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FORMAÇÃO SOCIAL, ECONÔMICA E POLÍTICA DO BRASIL OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Identificar os fatores que colaboraram para a industrialização e a urbanização no Brasil a partir do governo de Eurico Gaspar Dutra. > Avaliar os efeitos da urbanização e os impactos no quadro econômico bra- sileiro. > Relacionar as mudanças ocorridas no âmbito social a partir do governo de Juscelino Kubitschek. Introdução O processo de urbanização no Brasil entre 1945 e 1964 implementou importantes centros urbanos, principalmente na região Sudeste do país, visando a ampliar a diversificação da economia e o desenvolvimento da indústria e do comércio. A sociedade brasileira se modernizava rapidamente, apresentando um crescimento urbano e populacional que trazia consigo muitos problemas e desigualdades sociais. Estas suscitaram insatisfações e oposição ao governo. Nesse contexto, o populismo se desenvolveu e consolidou a política de massas, que buscava conduzir o trabalhador, manipulando suas aspirações e atendendo aos interesses das classes dominantes. O projeto desenvolvimentista com base na industrialização avançou. Porém, o endividamento externo cresceu e implicou em uma grande dependência econômica do capital estrangeiro, impactando o O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 1964 Simone da Silva Viana quadro econômico brasileiro e o modo de vida dos indivíduos. Apesar do quadro de modernização e urbanização, o país não conseguia resolver os problemas sociais latentes, como a pauperização e a desigualdade social. Neste capítulo, você vai compreender o processo de desenvolvimento industrial atrelado à urbanização. Esse processo foi lento e gradual, com implementações de políticas liberais e neoliberais aliadas aos interesses norte-americanos, que acentuaram o vínculo de dependência econômica e profundas crises políticas e sociais latentes até os dias atuais. A indústria passou a ser a atividade econômica mais dinâmica. Porém, a urbanização não alcançou todas as regiões do país, que ainda hoje apresentam enormes desigualdades e sofrem com a destituição de direitos, a precarização do trabalho e a carência de uma política urbana eficaz. A partir dessa perspectiva, você vai apreender o contexto histórico em que se desenvolveram a industrialização e a urbanização do Brasil nos governos de Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), Getúlio Vargas (1951-1954), Juscelino Kubitschek (1956- 1961), Jânio Quadros (1961) e João Goulart (1961-1964). Sob essa ótica, você vai poder analisar e pensar sobre a capacidade da sociedade brasileira de se reinventar e se reorganizar na luta pela cidadania e pela sobrevivência diante do caos. A industrialização e a urbanização no Brasil a partir do governo de Eurico Gaspar Dutra O período de 1945 a 1964 foi denominado pelos historiadores como período republicano populista. Nesse momento, o que estava em pauta era a demo- cracia, o avanço industrial e urbano, a modernização, a consolidação das indústrias e das massas populares nas grandes cidades e a pressão externa do capital monopolista na economia capitalista nacional. No processo de industrialização brasileira nesse período, nota-se uma grande influência da corrente de pensamento nacionalista, com base em uma industrialização comandada pela burguesia e pelo capital nacionais, oportunizando também o apoio do capital estrangeiro para impulsionar a modernização tão sonhada pela sociedade brasileira. Assim sendo, é impor- tante ressaltar a análise de Bauman (2001) acerca da modernidade: A modernidade começa quando o espaço e o tempo são separados da prática da vida e entre si, e assim podem ser teorizados como categorias distintas e mutuamente independentes da estratégia e da ação; quando deixam de ser, como eram ao longo dos séculos pré-modernos, aspectos entrelaçados e dificilmente distinguíveis da experiência vivida, presos numa estável e aparentemente invul- nerável correspondência biunívoca. Na modernidade, o tempo tem história, tem história por causa de sua ‘capacidade de carga’, perpetuamente em expansão — o O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 19642 alongamento dos trechos do espaço que unidades de tempo permitem ‘passar’, ‘atravessar’, ‘cobrir’ — ou conquistar (BAUMAN, 2001, p. 16). Diante dessa reflexão, os estudiosos acerca do assunto compreenderam que a década de 1950 foi a consolidação dos avanços tecnológicos. Tais avan- ços intensificaram a produção e a exploração do trabalho, as resistências e as mobilizações sociais, a expansão dos mercados e do consumo, a criação artística e o engajamento político, a transformação das paisagens e das relações humanas, perpetuamente em expansão. Segundo os historiadores Cardoso e Vainfas (1997), ao longo da história da sociedade brasileira, a economia se deslocou do setor agrícola para o setor industrial, em um processo lento e gradual. Atualmente, nota-se que esses dois setores da economia ainda possuem uma grande relevância para a economia brasileira, apesar de várias transformações tecnológicas. O avanço das indústrias e do trabalho fabril e urbano não findou o trabalho rural — este caminhou lado a lado com o desenvolvimento industrial. O desenvolvimento urbano foi consolidado no Brasil a partir de 1945, atrelado a uma política industrial que não estava preocupada com a realidade nacional. A preocupação era implementar políticas que garantissem o aumento da produção em curto espaço de tempo, além de maior poder de compra dos indivíduos, com estratégias de linha de crédito e abertura de crediários nas atividades comerciais, leis trabalhistas e organização sindical, e abertura da economia aos investidores estrangeiros. No governo de Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), houve uma oscilação en- tre os que defendiam um projeto nacionalista e aqueles que defendiam uma abertura ao capital estrangeiro. Várias medidas políticas e econômicas foram tomadas para facilitar a entrada dos produtos industrializados norte- -americanos, fazendo parte da política de alinhamento entre o Brasil e os Estados Unidos no contexto da Guerra Fria. A Constituição de 18 de setembro de 1946 apresentou inúmeras medidas importantes na consolidação da democracia no país. Dentre tantas medidas, algumas favoreceram diretamente o desenvolvimento industrial e urbano do país (Figura 1), como: aumento de poder dos estados e autonomia dos municípios, defesa da propriedade privada, sustentação de uma política econômica liberal e não intervenção do Estado na economia. Foram medidas que favoreceram diretamente a ação do capital estrangeiro, porém, não sig- nificaram grande repercussão no desenvolvimento industrial do país, apesar da entrada de diversas empresas estrangeiras, que passaram a concorrer com a produção nacional. O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 1964 3 Figura 1. Desenvolvimento industrial e urbano no governo Dutra: inauguração da Via Dutra, em 1951, retrato da política desenvolvimentista e populista do Brasil a favor do avanço industrial e urbano. Fonte: Stoodi (2020, documento on-line). Getúlio Vargas continuava sendo uma figura política importante para o Brasil. Nas eleições para presidente em 1950, foi eleito novamente. Iniciava no país a Nova Era Vargas (1951-1954). A sociedade brasileira esperava, com isso, a retomada do crescimento industrial e o controle das massas urbanas. Procurando retomar o nacionalismo e o intervencionismo no Estado brasi- leiro, Vargas incentivou indústrias petroquímicas, siderúrgicas, de energia e técnicas agrícolas. Liderou a campanha “O petróleo é nosso”, criando a estatal Petrobrás na exploração e refino do petróleo no Brasil e implementando uma política populista, que se intensificava devido ao seu caráter nacionalista de governar. O nacionalismo de Vargas e a sua aproximação com o operariado geravam insatisfações dos empresários nacionais e estrangeiros, aumentando a opo- O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 19644 sição ao seu governo.Sua política protecionista entrava em conflito com os interesses do capital estrangeiro, que encontrou na burguesia nacional um forte apoio contra as medidas políticas e econômicas elaboradas por Vargas, principalmente no que se referia ao apoio dado aos trabalhadores, como a elevação do salário mínimo. À medida que perdia o apoio dos setores dominantes, Vargas buscava o apoio dos trabalhadores, adotando políticas trabalhistas. Mesmo assim não conseguiu o apoio total dos trabalhadores, que reivindicavam, por meio de greves e movimentos, melhores condições de trabalho e aumento do salário. Em agosto de 1954, com tantas oposições e manifestações de vários setores da sociedade contra o seu governo, e se recusando a aceitar a renúncia ou o afastamento do cargo de Presidente da República, Vargas se suicidou. A partir daí, ocorreram rearranjos políticos e econômicos nas eleições para presidente da República. No ano de 1956, o Brasil nomeava um novo presidente: Juscelino Kubitschek (1956-1961), também conhecido como JK. Seu programa de governo, denomi- nado de Plano de Metas, priorizava investimentos em energia, transporte, alimentação, indústria de base e educação. JK consolidou o desenvolvimento do capitalismo nacional associado ao capital estrangeiro, baseado na indus- trialização acelerada de bens duráveis e semiduráveis, na expansão de obras públicas e na construção da nova capital brasileira: Brasília. Segundo os historiadores contemporâneos Cardoso e Vainfas (1997), o governo populista se mostrava em desajuste com os interesses capitalistas associados ao capital estrangeiro, o País se endividava, e as multinacionais levavam seus lucros exorbitantes para o seu país de origem. As cidades cres- ciam, juntamente com os problemas sociais e urbanos nas áreas de moradia, mobilidade urbana, emprego, saúde e educação. Foi um período de largo crescimento industrial, que ocasionou a migração de nordestinos para as regiões Sudeste e Centro-Oeste em grande número, aumentando ainda mais a pobreza, a exclusão social e as vulnerabilidades sociais no espaço urbano. Em contrapartida, houve o fortalecimento da camada média no país, criando na sociedade uma mentalidade desenvolvimentista, despertando as potencialidades que o país poderia oferecer e incentivando o alto nível de consumo. Os bons resultados do Plano de Metas não impediram, nos espaços urbanos, principalmente, a existência de muitos focos de conflitos sociais, manifestações e greves realizadas por trabalhadores. Os “50 anos em 5” promovidos por JK foram possíveis devido aos inves- timentos do capital estrangeiro, gerando altas dívidas e dependência eco- nômica, principalmente com os Estados Unidos. Tratava-se de uma situação O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 1964 5 em que o grande capital monopolista, em escala internacional, acelerava as economias periféricas ao grande capital mundial, no contexto da Guerra Fria. Houve a promoção de um intenso crescimento industrial, que não solu- cionava os problemas sociais no campo e na cidade, e a miserabilidade era favorável para o oferecimento de mão de obra barata e a grande reserva dela em território nacional. Segundo Prado Jr. (2000), acerca da política desenvolvimentista no Brasil, na década de 1950, o governo de JK terminou e deixou o país submetido a uma grave crise econômica, sendo cenário para a campanha partidária de Jânio Quadros. Este se presentava com um discurso agressivo, que prometia varrer a corrupção e as mazelas da sociedade brasileira, prometendo justiça social e moralização nacional. Assim, obteve uma vitória histórica no país. Jânio Quadros precisava de um programa político eficaz para resolver os proble- mas deixados por JK, como inflação, dívida externa, pobreza e instabilidade social. Ao longo do seu governo, ele se utilizou de uma política autoritária, que interferia diretamente no modo de vida das pessoas, com reformas de princípios e fundamentos morais. Jânio Quadros comandou o país por pouco tempo, devido às medidas tomadas por ele, como restrição ao crédito e congelamento parcial dos sa- lários, aproximação econômica com a Argentina e intenção de criar um bloco independente na América Latina. Acabou gerando muitas oposições ao seu governo, tanto pelos brasileiros como pelos norte-americanos. Buscando aproximação com os países socialistas, no contexto da Guerra Fria, acabou sendo acusado de inimigo do país e comunista, intensificando as pressões internas e externas ao seu governo, o que o levou a renunciar. Após a renúncia de Jânio Quadros, os militares não aceitaram a posse do vice-presidente, João Goulart (conhecido como Jango) — acusavam-no de comunista. Daí, a solução encontrada pelas forças conservadoras foi implementar o parlamentarismo, para diminuir o poder de Jango. De 1961 até janeiro de 1963, o país foi governado de forma parlamentar. Porém, Jango realizou um plebiscito, que fazia retornar o regime presidencialista. Era o último e mais conturbado dos governos presidenciais da democracia popu- lista, dominado pelos interesses das oligarquias, das elites financeiras e do capitalismo internacional. Jango elaborou uma Reforma de Base, que daria condições para o país ter uma reforma agrária, universitária, eleitoral e urbana. Esse projeto era audacioso e era contra os interesses burgueses aliados ao capital estrangeiro. Em um cenário de profundas crises sociais, urbanas, rurais e econômicas, o país diminuía os investimentos e se afundava em dívidas. Nas cidades, o O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 19646 aprofundamento da política de massas ameaçava o populismo, a burguesia e a camada média, que viam com pavor o aprofundamento de tendências de esquerda e comunistas no país. Enfim, controlar a inflação e a crise econômica e política e garantir o de- senvolvimento industrial era algo impossível de se resolver na década de 1960. Em 31 de março de 1964, o cenário para a intervenção militar se consolidava. Terminava o período populista da história do Brasil e se instalava o regime ditatorial, encerrando, assim, o projeto nacionalista do desenvolvimento industrial brasileiro. A história da industrialização e da urbanização está atrelada à injus- tiça e à vivência nas camadas populares. Nesse sentido, é importante ressaltar que, no contexto de 1945 a 1964, a cultura e a política se interligavam. A cultura era vista como um instrumento de transformação, uma visão ambígua da sociedade que lutava pela politização dos indivíduos e pelo exercício da cidadania por meio da arte, do cinema, da música, da poesia e da literatura. O objetivo era revelar ao indivíduo a sua realidade, por meio da desconstrução das ideologias impostas pelo grande capital. O resultado foi um clima de conflitos e confrontos, mesmo diante de uma política autoritária e de um nacionalismo exacerbado. Tratava-se da contestação à prosperidade que só beneficiava uma minoria, do inconformismo com as relações comerciais e a dependência ao capital estrangeiro, da crítica à sociedade de consumo, da busca pela liberdade contra a alienação. Para saber mais sobre esse assunto, leia o artigo “O Brasil de JK > Sociedade e cultura nos anos 1950”, de Mônica Almeida Kornis, disponível no site do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas. Os efeitos da urbanização e os impactos no quadro econômico brasileiro O mundo se modifica diariamente. Espaços geográficos, populações, costumes e sistemas socioeconômicos são continuamente alterados, em um movi- mento constante causado pela modernização e pela renovação. É importante ressaltar que o desenvolvimento industrial provoca efeitos e impactos na sociedade, nas relações de trabalho, na integração cultural e social e nos espaços urbanos e rurais. Sob essa ótica, é importante compreender que a urbanização e a industrialização, no contexto de 1945 a 1964, mudaram hábitos cotidianos, comportamentos evalores e transformaram o espaço urbano em O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 1964 7 todos os aspectos — político, econômico, cultural e social —, impactando o desenvolvimento e a construção do homem contemporâneo. Durante a década de 1950, com o avanço da industrialização, as grandes cidades, principalmente da região Sudeste, receberam a implantação de multinacionais responsáveis pela produção de diversos bens de consumo e de veículos, que consolidaram transformações importantes nos processos de urbanização e política econômica do país. A sociedade e a economia se reinventavam, reproduzindo as características mais evidentes dessas orga- nizações, como a divisão social e a exploração do trabalho. As conquistas de direitos políticos e, ao mesmo tempo, as restrições de direitos sociais, a heterogeneidade e a desigualdade social foram marcantes no processo de industrialização ocorrido no Brasil de 1945 a 1964. Segundo Prado Jr. (2000), nas grandes cidades, observou-se a amplia- ção da pobreza, a deterioração das condições ocupacionais e o aumento das vulnerabilidades sociais, do desemprego e da instabilidade econômica. Tais fatores causaram efeitos devastadores na política urbana brasileira. A estrutura industrial com base nos interesses do capital estrangeiro não pos- sibilitou o enfrentamento de problemas internos, como a pobreza nas áreas rurais, o que levou à migração de milhares de trabalhadores para os grandes centros urbanos em busca de emprego e renda. Essa migração resultou em uma grande reserva de mão de obra barata que se amontoou nas cidades, aprofundando as desigualdades sociais no país. A precariedade e a incerteza se tornaram elementos cotidianos na vida dos migrantes e trabalhadores das grandes cidades. O progresso trazido com a industrialização não resolvia os problemas sociais, como a miséria, a violência, o desemprego, as migrações e a criminali- dade. O homem pobre urbano estava fortemente marcado pelas condições do sistema econômico instituído. Por mais que as cidades oferecessem maiores possibilidades de emprego, isso não era suficiente para atender a toda a demanda. Ao mesmo tempo que se propagava a ideia de uma vida melhor nos centros urbanos, a realidade era bastante perversa. Os postos de trabalho eram muito volúveis, com pagamento de salários muito baixos, e a cidade não oportunizava para a maioria dos trabalhadores serviços básicos como saúde, educação e saneamento básico. As condições de vida da maioria dos trabalhadores nos grandes centros urbanos desde 1945, estendendo-se até os dias atuais, são precárias, sub- -humanas, miseráveis. De fato, trabalho e dinheiro não são acessíveis a todos. A exclusão dos direitos e a política econômica direcionada ao longo da história para beneficiar a elite nacional e estrangeira favoreceram a consolidação O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 19648 de uma urbanização ineficaz, com sérios problemas na infraestrutura e na conjuntura das cidades. Assim, entre 1945 e 1964, as cidades se transformaram para assegurar o desenvolvimento econômico. O espaço físico se descaracterizou, e as an- tigas moradias deram lugar a habitações coletivas e centros comerciais. As favelas e a periferia cresceram na mesma intensidade (Figura 2); novos bairros distinguiam os moradores de acordo com sua renda e seu status. Nesse contexto, o planejamento urbano se fazia necessário e urgente para reorganizar o espaço público e o privado, além de oportunizar uma melhor infraestrutura para atender à instalação de inúmeras fábricas e indústrias. As cidades adquiriram um ritmo cada vez mais acelerado de produção e de vida. Figura 2. Efeitos e impactos da urbanização: registro de favelas que compunham o cenário do Rio de Janeiro na década de 1960. Fonte: Museu da Vida (2018, documento on-line). Segundo Ianni (1996), as cidades são complexos laboratórios das relações sociais. Ao mesmo tempo que são o lugar privilegiado das indústrias, são também o lugar da tirania e da opressão. Para o autor, A ‘cidade’ pode ser realidade e metáfora, significando simultaneamente mercado, comércio, indústria, banco, capital produtivo, capital especulativo, tecnologia, força de trabalho, divisão do trabalho social, planejamento, competição, lucro, qualidade total; compreendendo grupos e classes sociais, sindicatos e partidos políticos, movimentos sociais e correntes de opinião pública, tensões sociais e lutas políticas, assembleias, greves, revoltas, revoluções, pode significar liberdade, igualdade e contrato, tanto quanto alienação e emancipação, tirania e democracia. Na cidade desenvolvem-se as mais diversas formas de sociabilidade e múltiplas O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 1964 9 criações culturais, inclusive artísticas, científicas e filosóficas. E tudo isso pode irradiar-se pelo mundo agrário, tanto impregnando-se de suas criações como fertilizando-as (IANNI, 1996, p. 54–55). É importante ressaltar a análise realizada por Ianni (1996), quando este se refere ao desenvolvimento das cidades e às contradições que elas de- senvolveram. Isso porque, paralelamente ao desenvolvimento econômico e urbano do país, acelerado na década de 1950, surgiram inúmeros contrastes e confrontos a serem resolvidos nas estruturas urbanas, verificados ainda hoje. Muitos deles só serão solucionados a partir da tomada de consciência política por parte dos indivíduos, de uma ação organizada de mobilização social que se posicione contra a ordem estabelecida, em prol de mudanças nas implementações políticas espaciais, econômicas e sociais urbanas. Outro efeito do desenvolvimento industrial urbano, apontado por Prado Jr. (2000), foi a substituição de vagões e ferrovias por carros e rodovias. A rede ferroviária foi abandonada, porém, seu custo era muito mais baixo do que o da rede rodoviária, tanto para o cidadão quanto para o Estado. Foram medidas tomadas para atender ao capital estrangeiro, abrindo totalmente a economia e o mercado para as indústrias automobilísticas e petrolíferas, estimulando, assim, diversas atividades afins, como das indústrias mecânica, eletrônica, química e outras. É evidente que a indústria automobilística criou inúmeros postos de empre- gos. Porém, o país não tinha infraestrutura para atender a esse investimento. Para construir rodovias, por exemplo, deixou de financiar hospitais, escolas e rede de saneamento para a população. O governo priorizou políticas de transporte individual em vez do coletivo, para, assim, aumentar as vendas de carros no território nacional. Constatou-se também, com a industrialização, a facilidade de acesso aos bens de consumo, principalmente nas cidades. Nos governos de JK, Jânio Quadros e Jango, apesar dos problemas ocasionados pela dependência ao capital estrangeiro, foi notável o aumento de consumo de bens duráveis e semiduráveis por parte da população, acarretando mudanças no seu modo de vida. Por exemplo: ao adquirir uma televisão, obtinha-se acesso a um novo meio de comunicação, que informava, oferecia lazer, influenciava e direcionava o cidadão em suas escolhas e seus comportamentos. Segundo Fausto (1985), é importante acentuar que nenhum dos gover- nantes, nesse contexto de 1945 a 1964, tinha interesse em desenvolver uma industrialização e urbanização que acarretasse a modificação da estrutura socioeconômica do país. Isso porque o lucro e a modernidade faziam parte O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 196410 de um interesse nacional que consolidava as desigualdades da economia brasileira. O Estado assumiu a liderança no processo de industrialização, associou-se à iniciativa privada e proporcionou ampla liberdade para a im- plantação de investimentos estrangeiros no país, principalmente na região Sudeste, no eixo São Paulo-Rio de Janeiro-Belo Horizonte. Ainda, estabeleceu políticas educacionais, principalmente nos grandes centros urbanos, obje- tivando a formação de mão de obra semiqualificadapor meio dos cursos técnicos, para garantir mão de obra barata que atendesse ao grande capital. Na verdade, a desigualdade, a dominação e as injustiças sociais não foram oriundas do desenvolvimento industrial e urbano do país — elas sempre estiveram presentes na história da sociedade brasileira. Muitos de nossos problemas sociais são oriundos de sistemas políticos excludentes, negligentes e autoritários, que destituíram, ao longo do processo histórico, o cidadão de seus direitos. As grandes cidades brasileiras, no contexto de 1945 a 1964, apresentaram grandes contrastes sociais, efeitos da desproporção e das injustiças na distribuição de riquezas socialmente produzidas, da violação dos direitos e dos impactos causados pelo desenvolvimento econômico brasileiro. As camadas altas e médias da cidade definiram a padronização do consumo, de acordo com as propagandas e os comerciais divulgados pela imprensa. Novos produtos criavam novos hábitos no cotidiano das famílias, despertando uma extrema necessidade de consumo de tais produtos. Pode-se dizer que a apropriação capitalista no espaço urbano e a utilização deste como mercadoria delimita o lugar de cada indivíduo na cidade. Aqueles que não possuem poder aquisitivo habitam áreas marginais, excludentes, periféricas. Dessa forma, as cidades se expandem de forma desigual, gerando, a partir daí, muitas contradições, ambiguidades e miserabilidades que o grande capital não consegue reverter. O grande entrave à urbanização por meio de um modelo sustentável é a ausência de implementação de políticas públicas eficazes, que garantam seguridade e melhores condições de vida para os habitantes dos grandes centros urbanos. São inúmeras as questões não resolvidas na governabilidade do espaço urbano, relacionadas a aspec- tos como moradia, transporte coletivo, saúde, educação, lazer, entre tantos outros aspectos que se deterioram a cada dia, causando prejuízos enormes na vida urbana. O desenvolvimento econômico e urbano gerou frustrações e carências para a sociedade brasileira, que ainda luta contra as segregações e as precariedades causadas por ele. O modelo de urbanização acelerada, desordenada e exclu- dente viabilizado desde 1945 resultou em fortes indicadores de destituição O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 1964 11 de direitos sociais, dependência do capital estrangeiro, exploração de mão de obra e matéria-prima barata e precarização do trabalho e da vida humana. Porém, é imprescindível reconhecer também os avanços obtidos no espaço urbano com as implementações tecnológicas, que transformaram o modo de vida das pessoas, e a inserção ao mundo moderno e pós-moderno. Dentre esses avanços, destacam-se a luta pelo exercício da cidadania, o papel da mulher no mercado de trabalho e na organização espacial urbana, as políticas sociais e públicas, que intensificaram a organização de movimentos sociais, e a democratização da educação. Enfim, são diversos avanços que entram em confronto com os retrocessos da realidade social brasileira. A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, um plano de ação da Organização das Nações Unidas que aponta 17 objetivos para o desenvolvimento sustentável, sugere muitas transformações no espaço urbano. Por exemplo, o Objetivo 11, intitulado “Cidades e Comunidades Sustentáveis”, objetiva tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis. Para saber mais, acesse o site da Agenda 2030 e consulte o Objetivo 11. As mudanças ocorridas no âmbito social a partir do governo de Juscelino Kubitschek No contexto do governo de JK (Figura 3), de 1956 a 1961, vários aspectos da questão social acentuaram a gravidade das demandas oriundas do sistema econômico capitalista. O desenvolvimento era a ideologia da época, e o Estado cada vez mais ampliava a sua participação na economia e reforçava as alianças nacionais e internacionais, propagando as ideias do patriotismo e da cooperação internacional. Outro aspecto importante do desenvolvimento urbano nesse contexto foi a formação de uma grande reserva de mão de obra nas cidades, acelerando o processo de empobrecimento das classes populares e a marginalização da população desempregada. O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 196412 Figura 3. O presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira se dirige para o palanque do Palácio da Alvorada, em 1960, em Brasília, no Distrito Federal. Ao mesmo tempo que ocorria a política desenvolvimentista no país, evidenciava-se um aumento da miséria e da desigualdade social. Fonte: Paraná (2020, documento on-line). Durante o governo JK, a sociedade brasileira presenciou a estabilidade da política desenvolvimentista. Simultaneamente, a população assistiu a várias manifestações e rebeliões realizadas por trabalhadores e desempre- gados em busca de melhorias e direitos e contra a abertura desenfreada ao capital estrangeiro e a exploração da mão de obra. Decorreram daí inúmeras mudanças no âmbito social do país. Segundo Guimarães (2005, p. 48–49), acerca da política desenvolvimentista: A estratégia desenvolvimentista inicia sua argumentação afirmando que a demanda e o consumo de produtos primários nos centros mais desenvolvidos não acompa- nham proporcionalmente o crescimento da renda, enquanto aqueles bens estão sujeitos a flutuações de preços súbitas e amplas, o que afeta a capacidade nacional de importar e portanto de investir, inclusive na infra-estrutura, com graves reper- cussões sobre o nível interno de emprego e renda e a estabilidade social do país. O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 1964 13 O Plano de Metas elaborado no governo de JK significou uma maior diver- sificação de bens de consumo duráveis, o que acarretou mudanças sociais e culturais significativas no cotidiano da sociedade brasileira, consolidando uma realidade política, social, econômica e cultural baseada nas influências estrangeiras. Dessa forma, desenraizaram-se progressivamente as manifes- tações culturais e peculiares da nação, ao mesmo tempo que se propagou a estratégia desenvolvimentista no sistema econômico brasileiro. Durante o governo JK, o Congresso assegurava a legitimação das políticas públicas elaboradas pelo Presidente, funcionando como um canal de circu- lação de demandas setoriais dos grupos sociais, principalmente de apoio ao governo. Foram utilizados o clientelismo e o empreguismo como moeda de troca com os sindicatos. Dessa maneira, neutralizavam-se as resistências populares contra o alto custo de vida e a presença do capital estrangeiro. Nota-se um caráter liberal democrático nas ações políticas consolidadas no contexto da década de 1950, que determinava as bases e as propostas do Plano de Metas, dinamizando o processo de industrialização e transformação capitalista. Isso ocorria diante de um cenário de desemprego e pauperização, um acelerado processo migratório e um aumento da violência, das tensões e das fragmentações no âmbito social, que contradiziam o discurso desen- volvimentista na prática. É importante destacar a ressalva de Guimarães (2005, p. 168): [...] é preciso notar que, em diversos momentos da história da formação indus- trial brasileira, a ação do Estado, construindo as bases físicas para a atuação do capital privado nacional ou estrangeiro — tais como a infra-estrutura de energia e de comunicações —, ou implementando políticas regulatórias das atividades do capital , foi decisiva para superar estrangulamentos localizados, ou para dotar a economia daquela base indispensável ao seu desenvolvimento continuado e ao alcance de níveis mais elevados de sofisticação e competitividade. Cabe acrescentar que o grande contingente de mão de obra barata foi fundamental para o país ser atraente para o capital estrangeiro. Pode-se dizer ainda que esse contingente foi fundamental no processo industrial urbano. Projetar no país “50 anos em 5” foi uma prática audaciosa, apoiada no grande capital monopolista.No âmbito social, o governo JK não promoveu alteração na correlação de forças entre as classes dominantes e manteve as contradições do desenvolvimento, em que a miséria permitia o fornecimento de mão de obra barata para a dinamização industrial. O Programa de Metas do governo objetivava 31 metas, distribuídas em seis grandes grupos: Energia, Transporte, Alimentação, Indústrias de Base, O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 196414 Educação e Construção de Brasília. Com investimentos em obras públicas e entrada de indústrias estrangeiras, o Programa de Metas fazia aumentar o quantitativo de vagas de emprego. É importante ressaltar a análise de Lafer (2002, p. 47) acerca do Plano de Metas: O Programa de Metas ia ao encontro do estilo conciliatório das elites. Nesse sentido, cumpre salientar a importância do plano como um conceito político, decorrente da visão que Kubitschek tinha — e defendia — do futuro, compatível com as condições vigentes de participação política e, portanto, com os interesses dos atores rele- vantes no sistema político. Como conceito político, um plano representa, de fato, não apenas aspectos da experiência real de determinados grupos, mas também a visão e as expectativas de um futuro no qual acreditam. Portanto, a decisão de planejar, pela primeira vez proposta em uma campanha eleitoral, consistiu em uma tentativa de reduzir a incerteza sobre as novas políticas, na medida em que a visão do futuro não revelava, de antemão, incompatibilidade entre as aspirações das massas (expansão das oportunidades de emprego) e das elites (tradicional estilo conciliatório). Porém, a acelerada entrada de migrantes na região Sudeste, em busca de melhorias de vida, fugindo da miséria e do atraso regional das demais regiões, em destaque o Nordeste, diminuía as oportunidades de geração de renda. Isso porque as cidades não conseguiam promover a quantidade necessária de ofertas de emprego. O sucesso do Programa de Metas não solucionou as contradições e ambiguidades do sistema capitalista liberal — por exemplo, não impediu o movimento operário e as greves, o aumento das disparidades regionais simultaneamente ao desenvolvimento industrial, a manutenção e o crescimento da miséria e as desigualdades sociais nos espaços rural e urbano. O governo não conseguia gerar tantos empregos nos setores secun- dários e terciários para atender a toda a demanda. Assim, o desequilíbrio era evidente no espaço urbano, com a construção de favelas lado a lado com as mansões burguesas. Segundo Ianni (1979), o governo JK marcou um período de transição, saindo de uma política prioritariamente nacionalista do governo Vargas para adotar o desenvolvimentismo pautado em uma relação de dependência e associação com o capital externo. Nesse sentido, o progresso econômico desejado por Kubitschek não defendia a ideia de autonomia. Ao contrário, previa que a industrialização só se efetivaria, de fato, com a entrada de investimento privado, principalmente estrangeiro. Partindo desse argumento, Ianni (1979) afirma que o vínculo com o nacionalismo “[...] era apenas e exclusivamente ideológico e tático. Era muito mais uma concessão às forças políticas com O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 1964 15 as quais Kubitschek teve de jogar” (IANNI, 1979, p. 186). A Figura 4 mostra o planejamento dos investimentos do governo JK. Figura 4. Previsão de "tempos" no plano de investimentos do governo Juscelino Kubitschek. Fonte: Silva (2020, documento on-line). Ao longo dos anos seguintes, segundo Fausto (1985), a crise brasileira aumentou e afetou todas as esferas da sociedade — econômica, política, social e cultural. O discurso desenvolvimentista se desgastou e perdeu seu teor populista. As intensas mobilizações social, política e popular propaga- ram ideias revolucionárias e um profundo descontentamento com a ordem estabelecida. Muitas foram as críticas ao governo JK e às políticas desen- volvimentistas que propagaram um crescimento econômico vinculado ao capital estrangeiro. O golpe de 1964 esmagou as forças populares e manteve o modelo de desenvolvimento industrial instituído por JK, com algumas alterações, para a retomada do crescimento econômico no país frente a um cenário de crise e recessão. No que se refere ao âmbito social, as perdas salariais e trabalhistas foram altíssimas, aprofundando as disparidades sociais e aumentando os índices de mortalidade e miserabilidade, empobrecimento dos trabalhadores e privação O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 196416 de seus direitos básicos. Tais problemas percorreram todo o século XX e ainda perduram no século XXI. Houve o fortalecimento de uma segregação espacial e social nas cidades brasileiras, juntamente com a crise urbana, fomentada pelo desemprego, pela miserabilidade, pela violência e pela desregulamentação dos direitos e serviços básicos. Para sanar essas problemáticas, faz-se necessário regulamentar políticas sociais eficazes que possam oportunizar melhores condições de vida para os cidadãos, seja no espaço urbano ou rural. Como afirma Faleiros (1991, p. 8): As políticas sociais no Brasil estão relacionadas diretamente às condições viven- ciadas pelo País em níveis econômico, político e social. São vistas como mecanis- mos de manutenção da força de trabalho, em alguns momentos, em outros como conquistas dos trabalhadores, ou como doação das elites dominantes, e ainda como instrumento de garantia do aumento da riqueza ou dos direitos do cidadão. O momento histórico é de reinvenção, reorganização, reestruturação da sociedade brasileira e de todo o seu sistema político-econômico. O enfren- tamento à realidade perversa do capitalismo se fortalece juntamente com as ações de cidadania, a implementação de políticas públicas eficazes, as mobilizações e as tomadas de consciência política e social, em prol de um desenvolvimento sustentável e humano. Segundo Faleiros (1991), as políticas sociais devem ser entendidas como produto histórico concreto a partir do contexto da estrutura capitalista. As políticas sociais são formas de manutenção da força de trabalho econômica e politicamente articuladas para não afetar o processo de exploração capitalista e dentro do processo de hegemonia e contra hegemonia da luta de classes. (FA- LEIROS, 1991, p. 45). [...] as políticas sociais, apesar de aparecerem como compensações isoladas para cada caso, constituem um sistema político de mediações que visam à articulação de diferentes formas de reprodução das relações de exploração e dominação da força de trabalho entre si, com o processo de acumulação e com as forças políticas em presença (FALEIROS, 1991, p. 80). Acerca desse assunto, pode-se ressaltar também a questão do desenvol- vimento urbano industrial. No cenário brasileiro, ao longo da história, esse desenvolvimento foi desigual, com formas tipicamente capitalistas atuando juntamente com as formas tradicionais de expropriação e espoliação da acumulação primitiva, a partir de um modelo de modernização conservadora e de um desenvolvimento desigual, dependente e periférico do capitalismo. Visto que o crescimento econômico é uma das condições necessárias para a resolução dos problemas que se arrastam na história do país, tanto no espaço O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 1964 17 urbano quanto no rural, fazem-se necessárias inúmeras implementações de políticas sociais e públicas em todas as estruturas da sociedade, como na saúde, na educação, na habitação etc. É necessário ainda o investimento em novas perspectivas de retomada dos direitos sociais e trabalhistas. Referências BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. CARDOSO, C. F.; VAINFAS, R. Domínios da história. Rio de Janeiro: Campus, 1997. 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O desenvolvimento urbano no Brasil entre 1945 e 1964 19 FORMAÇÃO SOCIAL, ECONÔMICA E POLÍTICA DO BRASIL OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Identificar os elementos históricos que levaram ao processo migratório no Brasil. > Analisar a influência da migração na dinâmica econômica e política do Brasil. > Reconhecer a importância da migração para a formação social e cultural do Brasil. Introdução Além de ser um país de imigrantes estrangeiros, o Brasil também é um país de relevante migração interna. A partir da segunda metade do século XX, o País experimentou grandes fluxos migratórios, que ocorreram sobretudo da região Nordeste em direção à Sudeste. Esse movimento de grandes contingentes teve as suas origens históricas na pobreza das regiões originárias dos migrantes, que funcionou como fator de expulsão destes de suas terras natais. Como fator de atração ao Sudeste, houve o grande desenvolvimento econômico pelo qual essa região passou, com a industrialização e a construção de rodovias, que facilitaram a migração. O processo migratório como fator social e econômico Eduardo Pacheco Freitas Desse modo, o País teve diversas esferas de sua sociedade influenciadas pelos movimentos de migração. A política, a cultura e a economia brasileiras têm, em suas expressões atuais, a marca do trabalho e da presença dos migrantes. Portanto, pode-se afirmar que o Brasil, como o conhecemos, não seria o mesmo sem os fluxos migratórios que ocorreram no século passado. Neste capítulo, você estudará sobre as origens históricas da migração no Brasil. Além disso, verá uma análise da migração sob o ponto de vista econômico e político. Por fim, você conhecerá o papel relevante dos migrantes para a formação sociocultural brasileira. Origens do processo migratório brasileiro Nos últimos 60 anos, o Brasil experimentou um grande fluxo migratório interno. Os movimentos migratórios estão profundamente conectados ao processo de urbanização crescente que o País viveu no período e à redistribuição da população brasileira no espaço do território nacional. Embora os fluxos mi- gratórios ocorram no País desde o século XIX, é a partir da segunda metade do século XX que eles irão se intensificar e se tornar um fenômeno bastante considerável (BAENINGER, 2012). A cada ciclo econômico verificado nos últimos dois séculos, houve formas migratórias diferentes: ao longo do século XIX, a migração esteve vinculada à produção cafeeira; da última década do século XIX até 1930, os migrantes buscavam inserção em um novo sistema cafeeiro e na industrialização inci- piente; entre os anos de 1940 e 1950, houve a integração do mercado interno e um maior desenvolvimento regional, sobretudo na região Sudeste, que passou a atrair cada vez mais migrantes (BAENINGER, 2012). De 1950 a 2000, ocorreu a internacionalização da economia brasileira, somada a um ritmo de urbanização jamais visto no País, sendo esse fenô- meno diretamente relacionado aos fluxos migratórios da região Nordeste em direção à Sudeste. Na década de 1980, esse fluxo migratório diminuiu consideravelmente, ganhando novo fôlego apenas no século XXI. Neste ca- pítulo, trataremos exclusivamente do período considerado mais relevante e com maiores impactos na sociedade brasileira, que corresponde justamente à segunda metade do século XX (BAENINGER, 2012). A partir da década de 1950, a principal causa para a migração interna foram os desiquilíbrios na distribuição regional da riqueza. As regiões Norte e Nordeste apresentaram, historicamente, uma menor participação na riqueza do Brasil, além de serem regiões negligenciadas em amplo aspecto pelo poder central que se encontrava no sul do País. Além disso, a necessidade cada vez O processo migratório como fator social e econômico2 maior de mão de obra não qualificada para a indústria e para a construção civil contribuiu sobremaneira para a atração de migrantes das regiões Norte e, principalmente, Nordeste em direção às regiões Sudeste e Sul (SINGER, 1980). Portanto, qualquer abordagem sobre os fenômenos migratórios deve ser realizada a partir da perspectiva histórico-estrutural, buscando-se compreender os fenômenos e processos que condicionaram as decisões dos migrantes de partirem em busca de novas oportunidades. Para melhor compreensão, deve-se considerar também a conjuntura internacional, em que asmassas se deslocam em função do capital. Nesse sentido, Singer (1980, p. 80) afirma que: Como qualquer outro fenômeno social de grande significado na vida das nações, as migrações internas são sempre historicamente condicionadas, sendo o resul- tado de um processo global de mudança, do qual elas não devem ser separadas. Encontrar, portanto, os limites da configuração histórica que dão sentido a um determinado fluxo migratório é o primeiro passo para o seu estudo. No caso do Brasil, a origem das migrações está estreitamente relacionada com a economia, visto que, enquanto país inserido na periferia do sistema capitalista mundial, ele tem suas esferas econômicas, políticas e sociais profundamente afetadas pelo contexto internacional. O fenômeno migratório, como parte da sociedade, não poderia deixar de ser influenciado também pelas movimentações do capital mundial. Quando se inicia um grande fluxo de migrantes das regiões mais ao norte do País em direção às regiões ao sul, este se dá sobretudo pelas grandes transformações econômicas pelas quais o País passava, em um momento em que deixava de ser um país rural e passava a ser um país urbano (SINGER, 1980). Na região Nordeste, a década de 1950 foi marcada por um processo constante de crescimento demográfico, que desencadeou graves problemas em termos sociais e políticos. Ao mesmo tempo, havia uma espécie de insatisfação popular com as condições de vida locais, ao passo que se vis- lumbrava uma certa opulência (se comparada à vida miserável no Nordeste) no Sudeste, região mais desenvolvida do País. Houve tentativas de fixar os nordestinos em sua terra, por meio da criação de associações camponesas, que lutavam contra os latifúndios e buscavam promover o acesso à terra para os pobres. Contudo, a crise não foi solucionada, e políticas que incentivaram a migração foram implementadas, contribuindo para os fluxos migratórios em direção à região Sudeste e conformando uma situação dual no País, em que o campo é atrasado e o espaço urbano é desenvolvido (RUA, 2003). O processo migratório como fator social e econômico 3 Nesse contexto, o Brasil mudava — embora em dimensão reduzida — a sua participação no cenário internacional, tornando-se exportador de pro- dutos industrializados. Essa nova condição, ligada ao desenvolvimento das indústrias, sobretudo no estado de São Paulo, contribuiu de alguma forma para as migrações. Entretanto, o grande motor a colocar em marcha os fluxos migratórios da região Nordeste, sem sombra de dúvida, foi a criação de um mercado interno, no qual surgiram bens de consumo fabricados no próprio País, como uma linha variada de eletrodomésticos e, muito importante, um parque automobilístico, implantado durante o governo de Juscelino Kubitschek (1956–1961). Essa nova matriz industrial instalada no País exigia mão de obra de maneira crescente, funcionando como um fator de atração dos migrantes, que, em suas regiões de origem, enfrentavam fatores de expulsão (DRAIBE, 1985). Um dos paradigmas explicativos dos movimentos migratórios é o modelo “repulsão/atração”, segundo o qual “no centro dos processos migratórios, se encontra a decisão de um agente racional que, na posse de informação sobre as características relativas das regiões A e B, e de dados contextuais respeitantes à sua situação individual e grupal, decide pela perma- nência ou pela migração” (PEIXOTO, 2004, p. 5). Em outras palavras, a migração só pode ocorrer na convergência de processos complementares: as condições adversas na região de origem (dificuldades/repulsão) e o vislumbre de melhores condições em outro local (oportunidades/atração). No entanto, outras transformações da sociedade brasileira serviram como atração para os migrantes a partir da década de 1950. Naquele período, sobretudo no governo de Juscelino Kubistchek (JK), uma nova doutrina eco- nômica tomou conta do País: o nacional-desenvolvimentismo. A partir dessa doutrina, JK foi eleito, prometendo intervir fortemente na economia, com o objetivo de modernizar o País. A sua base foi o conhecido Plano de Metas, que propunha soluções para as áreas da indústria, do campo, da energia, da educação, entre outras. O slogan de JK foi “50 anos em 5”, afirmando que o Brasil experimentaria um avanço rápido como nunca visto em sua história. O maior símbolo da administração de JK foi a construção de Brasília, uma representação do novo país, industrializado e cosmopolita, que ele pretendia inaugurar (BIELSCHOWSKY, 2007). A construção de Brasília, iniciada em 1956, exerceu uma forte atração sobre os migrantes do norte e, principalmente, do Nordeste e do estado de Goiás. Os candangos, como ficaram conhecidos os migrantes-operários que construíram Brasília, chegaram a somar mais de 60 mil indivíduos no auge das O processo migratório como fator social e econômico4 obras. Para acomodar esse enorme contingente de pessoas, as construtoras levantaram grandes acampamentos, que, na prática, funcionavam como pequenas cidades (REIS JÚNIOR, 2008). Inicialmente, o maior número de migrantes veio de Goiás, segundo o censo realizado em 1957, que apontou como oriundos desse estado 3.152 migrantes. Entretanto, a partir de 1958, uma grande seca na região Nordeste promoveu o deslocamento de 4 mil flagelados em direção aos canteiros de obras da nova capital. Ainda assim, no ano de 1958, os operários goianos compunham 52% da população da Cidade Livre (Figura 1), acampamento que reunia a maior parte dos candangos. Portanto, tem-se dois fatores principais na formação do perfil do migrante que construiu Brasília: a proximidade geográfica (Goiás) e as dificuldades econômicos advindas das secas que assolavam a região Nordeste (REIS JÚNIOR, 2008). Figura 1. Cidade Livre (1959), a maior cidade dos candangos, que abrigou dezenas de milhares de migrantes-operários durante a construção de Brasília. Fonte: Núcleo... (2020, documento on-line). O processo migratório como fator social e econômico 5 Influências da migração sobre a economia e a política brasileiras A partir de 1930, as migrações internas brasileiras passaram a desempenhar um papel de destaque na recomposição espacial do Brasil. Como visto, os fluxos migratórios tinham relação com as atividades de produção mais expressivas de cada época histórica. Nas primeiras décadas do século XX, a atividade econômica primária brasileira estava no campo, contudo, ao longo do século, houve a transposição do centro da economia, que ficava no campo, para as cidades e suas indústrias, comércios e serviços (MATA, 1973). Portanto, o fenômeno de migração desse período foi caracterizado, muitas vezes, como êxodo rural, já que houve um deslocamento massivo de cam- poneses para as cidades em busca de trabalho e melhores oportunidades. Entre 1940 e 1970, por exemplo, enquanto a taxa da população rural crescia a 1,8%, nas áreas urbanas, o crescimento populacional era de 4,8%. Em suma, um dos principais resultados da migração interna brasileira foi o inchaço das grandes cidades do País, sobretudo São Paulo e Rio de Janeiro (MATA, 1973). No século XX, o Brasil modernizou a sua economia e, como não poderia deixar de ser, atrelada a essa nova dinâmica, a sociedade e a política se trans- formaram. Em decorrência da demanda por mão de obra nas indústrias, que surgiam em velocidade cada vez mais acelerada, principalmente na década de 1950, em função do desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek, houve a atração de migrantes da região Nordeste. Todavia, não foi somente para o trabalho na indústria que essas pessoas se deslocaram dentro do Brasil rumo à região Sudeste. À época, o Brasil passou a apostar fortemente no modelo de transporte estadunidense, deixando de lado as ferrovias e as hidrovias e investindo na construção de milhares de quilômetros de estradas, pontes e rodovias por todo o país (FREITAS, 2017). Desse modo, dois aspectos que se complementam podem ser destacados: primeiro, a transformação econômica nos camposda indústria e dos trans- portes, que funcionou como elemento de atração para os migrantes; segundo, as próprias rodovias e pontes construídas pela mão de obra dos migrantes facilitaram ainda mais o deslocamento destes para as regiões Sul e Sudeste. Assim, o Brasil se tornava um país em que as distâncias eram diminuídas a cada dia, promovendo uma grande transformação social devido à nova infraestrutura de transportes (FREITAS, 2017). Trata-se, pois, de uma relação dialética: à medida que a economia se desenvolvia, os migrantes desenvolviam a economia com sua força de tra- balho. Daí a centralidade dos migrantes da região Nordeste no dinamismo da O processo migratório como fator social e econômico6 economia brasileira do século XX. Portanto, não é possível analisar aquele período sem que os trabalhadores oriundos de outras regiões do Brasil — e suas realizações no Sudeste — sejam levados em consideração. É evidente que a maior parte dos trabalhadores migrados da região Nordeste para a Sudeste encontrou condições de vida tão ou mais adversas que aquelas existentes em seus estados de origem. Um importante fato econômico envolvendo os migrantes é chamado pela sociologia de cor- reias transmissoras. Na prática, isso significa que os migrantes fogem de um contexto de subemprego/desemprego de suas regiões originárias para, na maioria das vezes, encontrar a mesma condição nas metrópoles para as quais se transplantaram (FERREIRA, 1986). O campo político também foi significativamente influenciado pela presença dos migrantes. A sobreposição dos ambientes públicos urbanos, onde viviam a maior parte dos imigrantes, e o âmbito privado do trabalho forneceram todo tipo de combustível para a construção de identidades de classe, consciência da condição de migrante, bem como para a formação de movimentos sociais, sindicais e políticos característicos da periferia do capitalismo mundial. Aliás, os migrantes, como afirma o cientista social Nozaki (2009, p. 305), situam-se “nas periferias da periferia do capitalismo”. No século XX, os migrantes, principalmente os nordestinos, ajudaram a criar a classe operária brasileira, que atuou nas indústrias de base, petro- química, siderúrgica e automobilística. Em virtude de sofrerem com baixas remunerações, os trabalhadores se organizaram contra essas condições de trabalho, fundando alguns dos maiores sindicatos do País. Essas organizações, compostas em maior parte por migrantes ou filhos destes, foram respon- sáveis por buscar, no campo político, o cumprimento das suas demandas. Instrumentos como a greve foram particularmente importantes para que as categorias de trabalhadores conseguissem impor a sua vontade e obter mais direitos e melhores salários. O período que vai de 1964 até meados da década de 1980 foi muito compli- cado para os grupos que exigiam direitos e democracia. No entanto, é nesse período que grupos políticos e sindicais despontam no cenário político do País, como o Partido dos Trabalhadores (PT), criado em 1982, tendo um dos seus maiores expoentes o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, um migrante pernambucano que chegou a São Paulo vindo em um caminhão pau-de-arara (Figura 2). Lula ainda estaria no centro das atenções ao liderar o grande ciclo de greves dos metalúrgicos do ABC paulista, ocorrido entre 1978 e 1980 (Figura 3), já no ocaso da ditadura civil-militar. O processo migratório como fator social e econômico 7 Outra grande liderança política de origem migrante é Luiza Erundina, nascida no estado da Paraíba, que viria a se tornar a primeira prefeita de São Paulo, a maior cidade da América Latina. Desde a juventude, Erundina foi militante política, atuando na defesa da reforma agrária em seu estado Figura 2. O caminhão pau-de-arara é um meio de transporte irregular utilizado durante décadas no transporte de migrantes saídos da região Nordeste em direção a São Paulo. Como se vê na imagem, é um veículo sem qualquer tipo de conforto ou segurança para os passageiros. Fonte: Campanato (2006, documento on-line). Figura 3. O futuro presidente Lula, migrante e então sindicalista, discursa para uma multidão de operários grevistas, em 1979. Fonte: Piccino (1979, documento on-line). O processo migratório como fator social e econômico8 natal, no interior de movimentos católicos. Formada em Serviço Social pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Erundina também se tornaria uma das fundadoras do PT, junto a Lula. O PT, no contexto da redemocratização, tornou-se um sinal de esperança para a democracia brasileira, que renascia (ERUNDINA; JINKINGS; PERICÁS, 2020). Como visto, a migração no século XX, sobretudo em sua segunda metade, moldou a face do Brasil em diversos aspectos. Além da influência dos mi- grantes sobre a economia, desenvolvida a partir da sua força de trabalho, houve o aparecimento de lideranças políticas importantes e que mudaram a história do Brasil nas últimas décadas. Desse modo, pode-se concluir que, sem o fenômeno migratório – em particular o nordestino –, o Brasil seria um país com uma versão bastante diversa da atual. Migração e formação sociocultural brasileira O Brasil é um país eminentemente urbano, porém essa nem sempre foi a reali- dade nacional. Foi somente a partir da década de 1950 que ocorreu uma virada na composição da população brasileira no que se refere ao binômio rural/urbano. Naquele período, as cidades passaram a exercer uma forte atração sobre os migrantes, que incharam o uso do espaço urbano e contribuíram para a criação das regiões conturbadas e metropolitanas. Segundo o Censo de 2010, 84,35% da população brasileira vivia em cidades, e esse número não para de crescer, muitas vezes por conta dos fluxos migratórios, que continuam a enviar pessoas das regiões mais pobres do País — frequentemente rurais — para os grandes núcleos urbanos (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2010). A migração interna brasileira foi um dos fenômenos mais importantes para a transformação do Brasil de um país rural para um país urbano. Portanto, esse fato está profundamente conectado à criação não somente de uma sociedade urbana, mas também de uma cultura urbana. Conforme Gonçalves (2001, p. 174): De acordo com os censos do IBGE, na década de 1960, 13 milhões de pessoas trocaram o campo pela cidade; nos dez anos seguintes, esse número se elevou para 15,5 milhões. Tudo indica que desde 1970, quando a população rural passou a ser minoritária, até os dias de hoje, mais de 40 milhões de brasileiros migraram do campo para a zona urbana. Se levarmos em conta que a região Sudeste con- centra, sozinha, 72.282.411 habitantes, ou seja, 42,6% da população do país, e tem um percentual de urbanização da ordem de 90,52%, fica ainda mais evidente o crescimento da cidade em detrimento do campo. O processo migratório como fator social e econômico 9 Os números mencionados são impressionantes e dão a dimensão do tama- nho da migração interna que ocorreu no Brasil na segunda metade do século XX. Esses movimentos foram tão expressivos, que se tornaram responsáveis por modificar amplamente as características socioculturais do País. De uma sociedade mais engessada e tradicional, fundada no campo, o Brasil passou a ser uma nação mais dinâmica e com acelerado ritmo de transformações culturais e sociais, frutos obtidos diretamente da transposição de populações inteiras das áreas rurais e do sertão para os perímetros urbanos brasileiros. O caso do estado de São Paulo é particularmente interessante, pois esse estado concentra 1/5 da população brasileira, do qual 1/3 se encontra apenas na capital do estado. Ao lado do Rio de Janeiro, São Paulo é a região do País que mais recebeu migrantes nas últimas décadas, recebendo, assim, uma forte influência das culturas originais dos migrantes. Desde expressões linguísticas, passando por pratos típicos que caíram no gosto popular até a música, a contribuição dos migrantes se revela significativa, amalgamandoculturas diferentes, das mais diversas regiões do Brasil (em particular do Nordeste), formando um caldeirão cultural na megalópole paulista. Para abordar corretamente o problema da formação sociocultural brasileira a partir das migrações, deve-se pensar sob a perspectiva das relações entre território e identidade cultural. Afinal, o território (no qual o migrante se estabelece) assume relevância para a formação e a afirmação de identidades e pertencimento. Para Jorge (2010, p. 240) a identidade é “resultado de um trabalho permanente de renovável construção social e política”, porém ela também tem origem “geográfica, que leva em conta a extrema mobilidade dos agentes sociais”. Dessa forma, o espaço físico onde o indivíduo vive é o elo comum que conduz à identificação dos sujeitos com o ambiente que ocupam. Assim, as identidades seriam fixadas no território naquilo que o autor qualifica de identidades socioespaciais, isto é, identificações individuais e culturais que integram um grupo em um determinado espaço. Em contrapartida, em vez de influir com a sua própria cultura na nova terra, pode ocorrer o processo de desterritorialização do migrante. Esse processo pode ser descrito brevemente como uma quebra de vínculos com um território originário. Para as classes superiores e abastadas, a desterritorialização não costuma ser algo nocivo, tratando-se de uma multiterritorialidade segura e opcional. Contudo, para os mais pobres (maior parte dos migrantes), a desterritorialização se manifesta frequentemente de maneira coercitiva, oriunda de opções exíguas para a sobrevivência individual ou familiar, muito comum nos casos dos refugiados. Catástrofes climáticas, guerras, disputas O processo migratório como fator social e econômico10 de fronteira e questões étnicas são as causas mais comuns para a produção de populações refugiadas, que perdem o vínculo com o território original, sendo sempre estrangeiros mesmo onde têm a possibilidade de se assentar (HAESBAERT, 1995). A migração também pode desencadear o processo de desterritorialização em dois aspectos principais. Em primeiro lugar, o migrante pode assumir — de maneira voluntária, como estratégia de sobrevivência em um novo meio — valores e práticas comuns ao novo território que habita. Em segundo lugar, a adoção dos novos costumes e o rechaço da sua cultura anterior podem ser constituídos por meio de elementos coercitivos, como o constrangimento social pela utilização de palavras ou expressões típicas de sua região de origem, que soam “exóticas” em sua nova realidade social (HAESBAERT, 1995). Das produções culturais humanas, o cinema é uma das mais rele- vantes para a compreensão da vida em sociedade e dos dilemas e sonhos dos seres humanos. Diversos filmes brasileiros já trataram da questão dos migrantes, mostrando as suas lutas e dificuldades na nova vida longe da sua terra natal. O filme O homem que virou suco, de 1981, roteirizado e dirigido por João Batista de Andrade, retrata a vida de Deraldo (interpretado por José Dumont), um poeta popular e migrante recém-chegado a São Paulo, onde tenta se adaptar a uma realidade muito diferente da que estava habituado e, ao mesmo tempo, tenta sobreviver da venda de folhetos com suas poesias. Em 2015, o filme entrou para a lista dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos (DIB, 2015). Outro impacto dos migrantes na sociedade, sobretudo nas grandes cidades brasileiras, foi o da “favelização”. As periferias das cidades se tornaram o des- tino de grande parte dos migrantes, em sua grande maioria direcionados para trabalhos que exigem pouca escolaridade. Em geral, as mulheres ocuparam os empregos domésticos, como faxineiras, diaristas ou babás. Já os homens, em sua maioria, foram para a construção civil e para os serviços braçais. Portanto, o sonho do migrante de encontrar condições de vida melhores nas cidades da região Sudeste, na maioria dos casos, não se concretizou. O trabalho se mostrou árduo e mal remunerado, e a habitação se manifestou longe das áreas mais nobres das cidades e com falta de saneamento básico (GALHARDO, 2007). Não é à toa que grande parte da cultura desenvolvida pelos migrantes a partir dessa realidade — principalmente no cancioneiro popular — manifeste a saudade e a intenção de retorno à terra de origem, como pode ser obser- O processo migratório como fator social e econômico 11 vado na obra do conhecido cantor e compositor Luiz Gonzaga. Conforme o pesquisador José Cunha Lima: Ao analisar a musicografia produzida por Luiz Gonzaga, logo observo que a saudade é um tema renitente e presente na vida do migrante e do sertanejo que fica espe- rando a notícia do parente que se foi em busca de melhores condições de vida, ou esperando pelo retorno, mas até o regresso é obra da saudade (LIMA, 2011, p. 47). Neste capítulo, você viu como o Brasil se formou econômica, política e culturalmente a partir da segunda metade do século XX com a presença e o trabalho dos migrantes. Os fluxos migratórios, originados principalmente na região Nordeste, tendo como destino o Sudeste brasileiro, estão relacionados à grande desigualdade entre as regiões. Enquanto o Nordeste, pobre, serviu como fator de expulsão de muitos de seus habitantes, o Sudeste, econo- micamente mais desenvolvido, atraiu levas e levas de migrantes ao longo das décadas. Desse modo, diversos aspectos da sociedade brasileira foram moldados a partir desse processo migratório, tanto nas regiões de origem quanto nas regiões de chegada. Referências BAENINGER, R. Rotatividade migratória: um novo olhar para as migrações internas no Brasil. REMHU: Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, Brasília, v. 20, n. 39, p. 77–100, jul./dez. 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ abstract&pid=S1980-85852012000200005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em: 22 nov. 2020. BIELSCHOWSKY, R. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvol- vimento. 4. ed. 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