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FORMAÇÃO SOCIAL, ECONÔMICA E POLÍTICA DO BRASIL OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Identificar os elementos históricos que levaram ao processo migratório no Brasil. > Analisar a influência da migração na dinâmica econômica e política do Brasil. > Reconhecer a importância da migração para a formação social e cultural do Brasil. Introdução Além de ser um país de imigrantes estrangeiros, o Brasil também é um país de relevante migração interna. A partir da segunda metade do século XX, o País experimentou grandes fluxos migratórios, que ocorreram sobretudo da região Nordeste em direção à Sudeste. Esse movimento de grandes contingentes teve as suas origens históricas na pobreza das regiões originárias dos migrantes, que funcionou como fator de expulsão destes de suas terras natais. Como fator de atração ao Sudeste, houve o grande desenvolvimento econômico pelo qual essa região passou, com a industrialização e a construção de rodovias, que facilitaram a migração. O processo migratório como fator social e econômico Eduardo Pacheco Freitas Desse modo, o País teve diversas esferas de sua sociedade influenciadas pelos movimentos de migração. A política, a cultura e a economia brasileiras têm, em suas expressões atuais, a marca do trabalho e da presença dos migrantes. Portanto, pode-se afirmar que o Brasil, como o conhecemos, não seria o mesmo sem os fluxos migratórios que ocorreram no século passado. Neste capítulo, você estudará sobre as origens históricas da migração no Brasil. Além disso, verá uma análise da migração sob o ponto de vista econômico e político. Por fim, você conhecerá o papel relevante dos migrantes para a formação sociocultural brasileira. Origens do processo migratório brasileiro Nos últimos 60 anos, o Brasil experimentou um grande fluxo migratório interno. Os movimentos migratórios estão profundamente conectados ao processo de urbanização crescente que o País viveu no período e à redistribuição da população brasileira no espaço do território nacional. Embora os fluxos mi- gratórios ocorram no País desde o século XIX, é a partir da segunda metade do século XX que eles irão se intensificar e se tornar um fenômeno bastante considerável (BAENINGER, 2012). A cada ciclo econômico verificado nos últimos dois séculos, houve formas migratórias diferentes: ao longo do século XIX, a migração esteve vinculada à produção cafeeira; da última década do século XIX até 1930, os migrantes buscavam inserção em um novo sistema cafeeiro e na industrialização inci- piente; entre os anos de 1940 e 1950, houve a integração do mercado interno e um maior desenvolvimento regional, sobretudo na região Sudeste, que passou a atrair cada vez mais migrantes (BAENINGER, 2012). De 1950 a 2000, ocorreu a internacionalização da economia brasileira, somada a um ritmo de urbanização jamais visto no País, sendo esse fenô- meno diretamente relacionado aos fluxos migratórios da região Nordeste em direção à Sudeste. Na década de 1980, esse fluxo migratório diminuiu consideravelmente, ganhando novo fôlego apenas no século XXI. Neste ca- pítulo, trataremos exclusivamente do período considerado mais relevante e com maiores impactos na sociedade brasileira, que corresponde justamente à segunda metade do século XX (BAENINGER, 2012). A partir da década de 1950, a principal causa para a migração interna foram os desiquilíbrios na distribuição regional da riqueza. As regiões Norte e Nordeste apresentaram, historicamente, uma menor participação na riqueza do Brasil, além de serem regiões negligenciadas em amplo aspecto pelo poder central que se encontrava no sul do País. Além disso, a necessidade cada vez O processo migratório como fator social e econômico2 maior de mão de obra não qualificada para a indústria e para a construção civil contribuiu sobremaneira para a atração de migrantes das regiões Norte e, principalmente, Nordeste em direção às regiões Sudeste e Sul (SINGER, 1980). Portanto, qualquer abordagem sobre os fenômenos migratórios deve ser realizada a partir da perspectiva histórico-estrutural, buscando-se compreender os fenômenos e processos que condicionaram as decisões dos migrantes de partirem em busca de novas oportunidades. Para melhor compreensão, deve-se considerar também a conjuntura internacional, em que as massas se deslocam em função do capital. Nesse sentido, Singer (1980, p. 80) afirma que: Como qualquer outro fenômeno social de grande significado na vida das nações, as migrações internas são sempre historicamente condicionadas, sendo o resul- tado de um processo global de mudança, do qual elas não devem ser separadas. Encontrar, portanto, os limites da configuração histórica que dão sentido a um determinado fluxo migratório é o primeiro passo para o seu estudo. No caso do Brasil, a origem das migrações está estreitamente relacionada com a economia, visto que, enquanto país inserido na periferia do sistema capitalista mundial, ele tem suas esferas econômicas, políticas e sociais profundamente afetadas pelo contexto internacional. O fenômeno migratório, como parte da sociedade, não poderia deixar de ser influenciado também pelas movimentações do capital mundial. Quando se inicia um grande fluxo de migrantes das regiões mais ao norte do País em direção às regiões ao sul, este se dá sobretudo pelas grandes transformações econômicas pelas quais o País passava, em um momento em que deixava de ser um país rural e passava a ser um país urbano (SINGER, 1980). Na região Nordeste, a década de 1950 foi marcada por um processo constante de crescimento demográfico, que desencadeou graves problemas em termos sociais e políticos. Ao mesmo tempo, havia uma espécie de insatisfação popular com as condições de vida locais, ao passo que se vis- lumbrava uma certa opulência (se comparada à vida miserável no Nordeste) no Sudeste, região mais desenvolvida do País. Houve tentativas de fixar os nordestinos em sua terra, por meio da criação de associações camponesas, que lutavam contra os latifúndios e buscavam promover o acesso à terra para os pobres. Contudo, a crise não foi solucionada, e políticas que incentivaram a migração foram implementadas, contribuindo para os fluxos migratórios em direção à região Sudeste e conformando uma situação dual no País, em que o campo é atrasado e o espaço urbano é desenvolvido (RUA, 2003). O processo migratório como fator social e econômico 3 Nesse contexto, o Brasil mudava — embora em dimensão reduzida — a sua participação no cenário internacional, tornando-se exportador de pro- dutos industrializados. Essa nova condição, ligada ao desenvolvimento das indústrias, sobretudo no estado de São Paulo, contribuiu de alguma forma para as migrações. Entretanto, o grande motor a colocar em marcha os fluxos migratórios da região Nordeste, sem sombra de dúvida, foi a criação de um mercado interno, no qual surgiram bens de consumo fabricados no próprio País, como uma linha variada de eletrodomésticos e, muito importante, um parque automobilístico, implantado durante o governo de Juscelino Kubitschek (1956–1961). Essa nova matriz industrial instalada no País exigia mão de obra de maneira crescente, funcionando como um fator de atração dos migrantes, que, em suas regiões de origem, enfrentavam fatores de expulsão (DRAIBE, 1985). Um dos paradigmas explicativos dos movimentos migratórios é o modelo “repulsão/atração”, segundo o qual “no centro dos processos migratórios, se encontra a decisão de um agente racional que, na posse de informação sobre as características relativas das regiões A e B, e de dados contextuais respeitantes à sua situação individual e grupal, decide pela perma- nência ou pela migração” (PEIXOTO, 2004, p. 5). Em outras palavras, a migração só pode ocorrer na convergência de processos complementares: as condições adversas na região de origem (dificuldades/repulsão) e o vislumbre de melhores condições em outro local (oportunidades/atração). No entanto, outras transformações dasociedade brasileira serviram como atração para os migrantes a partir da década de 1950. Naquele período, sobretudo no governo de Juscelino Kubistchek (JK), uma nova doutrina eco- nômica tomou conta do País: o nacional-desenvolvimentismo. A partir dessa doutrina, JK foi eleito, prometendo intervir fortemente na economia, com o objetivo de modernizar o País. A sua base foi o conhecido Plano de Metas, que propunha soluções para as áreas da indústria, do campo, da energia, da educação, entre outras. O slogan de JK foi “50 anos em 5”, afirmando que o Brasil experimentaria um avanço rápido como nunca visto em sua história. O maior símbolo da administração de JK foi a construção de Brasília, uma representação do novo país, industrializado e cosmopolita, que ele pretendia inaugurar (BIELSCHOWSKY, 2007). A construção de Brasília, iniciada em 1956, exerceu uma forte atração sobre os migrantes do norte e, principalmente, do Nordeste e do estado de Goiás. Os candangos, como ficaram conhecidos os migrantes-operários que construíram Brasília, chegaram a somar mais de 60 mil indivíduos no auge das O processo migratório como fator social e econômico4 obras. Para acomodar esse enorme contingente de pessoas, as construtoras levantaram grandes acampamentos, que, na prática, funcionavam como pequenas cidades (REIS JÚNIOR, 2008). Inicialmente, o maior número de migrantes veio de Goiás, segundo o censo realizado em 1957, que apontou como oriundos desse estado 3.152 migrantes. Entretanto, a partir de 1958, uma grande seca na região Nordeste promoveu o deslocamento de 4 mil flagelados em direção aos canteiros de obras da nova capital. Ainda assim, no ano de 1958, os operários goianos compunham 52% da população da Cidade Livre (Figura 1), acampamento que reunia a maior parte dos candangos. Portanto, tem-se dois fatores principais na formação do perfil do migrante que construiu Brasília: a proximidade geográfica (Goiás) e as dificuldades econômicos advindas das secas que assolavam a região Nordeste (REIS JÚNIOR, 2008). Figura 1. Cidade Livre (1959), a maior cidade dos candangos, que abrigou dezenas de milhares de migrantes-operários durante a construção de Brasília. Fonte: Núcleo... (2020, documento on-line). O processo migratório como fator social e econômico 5 Influências da migração sobre a economia e a política brasileiras A partir de 1930, as migrações internas brasileiras passaram a desempenhar um papel de destaque na recomposição espacial do Brasil. Como visto, os fluxos migratórios tinham relação com as atividades de produção mais expressivas de cada época histórica. Nas primeiras décadas do século XX, a atividade econômica primária brasileira estava no campo, contudo, ao longo do século, houve a transposição do centro da economia, que ficava no campo, para as cidades e suas indústrias, comércios e serviços (MATA, 1973). Portanto, o fenômeno de migração desse período foi caracterizado, muitas vezes, como êxodo rural, já que houve um deslocamento massivo de cam- poneses para as cidades em busca de trabalho e melhores oportunidades. Entre 1940 e 1970, por exemplo, enquanto a taxa da população rural crescia a 1,8%, nas áreas urbanas, o crescimento populacional era de 4,8%. Em suma, um dos principais resultados da migração interna brasileira foi o inchaço das grandes cidades do País, sobretudo São Paulo e Rio de Janeiro (MATA, 1973). No século XX, o Brasil modernizou a sua economia e, como não poderia deixar de ser, atrelada a essa nova dinâmica, a sociedade e a política se trans- formaram. Em decorrência da demanda por mão de obra nas indústrias, que surgiam em velocidade cada vez mais acelerada, principalmente na década de 1950, em função do desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek, houve a atração de migrantes da região Nordeste. Todavia, não foi somente para o trabalho na indústria que essas pessoas se deslocaram dentro do Brasil rumo à região Sudeste. À época, o Brasil passou a apostar fortemente no modelo de transporte estadunidense, deixando de lado as ferrovias e as hidrovias e investindo na construção de milhares de quilômetros de estradas, pontes e rodovias por todo o país (FREITAS, 2017). Desse modo, dois aspectos que se complementam podem ser destacados: primeiro, a transformação econômica nos campos da indústria e dos trans- portes, que funcionou como elemento de atração para os migrantes; segundo, as próprias rodovias e pontes construídas pela mão de obra dos migrantes facilitaram ainda mais o deslocamento destes para as regiões Sul e Sudeste. Assim, o Brasil se tornava um país em que as distâncias eram diminuídas a cada dia, promovendo uma grande transformação social devido à nova infraestrutura de transportes (FREITAS, 2017). Trata-se, pois, de uma relação dialética: à medida que a economia se desenvolvia, os migrantes desenvolviam a economia com sua força de tra- balho. Daí a centralidade dos migrantes da região Nordeste no dinamismo da O processo migratório como fator social e econômico6 economia brasileira do século XX. Portanto, não é possível analisar aquele período sem que os trabalhadores oriundos de outras regiões do Brasil — e suas realizações no Sudeste — sejam levados em consideração. É evidente que a maior parte dos trabalhadores migrados da região Nordeste para a Sudeste encontrou condições de vida tão ou mais adversas que aquelas existentes em seus estados de origem. Um importante fato econômico envolvendo os migrantes é chamado pela sociologia de cor- reias transmissoras. Na prática, isso significa que os migrantes fogem de um contexto de subemprego/desemprego de suas regiões originárias para, na maioria das vezes, encontrar a mesma condição nas metrópoles para as quais se transplantaram (FERREIRA, 1986). O campo político também foi significativamente influenciado pela presença dos migrantes. A sobreposição dos ambientes públicos urbanos, onde viviam a maior parte dos imigrantes, e o âmbito privado do trabalho forneceram todo tipo de combustível para a construção de identidades de classe, consciência da condição de migrante, bem como para a formação de movimentos sociais, sindicais e políticos característicos da periferia do capitalismo mundial. Aliás, os migrantes, como afirma o cientista social Nozaki (2009, p. 305), situam-se “nas periferias da periferia do capitalismo”. No século XX, os migrantes, principalmente os nordestinos, ajudaram a criar a classe operária brasileira, que atuou nas indústrias de base, petro- química, siderúrgica e automobilística. Em virtude de sofrerem com baixas remunerações, os trabalhadores se organizaram contra essas condições de trabalho, fundando alguns dos maiores sindicatos do País. Essas organizações, compostas em maior parte por migrantes ou filhos destes, foram respon- sáveis por buscar, no campo político, o cumprimento das suas demandas. Instrumentos como a greve foram particularmente importantes para que as categorias de trabalhadores conseguissem impor a sua vontade e obter mais direitos e melhores salários. O período que vai de 1964 até meados da década de 1980 foi muito compli- cado para os grupos que exigiam direitos e democracia. No entanto, é nesse período que grupos políticos e sindicais despontam no cenário político do País, como o Partido dos Trabalhadores (PT), criado em 1982, tendo um dos seus maiores expoentes o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, um migrante pernambucano que chegou a São Paulo vindo em um caminhão pau-de-arara (Figura 2). Lula ainda estaria no centro das atenções ao liderar o grande ciclo de greves dos metalúrgicos do ABC paulista, ocorrido entre 1978 e 1980 (Figura 3), já no ocaso da ditadura civil-militar. O processo migratório como fator social e econômico 7 Outra grande liderança política de origem migrante é Luiza Erundina, nascida no estado da Paraíba, que viria a se tornar a primeira prefeita de São Paulo, a maior cidade da América Latina. Desde a juventude, Erundina foi militante política,atuando na defesa da reforma agrária em seu estado Figura 2. O caminhão pau-de-arara é um meio de transporte irregular utilizado durante décadas no transporte de migrantes saídos da região Nordeste em direção a São Paulo. Como se vê na imagem, é um veículo sem qualquer tipo de conforto ou segurança para os passageiros. Fonte: Campanato (2006, documento on-line). Figura 3. O futuro presidente Lula, migrante e então sindicalista, discursa para uma multidão de operários grevistas, em 1979. Fonte: Piccino (1979, documento on-line). O processo migratório como fator social e econômico8 natal, no interior de movimentos católicos. Formada em Serviço Social pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Erundina também se tornaria uma das fundadoras do PT, junto a Lula. O PT, no contexto da redemocratização, tornou-se um sinal de esperança para a democracia brasileira, que renascia (ERUNDINA; JINKINGS; PERICÁS, 2020). Como visto, a migração no século XX, sobretudo em sua segunda metade, moldou a face do Brasil em diversos aspectos. Além da influência dos mi- grantes sobre a economia, desenvolvida a partir da sua força de trabalho, houve o aparecimento de lideranças políticas importantes e que mudaram a história do Brasil nas últimas décadas. Desse modo, pode-se concluir que, sem o fenômeno migratório – em particular o nordestino –, o Brasil seria um país com uma versão bastante diversa da atual. Migração e formação sociocultural brasileira O Brasil é um país eminentemente urbano, porém essa nem sempre foi a reali- dade nacional. Foi somente a partir da década de 1950 que ocorreu uma virada na composição da população brasileira no que se refere ao binômio rural/urbano. Naquele período, as cidades passaram a exercer uma forte atração sobre os migrantes, que incharam o uso do espaço urbano e contribuíram para a criação das regiões conturbadas e metropolitanas. Segundo o Censo de 2010, 84,35% da população brasileira vivia em cidades, e esse número não para de crescer, muitas vezes por conta dos fluxos migratórios, que continuam a enviar pessoas das regiões mais pobres do País — frequentemente rurais — para os grandes núcleos urbanos (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2010). A migração interna brasileira foi um dos fenômenos mais importantes para a transformação do Brasil de um país rural para um país urbano. Portanto, esse fato está profundamente conectado à criação não somente de uma sociedade urbana, mas também de uma cultura urbana. Conforme Gonçalves (2001, p. 174): De acordo com os censos do IBGE, na década de 1960, 13 milhões de pessoas trocaram o campo pela cidade; nos dez anos seguintes, esse número se elevou para 15,5 milhões. Tudo indica que desde 1970, quando a população rural passou a ser minoritária, até os dias de hoje, mais de 40 milhões de brasileiros migraram do campo para a zona urbana. Se levarmos em conta que a região Sudeste con- centra, sozinha, 72.282.411 habitantes, ou seja, 42,6% da população do país, e tem um percentual de urbanização da ordem de 90,52%, fica ainda mais evidente o crescimento da cidade em detrimento do campo. O processo migratório como fator social e econômico 9 Os números mencionados são impressionantes e dão a dimensão do tama- nho da migração interna que ocorreu no Brasil na segunda metade do século XX. Esses movimentos foram tão expressivos, que se tornaram responsáveis por modificar amplamente as características socioculturais do País. De uma sociedade mais engessada e tradicional, fundada no campo, o Brasil passou a ser uma nação mais dinâmica e com acelerado ritmo de transformações culturais e sociais, frutos obtidos diretamente da transposição de populações inteiras das áreas rurais e do sertão para os perímetros urbanos brasileiros. O caso do estado de São Paulo é particularmente interessante, pois esse estado concentra 1/5 da população brasileira, do qual 1/3 se encontra apenas na capital do estado. Ao lado do Rio de Janeiro, São Paulo é a região do País que mais recebeu migrantes nas últimas décadas, recebendo, assim, uma forte influência das culturas originais dos migrantes. Desde expressões linguísticas, passando por pratos típicos que caíram no gosto popular até a música, a contribuição dos migrantes se revela significativa, amalgamando culturas diferentes, das mais diversas regiões do Brasil (em particular do Nordeste), formando um caldeirão cultural na megalópole paulista. Para abordar corretamente o problema da formação sociocultural brasileira a partir das migrações, deve-se pensar sob a perspectiva das relações entre território e identidade cultural. Afinal, o território (no qual o migrante se estabelece) assume relevância para a formação e a afirmação de identidades e pertencimento. Para Jorge (2010, p. 240) a identidade é “resultado de um trabalho permanente de renovável construção social e política”, porém ela também tem origem “geográfica, que leva em conta a extrema mobilidade dos agentes sociais”. Dessa forma, o espaço físico onde o indivíduo vive é o elo comum que conduz à identificação dos sujeitos com o ambiente que ocupam. Assim, as identidades seriam fixadas no território naquilo que o autor qualifica de identidades socioespaciais, isto é, identificações individuais e culturais que integram um grupo em um determinado espaço. Em contrapartida, em vez de influir com a sua própria cultura na nova terra, pode ocorrer o processo de desterritorialização do migrante. Esse processo pode ser descrito brevemente como uma quebra de vínculos com um território originário. Para as classes superiores e abastadas, a desterritorialização não costuma ser algo nocivo, tratando-se de uma multiterritorialidade segura e opcional. Contudo, para os mais pobres (maior parte dos migrantes), a desterritorialização se manifesta frequentemente de maneira coercitiva, oriunda de opções exíguas para a sobrevivência individual ou familiar, muito comum nos casos dos refugiados. Catástrofes climáticas, guerras, disputas O processo migratório como fator social e econômico10 de fronteira e questões étnicas são as causas mais comuns para a produção de populações refugiadas, que perdem o vínculo com o território original, sendo sempre estrangeiros mesmo onde têm a possibilidade de se assentar (HAESBAERT, 1995). A migração também pode desencadear o processo de desterritorialização em dois aspectos principais. Em primeiro lugar, o migrante pode assumir — de maneira voluntária, como estratégia de sobrevivência em um novo meio — valores e práticas comuns ao novo território que habita. Em segundo lugar, a adoção dos novos costumes e o rechaço da sua cultura anterior podem ser constituídos por meio de elementos coercitivos, como o constrangimento social pela utilização de palavras ou expressões típicas de sua região de origem, que soam “exóticas” em sua nova realidade social (HAESBAERT, 1995). Das produções culturais humanas, o cinema é uma das mais rele- vantes para a compreensão da vida em sociedade e dos dilemas e sonhos dos seres humanos. Diversos filmes brasileiros já trataram da questão dos migrantes, mostrando as suas lutas e dificuldades na nova vida longe da sua terra natal. O filme O homem que virou suco, de 1981, roteirizado e dirigido por João Batista de Andrade, retrata a vida de Deraldo (interpretado por José Dumont), um poeta popular e migrante recém-chegado a São Paulo, onde tenta se adaptar a uma realidade muito diferente da que estava habituado e, ao mesmo tempo, tenta sobreviver da venda de folhetos com suas poesias. Em 2015, o filme entrou para a lista dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos (DIB, 2015). Outro impacto dos migrantes na sociedade, sobretudo nas grandes cidades brasileiras, foi o da “favelização”. As periferias das cidades se tornaram o des- tino de grande parte dos migrantes, em sua grande maioria direcionados para trabalhos que exigem pouca escolaridade. Em geral, as mulheres ocuparam os empregos domésticos,como faxineiras, diaristas ou babás. Já os homens, em sua maioria, foram para a construção civil e para os serviços braçais. Portanto, o sonho do migrante de encontrar condições de vida melhores nas cidades da região Sudeste, na maioria dos casos, não se concretizou. O trabalho se mostrou árduo e mal remunerado, e a habitação se manifestou longe das áreas mais nobres das cidades e com falta de saneamento básico (GALHARDO, 2007). Não é à toa que grande parte da cultura desenvolvida pelos migrantes a partir dessa realidade — principalmente no cancioneiro popular — manifeste a saudade e a intenção de retorno à terra de origem, como pode ser obser- O processo migratório como fator social e econômico 11 vado na obra do conhecido cantor e compositor Luiz Gonzaga. Conforme o pesquisador José Cunha Lima: Ao analisar a musicografia produzida por Luiz Gonzaga, logo observo que a saudade é um tema renitente e presente na vida do migrante e do sertanejo que fica espe- rando a notícia do parente que se foi em busca de melhores condições de vida, ou esperando pelo retorno, mas até o regresso é obra da saudade (LIMA, 2011, p. 47). Neste capítulo, você viu como o Brasil se formou econômica, política e culturalmente a partir da segunda metade do século XX com a presença e o trabalho dos migrantes. Os fluxos migratórios, originados principalmente na região Nordeste, tendo como destino o Sudeste brasileiro, estão relacionados à grande desigualdade entre as regiões. Enquanto o Nordeste, pobre, serviu como fator de expulsão de muitos de seus habitantes, o Sudeste, econo- micamente mais desenvolvido, atraiu levas e levas de migrantes ao longo das décadas. Desse modo, diversos aspectos da sociedade brasileira foram moldados a partir desse processo migratório, tanto nas regiões de origem quanto nas regiões de chegada. Referências BAENINGER, R. Rotatividade migratória: um novo olhar para as migrações internas no Brasil. REMHU: Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, Brasília, v. 20, n. 39, p. 77–100, jul./dez. 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ abstract&pid=S1980-85852012000200005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em: 22 nov. 2020. BIELSCHOWSKY, R. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvol- vimento. 4. ed. 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Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. O processo migratório como fator social e econômico14
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