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Política Econômica em Foco, n. 1 – maio/ago. 2003. 
 1
INTRODUÇÃO 
 
Globalização e Integração Perversa 
Luiz Gonzaga Belluzzo 
Ricardo Carneiro 
 
 
O gesto americano de subir unilate-
ralmente as taxas de juros em outubro de 1979 
foi deflagrado com o propósito de resgatar a 
supremacia do dólar como moeda-reserva. O 
fortalecimento do dólar não só reafirmou a 
liderança do sistema financeiro e bancário 
americano, como engendrou uma nova etapa da 
reestruturação produtiva à escala global. A 
despeito das flutuações nas taxas de câmbio 
entre as moedas que comandam as três zonas 
monetárias (dólar, iene e marco-euro) – é 
possível vislumbrar uma tendência ao 
fortalecimento da moeda americana durante os 
dois ciclos de expansão dos anos 80 e 90. 
A nossa hipótese é que, depois da perda 
de posição observada nos anos 70, o reforço do 
dólar, como moeda de reserva e de 
denominação das transações comerciais e 
financeiras, promoveu profundas alterações na 
estrutura e na dinâmica da economia mundial. 
As transformações envolveram a redistribuição 
da capacidade produtiva na economia mundial 
– sobretudo na indústria manufatureira – e o 
aparecimento de desequilíbrios duradouros nos 
balanços de pagamentos entre os Estados 
Unidos, a Ásia e a Europa. Em dois momentos 
(1980-85 e 1995-2001), a valorização do dólar e a 
conseqüente expansão da posição devedora 
líquida dos Estados Unidos definiram o curso 
das transformações. Elas compreendem três 
movimentos simultâneos: 1) o avanço da 
internacionalização financeira, amparado 
primeiro na dívida pública americana e depois 
no endividamento privado dos anos 90; 2) os 
rumos da reestruturação produtiva, mediante as 
fusões e aquisições e o direcionamento dos 
fluxos de investimento direto “estrangeiro”; 3) 
as mudanças importantes, daí decorrentes, na 
divisão internacional do trabalho e nos padrões 
de comércio. 
Nos anos 80, o déficit orçamentário do 
governo Reagan foi o responsável pelo 
crescimento rápido do, até então, mais 
imponente déficit comercial do pós-guerra. Já 
nos anos 90, a ampliação do déficit em conta 
corrente dos Estados Unidos foi provocada por 
um forte crescimento do gasto e do 
endividamento privados. Nos dois momentos, é 
fundamental sublinhar, a economia americana 
ganhou liberdade para adotar, primeiro uma 
política fiscal expansionista e, nos anos 90, uma 
política monetária e de crédito permissiva. Em 
ambas as situações, o crescimento a taxas 
elevadas foi caracterizado por uma expansão da 
demanda nominal a um ritmo bem superior ao 
exibido pela produção doméstica, bem como por 
um crescimento da relação endividamento 
total/PIB. 
Importante para a revitalização da finança 
de mercado foi o papel desempenhado, no início 
dos anos 80, pela ampliação do endividamento 
público americano, de maior qualidade, 
fenômeno crucial para socorrer as carteiras e 
conter o colapso dos bancos envolvidos com a 
crise da dívida do Terceiro Mundo. As dívidas 
públicas dos Estados Unidos e da Europa 
cresceram rapidamente na década de 80, 
engordadas pelas taxas de juros elevadas. O 
crescimento “endógeno” do endividamento 
público foi acompanhado de uma maior 
dependência dos governos em relação aos 
mercados financeiros internacionalizados. A 
partir de então, de forma inédita na história da 
internacionalização capitalista, os Estados 
Unidos passaram da posição de maiores 
credores à de maiores devedores do mundo – 
tanto do ponto de vista interno quanto do 
externo. 
 
Assimetria e Polarização 
 
A inserção dos países neste processo de 
globalização foi hierarquizada e assimétrica. Os 
Estados Unidos foram capazes de impor a 
dominância de sua moeda, mantendo, ao 
mesmo tempo, um déficit elevado e persistente 
em conta corrente e uma posição devedora 
externa. 
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INTRODUÇÃO – Globalização e Integração Perversa / Luiz Gonzaga Belluzzo / Ricardo Carneiro 
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Como já havíamos observado no início 
dos anos 80, a partir de então “a política de 
supply side economics, combinada com a 
sobrevalorização do dólar, permitiu à economia 
americana retomar o crescimento sem pressões 
inflacionárias, com elevação dos salários reais e 
expansão monetária acima da renda nominal. 
Neste verdadeiro ajuste às avessas, os Estados 
Unidos conseguem, simultaneamente, obter 
transferências de liquidez, de renda real e de 
capitais do resto do mundo... A retomada do 
crescimento americano se fez com uma função 
de oferta global com rendimentos crescentes e 
grande capacidade de resposta aos estímulos da 
demanda. À elevação do déficit comercial 
corresponde uma tentativa de obtenção de 
saldos comerciais crescentes dos demais países 
industrializados. Exportar é a solução para 
todos, menos para a economia dominante, cuja 
solução é importar barato.” (Tavares & 
Belluzzo).1 
O último ciclo comprovou a eficácia e o 
poder dessa forma polarizada de integração 
financeira e produtiva: a abertura das contas de 
capital do resto do mundo propiciou ao 
mercado financeiro dos Estados Unidos a 
oportunidade de comandar uma formidável 
expansão do crédito à produção e ao consumo. 
A alavancagem das famílias e das grandes 
empresas produtivas e o elevado endividamento 
setor financeiro americano são a contrapartida 
do portentoso afluxo de capitais, mobilizado a 
partir das posições superavitárias em conta 
corrente acumuladas na Ásia e na Europa e das 
saídas de recursos dos países deficitários e 
devedores. 
Durante os últimos 20 anos, a política 
monetária americana mostrou-se capaz de 
compatibilizar três objetivos: 1) administrar as 
condições de liquidez doméstica nas etapas de 
expansão e de contração dos dois ciclos; 2) 
garantir a resiliência do seu mercado financeiro, 
mediante intervenções de última instância e 3) 
preservar o papel do dólar como moeda-reserva. 
 
1 Tavares, M. C., Belluzzo, L. G. Uma reflexão sobre a 
natureza da inflação contemporânea. In: Rego, J. M. Inflação 
inercial, teorias sobre a inflação e o Plano Cruzado. São 
Paulo: Ed. Paz e Terra, 1986. 
As transformações financeiras foram 
acompanhadas de mudanças na estratégia 
global da concorrência entre as empresas 
dominantes, com implicações sobre a natureza e 
a direção do IDE e do progresso técnico, levando 
a uma concentração impressionante do 
crescimento econômico em um número 
reduzido de países (ver SEÇÃO I). 
Ao longo das duas últimas décadas, o 
processo de concorrência encaminhou-se para a 
formação de joint ventures, o que implicava 
cooperação e alianças estratégicas entre grandes 
empresas, sustentando uma nova onda de 
progresso técnico, com difusão rápida nos anos 
80. A rivalidade nos mercados nacionais foi 
ultrapassada pela estratégia de multiplantas, 
levada a cabo em espaços que permitiram a 
expansão combinada e virtuosa do investimento 
e do comércio. Dito de outra forma: a metástase 
do sistema empresarial da tríade desenvolvida – 
particularmente dos Estados Unidos – 
determinou uma impressionante ampliação dos 
fluxos de comércio (vide SEÇÃO I). Não se trata 
apenas de reafirmar a importância crescente do 
comércio intra-firmas, mas de destacar o papel 
decisivo do global sourcing, fenômeno que está 
presente, sobretudo, nas estratégias de 
deslocalização e investimento que, na década 
dos 90, beneficiaram as economias asiáticas, a 
China e agora os países do Leste Europeu. 
Do ponto de vista espacial, a Ásia 
converteu-se num dos principais loci da 
concorrência e da difusão acelerada do 
progresso técnico nos anos 80 (o Japão e a 
primeira geração de tigres asiáticos). A liderança 
no IDE mundial coube ao Japão, seguido de 
alguns países europeus que tentaram, inclusive, 
transnacionalizar o espaço americano. A partir 
do endaka e da desvalorização do dólar, na 
segunda metade dos anos 80, inicia-se uma nova 
etapa. 
Os Estados Unidos, além de continuaremsendo os maiores receptores de capitais globais, 
tornaram-se progressivamente grandes 
investidores na Ásia (os tigres de segunda 
geração e a China). No que diz respeito ao 
espaço latino-americano, o Brasil e os demais 
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Política Econômica em Foco, n. 1 – maio/ago. 2003. 
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países da região ficaram de fora, por conta da 
crise da dívida externa da década de 80. O 
México foi o primeiro país da América Latina a 
retomar o IDE americano, estimulado pelo 
acordo de investimentos do Nafta. O Brasil 
acompanha passivamente a tendência 
dominante: na segunda metade da década dos 
90 passa a receber predominantemente 
investimento direto estrangeiro destinado a 
fusões e aquisições, sobretudo na privatização 
dos serviços de utilidade pública e no setor 
bancário. 
A mudança de natureza das inversões 
diretas, com predominância de fusões e 
aquisições de empresas, iniciou-se nos Estados 
Unidos na década de 80. Estendeu-se aos demais 
países nos anos 90, acompanhada de uma 
grande expansão do investimento de portfólio e 
da formação de megacorporações. Esta 
aceleração da centralização de capital, apoiada 
na valorização global das Bolsas, ocorreu com 
maior intensidade na segunda metade dos anos 
90. Trata-se, essencialmente, de um movimento 
de natureza patrimonial que deu lugar a dois 
processos simultâneos: a fusão de empresas, 
com fechamento de plantas no centro 
industrializado, e a concomitante deslocalização 
para a periferia dinâmica. 
 Este último estágio da evolução da 
estrutura da concorrência mundial ensejou a 
criação concentrada de capacidade produtiva 
nos setores de nova tecnologia e nas regiões 
capazes de promover uma integração virtuosa 
ao processo de internacionalização capitalista. 
Os asiáticos sempre adotaram políticas 
mercantilistas de comércio exterior com o 
objetivo de sustentar estratégias de crescimento 
acelerado. A busca de saldos comerciais 
expressivos, com rápido crescimento das 
exportações, tem o propósito de permitir taxas 
de acumulação de capital muito elevadas, 
acompanhadas de altos índices de 
endividamento das empresas e de formação de 
poupança privada. 
Estas políticas – chamadas de neomer-
cantilistas – colocam ênfase na obtenção de um 
saldo comercial favorável e na acumulação de 
reservas. Tais práticas afetam negativamente o 
comércio internacional, na medida em que 
perpetuam desequilíbrios nos balanços de 
pagamentos de outros países e subtraem 
liquidez às transações globais. 
Mas, num mundo em que são fortes as 
assimetrias de poder econômico e financeiro 
entre as nações, as práticas neomercantilistas 
não só têm propiciado o avanço tecnológico e 
produtivo das economias em desenvolvimento, 
como permitem a adoção de políticas 
monetárias mais frouxas, isto é, taxas de juros 
mais baixas que favorecem a expansão do 
crédito e do investimento domésticos. Isto 
porque a acumulação de reservas elevadas – 
capturadas através dos saldos comerciais e não 
de endividamento – garante o atendimento da 
demanda por liquidez em moeda forte e 
assegura a estabilidade da taxa de câmbio. 
O crescimento global nas décadas dos 80 e 
90 ficou, portanto, polarizado: de um lado, o 
emissor da moeda reserva e sua enorme 
liberdade de expandir o crédito, o gasto, o 
déficit em conta corrente e o endividamento 
externo e, de outro, os países comprometidos 
com a atração do “novo” investimento 
estrangeiro e estratégias de crescimento 
mercantilistas, sempre apoiadas por elevadas 
taxas de investimento e poupança doméstica, 
industrialização rápida e permanente graduação 
tecnológica. 
O tema do momento, entre os analistas 
das tendências da economia mundial, é a 
resistência dos países asiáticos diante das 
sugestões ou das súplicas para que valorizem 
suas moedas. As razões das queixas são os 
efeitos negativos das políticas cambiais em curso 
na Ásia sobre os almejados processos de 
correção dos desequilíbrios de balanço de 
pagamentos entre os três blocos mais 
importantes da economia global. 
Desde que iniciou seu movimento 
descendente, no começo de 2000, o dólar perdeu 
25% de seu valor em relação ao euro, mas 
apenas 10% ou menos quando cotejado com as 
moedas asiáticas. Permaneceu estável, diga-se, 
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INTRODUÇÃO – Globalização e Integração Perversa / Luiz Gonzaga Belluzzo / Ricardo Carneiro 
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em relação ao yuan, a moeda chinesa. Em 2002, 
o déficit dos Estados Unidos com a China 
chegou a US$ 103 bilhões. As economias da 
Ásia, em conjunto, foram responsáveis pela 
metade do déficit total americano, superior a 
US$ 400 bilhões. 
 Americanos e europeus estão incomo-
dados com teimosia dos asiáticos, que não 
parecem dispostos a abandonar as políticas de 
subvalorização de suas moedas. E não é para 
menos: os dados da revista The Economist 
mostram que entre janeiro de 2002 e julho de 
2003 a China acumulou mais US$ 60 bilhões de 
reservas em divisas, ultrapassando a cifra total 
de US$ 300 bilhões; o Japão aumentou suas 
reservas em US$ 36 bilhões, chegando a um total 
de US$ 500 bilhões; Taiwan engordou o seu 
caixa em US$ 45 bilhões, amealhando um total 
de US$ 190 bilhões. A Coréia foi mais modesta: 
poupou no período US$ 28 bilhões, atingindo 
um total de US$ 120 bilhões. A Índia não deixou 
por menos: no período em exame, ampliou em 
US$ 73 bilhões o seu estoque de reservas. 
Depois da crise de 1997, é compreensível 
que os países asiáticos, sobretudo os vitimados 
pelo colapso cambial e financeiro, desejem 
manter reservas elevadas para defender suas 
moedas de futuros ataques. Mas neste momento, 
as operações de esterilização – mediante a 
colocação de títulos públicos para absorver o 
“excesso” de liquidez gerado pela formação de 
reservas – vão se tornando cada vez mais 
onerosas. Muitos países da região, inclusive a 
China, estão estimulando empresas e famílias a 
adquirir ativos no exterior, como forma de evitar 
os efeitos monetários da expansão das reservas. 
Neste quadro, é arriscado apostar num 
ajustamento dos balanços de pagamentos, 
mediante um realinhamento das principais 
moedas. O que se pretende é a revalorização das 
moedas dos países superavitários e, portanto, 
um declínio do valor do dólar. Para ser viável tal 
realinhamento exigiria, de pronto, a redução dos 
ganhos de seignorage exercida pelos Estados 
Unidos e, conseqüentemente, a perda da 
liberdade de inflar a demanda nominal 
mediante a ampliação do déficit fiscal ou de 
políticas monetárias e de crédito generosas. 
Também significaria o abandono das estratégias 
mercantilistas por parte dos países 
superavitários, que deveriam, então, promover 
políticas de crescimento fundadas na expansão 
da demanda doméstica. 
O problema desta solução é que ela não 
parece compatível com as estruturas de 
produção, de gasto e de comércio exterior 
construídas ao longo das últimas duas décadas. 
 
Inserção Passiva e Vulnerabilidade 
 
À margem do circuito “virtuoso” estão os 
países que cederam às pressões para 
empreender, de forma imprudente, a abertura 
da conta de capital. Nos dias de hoje – tal como 
nas três últimas décadas do século XIX – a 
abertura e a descompressão financeiras nos 
países da periferia inverteram as determinações 
do balanço de pagamentos. Diante dos 
movimentos especulativos e de arbitragem das 
massas de capital monetário, os países da 
periferia – dotados de moedas frágeis, com 
desprezível participação nas transações 
internacionais – encontram-se diante dos riscos 
da valorização indesejada da moeda local, de 
operações de esterilização dos efeitos 
monetários da expansão das reservas (explosão 
da dívida pública), dos déficits insustentáveis 
em conta corrente e finalmente das crises 
cambiais e financeiras. 
A ampliação do déficit em conta corrente 
não corresponde primordialmente, nesses 
regimes de abertura financeira, à absorção de 
poupança externa. Isto significa que a 
transferênciade recursos reais é meramente 
residual e a taxa de investimento interno não se 
eleva. É fácil compreender que, diante da 
incerteza quanto ao rumo dos preços-chave da 
economia, juros e câmbio, o horizonte temporal 
das decisões de investimento encurta-se 
dramaticamente. Em um ambiente de 
liberalização financeira, as flutuações de juros e 
câmbio, que acompanham o movimento de 
capitais, determinam uma trajetória macro-
econômica de stop and go, em que o crescimento 
é periodicamente interrompido. 
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Política Econômica em Foco, n. 1 – maio/ago. 2003. 
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A instabilidade dessas políticas macro-
econômicas – permanentemente submetidas às 
tensões que derivam das avaliações dos agentes 
nos mercados financeiros e de capitais – não 
permite a execução de políticas de crescimento. 
Evidentemente, a estrita dependência dos 
humores e dos julgamentos dos mercados 
financeiros internacionais impede qualquer 
política verdadeiramente ativa de produção e de 
investimento, porquanto são precárias as 
informações adequadas para a tomada de 
decisões empresariais na esfera do investimento. 
Contraposta à trajetória dos países 
asiáticos, durante a década dos 90, a 
performance da economia brasileira foi sem 
dúvida, medíocre. Essa perda de dinamismo 
repete de forma agravada o padrão observado 
nos anos 80, caracterizado pela crise da dívida. 
Essa deterioração está expressa em pelo menos 
duas dimensões essenciais: numa degradação da 
qualidade da inserção ou seja, no aumento da 
vulnerabilidade externa, financeira e comercial, 
traduzida num valor permanentemente baixo 
das reservas internacionais; na dependência 
crônica do FMI para assegurar o fechamento das 
contas externas. Na dimensão interna, essa 
perda de qualidade reflete-se na entropia dos 
instrumentos de coordenação e planejamento 
geridos pelo Estado e no crescente imobilismo 
da política fiscal. Estes fatores são responsáveis 
pelo esclerosamento de uma particular 
articulação entre investimentos públicos e 
privados, essenciais para assegurar o 
crescimento da economia brasileira. 
Uma análise abrangente de todo o 
período deve considerar pelo menos quatro 
etapas distintas: os anos 1990-94, nos quais 
foram implantadas as primeiras mudanças, 
consolidadas posteriormente na era FHC 
durante os seus dois mandatos entre 1995 e 
2002, cada qual com características particulares, 
e finalmente os primeiros seis meses do 
Governo Lula, no qual se observa uma clara 
continuidade das políticas postas em prática ao 
longo da década, em especial daquelas 
executadas durante o segundo Governo FHC, 
entre 1999 e 2002. Dados a natureza e os 
objetivos desse Boletim, consideraremos com 
maior detalhe apenas as duas últimas fases, 
fazendo referência às demais quando necessário. 
Uma discussão mais completa sobre a 
evolução da economia brasileira durante esses 
anos deveria considerar duas ordens de 
questões: a herança histórica, ou seja, uma 
dimensão genética ou histórico-estrutural, e 
outra mais restrita, decorrente dos efeitos das 
políticas econômicas postas em prática no 
passado recente. O estado atual da economia 
brasileira e seus desdobramentos constituem 
uma síntese dessas duas dimensões. A hipótese 
básica assumida nesse Boletim é a de que o 
agravamento de uma série de problemas 
estruturais da nossa economia só pode ser 
entendido como resultante de políticas 
econômicas inadequadas, postas em prática ao 
longo dos últimos anos, o que vale com igual 
ênfase para os seis primeiros meses do Governo 
Lula. 
Da perspectiva da política econômica, 
cabe considerar a interação de dois conjuntos 
distintos: as políticas estruturais e as 
macroeconômicas. No contexto da crescente 
liberalização ou desregulação, as primeiras 
possuem três dimensões essenciais: a abertura 
financeira, a abertura comercial e a reformulação 
do papel do Estado na economia, da qual as 
privatizações constituem o aspecto dominante. 
O segundo conjunto diz respeito às combinações 
particulares entre políticas macroeconômicas, 
vale dizer, monetária, cambial e fiscal. 
A interação entre as políticas estruturais e 
macroeconômicas constitui elemento de grande 
força explicativa para a trajetória da economia 
brasileira na última década. Portanto, este 
trabalho recuperará as linhas gerais das 
primeiras desde o início dos anos 90, 
assinalando suas eventuais mudanças. Do ponto 
de vista macroeconômico, dar-se-á ênfase à 
combinação de políticas postas em prática após 
1999 e cuja vigência se estende aos dias atuais. 
Comecemos com a abertura financeira. 
Não há registro, na história econômica 
contemporânea do país, de uma modificação tão 
significativa no marco regulatório das relações 
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financeiras com exterior. O processo iniciou-se 
no início da década ainda no Governo Collor, 
durante a gestão Marcílio Marques Moreira no 
Banco Central, com Armínio Fraga na Diretoria 
da Área Externa. A partir de então foram 
sucessivamente removidos todos os obstáculos 
às entradas e saídas de capitais no país, tanto 
por parte dos residentes quanto dos não 
residentes.2 Medidas iniciais de direcionamento 
de recursos foram também progressivamente 
removidas. 
A inserção do país no ambiente da 
globalização financeira permitiu a absorção de 
recursos financeiros em montantes signifi-
cativos, com algumas oscilações, durante uma 
fase inicial que durou sete anos, entre 1992 e 
1998. Desde então, o volume de financiamento 
externo composto pela soma dos fluxos de 
capitais de fontes privadas vem declinando, com 
maior intensidade após meados de 2001, data a 
partir da qual se torna negativo. Essa tendência 
reflete processos em curso de maior 
profundidade como, por exemplo, a redução da 
exposição dos vários tipos de investidores 
privados dos países centrais nos emergentes. 
Considerando exclusivamente o mercado de 
títulos, observa-se uma diminuição do estoque 
desses investimentos de 10% do total em 1997 
para 5% em 2002. 
Na esteira desse encolhimento, desde 
2001, o Brasil só tem conseguido fechar o seu 
balanço de pagamentos com recursos captados 
extramercado, por meio dos empréstimos do 
Fundo Monetário Internacional. Esta é, aliás, 
uma tendência que se verificará mais uma vez 
no ano em curso (ver SEÇÃO II). Ou seja, como 
sói acontecer na história econômica brasileira, 
mais um ciclo de endividamento externo 
privado dá origem à ampliação da dívida 
pública externa. 
Além do declínio dos montantes dos 
fluxos de capitais, outro aspecto de grande 
relevância refere-se à sua volatilidade. O caráter 
 
2 Há no marco regulatório brasileiro relativo à 
conversibilidade da conta de capital uma restrição relevante 
que é a proibição para não residentes endividarem-se em 
moeda local, o que redundaria num segundo momento em 
aquisição de divisas. 
intrinsecamente volátil dos capitais que se 
dirigem à periferia do sistema não será objeto de 
discussão aprofundada nesse Boletim.3 Para 
efeito da análise realizada aqui, esta volatilidade 
está determinada por duas características 
particulares desses mercados: o caráter marginal 
ou secundário, em termos de participação dos 
emergentes nos mercados globais e, a sua 
segmentação, ou seja, o fato de pertencerem ao 
segmento dos títulos high yield. Por esse motivo, 
mudanças de alocação de portfólio dos grandes 
investidores, devido a variações nas avaliações, 
produzem bruscos movimentos de entrada e 
saída de capitais nesses países. Essa volatilidade 
tem merecido especial atenção nos estudos sobre 
a inserção financeira dos países emergentes por 
parte do FMI, cuja denominação para os ciclos 
de entrada e saída, on-off ou feast or famine dá 
uma medida da sua variabilidade. (ver SEÇÃO II) 
 
Vulnerabilidade e Câmbio Flutuante 
 
O balanço de uma década de aberturafinanceira é francamente desfavorável, quando 
se analisam os indicadores de vulnerabilidade 
externa da nossa economia. No caso daqueles 
indicadores de longo prazo, relativos à 
solvência, observa-se uma melhoria do quadro 
crítico dos anos 1998-99 e uma estabilização, em 
níveis muito elevados para padrões 
internacionais, no triênio 2000-02. Já nos 
indicadores de curto prazo, ou de liquidez, a 
trajetória é pior, pois ocorre uma persistente 
deterioração depois de meados de 2001, em 
decorrência da perda de reservas, devido à 
reversão dos fluxos de capitais e aos ataques 
especulativos de 2001 e 2002. 
A persistência da vulnerabilidade externa 
chama a atenção para a insuficiência do regime 
de câmbio flutuante em ajustar o balanço de 
pagamentos brasileiro, em particular na sua 
dimensão patrimonial ou na conta de capital. 
Entre 2001 e 2002, sob impacto da contração da 
liquidez internacional e de dois ataques 
 
3 Ver a propósito desse tema: Carneiro, R. Da trindade 
possível à autonomia necessária (A política macroeconômica 
da era FHC ao Governo Lula). In: XV Fórum Nacional, Rio 
de Janeiro, 2003; Prates, D. Crises financeiras nos países emer-
gentes: uma interpretação heterodoxa. Campinas: Unicamp. 
Instituto de Economia, 2002. (Tese, Doutoramento). 
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especulativos, o país perdeu cerca de 50% das 
suas reservas líquidas, que caíram de US$ 31,5 
bilhões para US$ 16,3 bilhões. Interessante notar 
que as expressivas desvalorizações cambiais 
foram impotentes para deter o ataque 
especulativo, que compreendeu a liquidação de 
investimentos em moeda local, apesar de perdas 
patrimoniais expressivas, e a realização de 
investimentos no exterior por parte de 
residentes, mesmo com a moeda local bastante 
desvalorizada (ver SEÇÃO III). 
Desvalorizações nominais da taxa de 
câmbio da ordem de 40% em 2001 e 70% em 
2002 mostram a severidade da contração da 
liquidez externa, à qual se associam a busca de 
hedge e a especulação interna e externa. A venda 
de divisas por parte do Banco Central atesta a 
fragilidade do regime de câmbio flutuante para 
deter processos de reversão do fluxo de capitais 
em países emergentes com ampla 
conversibilidade da conta de capital e altamente 
endividados, como no caso do Brasil, onde a 
demanda por divisas mostra-se pouco sensível 
às sucessivas desvalorizações da moeda local. 
A questão da vulnerabilidade externa tem 
outras dimensões, com destaque para aquela 
relativa às transações correntes. Sob o impacto 
da rápida e indiscriminada abertura comercial e 
da apreciação cambial resultante do regime do 
câmbio fixo, a economia brasileira saiu de uma 
conta corrente praticamente equilibrada em 1993 
para um déficit de US$ 34 bilhões em 1998, 
equivalente a 4,3% do PIB. 
Após 1999 houve um progressivo, porém 
lento, ajustamento desta conta. Passado o 
impacto inicial da desvalorização do câmbio, 
que veio acompanhada também de significativa 
contração do nível de atividades doméstica, em 
especial dos investimentos, e que derrubou o 
déficit, de US$ 33 bilhões em 1998 para US$ 25 
bilhões em 1999, este permaneceu neste patamar 
por três anos consecutivos, só mostrando queda 
adicional em 2002. Isto sugere que há também 
elementos estruturais que, se não impedem o 
impacto das desvalorizações cambiais sobre a 
conta corrente, certamente o amenizam. 
Quanto a esse último ponto há desde logo 
a ressaltar a pesada conta relativa à 
remuneração de capitais, de cerca de US$ 20 
bilhões anuais. Mas isso não é tudo. A 
composição do comércio externo brasileiro 
também torna problemático o ajuste da conta 
comercial. Ao longo dos anos 90, o país 
acentuou o seu caráter de exportador de 
commodities ou de produtos largamente 
baseados em trabalho e recursos naturais, com 
algumas poucas exceções para os bens 
intermediários, intensivos em escala, e quase 
nenhuma para o grupo de produtos intensivos 
em tecnologia. Ao mesmo tempo, a participação 
desses últimos na pauta de importações cresceu 
significativamente. Por trás dessa inserção 
houve uma re-especialização da estrutura 
produtiva brasileira com perda de elos da cadeia 
produtiva. 
Essa mudança de composição de pautas 
de comércio exterior tem como implicação 
principal a discrepância das elasticidades-renda 
das exportações e das importações. Ou seja, as 
importações brasileiras são muito mais sensíveis 
ao crescimento da renda doméstica do que as 
exportações ao crescimento da renda 
internacional. A melhora da conta comercial 
exige assim um duplo movimento: desvalo-
rizações significativas da moeda doméstica, que 
permitam ganhar participação em mercados 
concorrenciais e pouco dinâmicos, combinadas 
com a estagnação ou declínio da absorção 
doméstica. 
Os dados da trajetória do saldo de 
transações correntes dão razão à conclusão 
anterior. As melhoras substantivas estão 
associadas às duas grandes desvalorizações de 
2001 e 2002, em conjunto com a forte 
desaceleração da taxa de crescimento. Nesses 
dois últimos anos, há fatores adicionais que 
explicam o melhor desempenho, sendo o 
principal o grande aumento dos preços de 
commodities nos mercados internacionais. Isto 
permitiu que o saldo comercial, que anterior-
mente havia sido produzido principalmente 
pela contração das importações, passasse a 
contar com a contribuição do aumento das 
exportações. 
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INTRODUÇÃO – Globalização e Integração Perversa / Luiz Gonzaga Belluzzo / Ricardo Carneiro 
 8
As evidências sugerem uma dupla 
fragilidade no balanço de pagamentos brasileiro: 
o elevado endividamento de curto e longo 
prazos e a composição do comércio exterior, dos 
quais resultam níveis permanentemente baixos 
de reservas internacionais líquidas. Nesse 
contexto, o regime de câmbio flutuante é 
claramente insuficiente para permitir um ajuste 
significativo e permanente das contas externas. 
Na conta de capital, os ciclos internacionais de 
liquidez induzem sucessivos períodos de 
entrada e saída de capitais, não raro 
redundando em crises cambiais e ocasionando 
uma instabilidade permanente das variáveis 
macroeconômicas domésticas, com destaque 
para a excessiva volatilidade da taxa de câmbio. 
Exemplo bastante significativo é a grande 
flutuação dessa taxa entre abril e outubro de 
2002, com desvalorização nominal de 70%, e a 
inversão do movimento entre outubro de 2002 e 
junho de 2003, com valorização de 30%, levando 
ao fim e ao cabo a uma pequena apreciação da 
nossa moeda quando considerado todo o 
período (ver SEÇÃO II). 
A volatilidade das taxas nominal e real de 
câmbio tem efeitos sobre a sinalização dos 
preços relativos para as decisões de alocação de 
recursos. Essa volatilidade dificulta o cálculo 
econômico de longo prazo. As freqüentes 
mudanças de preços relativos decorrentes da 
flutuação cambial tornam incertos os cálculos de 
rentabilidade do IDE, porque fazem variar o 
valor dos patrimônios e dos fluxos de 
rendimentos. Da mesma maneira, fazem oscilar 
os preços das exportações, alterando a sua 
competitividade. Outras variáveis importantes 
são afetadas por essa excessiva volatilidade, em 
especial o valor em moeda local da dívida em 
dólar das empresas privadas e a dívida pública, 
tanto aquela em moeda estrangeira quanto a 
nela denominada. 
Outra dificuldade significativa refere-se 
ao impacto das flutuações cambiais sobre a 
inflação, em particular nos preços de bens não 
comercializáveis e administrados. Isto dificulta o 
processo de ajuste de preços relativos. Assim, o 
problema central reside nos efeitos da flutuação 
da moeda sobre a inflação por meio do seu 
repasse aos preços internos, o denominado pass-
trough, reconhecidamente mais intenso nos 
países emergentes. No caso brasileiro, as 
dificuldades para lograr as mudanças de preços 
relativos são ainda maiores, por conta da 
indexação formal a uma proxyda taxa de câmbio 
de parcela significativa (cerca de 30%) dos 
preços que compõem o IPCA, os chamados 
preços administrados. A maioria desses itens é 
de bens não comercializáveis, tornando a 
mudança ainda mais difícil e demorada. 
A combinação de alta sensibilidade dos 
preços às flutuações cambiais conduz também a 
um viés altista da taxa de inflação, induzido 
pelas recorrentes desvalorizações nominais da 
moeda. Isto obriga a política monetária 
conduzida no regime de metas de inflação a 
trabalhar com taxas de juros elevadas para 
conter a eventual aceleração inflacionária. A 
expressiva participação dos preços adminis-
trados e dos comercializáveis na composição do 
índice de preços torna mais difícil a realização 
das metas, exigindo uma política monetária 
ainda mais restritiva, com expressivos custos em 
termos de produção e emprego, como aliás se 
observa em 2001 e 2002 (ver SEÇÃO III). 
A redução da volatilidade da taxa de 
câmbio pode ser considerada como uma 
condição necessária para o ajuste permanente do 
balanço de pagamentos. Todavia, como já 
apontado, o regime de câmbio flutuante por si 
só é incapaz de promover essa estabilidade, pois 
não evita a arbitragem dos capitais de curto 
prazo e a conseqüente volatilidade da taxa de 
câmbio. Por sua vez, em razão das 
particularidades institucionais da economia 
brasileira, não proporciona um ajuste rápido e 
eficaz de preços relativos, dificultando o ajuste 
em conta corrente. Assim sendo, o controle do 
fluxo de capitais aparece como requisito para 
obter essa estabilidade. Uma vez reduzida a 
volatilidade da taxa de câmbio, é preciso 
também induzir a transformação das pautas de 
comércio exterior, através de políticas 
industriais ativas comprometidas com 
substituição de importações e ampliação das 
exportações. 
 
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Política Econômica em Foco, n. 1 – maio/ago. 2003. 
 9
Ação do Estado e Fragilidade Fiscal 
 
Outra dimensão de grande relevância 
quanto aos efeitos da política econômica sobre o 
desempenho da economia brasileira refere-se às 
mudanças do papel do Estado, entendidas num 
sentido amplo, ou seja, tanto pela redução da 
participação desse último diretamente na 
produção de bens e serviços através das 
privatizações, quanto pela modificação da 
política fiscal. No primeiro plano, ressalta a 
perda de capacidade de coordenação decorrente 
do encolhimento dos investimentos, em 
particular na infra-estrutura. No segundo, a 
crescente incapacidade de realizar políticas 
anticíclicas. 
O programa de privatizações levado a 
cabo durante os anos 90 foi um dos mais 
importantes já postos em prática no âmbito 
mundial. Durante a década, foram transferidos 
ao setor privado cerca de US$ 100 bilhões em 
ativos produtivos, dos quais US$ 82 bilhões 
foram efetivamente pagos em moeda e títulos, e 
cerca de US$ 18 bilhões na forma de 
transferência de dívidas. Cerca de 60% desse 
valor foram relativos a duas áreas estratégicas 
de infra-estrutura, Telecomunicações e Energia 
Elétrica, e mais cerca de 5% para Ferrovias, 
Portos, e Gás. Além disso, houve uma 
significativa privatização do sistema financeiro 
público, em especial dos bancos estaduais. Os 
bancos públicos federais foram preservados, 
mas sua gestão foi crescentemente privatizada, 
reduzindo a sua função de fomento. 
Esse processo de privatização no sentido 
lato eliminou, ou pelo menos reduziu, de 
maneira significativa, um dos elementos centrais 
de coordenação da economia brasileira, a 
articulação entre os investimentos estatais e 
privados, da qual fazia parte o direcionamento 
do crédito das instituições públicas, e que havia 
sido um dos principais motores do crescimento 
econômico em períodos pregressos. É bem 
verdade que esse papel indutor do Estado 
reduziu-se ao longo dos anos 80, em razão dos 
desdobramentos da crise da dívida. De qualquer 
modo, o patamar de investimento nas várias 
áreas de infra-estrutura ainda a cargo do Estado 
foi bastante superior ao observado nos anos 90. 
Há elementos particulares que devem ser 
assinalados nessa perda de capacidade de 
coordenação e indução do crescimento. Um 
deles diz respeito ao fato de que parcelas dos 
setores privatizados foram simultaneamente 
desnacionalizados, tornando os ciclos de 
crescimento domésticos mais dependentes 
daqueles em curso na economia internacional. 
Ou seja, o elemento de mediação ou de 
capacidade compensatória ante os ciclos 
externos, numa economia de mercado interno de 
grandes dimensões, foi largamente diminuído. 
Esse processo foi acompanhado de uma 
crescente imobilização da política fiscal em 
razão do espantoso crescimento da dívida 
pública, cuja origem e dinâmica foi 
prioritariamente financeira. Enquanto percen-
tagem do PIB a dívida líquida do setor público 
praticamente dobrou entre junho de 1994 e 
dezembro de 2002, passando de 30% para 60% 
do PIB. Os fatores patrimoniais – renegociação 
das dívidas de esferas sub-nacionais, e 
reconhecimento de esqueletos, descontadas as 
privatizações – responderam por 37% desse 
acréscimo. A maior parcela da ampliação deveu-
se à política macroeconômica; altas taxas de 
juros e desvalorização do câmbio responderam 
por 58% desse aumento, enquanto os fatores 
fiscais propriamente ditos foram responsáveis 
por apenas 5%. 
O ajuste fiscal realizado após 1998 sob 
supervisão do FMI é ilustrativo de uma 
dinâmica da dívida pública inteiramente 
comandada por fatores financeiros. e 
patrimoniais Apesar de um saldo primário 
crescente, que passa de um balanço equilibrado 
em 1995-98, para valores iniciais da ordem de 
3,5% do PIB em 1999-2001, alcançando 4% em 
2002 e 5,3%, no primeiro semestre de 2003, a 
dívida pública teve no período um crescimento 
expressivo, passando de 37% em 1998 para 57% 
do PIB em 2002. A correção de cerca de 50% da 
dívida pela taxa de juros de curto prazo e de 
outros 40% pela taxa de câmbio determinam 
essa dinâmica (ver SEÇÃO IV). 
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INTRODUÇÃO – Globalização e Integração Perversa / Luiz Gonzaga Belluzzo / Ricardo Carneiro 
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Vimos anteriormente as razões 
responsáveis pela volatilidade das taxas de 
câmbio e pelas desvalorizações sucessivas da 
moeda local em 2001 e 2002, anos nos quais são 
responsáveis pela maior parcela de aumento da 
dívida. Convém assinalar contudo o recuo 
dessas taxas em termos reais, com impactos 
favoráveis sobre os estoque da mesma (ver 
SEÇÃO IV). O problema portanto não está só nas 
desvalorizações, mas na dinâmica particular 
entre câmbio e juros. Como a composição entre 
taxa de câmbio e taxa de juros define a 
remuneração dos capitais externos, elas estão 
sujeitas aos ciclos de liquidez externa, sobretudo 
numa economia de alto endividamento e com 
escassez de reservas como a brasileira. 
Em conjunturas de baixa liquidez 
internacional, o excesso de demanda sobre a 
oferta de divisas induz à desvalorização de 
câmbio. Para evitar a desvalorização excessiva, a 
taxa de juros permanece elevada. Em geral, nas 
fases subseqüentes, quando há o retorno dos 
fluxos de capitais e ocorre o inverso (um excesso 
de oferta sobre a demanda com apreciação 
cambial), as taxas de juros permanecem 
elevadas para minimizar o repasse da 
desvalorização anterior sobre os preços. Nos 
ciclos de saída combinam-se elevada taxa de 
juros e desvalorização cambial e nas fases de 
entrada as taxas de juros permanecem elevadas. 
A melhor ilustração para essa particular 
articulação é a conjuntura vigente entre o 
segundo semestre de 2002 e primeiro de 2003 
(ver SEÇÃO III). 
A política fiscal lato senso tem outras 
dimensões além da insuficiência do saldo 
primário para estabilizar a dívida. A própria 
forma pela qual esse superávit foi obtido é 
bastante peculiar: uma elevação da carga 
tributária superior ao aumento das despesas 
que, por sua vez, mudaram de maneira 
significativa sua composição. No caso da carga 
tributária, o aumento de cerca de 5 pontospercentuais do PIB após 1998 foi realizado 
sobretudo por meio dos impostos em cascata ou 
cumulativos, com implicações significativas 
sobre a distorção de preços relativos e um viés 
anti-exportador. Quanto às despesas, observa-se 
um peso crescente dos encargos financeiros, 
acompanhada de ampliação das despesas 
correntes e declínio dos investimentos (ver 
SEÇÃO IV). 
Esse padrão de gastos tem um viés 
contracionista na medida em que se substitui na 
margem compra direta de bens e serviços por 
transferências ao setor privado. Essas se dão em 
escala cada vez maior proporcionalmente ao PIB 
e aparecem, por exemplo, na zeragem do déficit 
operacional a partir de 2002. Isto é, desde esse 
último ano, as transferências ao setor privado 
equivaleram ao montante de juros reais. O 
aumento da dívida, juntamente com a elevação 
da carga de juros reais e de seu pagamento 
efetivo, implicam o aumento das transferências 
aos rentistas, levando a um tipo de gasto mais 
voltado para ativos do que para consumo de 
bens e serviços. Mesmo na hipótese de que não 
haja contração absoluta dos gastos em bens e 
serviços por parte do Governo, as transferências 
decorrentes do pagamento dos juros reais serão 
financiadas por elevação da carga tributária 
hipótese na qual o efeito restritivo é indiscutível. 
A proposta de reduzir a dívida líquida do 
setor público, explícita nos objetivos da atual 
política econômica, através do acordo com o 
FMI, poderá agravar o perfil contracionista da 
política fiscal e aprofundar a retração da 
demanda agregada caso não seja acompanhada 
de uma importante expansão de gasto e 
endividamento privados. Isso porque a redução 
da dívida líquida supõe o pagamento dos juros 
nominais e, na ausência de ampliação do 
endividamento privado, sua provável conversão 
em ativos reais ou divisas. 
Essa reflexão introdutória sobre a política 
econômica recente termina necessariamente com 
a discussão acerca da possibilidade de retomada 
do crescimento. Desde meados de 2001, a 
combinação de fatores internacionais como a 
desaceleração e a crise energética brasileira 
deprimiu ainda mais o investimento ao ampliar 
as incertezas e encurtar os horizontes. Faz parte 
desse processo a perda de capacidade de 
planejamento e coordenação do Estado 
brasileiro. A redução substancial dos investi-
Política Econômica em Foco, n. 1 – maio/ago. 2003. 
 11
mentos estatais, combinada com a crescente 
esterilização dos gastos públicos, eliminou um 
elemento central de indução do investimento 
privado. 
A grande volatilidade da taxa de câmbio e 
o perfil do nosso comércio exterior também 
retiram dinamismo desse crescimento. A 
propósito da capacidade das exportações 
líquidas para dinamizar a economia, convém 
assinalar, além do seu pequeno grau de 
abertura, que os setores nos quais esse saldo é 
preponderantemente obtido (bens interme-
diários e agronegócio) têm baixo poder de 
encadeamento. Ademais, esses efeitos 
multiplicadores das exportações líquidas foram 
diminuídos ao longo da década pela re-
especialização e esgarçamento das cadeias 
produtivas. A aceleração do crescimento faz 
vazar para fora, na forma de importação de 
insumos e bens de capital, boa parcela da 
demanda derivada. Em resumo: a combinação 
de pequeno grau de abertura ao exterior com 
baixo valor agregado das exportações reduz os 
impactos dinâmicos do superávit comercial (ver 
SEÇÃO V). 
O consumo tem apresentado um 
comportamento cada vez menos dinâmico após 
o grande boom deflagrado pelo Real e que durou 
de 1994 a 1997. A primeira razão para tal reside 
no declínio dos rendimentos do trabalho que 
ocorre desde 1998. Combinado com o fraco 
crescimento do emprego, a resultante tem sido 
uma estagnação da massa salarial que se 
transforma em diminuição absoluta após 
meados de 2001. Na queda dos rendimentos há 
a contribuição de fatores estruturais e 
institucionais como a crescente precarização das 
relações de trabalho, mas também uma 
dinâmica de preços relativos determinada pelas 
desvalorizações cambiais que tem encarecido os 
chamados wage goods, ampliando mais do que 
 
 
 
 
 
 
 
proporcionalmente o custo de vida para a 
grande massa de assalariados (ver SEÇÃO V). O 
comportamento do crédito, escasso e com taxas 
estratosféricas, num quadro de renda estagnada 
é outro elemento do baixo dinamismo do 
consumo. 
O quadro traçado acima conduz a uma 
reflexão acerca das possibilidades da atual 
política econômica em induzir a retomada do 
crescimento. Numa economia com uma 
manifesta tendência estrutural à estagnação pelo 
baixo dinamismo oriundo de uma particular 
inserção externa e pelo desmantelamento dos 
mecanismos de crescimento fundado na 
articulação público-privado e ainda mais num 
quadro conjuntural depressivo, o principal 
instrumento de reativação deveria ser o gasto e 
crédito públicos, combinados com a redução 
substancial da taxa de juros de empréstimos e a 
estabilização da taxa de câmbio. Os eixos para 
os quais deveriam ser orientadas essas medidas 
seriam os da ampliação do superávit comercial 
(via substituição de importações e promoção de 
exportações) e dos investimentos na infra-
estrutura econômica (transporte, energia, comu-
nicações) e social (saneamento, habitação, 
transporte coletivo urbano). 
Uma política de tal inspiração está em 
desacordo com aquela hoje posta em prática 
pelo Governo e cujo esteio maior é o acordo com 
o FMI, e que tem produzido resultados pífios, 
exacerbando os problemas herdados do 
Governo anterior. Seus dois pilares centrais 
deverão ser o controle parcial dos fluxos de 
capitais, desestimulando o capital especulativo e 
direcionando o Investimento Direto Estrangeiro 
para áreas prioritárias, e uma nova articulação e 
divisão de tarefas entre os setores públicos e 
privados, compreendendo intervenções que 
utilizem a capacidade de indução dos gastos, 
investimentos e crédito públicos.

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