita 2. O desenvolvimento emocional primitivo e a criança com cegueira congênita 3. Considerações finais Referências Perto das trevas: a história de um colapso Edna Pereira Vilete Referências A função do falso self na produção de uma diva: o caso Maria Callas Alfredo Naffah Neto 1. A diva, que fascina... 2. Maria Callas, vida e obra 3. Mimetizando figuras do mundo por meio do falso self: a criação da diva Referências Prefácio Com a coletânea Winnicott na Escola de São Paulo, comemoramos o décimo aniversário da fundação, em 2001, do Centro Winnicott de São Paulo (CWSP). Várias outras datas, relativas a iniciativas afins que tambémempreendemos em conjunto, merecem ser associadas a essa comemoração: o início, em 1995, da série ininterrupta de Colóquios Winnicott de São Paulo, de caráter internacional; a criação formal, também em 1995, na PUC-SP, do Grupo de Pesquisa em Filosofia e Práticas Psicoterápicas (GFPP), credenciado junto ao CNPq e hoje sediado na Unicamp; o lançamento, por esse grupo, em 1999, da revista Natureza humana. Em 2003, o CWSP abriu a Escola Winnicottiana de Psicanálise, transformada, em 2005, em filial da Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana (SBPW), fundada nesse mesmo ano com o objetivo de promover o estudo e o desenvolvimento da psicanálise winnicottiana, bem como a formação de profissionais que desejam atuar nesse quadro teórico e clínico. Em 2008, a Sociedade Winnicott ganhou sede própria em São Paulo, que hoje abriga, além da Escola, a DWW editorial, a editora da Sociedade. Já em 2006, foram criados os Centros Winnicott do Triângulo Mineiro e de Campinas, os quais, junto com os mais recentes Grupos Winnicott de Lorena e Belo Horizonte, desenvolvem, em níveis diferentes, essas mesmas atividades. A caracterização inicial da psicanálise winnicottiana, usada como base do ensino na Escola Winnicottiana de Psicanálise e das pesquisas dos membros dos centros e dos grupos da SBPW, foi feita nos trabalhos desenvolvidos no quadro do GFPP, de acordo com uma linha de pesquisa desenvolvida por Zeljko Loparic já em meados dos anos 1980. Tendo fundado, em 1983, no Centro de Lógica da Unicamp, o Curso de Especialização em Fundamentos Filosóficos da Psicologia e da Psicanálise, Loparic começou a trabalhar a filosofia e a história da psicanálise usando um referencial teórico próprio, elaborado com base na 1) teoria kantiana de resolução de problemas filosóficos e científicos, 2) teoria dos paradigmas e das mudanças de paradigmas nas ciências factuais de Thomas S. Kuhn, inserida no horizonte mais amplo de uma teoria da ciência em geral como atividade de resolução de problemas e 3) fenomenologia heideggeriana da relação do homem ao ser, tomada como base para a desconstrução da metafísica e como ponto de partida para a elaboração de um novo tipo de saber, tanto filosófico como científico, sobre o homem. Kant era empregado para repensar a estrutura da psicanálise freudiana, Kuhn para dar um enfoque metodológico e epistemológico preciso ao estudo do desenvolvimento das teorias e das práticas clínicas psicanalíticas pós- freudianas, e Heidegger para desconstruir os ingredientes metafísicos da psicanálise tradicional e lançar os alicerces filosófico-antropológicos para uma possível ciência psicanalítica pós-metafísica. Essa linha de pesquisa, enriquecida pelos trabalhos teórico-clínicos de Elsa Oliveira Dias sobre Winnicott, recebeu um impulso decisivo das seguintes descobertas fundamentais, feitas ainda na fase informal da existência do GFPP, no início dos anos 1990, e consolidadas posteriormente: 1) Winnicott abandonou o Édipo como complexo nuclear da psicanálise, substituiu a teoria da sexualidade pela teoria do amadurecimento pessoal e recusou o modo de teorização metapsicológico, de inspiração kantiana; 2) ao fazer isso, além de trazer muitas outras contribuições, Winnicott produziu, por uma operação que pode ser comparada a um Gestalt switch, uma mudança do paradigma da psicanálise tradicional e 3) o paradigma winnicottiano da psicanálise, não-edipiano, maturacional e pós-metapsicológico, admite ser aproximado, de maneira frutífera, do pensamento do ser de Heidegger, em particular, do projeto heideggeriano de uma antropologia científica pós-metafísica, explicitado em Seminários de Zollikon, que incluísse uma psicopatologia e uma terapia no quadro de uma antropologia filosófica, cujas bases foram lançadas na analítica existencial de Ser e tempo. Os trabalhos realizados de acordo com essa linha de pesquisa, criada na Unicamp, transferida em seguida para a PUC-SP e continuada atualmente na SBPW, por seus membros e colaboradores, foram divulgados de várias formas – dissertações e teses, livros e artigos em revistas nacionais e estrangeiras. Um número significativo de artigos saiu na revista Natureza humana, que, inicialmente, era uma publicação local do GFPP e, posteriormente transformada em revista internacional de filosofia e psicanálise, tornou-se órgão oficial da SBPW e da Sociedade Brasileira de Fenomenologia. Outros artigos encontram-se disponíveis na Winnicott e- Prints, revista eletrônica da SBPW, especializada em aspectos teórico- clínicos da psicanálise winnicottiana. A presente coletânea, que faz parte da Coleção Psicanálise Winnicottiana, da DWW editorial, contém uma seleção de artigos representativos da Escola, escolhidos pelos próprios autores. Vários desses textos foram corrigidos ou parcialmente modificados, pelos próprios autores, para a presente publicação. A normatização foi feita segundo as regras da APA e as datas das publicações originais das obras de D. W. Winnicott seguem a classificação de K. Hjulmand, publicada na Natureza humana, v. 1, n. 2, 1999 e também em: http://www.winnicottnaturezahumana.com.br. Os artigos selecionados foram divididos tematicamente em três grupos: os que tratam do surgimento do paradigma winnicottiano, os que articulam essa reformulação da psicanálise e, por fim, os que apresentam casos clínicos ou de outro tipo que ilustram as ideias de Winnicott. No artigo de abertura, Loparic reapresenta e desenvolve uma das suas teses principais relativas a Winnicott: a de que este autor, ao operar a mudança paradigmática na psicanálise, alterou a estrutura e os ingredientes do mundo no qual os psicanalistas formulam e resolvem problemas clínicos, bem como o seu modo de ver e de falar. O artigo de João Paulo F. Barretta trata da irritabilidade do aparelho psíquico, um dos conceitos essenciais da teoria freudiana, retomando as críticas apresentadas anteriormente na sua tese de doutorado e baseadas na analítica existencial de Heidegger. Leopoldo Fulgencio, na perspectiva aberta por Loparic, desenvolve uma das teses iniciais e fundamentais da Escola: a de que Winnicott reescreveu a teoria psicanalítica sem recorrer ao modo de teorização especulativo, característico da parte metapsicológica da psicanálise freudiana. Ariadne Alvarenga de Rezende Engelberg de Moraes examina um momento importante da história da psicanálise britânica, a relação entre Winnicott e o assim chamado Middle Group. O primeiro grupo temático contém mais dois artigos, nos quais a relação entre Winnicott e Heidegger é estudada por Eder Soares Santos e Caroline Vasconcelos Ribeiro: o primeiro traça um paralelo entre a teoria winnicottiana do amadurecimento pessoal e a fenomenologia da acontecência humana, exposta em Ser e tempo, e a segunda, à luz da http://www.winnicottnaturezahumana.com.br/ crítica de Heidegger à psicanálise freudiana, mostra a diferença crucial entre Freud e Winnicott, e, tomando como fio condutor o conceito de “história de vida”, examina a distinção entre começo e origem. O segundo grupo temático é encabeçado pelo artigo de Elsa Oliveira Dias, que explicita o modo como a teoria winnicottiana do amadurecimento serve de horizonte teórico para a classificação dos distúrbios psíquicos e como esta, por sua vez, orienta o diagnóstico e a tarefa clínica que daí decorre. Seguem-se textos que articulam adicionalmente a versão winnicottiana da teoria psicanalítica. Conceição A. Serralha de Araújo põe em evidência o ambiente e as relações ambientais, as quais, segundo Winnicott, fundamentam as relações objetais, tese que implica ser impossível classificar a psicanálise winnicottiana, junto com a de Klein e de Fairbairn, entre as teorias das relações objetais. Orestes Forlenza Neto revisita outro tema central em Winnicott: o do bebê no colo da mãe e os traumas que podem acontecer nessa situação. Flávio Del Matto Faria explicita a teoria winnicottiana do suicídio, assunto relativo à problemática de aniquilação do indivíduo pelas intrusões ambientais na primeira infância, tal como compreendidapor Winnicott e praticamente inexistente em Freud. Claudia Dias Rosa dedica-se ao estudo de um tópico que até o presente momento recebeu pouca atenção nos estudos winnicottianos fora da Escola: o papel do pai no processo de amadurecimento, mostrando ser este, ao lado da mãe, figura essencial na constituição de indivíduos sadios. Vera Regina F. de Laurentiis, tratando da incerta conquista da morada da psique no soma em Winnicott, e Maria Emília Mendonça, abordando a relação entre a psicanálise e a fisioterapia, exploram o tema winnicottiano da personalização, fechando esse grupo de trabalhos com resultados que vão além da clínica psicanalítica propriamente dita e que chamam por confrontações adicionais de Winnicott com outras áreas, entre elas a das práticas preventivas e da medicina, em particular, a psiquiatria e as neurociências. O último grupo temático consiste de estudos de casos entendidos como exemplares do paradigma winnicottiano, isto é, como exemplos de soluções bem-sucedidas de problemas clínicos tratados ou examinados à luz da psicanálise winnicottiana. O artigo de Gabriela Galván reconstrói aspectos centrais de um dos casos clínicos mais importantes relatados por Winnicott, o caso B, mostrando a conexão entre uma mãe perfeita e as distorções na constituição do si-mesmo. O artigo coletivo de Cecilia Luiza Montag Hirchzon, Maria Cecilia Schiller Sampaio Fonseca e Maria Lucia Toledo Moraes Amiralian apresenta a aplicação clínica de mais um conceito original de Winnicott: o dos elementos masculino puro e feminino puro. Maria de Fátima Dias lança luz sobre um procedimento fundamental da clínica winnicottiana, o manejo, mediante o relato minucioso de um caso clínico, o de Philip, de 9 anos, em que a família do menino assumiu o tratamento, sendo orientada de perto por Winnicott. Roseana Moraes Garcia, a propósito do tratamento da tendência antissocial, apresenta uma das mais importantes inovações trazidas por Winnicott para a clínica psicanalítica: as consultas terapêuticas, ilustrando-a com um bem-sucedido caso, de sua clínica, de uma menina de 8 anos. Alice McCaffrey Busnardo traz outro caso clínico relativo à mesma área, discutindo as repercussões da atitude de cuidado no início do tratamento de sintomas antissociais. Maria Lucia Toledo Moraes Amiralian mostra a relevância da teoria winnicottiana do amadurecimento a um campo não estritamente psicanalítico: a construção do eu de crianças cegas congênitas. Edna Pereira Vilete examina a experiência vivida e contada pelo escritor William Styron à luz dos conceitos winnicottianos de colapso e de angústia de aniquilamento, assim como as condições que presidiram a sua recuperação. Por fim, Alfredo Naffah Neto analisa um caso que ilustra a função do falso si-mesmo (self) na produção de uma artista excepcional: Maria Callas. Os trabalhos reunidos nesta coletânea são apenas uma pequena amostra da produção dos membros da Escola. A totalidade do material encontra-se disponível nas fontes mencionadas e pode ser identificada nos CV Lattes dos autores contribuintes, bem como no portal da SBPW: www.sociedadewinnicott.com.br. Mesmo assim, acreditamos que o leitor encontrará, neste volume, dados e argumentos suficientes – baseados nas análises internas da obra de Winnicott tomada no seu todo (esse modo de proceder é um dos traços distintivos da Escola), nos estudos da história da psicanálise, nas implicações filosóficas da psicanálise winnicottiana e, por fim, no material clínico particularmente abundante – para, como indicado anteriormente, caracterizar a contribuição de Winnicott como uma mudança http://www.sociedadewinnicott.com.br/ do paradigma da psicanálise, entendendo-se por psicanálise a atividade de resolução de problemas factuais de um determinado tipo, a saber, de problemas clínicos. Em virtude desse resultado fundamental, a leitura de Winnicott praticada na Escola de São Paulo difere em pontos essenciais de várias outras linhas de interpretação encontradas na literatura secundária. Em primeiro lugar, a afirmação de que Winnicott produziu um novo paradigma da psicanálise implica que ele elaborou uma teoria própria, a qual, assim como a de Freud, cobre o campo inteiro da psicanálise de modo unitário e articulado – tese que contradiz todos aqueles, e eles não são poucos, que negam ter Winnicott uma teoria, chegando mesmo a afirmar que seu pensamento é apenas fragmentário. Em segundo lugar, embora Winnicott siga Freud ao apresentar a psicanálise como uma ciência, uma diferença importante separa esses dois autores: enquanto Freud constrói a sua disciplina – e a psicologia no seu todo – como ciência natural, tendo como objeto central de estudo as pulsões, entidades análogas a forças naturais da física newtoniana, que agem no interior de um aparelho psíquico pensado segundo o modelo de uma máquina hidráulica ou de uma entidade biológica, Winnicott toma como objeto de estudo e de cuidado a natureza humana, que não se manifesta como uma entidade natural movida por forças, mas como algo que emerge do nada, preserva a solidão como traço essencial e inerente, tende a integrar-se numa unidade, para, caso conte com a facilitação ambiental, tornar-se um ser existente personalizado, capaz de agir no mundo e até se dar ao luxo de morrer. Essas são as teses pelas quais Winnicott reposiciona a psicanálise no campo das ciências factuais: a psicanálise pertence agora ao grupo de ciências humanas, mais precisamente, ao campo da antropologia, distinto da psicologia quer naturalista quer não naturalista (por exemplo, a fenomenológica). Em terceiro lugar, a psicanálise winnicottiana é uma ciência essencialmente clínica, ou seja, ela é elaborada a partir de problemas que surgem na clínica psicanalítica – seus conceitos, afirmações e procedimentos só têm sentido no domínio constituído por esse material – e é destinada a guiar a resolução desses problemas, isto é, a cura. Em quarto lugar, por ser uma ciência clínica, a psicanálise winnicottiana não faz nem pretende fazer nenhuma contribuição direta – Winnicott deixa isso muito claro – à filosofia, à religião ou à poesia. Essa constatação contraria, portanto, os leitores que não veem em Winnicott um cientista, mas um pensador filosofante, como se produzir teorias científicas impedisse de pensar. Ela tampouco deixa espaço para as teses que misturam Winnicott com os místicos religiosos em busca do infinito. Opõe-se, por fim, a todas as tentativas de colocar a sua obra no âmbito da ficção literária. A literatura, em particular a poesia, dá-nos acesso a toda verdade num flash – Winnicott concede e valoriza esse ponto, mas adverte que, diferentemente da verdade científica, a verdade poética não permite acordos intersubjetivos, nem aplicações no agir humano, inclusive nos procedimentos de cura. O essencial da contribuição da Escola Winnicottiana de São Paulo aos estudos winnicottianos pode ser resumido da seguinte forma: a obra de Winnicott constitui um passo decisivo no progresso da ciência psicanalítica, da sua forma inicial elaborada por Freud para uma matriz disciplinar que permite resolver um número de problemas clínicos significativamente maior, e desenvolver práticas de prevenção e de intervenção social. Como toda produção que modifica de maneira significativa a direção da pesquisa numa determinada área, a dos autores reunidos no presente livro suscitou resistências e ganhou adesões. Os dois lados, cada um a sua maneira, contribuíram para aumentar o impacto da Escola no campo de estudos sobre a história e o estado atual da psicanálise tanto no Brasil como no exterior. Sem dúvida, muitos aspectos do pensamento winnicottiano requerem articulação e desenvolvimento adicionais. Urge ainda expor a psicanálise ao diálogo com as ciências do homem de diferentes perspectivas teóricas, promovendo assim uma reflexão sobre o futuro da disciplina fundada por Freud. O reconhecimento dessas tarefas, entre várias outras, faz deste volume apenas um marco num caminho que se estende indefinidamente, para o desconhecido. ElsaOliveira Dias Zeljko Loparic Sobre os autores Alfredo Naffah Neto Psicanalista, mestre em Filosofia pela USP, doutor em Psicologia Clínica pelo PUC-SP, é professor titular na PUC-SP no Programa de Estudos Pós- Graduados em Psicologia Clínica, no núcleo de pesquisa: “O método psicanalítico e as formações da cultura”. Atua, além disso, em consultório particular como psicanalista e psicoterapeuta de casais e de famílias. Seus projetos de pesquisa, no momento, versam sobre dois temas: 1) desenvolvimento da psicopatologia e suas articulações com a técnica na clínica psicanalítica winnicottiana; 2) articulações entre psicanálise e música. Suas publicações reúnem vários artigos referentes a esses dois projetos de pesquisa. E-mail: naffahneto@gmail.com Alice McCaffrey Busnardo Graduação e mestrado pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Trabalha como psicanalista em consultório particular e também é professora no Centro Winnicott de São Paulo e de Campinas. Doutoranda na PUC-SP sob orientação do Prof. Dr. Zeljko Loparic. E-mail: alibusnardo@gmail.com Ariadne Alvarenga de Rezende Engelberg de Moraes Psicóloga clínica formada pela UNIP-SP. Mestre e doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Membro do Grupo de Pesquisa em Filosofia e Práticas Psicoterápicas (GFPP/Unicamp/CNPq). Tem artigos publicados em livros e revistas. Professora do Centro Winnicott de São Paulo. Atende em consultório particular. Foi professora do curso de psicologia da UNIP e Universidade Mackenzie. E-mail: ariadne.moraes@uol.com.br. Caroline Vasconcelos Ribeiro Professora adjunta na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Psicóloga pela Universidade Federal de São João Del Rey (UFSJ), mestre em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), doutora em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sob mailto:naffahneto@gmail.com mailto:alibusnardo@gmail.com mailto:ariadne.moraes@uol.com.br orientação do professor Dr. Zeljko Loparic. Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana (SBPW) e do Grupo de Pesquisa em Filosofia e Práticas Psicoterápicas (GFPP/Unicamp/CNPq). Organizou o vol. 11 do periódico Aprender – caderno de filosofia e psicologia da educação, dedicado ao estudo da teoria winnicottiana. Organizou, junto com Suely Aires, o livro: Ensaios de filosofia e psicanálise. E-mail: carolinevasconcelos@hotmail.com Cecilia Luiza Montag Hirchzon Graduação em Ciências Sociais pela FFCLUSP (1960), graduação em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP (1970), psicóloga do Departamento de Psicologia da Aprendizagem do Instituto de Psicologia da USP (1972 a 1978), formação em Psicanálise pelo Instituto de Psicanálise da SBPSP (1979), membro associado da SBPSP (1980), professora do curso de Psicanálise do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientae (1980 a 1988), membro associado do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientae. E-mail: cecilu@bol.com.br Claudia Dias Rosa Graduada em Psicologia pela PUC-SP, psicanalista, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, doutoranda por essa mesma Universidade, professora da Escola Winnicottiana de Psicanálise, coordenadora do SAP (Serviço de Atendimento em Psicanálise) do Centro Winnicott de São Paulo e de Campinas. E-mail: claudia@centrowinnicott.com.br Conceição A. Serralha de Araújo Graduada em Psicologia pela Universida de Federal de Uberlândia (UFU), com mestrado e doutorado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), sob orientação do Prof. Dr. Zeljko Loparic. Professora adjunta da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Membro do Grupo de Pesquisa em Filosofia e Práticas Psicoterápicas (GFPP/Unicamp/CNPq) e do Grupo de Estudo e Pesquisa em Psicanálise (GEPPSE) da UFTM. Possui vários trabalhos publicados em periódicos científicos sobre temáticas importantes da psicanálise winnicottiana. E-mail: serralhac@psicologia.uftm.edu.br mailto:carolinevasconcelos@hotmail.com mailto:cecilu@bol.com.br mailto:claudia@centrowinnicott.com.br mailto:serralhac@psicologia.uftm.edu.br Eder Soares Santos Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana (SBFW) e membro do Grupo de trabalho em Filosofia e Psicanálise da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF). Atualmente é professor adjunto na Universidade Estadual de Londrina no Paraná e coordenador do mestrado em Filosofia da mesma universidade. Publicou, em 2010, o livro Winnicott e Heidegger: aproximações e distanciamentos. São Paulo: DWW editorial. E-mail: edersan@hotmail.com Edna Pereira Vilete Formada em Medicina pela Faculdade de Ciências Médicas do Estado da Guanabara (1960 a 1965). Especialização em Pediatria (1965), Pós- Graduação em Psiquiatria pelo Instituto de Psiquiatria UFRJ (1969) e Formação Psicanalítica da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (filiada à International Psychoanalytical Association) entre 1971 a 1977. Docente e Didata do Curso de Formação de Psicanalistas da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro desde 1980. Coordenadora de grupos de Observação da Relação Mãe-Bebê desde 1981, no Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Fundadora do Espaço Winnicott − Estudos em Psicanálise e Cultura − Rio de Janeiro, destinado à divulgação da obra de Donald Winnicott em cursos e colóquios. Coordenadora de Grupos de Estudos no Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre. Clínica particular de Psicanálise desde 1971. E-mail: edvilete@uol.com.br Elsa Oliveira Dias Psicanalista. Graduação em Psicologia pela PUC-SP. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP, com a tese “A teoria das psicoses de D. W. Winnicott”. Membro do Grupo de Filosofia e Práticas Psicoterápicas (GFPP/Unicamp/CNPq). Membro do Conselho Científico de Natureza humana, Revista Internacional de Filosofia e Psicanálise. Fundadora do Centro Winnicott de São Paulo (CWSP) e diretora de ensino e formação da Escola Winnicottiana de Psicanálise desse Centro. Fundadora da Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana. mailto:edersan@hotmail.com mailto:edvilete@uol.com.br Autora de vários artigos sobre D. W. Winnicott, sobre filosofia e psicanálise, e autora do livro A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott, publicado em 2003 pela Imago. E-mail: elsadias@uol.com.br Flávio Del Matto Faria Doutor e mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Supervisor clínico do Centro Winnicott de São Paulo. Psicólogo clínico, psicanalista. Especialista em Psicologia Clínica e em Psicoterapia de adolescentes. Professor responsável e supervisor clínico do curso de Psicologia da Universidade São Judas Tadeu. Membro pesquisador do Grupo de Pesquisa em Filosofia e Práticas Psicoterápicas (GFPP/Unicamp/CNPq). Coordenador do Programa de Atenção às Tentativas de Suicídio da Universidade São Judas Tadeu – PROATES. E-mail: f.faria@uol.com.br Gabriela Galván Psicóloga clínica (PUC-SP), mestre em Psicologia pelo IPUSP (Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo), doutoranda em Psicologia no IPUSP, especialista em Psicologia Hospitalar, docente do Centro Winnicott de São Paulo e Campinas. E-mail: galvan@usp.br João Paulo Fernandes Barretta Graduação em Psicologia pela Universidade Mackenzie. Mestrado em Filosofia pela PUC-SP e doutor em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Professor do Centro Winnicott e da Universidade Paulista (UNIP). E-mail: jpbarretta@hotmail.com Leopoldo Fulgencio Graduado no Instituto de Psicologia da USP, com mestrado, doutorado e pós-doutorado no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia da PUC-SP, tendo feito estágio de doutorado em Paris VI - Dennis Diderot. Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUCCampinas. Suas publicações mais importantes são: “Freud’s metapsychological speculations” (The International Journal of Psychoanalysis, 86(1), 99-123, 2005) e “Winnicott’s rejection of the basic concepts of Freud’s metapsychology” (The InternationalJournal of Psychoanalysis, 88(2), 443- mailto:elsadias@uol.com.br mailto:f.faria@uol.com.br mailto:galvan@usp.br mailto:jpbarretta@hotmail.com 461, 2007). Este artigo, cuja versão em português está sendo aqui republicada, foi incluído no anuário do International Journal of Psychoanalysis, nas suas versões em francês, português e espanhol. E-mail: ful@that.com.br Maria Cecilia Schiller Sampaio Fonseca Formada em Psicologia pela PUC-RJ. Formada em Medicina pela Faculdade de Medicina e Cirurgia RJ (atual Unirio). Membro Efetivo da SBPRJ. Membro Associado da SBPSP. E-mail: macefonseca@uol.com.br Maria Emília Mendonça Graduação em Educação Física e Fisioterapia pela Universidade Estadual de Londrina, PR. Especialização em Ginástica Holística, Método Ehrenfried pela AEDE, Paris, França. Mestrado em Educação-Currículo, pela PUC-SP, 1999. Doutorado em Psicologia Clínica pela PUC-SP em 2007. É diretora do Instituto Maria Emília Mendonça, formação, pesquisa e cuidados do corpo, onde coordena há 25 anos uma equipe multidisciplinar. Publicou, em 2000, pela Editora Summus, SP, o livro Ginástica Holística, história e desenvolvimento de um método de cuidados corporais, fruto do mestrado. E-mail: maria.emilia.mendonca@hotmail.com Maria de Fátima Dias Psicóloga (CRP 06/19071) pela Faculdade Paulistana; é mestre e doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Filiada à SBPW (Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana), é professora dos cursos de formação em Psicanálise Winnicottiana da SBPW, e do curso de Especialização Interfaces da Psicanálise de D. W. Winnicott da UNISAL. Palestrante e professora em diversos cursos de extensão e pós-graduação, tem experiência em docência e coordenação de cursos na área da psicologia. Estuda especialmente os temas da integração psicossomática, constituição da sexualidade e desenvolvimento humano. E-mail: mfatimadias@uol.com.br Maria Lucia Toledo Moraes Amiralian Psicóloga pela PUC-SP, doutora em Psicologia Clínica pelo IPUSP, docente e orientadora da Pós-Graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano do IPUSP, docente e orientadora do Centro mailto:ful@that.com.br mailto:macefonseca@uol.com.br mailto:maria.emilia.mendonca@hotmail.com mailto:mfatimadias@uol.com.br Winnicott de São Paulo, coordenadora do Laboratório Interunidades de Estudo das Deficiências (LIDE), do IPUSP, e autora do livro Compreendendo o cego: uma visão psicanalítica da cegueira e dos artigos: “Conhecendo a deficiência pela óptica das propostas winnicottianas”, “Deficiência, um novo olhar: contribuições a partir da psicanálise” e “A clínica do amadurecimento e o atendimento às pessoas com deficiência”. E-mail: mltma@usp.br Orestes Forlenza Neto Formado em medicina pela USP em 1962. Assistente de ensino da cadeira de Psiquiatria e Psicologia Médica da Universidade Federal de São Paulo. Formação psicanalítica pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Analista didata pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Membro do Centro Winnicott de São Paulo. Vários artigos em revistas de psicanálise e livros. Roseana Moraes Garcia Mestrado em Psicologia Clínica PUC-SP (2004). Doutorado em Psicologia Clínica PUC-SP (2009). Psicanalista. Professora e supervisora da Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana. E-mail: roseanagarcia@uol.com.br Vera Regina Ferraz de Laurentiis Psicóloga e mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Há anos dedica-se à pesquisa do tema da integração psique-soma, tendo se especializado também em instituições como o Sedes Sapientiae e o Centro de Educação Somática e Existencial. Psicoterapeuta, professora e colaboradora do Centro Winnicott de São Paulo e Campinas, atuou, entre outros, em equipes interdisciplinares, atendendo pacientes com distúrbios de alimentação, em crise psiquiátrica, e adictos. Entre seus principais artigos estão “A possibilidade de um vir a ser psicossomático”, “A construção do corpo”, “Corpo, imagem ou devir?”. E-mail: veralaurentiis@terra.com.br Zeljko Loparic Doutor em Filosofia, docente da PUC-SP e Unicamp, fundador da Escola Winnicottiana de Psicanálise (2003), presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana (2005) e diretor da editora DWW editorial mailto:mltma@usp.br mailto:roseanagarcia@uol.com.br mailto:veralaurentiis@terra.com.br (2009). É autor de livros Ética e finitude (1995), Semântica transcendental de Kant (2000) e Heidegger (2004), entre outros, bem como de um número de artigos, principalmente sobre Kant, Heidegger, Freud e Winnicott. E-mail: loparicz@uol.com.br mailto:loparicz@uol.com.br Parte I Surgimento do paradigma winnicottiano De Freud a Winnicott: aspectos de uma mudança paradigmática1 Zeljko Loparic 1. O paradigma freudiano Não é fácil dizer o que é a psicanálise. Um esclarecimento possível consiste em evocar a afirmação de Freud, reiterada por Winnicott, de que a psicanálise é a ciência de um certo tipo de fatos clínicos. Isso posto, coloca- se uma nova pergunta, ainda mais difícil: que é uma ciência factual e como devem ser pensados a estrutura interna e o desenvolvimento de uma tal disciplina? De acordo com Thomas S. Kuhn, um dos mais influentes epistemólogos da segunda parte do século XX, uma ciência factual madura é o quadro no qual se desenvolve uma atividade de resolução de problemas semelhantes a quebra-cabeças. A estrutura interna desse quadro é caracterizada por uma maneira de ver o mundo e de falar sobre ele, compartilhada por um grupo institucionalizado, estruturada como um paradigma ou uma matriz disciplinar. Um paradigma é composto de: 1) exemplares, isto é, problemas centrais que dizem respeito aos fatos acessíveis em alguma forma de experiência (observação, experimentação, clínica), acompanhados de suas soluções e 2) compromissos teóricos, dos quais constam: a) generalizações usadas como guias na pesquisa, b) modelo ontológico do domínio estudado (a parte propriamente “metafísica” dos paradigmas), c) modelo metodológico (os métodos de pesquisa franqueados, analogias e metáforas permitidas), e d) valores, alguns deles epistemológicos – relativos ao modo como deve ser elaborada e praticada a disciplina em questão (capacidade de formular problemas, tipo de soluções admitidas, simplicidade, consistência interna e externa, plausibilidade) –, e outros práticos, relacionados à utilidade social do saber científico. O desenvolvimento de uma disciplina desse tipo passa por períodos de pesquisa normal, cumulativa, realizada de acordo com o paradigma dominante, seguidos de períodos de crise, provocados pelo aumento de “anomalias” – problemas considerados relevantes, mas que permanecem não resolvidos. As crises levam uma parte do grupo a se dedicar à pesquisa revolucionária visando à constituição de um novo paradigma, obedecendo, contudo, à condição de preservar a capacidade solucionadora da disciplina. Quando bem-sucedida, essa pesquisa não cumulativa termina em conversão da parte ou da totalidade do grupo a uma nova maneira de ver o mundo e de falar sobre ele, comparável a um Gestalt switch perceptivo ou a uma mudança revolucionária de um regime político, seguida de um novo período de pesquisa normal. As mudanças nos paradigmas ocorrem, portanto, como revoluções científicas que substituem os paradigmas (figuras do mundo, “regimes” teóricos) velhos, em crise, pelos novos, considerados mais promissores por resolverem tanto os problemas principais já solucionados como as anomalias e por aumentarem, dessa forma, o poder de resolução de problemas da ciência em questão.2 Mesmo que a psicanálise tradicional não possa ser considerada uma ciência factual madura, parece-me frutífero olhar para ela na perspectiva kuhniana, procurando por formas incipientes de um paradigma e por crises, seguidas de pesquisa revolucionária.3 Procedendo assim, é possível dizer que o exemplar principal da disciplina criada pela pesquisa revolucionária de Freud é o complexo de Édipo, a criança na cama da mãe às voltas com os conflitos, potenciais geradores de neuroses, que estãorelacionadas à administração de pulsões sexuais em relações triangulares. A generalização- guia central é a teoria da sexualidade, centrada na ideia da ativação progressiva de zonas erógenas, pré-genitais e genitais, com o surgimento de pontos de fixação pré-genitais. O modelo ontológico do ser humano, explicitado na parte metapsicológica da teoria, comporta um aparelho psíquico individual, movido por pulsões libidinais, e outras forças psíquicas determinadas por leis causais. A metodologia é centrada na interpretação do material transferencial à luz do complexo de Édipo ou de regressões aos pontos de fixação. Os valores epistemológicos básicos são os das ciências naturais, incluindo explicações causais, e o valor prático principal é a eliminação do sofrimento decorrente dos conflitos internos pulsionais, do tipo libidinal. Considerando a importância do exemplar do Édipo na psicanálise de Freud, convém chamar o seu paradigma de edípico ou triangular. Se levarmos em conta a natureza sexual da situação edípica, a matriz disciplinar de Freud pode ser designada como sexual.4 2. A crise do paradigma freudiano e os principais resultados da pesquisa revolucionária de Winnicott A psicanálise passou por várias reformulações pelo próprio Freud e seus seguidores, efetuadas no mais das vezes sob pressão de fatos clínicos. Nas pesquisas de Winnicott, contudo, o paradigma freudiano como tal entra em crise, dando lugar à busca por um novo paradigma. O motivo principal da crise foi o acúmulo de problemas clínicos – entre eles as manifestações da tendência antissocial e da psicose infantil – que não podiam ser compreendidos teoricamente nem tratados clinicamente no quadro do paradigma edípico de Freud, mas que, segundo Winnicott, não deviam ser eliminados do campo de aplicação da psicanálise.5 Desde 1923, Winnicott constatou a existência de várias manifestações do que ele posteriormente chamará de tendência antissocial: num extremo, a avidez (greediness) e a enurese, e, no outro, a delinquência, os distúrbios de caráter e todos os tipos de psicopatia, incluindo ainda os casos de furto e as mentiras. A psicanálise da época costumava explicar a delinquência pela culpa originada de uma ambivalência inconsciente insuperável, a saber, pelo ódio persistente dirigido à pessoa amada. A ideia básica era a existência de um sentimento de culpa muito forte, que não podia encontrar saída nem na sublimação nem na reparação, de modo que a única alternativa era o indivíduo destruir algo a fim de poder sentir-se culpado. Em outras palavras, a etiologia da delinquência era vista em termos da luta no mundo interno do indivíduo, transferida na forma de um acting-out destrutivo, que perturbava o setting analítico. Por essa razão, Winnicott, tal como os outros psicanalistas, encaminhava os casos antissociais a clínicas não psicanalíticas (1989a/1993, p. 439). Ao mesmo tempo, contudo, ele não conseguia se convencer que se tratava de um erro de seleção de casos (de aplicação da psicanálise), vendo nisso uma séria limitação da teoria e uma grave falha da técnica psicanalítica. Concluindo, assim como antes dele fizeram August Aichhorn e Sándor Ferenczi, que a psicanálise deveria adaptar sua técnica às necessidades da criança com tendência antissocial ou do psicopata “sem se transformar em puro manejo, ou seja, sem perder o seu título de psicanálise” (1965b/1983, p. 115). Desde essa mesma época, Winnicott deu-se conta, com base em inúmeros casos clínicos, que crianças sofrendo de distúrbios psíquicos mais variados, em particular as crianças psicóticas, “revelavam dificuldades no seu desenvolvimento emocional na infância, mesmo como bebês”, fato que, segundo ele, dificilmente podia ser encaixado na teoria do complexo de Édipo (1965b/1983, p. 157). Ele expôs esses casos aos colegas em “artigos assustados”, reunidos posteriormente num único trabalho: “Apetite e desordem emocional”, de 1936. Passado o susto, Winnicott acabou rejeitando a regra básica da metodologia freudiana, a saber, a que exige a interpretação do material transferencial à luz do complexo de Édipo ou de regressões aos pontos de fixação da libido a fases pré-genitais.6 Mais uma vez, a ortodoxia psicanalítica estava em crise. Na percepção de Winnicott, a principal dificuldade da psicanálise tradicional em tratar dos casos de tendência antissocial e de psicose decorria do fato de ela pensar a etiologia dos distúrbios psíquicos em termos relacionados aos conflitos “pulsionais” intrapsíquicos, deixando de ver que, pelo menos nesses casos, a patologia ou a anormalidade estava primariamente no ambiente e só secundariamente na criança. Em outras palavras, Winnicott entendeu que era necessário mudar a etiologia dos distúrbios em questão. A partir do início dos anos 1940, ele passara a sustentar que a tendência antissocial, os comportamentos delinquentes e os distúrbios de caráter (psicopatias) decorrentes eram causados pela falha ambiental ocorrida num estágio de dependência relativa, no qual o indivíduo já adquirira uma organização egoica suficiente para perceber o fato da deprivação (deprivation) efetiva (perda de um objeto ou de um quadro de referência que já foi experienciado como bom e disponível) e para avaliar que a responsabilidade pela perda era do ambiente (que este ficou lhe devendo algo). Dessa forma, a etiologia tradicional, baseada nos conceitos de pulsão e de conflito interno, foi substituída pela compreensão em termos de necessidade pessoal de asseguramento e de perda de confiança no ambiente, com a consequente crise relativa ao autocontrole e à identidade pessoal.7 Quanto à psicose, aproximadamente na mesma época,8 Winnicott chegou à “inesperada conclusão de que a esquizofrenia era uma espécie de doença provocada por uma deficiência ambiental” (1958a/2000, p. 239). A esquizofrenia se origina – esta é a tese que Winnicott começará a defender apoiado, de novo, em dados colhidos na sua intensa clínica pediátrica – no estágio de dupla dependência, ou seja, no período no qual o indivíduo em desenvolvimento ainda não adquiriu a capacidade de ter consciência da sua dependência do ambiente externo e de se dar conta das falhas deste (1965b/1983, pp. 123-124). Daí se segue – cito agora um texto tardio de 1969 – que “a teoria psicanalítica precisava ser desenvolvida ou modificada, se é que o analista quer ter esperanças de tornar-se capaz de lidar com fenômenos esquizoides no tratamento dos pacientes” (1989a/1993, p. 198). Num outro trabalho, escrito no mesmo ano, Winnicott enunciara a mesma tese em termos que revelam claramente a sua preocupação com a inércia intelectual dos psicanalistas, devida à formação ortodoxa e aos hábitos de trabalho desses profissionais, que impedem o progresso da psicanálise: Para fazer progresso no sentido de uma teoria operacional da psicose, os psicanalistas devem abandonar toda a ideia da esquizofrenia e da paranoia, tal como vistas em termos de regressão, a partir do complexo de Édipo. A etiologia desses distúrbios leva-nos inevitavelmente a estágios que precedem o relacionamento de três corpos. O corolário estranho é que existe, na raiz da psicose, um fator externo. É difícil para os psicanalistas admitir isto, após todo o trabalho que tiveram chamando a atenção para os fatores internos, ao examinarem a etiologia da psiconeurose. (1989a/1993, p. 191) Foi por considerações desse tipo, relacionadas essencialmente à capacidade de a psicanálise resolver problemas clínicos no seu quadro teórico – e não por análises abstratas, de cunho especulativo, exemplificadas pela obra de Lacan9 –, que surgiu a matriz disciplinar da psicanálise winnicottiana, substancialmente diferente da de Freud. Cabe destacar, contudo, que a mudança do paradigma freudiano foi elaborada por Winnicott de maneira a preservar “as pontes que levam da teoria mais antiga para a mais nova” (1989a/1993, p. 198). Tratava-se de “retornar ao meio ambiente sem perder tudo o que fora ganho pelo estudo dos fatores internos” (1989a/1993, p. 439). Que modificações seriamnecessárias para assegurar o progresso da psicanálise nos campos assinalados? Em primeiro lugar, era preciso abandonar o paradigma edípico, baseado, conforme vimos, no papel estruturante do complexo de Édipo e na teoria da sexualidade concebida como a teoria-guia da psicanálise. O novo exemplar proposto por Winnicott é o bebê no colo da mãe, que precisa crescer, isto é, constituir uma base para continuar existindo e integrar-se numa unidade. A generalização-guia mais importante é a teoria do amadurecimento pessoal, da qual a teoria da sexualidade é apenas uma parte. Se supusermos que a mudança winnicottiana do paradigma freudiano aconteceu, como diria Kuhn, de forma análoga a um Gestalt switch, ela não podia limitar-se a pontos isolados, devendo abranger todo o campo teórico da psicanálise. É fácil mostrar que, de fato, Winnicott também introduziu um novo modelo ontológico do objeto de estudo da psicanálise, centrado no conceito de tendência para a integração, para o relacionamento com pessoas e coisas, e para a parceria psicossomática. A sua metodologia preserva a tarefa de verbalização do material transferencial, admitindo, contudo, apenas interpretações baseadas na teoria do amadurecimento, sem recurso à metapsicologia freudiana, e incluindo também o manejo da regressão à dependência e do acting-out dos antissociais. O valor principal é a eliminação de defesas endurecidas, paralisadoras do amadurecimento, e a facilitação para que agora aconteça o que precisava ter acontecido, mas não aconteceu; bem como que se junte o que permaneceu ou se tornou dissociado, ou mesmo cindido. O sofrimento decorrente de conflitos, internos ou externos, deixa de ser o fundamental, fica em segundo plano, considerado parte da vida sadia. Em virtude da importância da relação mãe-bebê na psicanálise de Winnicott, passei a chamar o seu paradigma de dual. Visto que a generalização-guia é a teoria do amadurecimento, sugeri ainda que chamá- lo de maturacional.10 Este termo não deve ser tomado no sentido exclusivamente biológico, pois, além do lado anatômico-fisiológico, o desenvolvimento humano tem, ainda, o lado pessoal. Winnicott é claro: O que temos aí é uma braçada de anatomia e de fisiologia e, acrescentado a isto, um potencial para o desenvolvimento de uma personalidade humana. Existe uma tendência geral voltada para o crescimento físico, e uma tendência ao desenvolvimento na parte psíquica da parceria psicossomática; existem, tanto na área física quanto na psíquica, tendências hereditárias, e estas, do lado da psique, incluem as tendências que levam à integração ou à conquista da totalidade. A base de todas as teorias sobre o desenvolvimento da personalidade humana é a continuidade, a linha da vida, que provavelmente tem início antes do nascimento efetivo do bebê [...]. (1987a/1988, p. 79) Ao longo de uma pesquisa conduzida no quadro desse novo paradigma (e que se estendeu por décadas), Winnicott ofereceu uma articulação detalhada de duas das suas teses teóricas mais importantes sobre a etiologia dos distúrbios psíquicos: 1) que o processo fundamental perturbado não é o desenvolvimento sexual, mas o amadurecimento emocional, e 2) que o fator externo, isto é, o ambiente facilitador, tem uma importância decisiva no surgimento dos distúrbios psíquicos. Em primeiro lugar, Winnicott detalhou os três modos básicos de perturbação do processo de amadurecimento: a não constituição do si-mesmo, a repressão dos instintos e a perda do objeto e/ou a perda do quadro de referência já constituído, com a consequente perda do si-mesmo. Esse desenvolvimento teórico tornou-se, por sua vez, a base das suas considerações sobre a classificação dos distúrbios psíquicos e a divisão destes em três categorias básicas, enumeradas aqui na semiordem11 de seu surgimento durante o processo maturacional: 1) as psicoses, 2) as depressões reativas e as psiconeuroses e 3) a tendência antissocial seguida ou não de delinquência e de distúrbios de caráter.12 Em segundo lugar, Winnicott abordou, em diversos estudos, a etiologia de cada uma dessas formações em razão de falhas ambientais ocorridas em diferentes fases do processo de amadurecimento, mostrando, em detalhe, que as psicoses decorrem da privação da facilitação ambiental na fase de dependência absoluta, e mesmo relativa, do bebê com relação à mãe- ambiente facilitador, que as psiconeuroses e as depressões reativas se devem ao não atendimento ou mesmo à repressão dos instintos nas fases do concernimento13 ou do Édipo, e que a tendência antissocial é antes uma reação à deprivação, isto é, à perda da facilitação ambiental já experienciada como boa e avaliada como uma falha do ambiente (1989a/1993, p. 440). Com base em seus estudos sobre a classificação dos distúrbios e a etiologia destes, Winnicott ampliou e modificou substancialmente o conceito de clínica psicanalítica, descrevendo três variedades básicas de “psicoterapia”: a das psicoses, a das depressões reativas e das neuroses, e a da tendência antissocial (1984a/1995, cap. 27). A variedade da psicoterapia para as psicoses caracteriza-se, sobretudo, por uma organização complexa do holding, que permite a regressão à dependência, fenômeno essencialmente distinto da regressão aos pontos de fixação da libido. No caso das psicoses, a clínica tradicional revela-se inapropriada precisamente devido ao erro teórico que consiste em confundir esses dois tipos de regressão, pois considera “que o termo ‘adaptação às necessidades’ no tratamento de pacientes esquizoides e no cuidado do lactente significa satisfazer os impulsos do id” (1965b/1983, p. 217), o que, segundo Winnicott, é inteiramente inadequado. A segunda variedade, a das depressões reativas e das neuroses, vale-se do setting clássico desenhado por Freud e trabalha com interpretação. A terceira, a da tendência antissocial, na medida em que compete à psicanálise propriamente dita, e não ao manejo familiar ou social em geral, consiste em admitir a atuação do paciente como parte da transferência, entendendo que se trata de um sinal de esperança que precisa ser compreendido como tal e valorizado positivamente (1965b/1983, p. 217). 3. Detalhamento de alguns aspectos teóricos da revolução winnicottiana A fim de preparar a minha análise da teoria da sexualidade elaborada por Winnicott como parte integrante da sua teoria do amadurecimento, convém aprofundar alguns pontos teóricos do seu paradigma.14 As diferenças com Freud servirão de evidências adicionais de que Winnicott produziu uma mudança na psicanálise que pode ser caracterizada como revolução científica num sentido próximo ao de Kuhn. Começo pelo modelo ontológico do objeto de estudo da psicanálise. Enquanto a psicanálise tradicional estuda o psiquismo humano15 – concebido metapsicologicamente (especulativamente) como um aparelho movido a pulsões dirigidas para objetos (o papel central do relacionamento objetal sendo a satisfação) –, a winnicottiana jamais se distancia da “relação” factual indivíduo-ambiente, o indivíduo sendo caracterizado pela tendência para o amadurecimento e o ambiente, investido do papel de facilitador dessa tendência. De acordo com o preceito de manter abertas as pontes entre o paradigma antigo e o novo, Winnicott esforçar-se-á por preservar o que for possível da teoria antiga e, sobretudo, a eficácia clínica da psicanálise. Nesse espírito, os conceitos de pulsão, de “relação de objeto”, de aparelho psíquico, de inconsciente etc. serão reinterpretados, isto é, transpostos para a linguagem experiencial do paradigma winnicottiano. Tal transposição não é uma simples tradução – visto que os conceitos metapsicológicos de Freud são, por definição, especulativos, isto é, não aplicáveis diretamente à experiência clínica –, mas algo semelhante a uma paráfrase para um campo semântico essencialmente diferente: o da linguagem que se quer essencialmente descritiva. O lugar do conceito especulativo de pulsão é ocupado por, pelo menos, três conceitos radicalmente distintos entre si, todos referentes à experiência possívelde um bebê humano: 1) o de necessidade (need) do indivíduo humano de ter um ambiente favorável no qual possa continuar crescendo, tornar-se alguém (um si-mesmo), e entrar em contato com objetos, e relacionar-se com eles de diversas maneiras, 2) o de instinto (instinct) ou de impulso (drive) biológico, de onde se originam as pressões em direção de objetos externos, e 3) o de desejo (wish), que investe ou cria objetos, apoiado em sonhos ou fantasias mais ou menos sofisticadas.16 Como sugeri num trabalho anterior, as necessidades e instintos podem ser englobados sob o título de urgências e a vida humana pode ser caracterizada pela urgencialidade, ao invés de pela pulsionalidade (cf. Loparic, 2001b). Há quem sustente que os termos “instinct” e “drive” de Winnicott são emprestados das traduções inglesas do termo “Trieb” de Freud, comumente vertido em português por “pulsão”. Essa interpretação é um sério engano, como se pode concluir facilmente da comparação das teses de Winnicott sobre os instintos com a doutrina das pulsões de Freud. Destacarei apenas três diferenças. Os instintos, diz Winnicott, “são impulsos [drives] biológicos poderosos que vão e vêm na vida do lactente ou da criança e que exigem ação” (1988/1990, p. 57). Trata-se, portanto, da animalidade do ser humano.17 Na obra madura de Freud, as pulsões não são impulsos biológicos factuais, mas entidades especulativas que existiriam na fronteira entre o físico e o psíquico ou, então, forças psíquicas de caráter mítico. Em segundo lugar, o vaivém dos instintos na vida de um indivíduo (a alternância entre os estados tranquilos e excitados) só passa a fazer sentido, segundo Winnicott, depois que esse indivíduo integrar seus estados excitados como internos, o que ocorre na fase de concernimento, portanto, já bastante longe das fases iniciais. O si-mesmo (the self) tem que “preceder o uso do instinto pelo si-mesmo” (1971a/1975, p. 137). Em Freud, as pulsões agem em pleno direito no interior do psiquismo humano desde o início, por serem seus elementos constitutivos. Em terceiro lugar, Winnicott rejeita o dualismo pulsional de Freud. A introdução dos conceitos de pulsão de vida e de morte é o principal “deslize teórico” de Freud, responsável por graves deficiências da psicanálise tradicional (M. Klein inclusive): a incapacidade de compreender o processo de amadurecimento pessoal e a produção das teorias da morte e da agressão, inaceitáveis, porque “falsas”.18 A introdução dos conceitos de necessidade, instinto e desejo permitiu a Winnicott dar um outro passo extremante importante: redefinir as relações do indivíduo humano não somente com seus “objetos”, isto é, com outros seres humanos, mas com seu mundo, de início também essencialmente humano.19 Como disse anteriormente, todo ser humano necessita estar alojado (assentado) em um ambiente – em outras palavras, habitar um ambiente20 – que lhe facilite a resolução das tarefas específicas da fase do amadurecimento em que se encontra; entre elas, a tarefa de estabelecer, preservar ou modificar suas relações com objetos. Essas relações, por seu turno, podem ser de vários tipos radicalmente diferentes: egoicas, instintuais e desejantes. As primeiras são estabelecidas para atender às necessidades do processo de integração como tal, os objetos sendo usados como apoio, consolo, meios para fins, aquilo que concerne à criança, inspira compadecimento, suscita cuidados etc. Nas relações instituais, busca-se a diminuição da tensão instintual e a recompensa na forma do prazer.21 As relações de desejo perseguem várias metas, mais sofisticadas e, no entanto, talvez menos fundamentais. Em todos os casos, é a relação com o ambiente – o assentamento nele – que possibilita as relações objetais, sejam elas de dependência, de satisfação instintual ou de desejo acompanhado de fantasia. Darei alguns exemplos de relações egoicas com objetos que apresentam uma das mais importantes contribuições de Winnicott à teoria psicanalítica das relações objetais. Na fase da primeira mamada teórica, em virtude da sua tendência inata para o amadurecimento, o bebê humano, amparado pela mãe-ambiente subjetivo, vai resolvendo as três tarefas fundamentais do período inicial do seu amadurecimento: integra-se no tempo e no espaço, aloja-se no corpo (a sua primeira morada) e inicia o relacionamento com os objetos. No caso desta última tarefa, o amparo da mãe-ambiente consiste na apresentação de objetos ainda não objetificados: em primeiro lugar, ela mesma e seu corpo (mais precisamente, uma parte dele: o seio) como objeto subjetivo e, em segundo lugar, os seus substitutos, também enquanto objetos subjetivos. Em outras palavras, nessa situação inicial ainda não existe a relação com a mãe-objeto como tal, pois ainda não existem dois entes separados que possam ser relacionados um com o outro. “É axiomático”, escreve Winnicott, “que não há relação com o objeto subjetivo” (1989a/1993, p. 221). Trata-se da identificação primária do bebê com a mãe, pela qual ele é a mãe (o seio). Em seguida à fase inicial, o ambiente já não é mais simplesmente a mãe, mas o espaço potencial entre a mãe e o bebê, sustentado, contudo, pela mãe-ambiente. Nesse “entre” os dois, acontece um desenvolvimento extremante importante no relacionamento objetal dos bebês: a mãe-objeto subjetivo e parcial (seio) passa a ser substituída e simbolizada por objetos transicionais. Na fase do concernimento (estou pulando várias fases; algumas delas serão consideras a seguir), posterior à separação já consumada da mãe subjetiva, o ambiente é o círculo benigno, isto é, ainda é a mãe-ambiente – só que, desta vez, na qualidade de ambiente externo percebido como tal –, dedicada a sustentar no tempo o uso excitado pelo bebê dela mesma como mãe-objeto externo, ou seja, aceitando ser objeto do uso instintual do bebê. E assim por diante, até a mãe tornar-se objeto do desejo da criança já na fase fálica ou edípica. Elaborando essas análises, Winnicott desenvolveu uma teoria do amadurecimento baseada em várias distinções fundamentais, inexistentes ou, pelo menos, não trabalhadas de maneira satisfatória em textos da psicanálise tradicional. A mais decisiva delas é a diferença entre o objeto e o ambiente (mundo), com a ênfase sobre o ambiente enquanto condição não-objetual possibilitadora de objetos, que é o fundamento de uma outra: a distinção entre relação com objeto e relações com o ambiente. Dessa forma, Winnicott abandona um elemento fundamental do componente ontológico da psicanálise tradicional: a relação sujeito-objeto – embutida tanto na teoria freudiana da pulsão como na da identificação, e que continua presente nas fórmulas dos teóricos das relações objetais (Fairbairn) e mesmo na posição idiossincrática de Lacan –, abrindo essa disciplina para uma dimensão ontológica essencialmente nova. Essa mudança só pode ser devidamente apreciada à luz da ontologia fundamental de Heidegger, em particular, da sua crítica da relação sujeito-objeto e do seu conceito de ser- no-mundo como modo se ser possibilitador de todas as relações com os outros seres humanos e com as coisas. A distinção entre ambiente (mundo) e objeto no ambiente permite ainda que se estude, de maneira organizada, vários tipos de ambiente – mãe- ambiente, espaço potencial, mundos interno e externo, círculo benigno, família, escola, ambiente social – e diversos tipos de objeto – objetos subjetivos, transicionais, lúdicos, instintuais (“pulsionais”), externos, internos etc. A teoria do amadurecimento permite uma reelaboração das posições tradicionais sobre esses temas, caso elas existam. Por um lado, fica possível a distinção entre modos sadios (ativos, maduros) e não sadios (reativos, imaturos) de alojamento em ambientes. Os modos sadios podem ser ilustrados pelas capacidades do bebê de sair do colo materno, habitar o espaço potencial, sonhar com um clube, mover-se no círculo benigno da fase do concernimento etc.; já os modos não sadios, pela tendência de se agarrar ao colo da mãe, a incapacidade de brincar, de sonhar,pela tendência para fanstasying, a inibição em virtude da quebra do círculo benigno, o humor depressivo, bem como defesas ou regressões causadas por conflitos instintuais nas relações familiares. Por outro lado, Winnicott distingue entre relacionamento sadio e reativo com objetos. Pertence ao primeiro tipo chupar o polegar (veremos isso a seguir), usar objetos externos para atender às necessidades egoicas, usar objetos em ações que visam à satisfação instintual, poder ser responsável, poder ser agressivo etc. Da mesma forma, não saber substituir o seio materno, fetichizar o objeto transicional e não saber escolher entre objetos são exemplos de modos patológicos (reativos) de relacionamento objetal. Todos esses conceitos de relação só recebem significado preciso se forem referidos às fases sucessivas do acontecer maturacional, caracterizadas por tarefas específicas a serem resolvidas por cada indivíduo, os objetos sendo de diferentes tipos, de acordo com o grau de amadurecimento alcançado pelo indivíduo. Embora continue usando, como observei, as expressões “objeto” e “relação com objeto” do jargão psicanalítico, sobretudo quando discute com psicanalistas as relações instintuais com objetos do mundo externo, Winnicott emprega os termos “pessoa” e “relação pessoal” ou “interpessoal” cada vez que deseja enfatizar que está tratando de relações dos seres humanos entre si. De resto, o uso indiscriminado do termo “objeto” reforça a tendência para o naturalismo objetificante que passou a dominar as relações inter-humanas e a teorização sobre os seres humanos nos dias de hoje, apesar de inaceitável tanto do ponto de vista teórico (filosófico)22 como moral.23 Aos impasses teóricos somam-se os técnicos, que impedem, para muitos psicanalistas ortodoxos, aceitar e valorizar positivamente a contribuição pessoal dos pacientes na relação clínica definida por condições especiais e controladas – o caráter impessoal do setting tradicional foi também objeto de constantes críticas de Winnicott.24 Por tudo isso, quando se discute a psicanálise em geral e, em particular, a de Winnicott, creio ser oportuno evitar falar em “relações de objeto” nos contextos em que se diz algo sobre relacionamentos entre pessoas (entre um si-mesmo e um outro si-mesmo) e mesmo sobre coisas que não são meros “objetos externos objetivamente percebidos”, como são as de uso cotidiano ou as obras de arte.25 Pelos mesmos motivos, convém ter cautela – sempre tomando o cuidado de não produzir colapso de comunicação – ao usar os termos “sujeito” e “relação sujeito-objeto”. No início da vida, o bebê humano não é um sujeito, pois nem ao menos existe como alguém independente. Ele precisa chegar a existir antes de poder executar qualquer operação mental ou acional elaborada (ter necessidade instintual, desejar, projetar, pensar, atuar etc.), antes, portanto, de criar capacidades que são tradicionalmente – na filosofia e, por influência desta, na psicanálise – tomadas como traços essenciais da subjetividade humana. Mesmo os adultos escapam cotidianamente da condição de sujeito, pois, na maioria das vezes, cuidam dos problemas das suas vidas apoiados na identidade primária, adquirida muito cedo no processo de amadurecimento pela identificação com a mãe- objeto facilitada pelos cuidados da mãe-ambiente, anteriormente ao desenvolvimento da capacidade representacional. A intra-humanidade da dupla mãe-bebê é anterior à intersubjetividade. Tal como o de objeto, o conceito de sujeito usado na psicanálise é ambíguo e fonte de confusões teóricas e clínicas graves. Além de ter abandonado o conceito de pulsão e modificado de maneira radical o de relação objetal, Winnicott também substituiu o conceito freudiano de aparelho psíquico por integração ou identidade pessoal, resultado do “desenvolvimento emocional da pessoa individual” – tema principal da teoria winnicottiana do amadurecimento humano.26 É verdade que Winnicott continuou usando os termos metapsicológicos freudiano que designam as instâncias psíquicas, mas ele lhes atribuiu outras acepções. Depois de ter deixado claro que “ego” é um termo teórico sem sentido determinado na linguagem cotidiana – “usado por conveniência, com sentido acordado” entre os psicanalistas –, Winnicott o emprega, tal como faz a psicologia do ego, para falar da “evolução do ego, incluindo o conceito de tendência para a integração, para a capacidade de relacionamento com objetos e para a parceria psicossomática” (1989a/1993, p. 371). Essa tendência atinge um momento decisivo na fase do “EU SOU”, na qual é criada a diferença entre o si-mesmo e o mundo exterior como tal, permitindo que o indivíduo se experiencie, pela primeira vez, habitado por instintos e se torne, com o tempo, responsável por estes. O termo “id” passa a designar a vida instintual no sentido de um conjunto de funções corpóreas “registradas, catalogadas, experienciadas e finalmente interpretadas pelo funcionamento do ego”, isto é, pelo processo integrativo.27 Sendo assim, sem o ego não há o id – tese que difere radicalmente da afirmação ortodoxa de o ego ser um desdobramento do id. Finalmente, depois de ter reconhecido que o termo “superego”, por não fazer parte da linguagem cotidiana, pode também ser usado “de qualquer maneira que decidirmos”, Winnicott propõe a distinção entre dois usos: o de Freud e o dele próprio, feito na teoria do amadurecimento. Em Freud, o “superego” designa algo que pertence especificamente “à passagem do complexo de Édipo”, mas que, não obstante, é construído gradualmente pela evolução dos mecanismos intrapsíquicos que supostamente datam do início da vida do indivíduo (1989a/1993, p. 355). Segundo a teoria winnicottiana do amadurecimento, esses mecanismos do funcionamento mental primitivo “não devem ser chamados de superego”. Cabe, ao invés disso, atentar para a diferença “entre a idade pré-autônoma e a idade autônoma” e para a “jornada que vai da dependência à independência” (1989a/1993, p. 355). É ao longo dessa transição, mais precisamente na fase do concernimento – isto é, ainda na relação dual, pré-edípica –, que o indivíduo adquire vários elementos que constituirão a parte essencial da moralidade adulta, a começar por uma capacidade de reconhecer o outro enquanto outro: a capacidade de sentir-se pessoalmente responsável (“concernido”) pelos danos causados ao ambiente decorrentes do uso excitado da mãe-objeto. Nessa perspectiva, o superego impessoal freudiano da censura, da culpabilização e da necessidade de punição em termos de lei passa a figurar como traço do falso si-mesmo ou até mesmo como indício de desvios patológicos. Dessa reformulação (no quadro da teoria do amadurecimento) da teoria estrutural da mente elaborada por Freud decorrem importantes consequências, tanto para a teoria psicanalítica da origem e do sentido da moralidade – a sua origem é pré-edípica e o seu sentido desvinculado da lei, inclusive da lei de incesto – como para a teoria da cultura. “Freud, na sua topografia da mente, não encontrou lugar para a experiência cultural”, afirmou Winnicott em 1966 (1988/1990, p. 133). Dois anos mais tarde, ele estenderá essa crítica a todos os psicanalistas que trabalham no paradigma freudiano, dizendo que a “abordagem ortodoxa” do ser humano, feita em termos da metapsicologia, “não concedeu nenhum lugar para a experiência cultural” (1989a/1993, p. 160). A experiência cultural é um fenômeno que não acontece no aparelho psíquico, mas no espaço potencial, numa área entre a mãe e o bebê que não é nem externa (física) nem intrapsíquica, mas que, não obstante, deve ser pensada como parte da organização do si- mesmo do bebê. Aberto na fase de transicionalidade (com base na experiência de confiabilidade do ambiente), esse espaço é inicialmente ocupado por relacionamentos objetais do tipo não orgiástico, a saber, pelo brincar, atividade criativa e excitante, não por ser impulsionada pelos instintos, mas por refletir a precariedade que, na experiência do bebê, caracteriza o jogo livre entre o mundo subjetivo e o mundo objetivamentepercebido (1988/1990, p. 77). Uma outra mudança conceitual importante merece ser destacada. De acordo com a sua visão de que a psicanálise precisa de diferentes tipos de linguagem, Winnicott praticamente limitou o uso do conceito de inconsciente freudiano à descrição de excitações instintuais e fantasias correspondentes que, por serem reprimidas, não são acessíveis à consciência, e, nesse sentido específico, não integradas (1988/1990, p. 67). Trata-se de fatos objetivos da vida psíquica, de algo que foi reprimido por ser inaceitável à consciência, mas que tende a se tornar consciente e que, levantadas as resistências, pode se tornar consciente. Entretanto, o conceito freudiano de inconsciente reprimido não pode ser usado para falar das dissociações e das cisões identificadas por Winnicott em pacientes psicóticos e outros. Nesses casos, o inconsciente é algo não-mental e mesmo não-psíquico: a dissociação e a cisão não dizem respeito à não- aceitabilidade de estados mentais pela consciência ou pelo intelecto, quer teórico quer prático, mas à não-integração ou, ainda, à desintegração pessoal e/ou psicossomática – falha concebida seja como uma parada do amadurecimento seja como uma perda de aquisições já realizadas. Dito em uma outra linguagem, mais próxima de Heidegger: o inconsciente winnicottiano consiste no não-acontecido (mas que precisava acontecer) e no “desacontecido” (mas que precisava continuar sendo); em algo, portanto, que precisa ser vivido ou revivido e que não necessita de elaboração representacional ou simbólica. Exemplo típico do inconsciente winnicottiano não-acontecido e não- mental são “os cortes no fio da continuidade do si-mesmo”, relacionados às repetidas fases de reação prolongada a uma intrusão ambiental durante o parto. Os indivíduos traumatizados devido principalmente à demora desse processo continuam precisando reencenar os cortes acontecidos, isto é, nascer pela primeira vez de verdade. Para tanto, buscam oportunidades para regredir à dependência, mas precisamente a um estado intrauterino, tanto na vida real (por exemplo, a falsa homossexualidade) como na análise (como a compulsão a ter uma mão na testa, representando o corpo da mãe). Ao oferecer o setting adequado para esses “não-nascidos”, o analista propicia a atuação (acting-out) de traços mnemônicos relativos ao nascimento e preservados na memória corporal, fenômeno clínico que difere radicalmente das brincadeiras de crianças que contêm simbolismos ligados ao nascimento e das fantasias de adultos que, conscientemente ou não, relacionam-se com o nascimento. Os pacientes desse grupo, em particular os psicóticos, tendem, diz Winnicott, a “reviver” a experiência do nascimento reativando certas funções corpóreas e “passando ao largo de fantasias que se expressam por símbolos” (1958a/2000, p. 272). Esse esforço em desfazer a não-integração é radicalmente distinto não somente de processos conscientes, mas também de processos primários no sentido de Freud. Uma outra ilustração do conceito de winnicottiano de inconsciente não- mental é dada pela produção, na fase do concernimento (cujo ápice se situa por volta dos dois anos e meio), de uma ordem ou padrão no mundo interno mediante um “trabalho que não é mental nem intelectual”. Trata-se de uma tarefa psicossomática intimamente relacionada “à tarefa da digestão, que também se realiza à margem do entendimento intelectual, o qual pode acontecer ou não” (1988/1990, p. 97). Ao se livrar da teoria freudiana das pulsões, Winnicott abandonou também a busca do prazer como princípio determinante da vida humana. Sem ignorar que os indivíduos humanos também procuram obter prazer, ele nega que isso ocorra, como sustenta Freud, em virtude de um princípio de funcionamento causal do aparelho psíquico. O indivíduo humano não se relaciona com outras pessoas por buscar o prazer, mas por precisar da presença e da confiabilidade dos outros para que sejam atendidas as suas necessidades egoicas e por necessitar que sejam satisfeitas as suas tensões instintuais. Neste último caso, “satisfazer” significa, em primeiro lugar, aplacar ou acalmar; o termo “acalmar” tomado no sentido descritivo e não metapsicológico (diminuição da pressão “pulsional”). O prazer não fica de fora, mas tem o sentido de “recompensa” pela satisfação encontrada no clímax da exigência do instinto (1988/1990, p. 57). Winnicott também opera várias mudanças importantes no componente metodológico da matriz disciplinar da psicanálise. Em primeiro lugar, recusa a teorização metapsicológica, que trabalha com conceitos especulativos, não testáveis no domínio de dados clínicos, e opta pela teorização de tipo “empírico”, a que procede “pela observação dos fatos, pela construção da teoria e seus testes, e pela modificação da teoria de acordo com a descoberta de novos fatos” (1996a/1997, p. 23). Em segundo lugar, Winnicott distingue diferentes modos de construção de teorias empíricas, levando em conta os fatos tratados e a linguagem empregada. Um desses modos, característico da teoria freudiana das relações instintuais da fase do Édipo ou das fases ainda mais tardias, vale-se da objetificação do “material clínico” – isto é, trata os fenômenos clínicos como fatos da natureza, pertencentes ao mundo externo refletido no psicanalista-espelho – e emprega uma linguagem também objetificante. Sem abandonar por completo esse procedimento, Winnicott introduziu de maneira sistemática um modo de teorização diferente,28 que corresponde a uma atitude participativa e não-objetificante do analista, empregando uma linguagem de comunicação direta, também não-objetificante. Essa linguagem é usada para trazer a palavra aos fatos pertencentes aos mundos próximos da origem, isto é, para descrever os ambientes nos quais se constitui o ser dos bebês humanos no período inicial do processo de amadurecimento – que vai da fase chamada primeira mamada teórica ao estágio do concernimento, inclusive – ou para descrever os estados muito regredidos de adultos.29 Segundo Winnicott, a “linguagem dos instintos” não pode dizer tudo o que, na psicanálise, precisa ser dito sobre o ser humano. Usada na caracterização de fases anteriores à edípica, ela torna-se “errada” (1988/1990, p. 52). Ao atentar para a multiplicidade de mundos criados e habitados pelo seres humanos ao longo do processo do amadurecimento, assim como para a diversidade de objetos e relações com os quais se veem envolvidos, Winnicott reconheceu a necessidade de usar a multiplicidade dos dizeres30 a fim de falar desses mundos. Embora desconfiasse de quem se compraz em introduzir palavras novas, ele modificou radicalmente o vocabulário da psicanálise. Os termos winnicottianos tais como “solidão essencial”, “continuidade do ser”, “ambiente”, “confiabilidade”, “experiência do nascimento”, “colo da mãe”, “objeto subjetivo”, “dois em um” (relação dual mãe-bebê), “objeto transicional”, “holding”, “manejo”, “apresentação de objeto”, “uso do objeto”, “brincar”, “estágio de concernimento”, “moralidade inata”, “senso de responsabilidade”, “experiência cultural”, “privação”, “deprivação”, “tendência antissocial”, “jogo de rabisco”, “regressão à dependência”, mesmo sem serem inicialmente cunhados por ele, são apenas alguns dos que mudaram radicalmente a paisagem intelectual da psicanálise dos nossos dias. Seria um engano pensar que essas considerações, de natureza abstrata e mesmo filosófica, estejam aqui fora do lugar. Winnicott, tal como Freud, é um pensador radical. A sua obra exige leitores igualmente decididos, dispostos a levar em conta todos os aspectos importantes do seu novo paradigma e a romper, quando necessário, com usos estabelecidos. Referências31 Babich, B. E. (2001). Proceedings of the 35th Annual Heidegger Conference. New York: Fordham University. Caldwell, L. (Org.). (2005). Sex and Sexuality. Winnicottian Perspectives. London: Karnac. Dias, E. O. (2003). A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott. Rio de Janeiro: Imago. Dias, M. de F. (2005). Um estudo da teoria winnicottiana da sexualidade.
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