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Política Econômica em Foco, n. 1 – maio/ago. 2003. 1 INTRODUÇÃO Globalização e Integração Perversa Luiz Gonzaga Belluzzo Ricardo Carneiro O gesto americano de subir unilate- ralmente as taxas de juros em outubro de 1979 foi deflagrado com o propósito de resgatar a supremacia do dólar como moeda-reserva. O fortalecimento do dólar não só reafirmou a liderança do sistema financeiro e bancário americano, como engendrou uma nova etapa da reestruturação produtiva à escala global. A despeito das flutuações nas taxas de câmbio entre as moedas que comandam as três zonas monetárias (dólar, iene e marco-euro) – é possível vislumbrar uma tendência ao fortalecimento da moeda americana durante os dois ciclos de expansão dos anos 80 e 90. A nossa hipótese é que, depois da perda de posição observada nos anos 70, o reforço do dólar, como moeda de reserva e de denominação das transações comerciais e financeiras, promoveu profundas alterações na estrutura e na dinâmica da economia mundial. As transformações envolveram a redistribuição da capacidade produtiva na economia mundial – sobretudo na indústria manufatureira – e o aparecimento de desequilíbrios duradouros nos balanços de pagamentos entre os Estados Unidos, a Ásia e a Europa. Em dois momentos (1980-85 e 1995-2001), a valorização do dólar e a conseqüente expansão da posição devedora líquida dos Estados Unidos definiram o curso das transformações. Elas compreendem três movimentos simultâneos: 1) o avanço da internacionalização financeira, amparado primeiro na dívida pública americana e depois no endividamento privado dos anos 90; 2) os rumos da reestruturação produtiva, mediante as fusões e aquisições e o direcionamento dos fluxos de investimento direto “estrangeiro”; 3) as mudanças importantes, daí decorrentes, na divisão internacional do trabalho e nos padrões de comércio. Nos anos 80, o déficit orçamentário do governo Reagan foi o responsável pelo crescimento rápido do, até então, mais imponente déficit comercial do pós-guerra. Já nos anos 90, a ampliação do déficit em conta corrente dos Estados Unidos foi provocada por um forte crescimento do gasto e do endividamento privados. Nos dois momentos, é fundamental sublinhar, a economia americana ganhou liberdade para adotar, primeiro uma política fiscal expansionista e, nos anos 90, uma política monetária e de crédito permissiva. Em ambas as situações, o crescimento a taxas elevadas foi caracterizado por uma expansão da demanda nominal a um ritmo bem superior ao exibido pela produção doméstica, bem como por um crescimento da relação endividamento total/PIB. Importante para a revitalização da finança de mercado foi o papel desempenhado, no início dos anos 80, pela ampliação do endividamento público americano, de maior qualidade, fenômeno crucial para socorrer as carteiras e conter o colapso dos bancos envolvidos com a crise da dívida do Terceiro Mundo. As dívidas públicas dos Estados Unidos e da Europa cresceram rapidamente na década de 80, engordadas pelas taxas de juros elevadas. O crescimento “endógeno” do endividamento público foi acompanhado de uma maior dependência dos governos em relação aos mercados financeiros internacionalizados. A partir de então, de forma inédita na história da internacionalização capitalista, os Estados Unidos passaram da posição de maiores credores à de maiores devedores do mundo – tanto do ponto de vista interno quanto do externo. Assimetria e Polarização A inserção dos países neste processo de globalização foi hierarquizada e assimétrica. Os Estados Unidos foram capazes de impor a dominância de sua moeda, mantendo, ao mesmo tempo, um déficit elevado e persistente em conta corrente e uma posição devedora externa. Aulus Destacar Aulus Destacar Aulus Destacar Aulus Destacar Aulus Destacar INTRODUÇÃO – Globalização e Integração Perversa / Luiz Gonzaga Belluzzo / Ricardo Carneiro 2 Como já havíamos observado no início dos anos 80, a partir de então “a política de supply side economics, combinada com a sobrevalorização do dólar, permitiu à economia americana retomar o crescimento sem pressões inflacionárias, com elevação dos salários reais e expansão monetária acima da renda nominal. Neste verdadeiro ajuste às avessas, os Estados Unidos conseguem, simultaneamente, obter transferências de liquidez, de renda real e de capitais do resto do mundo... A retomada do crescimento americano se fez com uma função de oferta global com rendimentos crescentes e grande capacidade de resposta aos estímulos da demanda. À elevação do déficit comercial corresponde uma tentativa de obtenção de saldos comerciais crescentes dos demais países industrializados. Exportar é a solução para todos, menos para a economia dominante, cuja solução é importar barato.” (Tavares & Belluzzo).1 O último ciclo comprovou a eficácia e o poder dessa forma polarizada de integração financeira e produtiva: a abertura das contas de capital do resto do mundo propiciou ao mercado financeiro dos Estados Unidos a oportunidade de comandar uma formidável expansão do crédito à produção e ao consumo. A alavancagem das famílias e das grandes empresas produtivas e o elevado endividamento setor financeiro americano são a contrapartida do portentoso afluxo de capitais, mobilizado a partir das posições superavitárias em conta corrente acumuladas na Ásia e na Europa e das saídas de recursos dos países deficitários e devedores. Durante os últimos 20 anos, a política monetária americana mostrou-se capaz de compatibilizar três objetivos: 1) administrar as condições de liquidez doméstica nas etapas de expansão e de contração dos dois ciclos; 2) garantir a resiliência do seu mercado financeiro, mediante intervenções de última instância e 3) preservar o papel do dólar como moeda-reserva. 1 Tavares, M. C., Belluzzo, L. G. Uma reflexão sobre a natureza da inflação contemporânea. In: Rego, J. M. Inflação inercial, teorias sobre a inflação e o Plano Cruzado. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1986. As transformações financeiras foram acompanhadas de mudanças na estratégia global da concorrência entre as empresas dominantes, com implicações sobre a natureza e a direção do IDE e do progresso técnico, levando a uma concentração impressionante do crescimento econômico em um número reduzido de países (ver SEÇÃO I). Ao longo das duas últimas décadas, o processo de concorrência encaminhou-se para a formação de joint ventures, o que implicava cooperação e alianças estratégicas entre grandes empresas, sustentando uma nova onda de progresso técnico, com difusão rápida nos anos 80. A rivalidade nos mercados nacionais foi ultrapassada pela estratégia de multiplantas, levada a cabo em espaços que permitiram a expansão combinada e virtuosa do investimento e do comércio. Dito de outra forma: a metástase do sistema empresarial da tríade desenvolvida – particularmente dos Estados Unidos – determinou uma impressionante ampliação dos fluxos de comércio (vide SEÇÃO I). Não se trata apenas de reafirmar a importância crescente do comércio intra-firmas, mas de destacar o papel decisivo do global sourcing, fenômeno que está presente, sobretudo, nas estratégias de deslocalização e investimento que, na década dos 90, beneficiaram as economias asiáticas, a China e agora os países do Leste Europeu. Do ponto de vista espacial, a Ásia converteu-se num dos principais loci da concorrência e da difusão acelerada do progresso técnico nos anos 80 (o Japão e a primeira geração de tigres asiáticos). A liderança no IDE mundial coube ao Japão, seguido de alguns países europeus que tentaram, inclusive, transnacionalizar o espaço americano. A partir do endaka e da desvalorização do dólar, na segunda metade dos anos 80, inicia-se uma nova etapa. Os Estados Unidos, além de continuaremsendo os maiores receptores de capitais globais, tornaram-se progressivamente grandes investidores na Ásia (os tigres de segunda geração e a China). No que diz respeito ao espaço latino-americano, o Brasil e os demais Aulus Destacar Aulus Destacar Aulus Destacar Aulus Destacar Aulus Destacar Política Econômica em Foco, n. 1 – maio/ago. 2003. 3 países da região ficaram de fora, por conta da crise da dívida externa da década de 80. O México foi o primeiro país da América Latina a retomar o IDE americano, estimulado pelo acordo de investimentos do Nafta. O Brasil acompanha passivamente a tendência dominante: na segunda metade da década dos 90 passa a receber predominantemente investimento direto estrangeiro destinado a fusões e aquisições, sobretudo na privatização dos serviços de utilidade pública e no setor bancário. A mudança de natureza das inversões diretas, com predominância de fusões e aquisições de empresas, iniciou-se nos Estados Unidos na década de 80. Estendeu-se aos demais países nos anos 90, acompanhada de uma grande expansão do investimento de portfólio e da formação de megacorporações. Esta aceleração da centralização de capital, apoiada na valorização global das Bolsas, ocorreu com maior intensidade na segunda metade dos anos 90. Trata-se, essencialmente, de um movimento de natureza patrimonial que deu lugar a dois processos simultâneos: a fusão de empresas, com fechamento de plantas no centro industrializado, e a concomitante deslocalização para a periferia dinâmica. Este último estágio da evolução da estrutura da concorrência mundial ensejou a criação concentrada de capacidade produtiva nos setores de nova tecnologia e nas regiões capazes de promover uma integração virtuosa ao processo de internacionalização capitalista. Os asiáticos sempre adotaram políticas mercantilistas de comércio exterior com o objetivo de sustentar estratégias de crescimento acelerado. A busca de saldos comerciais expressivos, com rápido crescimento das exportações, tem o propósito de permitir taxas de acumulação de capital muito elevadas, acompanhadas de altos índices de endividamento das empresas e de formação de poupança privada. Estas políticas – chamadas de neomer- cantilistas – colocam ênfase na obtenção de um saldo comercial favorável e na acumulação de reservas. Tais práticas afetam negativamente o comércio internacional, na medida em que perpetuam desequilíbrios nos balanços de pagamentos de outros países e subtraem liquidez às transações globais. Mas, num mundo em que são fortes as assimetrias de poder econômico e financeiro entre as nações, as práticas neomercantilistas não só têm propiciado o avanço tecnológico e produtivo das economias em desenvolvimento, como permitem a adoção de políticas monetárias mais frouxas, isto é, taxas de juros mais baixas que favorecem a expansão do crédito e do investimento domésticos. Isto porque a acumulação de reservas elevadas – capturadas através dos saldos comerciais e não de endividamento – garante o atendimento da demanda por liquidez em moeda forte e assegura a estabilidade da taxa de câmbio. O crescimento global nas décadas dos 80 e 90 ficou, portanto, polarizado: de um lado, o emissor da moeda reserva e sua enorme liberdade de expandir o crédito, o gasto, o déficit em conta corrente e o endividamento externo e, de outro, os países comprometidos com a atração do “novo” investimento estrangeiro e estratégias de crescimento mercantilistas, sempre apoiadas por elevadas taxas de investimento e poupança doméstica, industrialização rápida e permanente graduação tecnológica. O tema do momento, entre os analistas das tendências da economia mundial, é a resistência dos países asiáticos diante das sugestões ou das súplicas para que valorizem suas moedas. As razões das queixas são os efeitos negativos das políticas cambiais em curso na Ásia sobre os almejados processos de correção dos desequilíbrios de balanço de pagamentos entre os três blocos mais importantes da economia global. Desde que iniciou seu movimento descendente, no começo de 2000, o dólar perdeu 25% de seu valor em relação ao euro, mas apenas 10% ou menos quando cotejado com as moedas asiáticas. Permaneceu estável, diga-se, Aulus Destacar Aulus Destacar Aulus Destacar Aulus Destacar INTRODUÇÃO – Globalização e Integração Perversa / Luiz Gonzaga Belluzzo / Ricardo Carneiro 4 em relação ao yuan, a moeda chinesa. Em 2002, o déficit dos Estados Unidos com a China chegou a US$ 103 bilhões. As economias da Ásia, em conjunto, foram responsáveis pela metade do déficit total americano, superior a US$ 400 bilhões. Americanos e europeus estão incomo- dados com teimosia dos asiáticos, que não parecem dispostos a abandonar as políticas de subvalorização de suas moedas. E não é para menos: os dados da revista The Economist mostram que entre janeiro de 2002 e julho de 2003 a China acumulou mais US$ 60 bilhões de reservas em divisas, ultrapassando a cifra total de US$ 300 bilhões; o Japão aumentou suas reservas em US$ 36 bilhões, chegando a um total de US$ 500 bilhões; Taiwan engordou o seu caixa em US$ 45 bilhões, amealhando um total de US$ 190 bilhões. A Coréia foi mais modesta: poupou no período US$ 28 bilhões, atingindo um total de US$ 120 bilhões. A Índia não deixou por menos: no período em exame, ampliou em US$ 73 bilhões o seu estoque de reservas. Depois da crise de 1997, é compreensível que os países asiáticos, sobretudo os vitimados pelo colapso cambial e financeiro, desejem manter reservas elevadas para defender suas moedas de futuros ataques. Mas neste momento, as operações de esterilização – mediante a colocação de títulos públicos para absorver o “excesso” de liquidez gerado pela formação de reservas – vão se tornando cada vez mais onerosas. Muitos países da região, inclusive a China, estão estimulando empresas e famílias a adquirir ativos no exterior, como forma de evitar os efeitos monetários da expansão das reservas. Neste quadro, é arriscado apostar num ajustamento dos balanços de pagamentos, mediante um realinhamento das principais moedas. O que se pretende é a revalorização das moedas dos países superavitários e, portanto, um declínio do valor do dólar. Para ser viável tal realinhamento exigiria, de pronto, a redução dos ganhos de seignorage exercida pelos Estados Unidos e, conseqüentemente, a perda da liberdade de inflar a demanda nominal mediante a ampliação do déficit fiscal ou de políticas monetárias e de crédito generosas. Também significaria o abandono das estratégias mercantilistas por parte dos países superavitários, que deveriam, então, promover políticas de crescimento fundadas na expansão da demanda doméstica. O problema desta solução é que ela não parece compatível com as estruturas de produção, de gasto e de comércio exterior construídas ao longo das últimas duas décadas. Inserção Passiva e Vulnerabilidade À margem do circuito “virtuoso” estão os países que cederam às pressões para empreender, de forma imprudente, a abertura da conta de capital. Nos dias de hoje – tal como nas três últimas décadas do século XIX – a abertura e a descompressão financeiras nos países da periferia inverteram as determinações do balanço de pagamentos. Diante dos movimentos especulativos e de arbitragem das massas de capital monetário, os países da periferia – dotados de moedas frágeis, com desprezível participação nas transações internacionais – encontram-se diante dos riscos da valorização indesejada da moeda local, de operações de esterilização dos efeitos monetários da expansão das reservas (explosão da dívida pública), dos déficits insustentáveis em conta corrente e finalmente das crises cambiais e financeiras. A ampliação do déficit em conta corrente não corresponde primordialmente, nesses regimes de abertura financeira, à absorção de poupança externa. Isto significa que a transferênciade recursos reais é meramente residual e a taxa de investimento interno não se eleva. É fácil compreender que, diante da incerteza quanto ao rumo dos preços-chave da economia, juros e câmbio, o horizonte temporal das decisões de investimento encurta-se dramaticamente. Em um ambiente de liberalização financeira, as flutuações de juros e câmbio, que acompanham o movimento de capitais, determinam uma trajetória macro- econômica de stop and go, em que o crescimento é periodicamente interrompido. Aulus Destacar Aulus Destacar Política Econômica em Foco, n. 1 – maio/ago. 2003. 5 A instabilidade dessas políticas macro- econômicas – permanentemente submetidas às tensões que derivam das avaliações dos agentes nos mercados financeiros e de capitais – não permite a execução de políticas de crescimento. Evidentemente, a estrita dependência dos humores e dos julgamentos dos mercados financeiros internacionais impede qualquer política verdadeiramente ativa de produção e de investimento, porquanto são precárias as informações adequadas para a tomada de decisões empresariais na esfera do investimento. Contraposta à trajetória dos países asiáticos, durante a década dos 90, a performance da economia brasileira foi sem dúvida, medíocre. Essa perda de dinamismo repete de forma agravada o padrão observado nos anos 80, caracterizado pela crise da dívida. Essa deterioração está expressa em pelo menos duas dimensões essenciais: numa degradação da qualidade da inserção ou seja, no aumento da vulnerabilidade externa, financeira e comercial, traduzida num valor permanentemente baixo das reservas internacionais; na dependência crônica do FMI para assegurar o fechamento das contas externas. Na dimensão interna, essa perda de qualidade reflete-se na entropia dos instrumentos de coordenação e planejamento geridos pelo Estado e no crescente imobilismo da política fiscal. Estes fatores são responsáveis pelo esclerosamento de uma particular articulação entre investimentos públicos e privados, essenciais para assegurar o crescimento da economia brasileira. Uma análise abrangente de todo o período deve considerar pelo menos quatro etapas distintas: os anos 1990-94, nos quais foram implantadas as primeiras mudanças, consolidadas posteriormente na era FHC durante os seus dois mandatos entre 1995 e 2002, cada qual com características particulares, e finalmente os primeiros seis meses do Governo Lula, no qual se observa uma clara continuidade das políticas postas em prática ao longo da década, em especial daquelas executadas durante o segundo Governo FHC, entre 1999 e 2002. Dados a natureza e os objetivos desse Boletim, consideraremos com maior detalhe apenas as duas últimas fases, fazendo referência às demais quando necessário. Uma discussão mais completa sobre a evolução da economia brasileira durante esses anos deveria considerar duas ordens de questões: a herança histórica, ou seja, uma dimensão genética ou histórico-estrutural, e outra mais restrita, decorrente dos efeitos das políticas econômicas postas em prática no passado recente. O estado atual da economia brasileira e seus desdobramentos constituem uma síntese dessas duas dimensões. A hipótese básica assumida nesse Boletim é a de que o agravamento de uma série de problemas estruturais da nossa economia só pode ser entendido como resultante de políticas econômicas inadequadas, postas em prática ao longo dos últimos anos, o que vale com igual ênfase para os seis primeiros meses do Governo Lula. Da perspectiva da política econômica, cabe considerar a interação de dois conjuntos distintos: as políticas estruturais e as macroeconômicas. No contexto da crescente liberalização ou desregulação, as primeiras possuem três dimensões essenciais: a abertura financeira, a abertura comercial e a reformulação do papel do Estado na economia, da qual as privatizações constituem o aspecto dominante. O segundo conjunto diz respeito às combinações particulares entre políticas macroeconômicas, vale dizer, monetária, cambial e fiscal. A interação entre as políticas estruturais e macroeconômicas constitui elemento de grande força explicativa para a trajetória da economia brasileira na última década. Portanto, este trabalho recuperará as linhas gerais das primeiras desde o início dos anos 90, assinalando suas eventuais mudanças. Do ponto de vista macroeconômico, dar-se-á ênfase à combinação de políticas postas em prática após 1999 e cuja vigência se estende aos dias atuais. Comecemos com a abertura financeira. Não há registro, na história econômica contemporânea do país, de uma modificação tão significativa no marco regulatório das relações Aulus Destacar Aulus Destacar INTRODUÇÃO – Globalização e Integração Perversa / Luiz Gonzaga Belluzzo / Ricardo Carneiro 6 financeiras com exterior. O processo iniciou-se no início da década ainda no Governo Collor, durante a gestão Marcílio Marques Moreira no Banco Central, com Armínio Fraga na Diretoria da Área Externa. A partir de então foram sucessivamente removidos todos os obstáculos às entradas e saídas de capitais no país, tanto por parte dos residentes quanto dos não residentes.2 Medidas iniciais de direcionamento de recursos foram também progressivamente removidas. A inserção do país no ambiente da globalização financeira permitiu a absorção de recursos financeiros em montantes signifi- cativos, com algumas oscilações, durante uma fase inicial que durou sete anos, entre 1992 e 1998. Desde então, o volume de financiamento externo composto pela soma dos fluxos de capitais de fontes privadas vem declinando, com maior intensidade após meados de 2001, data a partir da qual se torna negativo. Essa tendência reflete processos em curso de maior profundidade como, por exemplo, a redução da exposição dos vários tipos de investidores privados dos países centrais nos emergentes. Considerando exclusivamente o mercado de títulos, observa-se uma diminuição do estoque desses investimentos de 10% do total em 1997 para 5% em 2002. Na esteira desse encolhimento, desde 2001, o Brasil só tem conseguido fechar o seu balanço de pagamentos com recursos captados extramercado, por meio dos empréstimos do Fundo Monetário Internacional. Esta é, aliás, uma tendência que se verificará mais uma vez no ano em curso (ver SEÇÃO II). Ou seja, como sói acontecer na história econômica brasileira, mais um ciclo de endividamento externo privado dá origem à ampliação da dívida pública externa. Além do declínio dos montantes dos fluxos de capitais, outro aspecto de grande relevância refere-se à sua volatilidade. O caráter 2 Há no marco regulatório brasileiro relativo à conversibilidade da conta de capital uma restrição relevante que é a proibição para não residentes endividarem-se em moeda local, o que redundaria num segundo momento em aquisição de divisas. intrinsecamente volátil dos capitais que se dirigem à periferia do sistema não será objeto de discussão aprofundada nesse Boletim.3 Para efeito da análise realizada aqui, esta volatilidade está determinada por duas características particulares desses mercados: o caráter marginal ou secundário, em termos de participação dos emergentes nos mercados globais e, a sua segmentação, ou seja, o fato de pertencerem ao segmento dos títulos high yield. Por esse motivo, mudanças de alocação de portfólio dos grandes investidores, devido a variações nas avaliações, produzem bruscos movimentos de entrada e saída de capitais nesses países. Essa volatilidade tem merecido especial atenção nos estudos sobre a inserção financeira dos países emergentes por parte do FMI, cuja denominação para os ciclos de entrada e saída, on-off ou feast or famine dá uma medida da sua variabilidade. (ver SEÇÃO II) Vulnerabilidade e Câmbio Flutuante O balanço de uma década de aberturafinanceira é francamente desfavorável, quando se analisam os indicadores de vulnerabilidade externa da nossa economia. No caso daqueles indicadores de longo prazo, relativos à solvência, observa-se uma melhoria do quadro crítico dos anos 1998-99 e uma estabilização, em níveis muito elevados para padrões internacionais, no triênio 2000-02. Já nos indicadores de curto prazo, ou de liquidez, a trajetória é pior, pois ocorre uma persistente deterioração depois de meados de 2001, em decorrência da perda de reservas, devido à reversão dos fluxos de capitais e aos ataques especulativos de 2001 e 2002. A persistência da vulnerabilidade externa chama a atenção para a insuficiência do regime de câmbio flutuante em ajustar o balanço de pagamentos brasileiro, em particular na sua dimensão patrimonial ou na conta de capital. Entre 2001 e 2002, sob impacto da contração da liquidez internacional e de dois ataques 3 Ver a propósito desse tema: Carneiro, R. Da trindade possível à autonomia necessária (A política macroeconômica da era FHC ao Governo Lula). In: XV Fórum Nacional, Rio de Janeiro, 2003; Prates, D. Crises financeiras nos países emer- gentes: uma interpretação heterodoxa. Campinas: Unicamp. Instituto de Economia, 2002. (Tese, Doutoramento). Aulus Destacar Política Econômica em Foco, n. 1 – maio/ago. 2003. 7 especulativos, o país perdeu cerca de 50% das suas reservas líquidas, que caíram de US$ 31,5 bilhões para US$ 16,3 bilhões. Interessante notar que as expressivas desvalorizações cambiais foram impotentes para deter o ataque especulativo, que compreendeu a liquidação de investimentos em moeda local, apesar de perdas patrimoniais expressivas, e a realização de investimentos no exterior por parte de residentes, mesmo com a moeda local bastante desvalorizada (ver SEÇÃO III). Desvalorizações nominais da taxa de câmbio da ordem de 40% em 2001 e 70% em 2002 mostram a severidade da contração da liquidez externa, à qual se associam a busca de hedge e a especulação interna e externa. A venda de divisas por parte do Banco Central atesta a fragilidade do regime de câmbio flutuante para deter processos de reversão do fluxo de capitais em países emergentes com ampla conversibilidade da conta de capital e altamente endividados, como no caso do Brasil, onde a demanda por divisas mostra-se pouco sensível às sucessivas desvalorizações da moeda local. A questão da vulnerabilidade externa tem outras dimensões, com destaque para aquela relativa às transações correntes. Sob o impacto da rápida e indiscriminada abertura comercial e da apreciação cambial resultante do regime do câmbio fixo, a economia brasileira saiu de uma conta corrente praticamente equilibrada em 1993 para um déficit de US$ 34 bilhões em 1998, equivalente a 4,3% do PIB. Após 1999 houve um progressivo, porém lento, ajustamento desta conta. Passado o impacto inicial da desvalorização do câmbio, que veio acompanhada também de significativa contração do nível de atividades doméstica, em especial dos investimentos, e que derrubou o déficit, de US$ 33 bilhões em 1998 para US$ 25 bilhões em 1999, este permaneceu neste patamar por três anos consecutivos, só mostrando queda adicional em 2002. Isto sugere que há também elementos estruturais que, se não impedem o impacto das desvalorizações cambiais sobre a conta corrente, certamente o amenizam. Quanto a esse último ponto há desde logo a ressaltar a pesada conta relativa à remuneração de capitais, de cerca de US$ 20 bilhões anuais. Mas isso não é tudo. A composição do comércio externo brasileiro também torna problemático o ajuste da conta comercial. Ao longo dos anos 90, o país acentuou o seu caráter de exportador de commodities ou de produtos largamente baseados em trabalho e recursos naturais, com algumas poucas exceções para os bens intermediários, intensivos em escala, e quase nenhuma para o grupo de produtos intensivos em tecnologia. Ao mesmo tempo, a participação desses últimos na pauta de importações cresceu significativamente. Por trás dessa inserção houve uma re-especialização da estrutura produtiva brasileira com perda de elos da cadeia produtiva. Essa mudança de composição de pautas de comércio exterior tem como implicação principal a discrepância das elasticidades-renda das exportações e das importações. Ou seja, as importações brasileiras são muito mais sensíveis ao crescimento da renda doméstica do que as exportações ao crescimento da renda internacional. A melhora da conta comercial exige assim um duplo movimento: desvalo- rizações significativas da moeda doméstica, que permitam ganhar participação em mercados concorrenciais e pouco dinâmicos, combinadas com a estagnação ou declínio da absorção doméstica. Os dados da trajetória do saldo de transações correntes dão razão à conclusão anterior. As melhoras substantivas estão associadas às duas grandes desvalorizações de 2001 e 2002, em conjunto com a forte desaceleração da taxa de crescimento. Nesses dois últimos anos, há fatores adicionais que explicam o melhor desempenho, sendo o principal o grande aumento dos preços de commodities nos mercados internacionais. Isto permitiu que o saldo comercial, que anterior- mente havia sido produzido principalmente pela contração das importações, passasse a contar com a contribuição do aumento das exportações. Aulus Destacar Aulus Destacar INTRODUÇÃO – Globalização e Integração Perversa / Luiz Gonzaga Belluzzo / Ricardo Carneiro 8 As evidências sugerem uma dupla fragilidade no balanço de pagamentos brasileiro: o elevado endividamento de curto e longo prazos e a composição do comércio exterior, dos quais resultam níveis permanentemente baixos de reservas internacionais líquidas. Nesse contexto, o regime de câmbio flutuante é claramente insuficiente para permitir um ajuste significativo e permanente das contas externas. Na conta de capital, os ciclos internacionais de liquidez induzem sucessivos períodos de entrada e saída de capitais, não raro redundando em crises cambiais e ocasionando uma instabilidade permanente das variáveis macroeconômicas domésticas, com destaque para a excessiva volatilidade da taxa de câmbio. Exemplo bastante significativo é a grande flutuação dessa taxa entre abril e outubro de 2002, com desvalorização nominal de 70%, e a inversão do movimento entre outubro de 2002 e junho de 2003, com valorização de 30%, levando ao fim e ao cabo a uma pequena apreciação da nossa moeda quando considerado todo o período (ver SEÇÃO II). A volatilidade das taxas nominal e real de câmbio tem efeitos sobre a sinalização dos preços relativos para as decisões de alocação de recursos. Essa volatilidade dificulta o cálculo econômico de longo prazo. As freqüentes mudanças de preços relativos decorrentes da flutuação cambial tornam incertos os cálculos de rentabilidade do IDE, porque fazem variar o valor dos patrimônios e dos fluxos de rendimentos. Da mesma maneira, fazem oscilar os preços das exportações, alterando a sua competitividade. Outras variáveis importantes são afetadas por essa excessiva volatilidade, em especial o valor em moeda local da dívida em dólar das empresas privadas e a dívida pública, tanto aquela em moeda estrangeira quanto a nela denominada. Outra dificuldade significativa refere-se ao impacto das flutuações cambiais sobre a inflação, em particular nos preços de bens não comercializáveis e administrados. Isto dificulta o processo de ajuste de preços relativos. Assim, o problema central reside nos efeitos da flutuação da moeda sobre a inflação por meio do seu repasse aos preços internos, o denominado pass- trough, reconhecidamente mais intenso nos países emergentes. No caso brasileiro, as dificuldades para lograr as mudanças de preços relativos são ainda maiores, por conta da indexação formal a uma proxyda taxa de câmbio de parcela significativa (cerca de 30%) dos preços que compõem o IPCA, os chamados preços administrados. A maioria desses itens é de bens não comercializáveis, tornando a mudança ainda mais difícil e demorada. A combinação de alta sensibilidade dos preços às flutuações cambiais conduz também a um viés altista da taxa de inflação, induzido pelas recorrentes desvalorizações nominais da moeda. Isto obriga a política monetária conduzida no regime de metas de inflação a trabalhar com taxas de juros elevadas para conter a eventual aceleração inflacionária. A expressiva participação dos preços adminis- trados e dos comercializáveis na composição do índice de preços torna mais difícil a realização das metas, exigindo uma política monetária ainda mais restritiva, com expressivos custos em termos de produção e emprego, como aliás se observa em 2001 e 2002 (ver SEÇÃO III). A redução da volatilidade da taxa de câmbio pode ser considerada como uma condição necessária para o ajuste permanente do balanço de pagamentos. Todavia, como já apontado, o regime de câmbio flutuante por si só é incapaz de promover essa estabilidade, pois não evita a arbitragem dos capitais de curto prazo e a conseqüente volatilidade da taxa de câmbio. Por sua vez, em razão das particularidades institucionais da economia brasileira, não proporciona um ajuste rápido e eficaz de preços relativos, dificultando o ajuste em conta corrente. Assim sendo, o controle do fluxo de capitais aparece como requisito para obter essa estabilidade. Uma vez reduzida a volatilidade da taxa de câmbio, é preciso também induzir a transformação das pautas de comércio exterior, através de políticas industriais ativas comprometidas com substituição de importações e ampliação das exportações. Aulus Destacar Aulus Destacar Aulus Destacar Aulus Destacar Política Econômica em Foco, n. 1 – maio/ago. 2003. 9 Ação do Estado e Fragilidade Fiscal Outra dimensão de grande relevância quanto aos efeitos da política econômica sobre o desempenho da economia brasileira refere-se às mudanças do papel do Estado, entendidas num sentido amplo, ou seja, tanto pela redução da participação desse último diretamente na produção de bens e serviços através das privatizações, quanto pela modificação da política fiscal. No primeiro plano, ressalta a perda de capacidade de coordenação decorrente do encolhimento dos investimentos, em particular na infra-estrutura. No segundo, a crescente incapacidade de realizar políticas anticíclicas. O programa de privatizações levado a cabo durante os anos 90 foi um dos mais importantes já postos em prática no âmbito mundial. Durante a década, foram transferidos ao setor privado cerca de US$ 100 bilhões em ativos produtivos, dos quais US$ 82 bilhões foram efetivamente pagos em moeda e títulos, e cerca de US$ 18 bilhões na forma de transferência de dívidas. Cerca de 60% desse valor foram relativos a duas áreas estratégicas de infra-estrutura, Telecomunicações e Energia Elétrica, e mais cerca de 5% para Ferrovias, Portos, e Gás. Além disso, houve uma significativa privatização do sistema financeiro público, em especial dos bancos estaduais. Os bancos públicos federais foram preservados, mas sua gestão foi crescentemente privatizada, reduzindo a sua função de fomento. Esse processo de privatização no sentido lato eliminou, ou pelo menos reduziu, de maneira significativa, um dos elementos centrais de coordenação da economia brasileira, a articulação entre os investimentos estatais e privados, da qual fazia parte o direcionamento do crédito das instituições públicas, e que havia sido um dos principais motores do crescimento econômico em períodos pregressos. É bem verdade que esse papel indutor do Estado reduziu-se ao longo dos anos 80, em razão dos desdobramentos da crise da dívida. De qualquer modo, o patamar de investimento nas várias áreas de infra-estrutura ainda a cargo do Estado foi bastante superior ao observado nos anos 90. Há elementos particulares que devem ser assinalados nessa perda de capacidade de coordenação e indução do crescimento. Um deles diz respeito ao fato de que parcelas dos setores privatizados foram simultaneamente desnacionalizados, tornando os ciclos de crescimento domésticos mais dependentes daqueles em curso na economia internacional. Ou seja, o elemento de mediação ou de capacidade compensatória ante os ciclos externos, numa economia de mercado interno de grandes dimensões, foi largamente diminuído. Esse processo foi acompanhado de uma crescente imobilização da política fiscal em razão do espantoso crescimento da dívida pública, cuja origem e dinâmica foi prioritariamente financeira. Enquanto percen- tagem do PIB a dívida líquida do setor público praticamente dobrou entre junho de 1994 e dezembro de 2002, passando de 30% para 60% do PIB. Os fatores patrimoniais – renegociação das dívidas de esferas sub-nacionais, e reconhecimento de esqueletos, descontadas as privatizações – responderam por 37% desse acréscimo. A maior parcela da ampliação deveu- se à política macroeconômica; altas taxas de juros e desvalorização do câmbio responderam por 58% desse aumento, enquanto os fatores fiscais propriamente ditos foram responsáveis por apenas 5%. O ajuste fiscal realizado após 1998 sob supervisão do FMI é ilustrativo de uma dinâmica da dívida pública inteiramente comandada por fatores financeiros. e patrimoniais Apesar de um saldo primário crescente, que passa de um balanço equilibrado em 1995-98, para valores iniciais da ordem de 3,5% do PIB em 1999-2001, alcançando 4% em 2002 e 5,3%, no primeiro semestre de 2003, a dívida pública teve no período um crescimento expressivo, passando de 37% em 1998 para 57% do PIB em 2002. A correção de cerca de 50% da dívida pela taxa de juros de curto prazo e de outros 40% pela taxa de câmbio determinam essa dinâmica (ver SEÇÃO IV). Aulus Destacar Aulus Destacar Aulus Destacar Aulus Destacar INTRODUÇÃO – Globalização e Integração Perversa / Luiz Gonzaga Belluzzo / Ricardo Carneiro 10 Vimos anteriormente as razões responsáveis pela volatilidade das taxas de câmbio e pelas desvalorizações sucessivas da moeda local em 2001 e 2002, anos nos quais são responsáveis pela maior parcela de aumento da dívida. Convém assinalar contudo o recuo dessas taxas em termos reais, com impactos favoráveis sobre os estoque da mesma (ver SEÇÃO IV). O problema portanto não está só nas desvalorizações, mas na dinâmica particular entre câmbio e juros. Como a composição entre taxa de câmbio e taxa de juros define a remuneração dos capitais externos, elas estão sujeitas aos ciclos de liquidez externa, sobretudo numa economia de alto endividamento e com escassez de reservas como a brasileira. Em conjunturas de baixa liquidez internacional, o excesso de demanda sobre a oferta de divisas induz à desvalorização de câmbio. Para evitar a desvalorização excessiva, a taxa de juros permanece elevada. Em geral, nas fases subseqüentes, quando há o retorno dos fluxos de capitais e ocorre o inverso (um excesso de oferta sobre a demanda com apreciação cambial), as taxas de juros permanecem elevadas para minimizar o repasse da desvalorização anterior sobre os preços. Nos ciclos de saída combinam-se elevada taxa de juros e desvalorização cambial e nas fases de entrada as taxas de juros permanecem elevadas. A melhor ilustração para essa particular articulação é a conjuntura vigente entre o segundo semestre de 2002 e primeiro de 2003 (ver SEÇÃO III). A política fiscal lato senso tem outras dimensões além da insuficiência do saldo primário para estabilizar a dívida. A própria forma pela qual esse superávit foi obtido é bastante peculiar: uma elevação da carga tributária superior ao aumento das despesas que, por sua vez, mudaram de maneira significativa sua composição. No caso da carga tributária, o aumento de cerca de 5 pontospercentuais do PIB após 1998 foi realizado sobretudo por meio dos impostos em cascata ou cumulativos, com implicações significativas sobre a distorção de preços relativos e um viés anti-exportador. Quanto às despesas, observa-se um peso crescente dos encargos financeiros, acompanhada de ampliação das despesas correntes e declínio dos investimentos (ver SEÇÃO IV). Esse padrão de gastos tem um viés contracionista na medida em que se substitui na margem compra direta de bens e serviços por transferências ao setor privado. Essas se dão em escala cada vez maior proporcionalmente ao PIB e aparecem, por exemplo, na zeragem do déficit operacional a partir de 2002. Isto é, desde esse último ano, as transferências ao setor privado equivaleram ao montante de juros reais. O aumento da dívida, juntamente com a elevação da carga de juros reais e de seu pagamento efetivo, implicam o aumento das transferências aos rentistas, levando a um tipo de gasto mais voltado para ativos do que para consumo de bens e serviços. Mesmo na hipótese de que não haja contração absoluta dos gastos em bens e serviços por parte do Governo, as transferências decorrentes do pagamento dos juros reais serão financiadas por elevação da carga tributária hipótese na qual o efeito restritivo é indiscutível. A proposta de reduzir a dívida líquida do setor público, explícita nos objetivos da atual política econômica, através do acordo com o FMI, poderá agravar o perfil contracionista da política fiscal e aprofundar a retração da demanda agregada caso não seja acompanhada de uma importante expansão de gasto e endividamento privados. Isso porque a redução da dívida líquida supõe o pagamento dos juros nominais e, na ausência de ampliação do endividamento privado, sua provável conversão em ativos reais ou divisas. Essa reflexão introdutória sobre a política econômica recente termina necessariamente com a discussão acerca da possibilidade de retomada do crescimento. Desde meados de 2001, a combinação de fatores internacionais como a desaceleração e a crise energética brasileira deprimiu ainda mais o investimento ao ampliar as incertezas e encurtar os horizontes. Faz parte desse processo a perda de capacidade de planejamento e coordenação do Estado brasileiro. A redução substancial dos investi- Política Econômica em Foco, n. 1 – maio/ago. 2003. 11 mentos estatais, combinada com a crescente esterilização dos gastos públicos, eliminou um elemento central de indução do investimento privado. A grande volatilidade da taxa de câmbio e o perfil do nosso comércio exterior também retiram dinamismo desse crescimento. A propósito da capacidade das exportações líquidas para dinamizar a economia, convém assinalar, além do seu pequeno grau de abertura, que os setores nos quais esse saldo é preponderantemente obtido (bens interme- diários e agronegócio) têm baixo poder de encadeamento. Ademais, esses efeitos multiplicadores das exportações líquidas foram diminuídos ao longo da década pela re- especialização e esgarçamento das cadeias produtivas. A aceleração do crescimento faz vazar para fora, na forma de importação de insumos e bens de capital, boa parcela da demanda derivada. Em resumo: a combinação de pequeno grau de abertura ao exterior com baixo valor agregado das exportações reduz os impactos dinâmicos do superávit comercial (ver SEÇÃO V). O consumo tem apresentado um comportamento cada vez menos dinâmico após o grande boom deflagrado pelo Real e que durou de 1994 a 1997. A primeira razão para tal reside no declínio dos rendimentos do trabalho que ocorre desde 1998. Combinado com o fraco crescimento do emprego, a resultante tem sido uma estagnação da massa salarial que se transforma em diminuição absoluta após meados de 2001. Na queda dos rendimentos há a contribuição de fatores estruturais e institucionais como a crescente precarização das relações de trabalho, mas também uma dinâmica de preços relativos determinada pelas desvalorizações cambiais que tem encarecido os chamados wage goods, ampliando mais do que proporcionalmente o custo de vida para a grande massa de assalariados (ver SEÇÃO V). O comportamento do crédito, escasso e com taxas estratosféricas, num quadro de renda estagnada é outro elemento do baixo dinamismo do consumo. O quadro traçado acima conduz a uma reflexão acerca das possibilidades da atual política econômica em induzir a retomada do crescimento. Numa economia com uma manifesta tendência estrutural à estagnação pelo baixo dinamismo oriundo de uma particular inserção externa e pelo desmantelamento dos mecanismos de crescimento fundado na articulação público-privado e ainda mais num quadro conjuntural depressivo, o principal instrumento de reativação deveria ser o gasto e crédito públicos, combinados com a redução substancial da taxa de juros de empréstimos e a estabilização da taxa de câmbio. Os eixos para os quais deveriam ser orientadas essas medidas seriam os da ampliação do superávit comercial (via substituição de importações e promoção de exportações) e dos investimentos na infra- estrutura econômica (transporte, energia, comu- nicações) e social (saneamento, habitação, transporte coletivo urbano). Uma política de tal inspiração está em desacordo com aquela hoje posta em prática pelo Governo e cujo esteio maior é o acordo com o FMI, e que tem produzido resultados pífios, exacerbando os problemas herdados do Governo anterior. Seus dois pilares centrais deverão ser o controle parcial dos fluxos de capitais, desestimulando o capital especulativo e direcionando o Investimento Direto Estrangeiro para áreas prioritárias, e uma nova articulação e divisão de tarefas entre os setores públicos e privados, compreendendo intervenções que utilizem a capacidade de indução dos gastos, investimentos e crédito públicos.