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É 20 PLATÃO com Platão (428-347 a.C.) que a filosofia grega chega à maturidade após ter Surgido dois séculos antes Com os pré-socráticos. Em sequida. seu desenvolvimento se dá com os embates entre SÓCrates e os sofistas em Atenas, os quais o próprio Platão teria em grande parte testemunhado. Pode-se dizer que o julgamento e a condenaç�o de Sócrates foram uma das motivações centrais para Platão começar a escrever os seus diálogos, dos quais o primeiro foi precisamente a Apologia de Sócrates, ou seja, seu dis Curso de defesa durante seu julgamento. Platão considerou a condenação de Sócrates uma das maiores injustiças cometidas pela democracia ateniense. E isso o levou, na República, a formular um modelo de cidade ideal após uma longa reflexão a respeito do declínio político e da corrupç�o moral de Atenas. Em 387 a.C. Platão fundou sua escola de filosofia enm Atenas, a Acade mia. Nela desenvolveu seu pensamento em discusSões com seus discípulos - dentre eles Aristóteles -, tendo redigido então a maioria dos diálogos, dos quais 33 chegaram até nós. Plat�o escreveu seus diálogos e desenvolveu sua reflexão filosófica em um momento anterior à divisão temática no campo da filosofia, ou mesmo dos saberes em geral, portanto antes de podermos delimitar áreas como éti ca, política, direito, epistemologia, o que só ocorrerá ao longo da tradição. Embora a maior parte dos diálogos tenha sempre um tema ou conceito que serve de base para a discussão, isso não corresponde exatamente a areas da tilosofia, que só se constituir�o mais tarde. Para Platão, questões Sobre Conhecimento e questões morais e práticas não se encontram disSOCiadas, Como veremos em alguns dos textos selecionados, e com isso temas jurídico politicos como a justiça, a natureza da lei eo papel dos governantes são tratados em diferentes diálogos, como A República, Protágoras, Criton e AD Leis. No entendimento de Platão, a acão justa supõe um conhecimento do que e a justiça, de sua natureza, ou de sua essência, como será dito depos, Platão e só com base nesse conhecimento será possível, em última análise, tomar uma decisão correta. Em As Leis (Nomoi), um de seus últimos diálogos, Platão formula uma utopia, uma cidade ideal, que serviria de modelo para uma colônia a ser fundada. Nela, ao contrário do que OCorre na República, em que os guardi�es, os homens justos, teriam o papel fundamental como governantes, predominariam agora as leis, sobre as quais repousaria quase que inteiramente a justiça na cidade. CRÍTON Sócrates e as leis de Atenas No Griton. Platão apresenta um dialogo' no qual SÓcrates já está na prisão. aguardando sua execuçao, quando entao um grupo de discípulos liderados por Críton vem Ihe propor tugir e seguir para o exílio. Segundo Críton, os próprios responsáveis por sua condenação estariam de acordo com sua fuga sócrates reage dizendo que pretere morrer como cidadão de Atenas, julgado segundo as leis da cidade, do que ir viver em outro lugar. E acrescenta gue não seria coerente com sua detesa durante o julgamento renegar agora seus princípios e sua liberdade de pôr tudo em questão, papel que atribui ao fi lósofo. Diz estar Surpreso que aqueles que o acusaram de desrespeito às leis e tradições de Atenas venham propor agora que ele faça exatamente isso. E imagina então que as leis, personificadas, O interpelassem nesse momento, seguindo-se um diálogo entre as leis de Atenas e SÓcrates. PROTÁGORAS O mito de Prometeu 21 NO Protagoras, cujo personagem central foi o grande sofista, encontramos a Pessagem que se segue, em que Protágoras recorrea uma das versões gregas dO mito da criacão do homem para discutir a natureza da politica e d neces uade do senso de justiça entre os homens como um atributo de origem 1. Ver Danilo Marcondes. Textos básicos de filosofia. Rio de Janeiro, Zahar, 9 reimp. 2014, p.24-5. 22 Textos básicos de filosofia do direito divina, e como indispensável para a vida em comunidade. Embora isso repre sente a posição de Protágoras e não a de Plat�o, é significativo da discussão filosófica da época. Merece destaque nesse texto o modo bastante moderno como a cria ção das espécies é caracterizada, inclusive quanto à relação entre presas e predadores. Além disso, deve-se destacar a ênfase dada, no caso da espécie humana, à importância da necessidade - além do conhecimento e da técnica bem como da habilidade política e do sensO de justiça - para que a socie dade possa existir. É relevante também o papel que atribui às palavras e à comunicação. Do mesmo modo, mostra que as leis e normas que permitem o convívio entre os homens supõem o senso de justiça e de respeito mútuo Comuns natureza humana, enquanto atributos de origem divina (dados ao homem por Hermes a mando de Zeus), bases assim do direito natural. A con cepção, presente nesse texto, de que o ser humano se define pela sociedade antecipa-se à de Aristóteles na Politica. Protágoras conclui com uma defesa da democracia e da participação dos cidad�os na deliberação política, com base nesse pressuposto. 320d-323a] SÓCRATES: Se podes demonstrar claramente que a virtu de pode ser ensinada, não nos recuse isso, apresente a demonstração. PROTÁGORAS: Pois bem, Sócrates, mas preferes que o faça contando-lhes uma fábula como um velho o faz para crianças, ou discutindo a questão, ponto por ponto? A audiência diz-he para fazer como quiser. PROTÁGORAS: Parece-me que preferem ouvir uma fábula. Houve um tempo em que os deuses existiam, antes dos seres mortais. Quando chegou o mo mento determinado pelo destino para a criacão destes, os deuses criaram nos no interior da Terra com base em uma mistura de terra, fogo e elemen tos associados à terra e ao fogo. Quando estavam prontos, encarregaram a Prometeu e a Epimeteu de lhes atribuir as características apropriadas. Mas Epimeteu pediu a Prometeu para fazer sozinho esse trabalho. "Quando tiver terminado, tu virás examiná-lo." Tendo seu pedido aprovado, deu início ao trabalho, atribuindo a algumas espécies a força, mas não a rapidez, a outras a rapidez sem a força, deu armas a uns, recusou-as a outros, compensando OS Com outros meios de defesa: aos menores deu asas para fugirem de seus predadores, ou um esconderijo subterrâneo; aos que tinham maior porte, isso Platão já era sufciente: e este processo de compensação foi atribuído a todas as es-pécies animais. Esse cuidado devia-se à necessidade de preservar as espécies. Quis ajudar oS animais a sobreviver às estações de Zeus, lembrando-se de cobri-los de pelos grossos e peles fortes, suficientes para protege-los tanto do frio, quanto do calor, servindo também d° 23 apropriadas a cada um deles, dando-lhes, além disso, cascos ou peles duras desprovidas de sangue. Além disso. deu-lhes diferentes alimentos, para uns ervas, para outros frutos, e ainda para outros raízes. A alguns deu outros ani- mais coMo alimento, limitando a fecundidade dos predadores, multiplicando derado, tinha esgotado essas qualidades quando chegou a vez da espécie hu- a das presas, para garantir sua preservação. Contudo. Epimeteu, pouco pon- mana, e não sabia como fazê-lo. Quando Prometeu veio examinar o resulta- do desse trabalho encontrou os animais bem aquinhoados, mas o homem nu, descalco, sem proteção e sem armas, e chegava o dia para que saísse de den durante o sono de cobertas naturais. tro da Terra e visse a luz. Então, Prometeu, sem saber o que fazer para dar ao homem como se conservar, roubou de Hetaistos e de Atena o conhecimento das artes do fogo- pois sem ele o conhecimento é impossível e inútil -, dan do-0 ao homem. O homem teve assim a ciência (sopbia) como atributo para preservar a sua vida, mas taltava-Ihe a política (politia) e esta só Zeus possuía. Prometeu já não podia penetrar na acrópole habitada por Zeus, protegida por temíveis guardas. Por isso penetrou furtivamente na oficina de Hefaistos e Atena, onde estes praticavam suasartes (technai), tomando-as para dá-las aos homens, garantindo-Ihes assim os meios de sobrevivência. Prometeu foi de pois responsabilizado pelo roubo cometido por culpa de Epimeteu. De posse então desses atributos divinos, o homem passou a crer nos deuses, devido à sua proximidade com eles, sendo o único dentre os ani mais a ter essa característica. Por isso, passou então a erguer altares e tazer Imagens. Começou também, graças à ciência que possuía, a articular pa lavras e a dar nomes às coisas. a construir habitacões, a fabricar vestuário, calçados e leitos. além de extrair da terra seu alimento. Dessa forma, os da mens, em sua origem, viviam isolados e as cidades não existiam. Eram aSsim vítimas dos animais selvagens, mais fortes do que eles. Seus conneci entos técnicos eram suficientes para sobreviver, mas não para detende-los teras, porque não tinham o conhecimento da política da qual a arte 54eTa taz parte. Procuraramn então reunir-se em segurança nas cidades, Odo Se reunirem entravam em conflito uns com os outros, porque nado u Cadiencla política, e assim novamente se separavam e eram entao ata (aidon) e o cados pelas feras. Zeus, com receio de que a espécie humana se extinguisse, encarregou Hermes de dar aos homens novas qualidades, o respeito mútuo senso de justiça (diké), para dar normas às cídades e criar entre 24 Textos básicos de filosofia do direito os homens vínculos e clos de amizade (pbilia). Hermnes perguntou a Zeus se essas qualidades, o respeito mútuoe a justiça, deveriam ser distribuídas igual parte a todos, ou distribuídas como as artes médicas, em que basta um especialista para tratar de vários leigos. "O senso de justiça e o respeito mútuo devem ser distribuídos assim, ou devem ser iguais para todos?". per guntou Hermes a Zeus. "Que sejam distribuídos igualmente a todos (pan ta)", disse Zeus, "que cada um tenha a sua parte. A sociedade não poderia existir se essas qualidades pertencessem, como as artes (technai), apenas a alguns. Estabeleça assim em meu nome essa lei (nomos): que aquele que não for capaz do senso de justiça e do respeito mútuo seja exterminado como um flagelo para a sociedade." E por esse motivo, Sócrates, que os ate nienses e outros povos, quando se trata da arquitetura ou de outras artes. entendem que só um pequeno número de indivíduos pode dar conselhos. e se qualquer outro que não pertence a esse pequeno grupo se atrever a dar sua opinião, não o aceitar�o e com razão, segundo me parece. Mas, quando se trata da política, em tudo que diz respeito à justiça (dikaiosyné) e à moderação (sopbrosyné), ouvem a opinião de todos os homens, porque acreditam que todos compartilham desse tipo de virtude, caso contrário a sociedade (polis) não poderia existir. A REPÚBLICA O mito de Giges em A República é o mais extenso dos diálogos de Platão e certamente um dos textos mais influentes de toda a tradição filosófica. Nele Platão reflete, como dissemos anteriormente, sobre a decadência política da democracia atenien se e busSca formular uma proposta alternativa à sua cidade. Nesse sentido, a República pode ser vista como nossa primeira utopia. Platão propõe nesse diálogo um modelo de cidade ideal, em nome do qual pode-se criticar a ci dade real, Atenas. Sabemos que esse ideal talvez nunca se concretize, mas ele deve estabelecer os parâmetros para que se pOSsa pensar comO a cidade deveria ser, tendo, portanto, um papel normativo. A questão formulada por Platão consiste em perquntar o gue seria uma cidade justa. Para isSo temoS que responder sobre o que é a justiça. Temos, também, que analisar como podemos chegar ao conhecimento do que é a justiça. E, indo além, temos que discutir a natureza do próprio conhecimento. Esse é um exemplo do pen Samento filosófico que, partindo de uma questão concreta, sobre a justiça na Platão cidade, busca uma resposta cada vez mais abstrata, radicalizando a quest�o e buscandoo fundamento daquilo que quer discutir. Platão, Como Aristóteles posteriormente, considera assim que a justiça é natural (katà physin) e não resulta apenas de um contrato ou convenção, caso contrário a sociedade não seria possível. Desse modo, o senso de justiça deve ser considerado natural ao homem. Ele contesta assim a posição de Tra- símaco, apresentada no livro I da República, representativa de alguns sofistas da época, segundo a qual a justiça é uma imposição sOcial e se não houvesse leis todoS Os homens praticarriam a injustiça, ou seja, agiriam apenas em be- neficio próprio. 25 Para Platão, a cidade justa ira se constituir através do governo dos Cr. diäes a quem cabe a decisão politica, porque governam em nome da razán (Wogos) e não apenas de seus Interesses pessoais, sendo portanto incapa7es de cometer uma injustiça, privilegiando sempre o interesse da sociedade. uma espécie de concepção de bem comum. Para Platão, nesse contexto, a garantia da justiça na sociedade não é dada tanto pela natureza das leis, mas pela virtude (areté) dos governantes, enquanto sábios (sópho). No texto que se segue, parte do Livro ll da República, encontramos uma discussão a respeito da natureza da justiça e da obediência à lei, baseada no medo da punição e numa concepção pessimista da natureza hurmana que Pla tão irá combater ao longo do diálogo, mas que é representativa, em parte, do pensamento da épOca, por exemplo entre os sofistas mais radicais. Segun do essa visão pessimista da natureza humana, o justo só pratica a justiça por medo da punição; se tiverem certeza da impunidade, os homens Cometerão as transgressões que Ihes trazem vantagens. Daí a concepção de que o papel das leis é evitar que os homens sigam seus impulsos e prejudiquem uns aos outros. Trata-se de uma longa exposição feita por Glauco, sobrinho de Platão e um dos principais interlocutores de Sócrates em todo o diálogo. Ela não representa a posição de Glauco, mas simplesmente faz parte da dialética ar gumentativa: caberá a Sócrates, ao longo do diálogo, contestar essa posição, defendendo a racionalidade da justiça. 66 bom praticar a injustiça e mau sofrê-la, mais ainda que é pior sofrê-la do que praticá-la. Por isso, quando ocorre de ora sofrê-la, ora praticá-la, aqueles que não têm escolha em nenhum dos dois casos consideram que seria preferível nem sofrê-la, nem praticá-la. Disso nascem as leis (nomous) e convenções (synthekas), eo que a lei prescrevia é o que se denominou legítimo (nomimon) e justo (dykaion). Essa é a origem e a essência da justiça: estar entre o maior (359a-360a) GLAUCO: Os homens pretendem que, por natureza, e 26 Textos båsicos de filosofia do direito benefício, que seria praticar impunemente a injustiça, eo maior mal, que se ria sofrê-la sem ser capaz de vingar-se. Entre esses dois extremos, a justica & considerada não como um bem em si mesmo, mas porque a impossibilidade de praticar a injustiça lhe dá valor. Aquele quc pode praticar a injustiça n·o concordará em não cometê-la ou em sotrê-la, isso seria loucura. Essa é Sé crates, a natureza e a origem da justiça, segundo a opinião comum. Vamos supor que os que praticam a justiça o fazem por impossibilidade de praticar a injustiça. Concedamos ao justo e ao injusto a possibilidade de fazer o que quiserem e passemos a observar para onde os conduzem seus de sejos. O justo será visto em tlagrante delito em busca do mesmo que o injusto. ambos buscando se impor aos outros. E isso que toda natureza busca como um bem. mas que a lei e a força reduzem ao respeito pela igualdade. Isso pode ser representado pelo poder que, dizem, teve o antepassado de Giges, o Lídio. Esse homem era um pastor que trabalhava para o rei da Lídia. Um dia. durante uma violenta tempestade seguida de tremores de terra, abriu se uma fenda no solo e formou-se um precipício próximo de onde cuidava de seu rebanho. Desceu, mesmo com espanto, ao fundo do abismo, onde encontrou tesouroscomo um cavalo de bronze oco dentro do qual percebeu. por uma abertura, um cadáver, que parecia mnaior que o de um homem e que tinha em uma das mãos um anel de ouro, o qual o pastor tomou para si, saindo sem pegar mais nada. Em uma reunião de pastores que ocorria todo més para prestar contas ao rei, compareceu usando o anel de ouro. Quan do estava sentado junto com os outros, girou por acaso o anel para dentro, tornando-se subitamente invisível. Percebeu então que os outros pastores falavam dele como se não estivesse mais lá. Girando de novo o anel, tornou se visível mais uma vez. Tentou isso outras vezes, certificando-se que o anel tinha de fato esse poder. Girando o anel para dentro fica invisível, girando-o de volta, tornava-se outra vez visível. Percebendo isso, incluiu-se dentre os mensageiros que se dirigiam ao rei. Chegando ao palácio, seduziu a rainha, persuadiu-a a matar o rei junto com ele e tomou o poder. Suponhamos que existissem dois anéis desse tipo e que o justo recebesse um eo injusto, outro. Nenhum dos dois seria de natureza tão forte, incapaz de cometer uma injus tiça e tomar um bem de outra pessoa, já que poderia fazer isso sem receio Desse modo, nada dis de tomar o que quisesse, sem ser responsabilizado tinguiria o justo do injusto, ambos tenderiam a fazer o mesmo. E isso pode ser citado como a grande prova de que ninguém é justo por vontade própria, mas devido à coerção, não sendo assim a justiça um bem individual, porque quem puder cometer uma injustiça, a cometerá. Platão 1 2 I1. Que justificativa Sócrates dá no Criton para não partir para o exílio e acei- 4 QUESTÓES E TEMAS PARA DISCUSSÃO tar cumprir a pena de morte? Como O mito da criação do homem no Protágoras argumenta sobre a origem do senso de justiça? 0 que caracterIzaria para Platão a "cidade iusta"? justo? Segundo o mito de Giges (República I), pode-se distinguir o justo do in- r Com base nos textos examinados, qual o papel das leis sequndo Platão? LEITURAS SUGERIDAS Droz, Geneviève. Os mitos platônicos. Brasília, UnB, 1992. 27 Platão, Diálogos. Belém, UFPA, 2000. I Versão online: portugues.free-ebooks.net/autor/platao seus, 2005. Vegetti, Mario. Um paradigma no céu: Platão politico, de Aristóteles ao sécu lo XX. São Paulo, Anna Blume, 2010. Zingano, Marco. Platão e Aristóteles: o fascinio da flosofia. S�ão Paulo, Odys
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