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PRÁTICAS INTEGRATIVAS E COMPLEMENTARES EM SAÚDE OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Discutir o uso da hipnoterapia na prática de saúde. > Avaliar o uso da hipnoterapia em enfermidades físicas e psicológicas. > Identificar as etapas de uma sessão de hipnoterapia. Introdução A hipnose vem sendo aplicada como alternativa terapêutica desde a Antiguidade. O uso na prática clínica intensificou-se após as pesquisas de Sigmund Freud, e, mais recentemente, com o advento da programação neurolinguística, apoiada no método Milton Erickson. Com isso, a hipnose tem ganhado espaço, mas ainda existem profissionais que desconhecem o potencial terapêutico dessa técnica e também aqueles que confundem o uso da hipnose com questões místicas e esotéricas. Assim, a compreensão histórica da hipnose na prática clínica pode ajudar a desmistificar e entender porque tais aspetos ainda ocorrem. Embora a hipnose seja controversa, a maioria dos médicos agora concorda que ela pode ser uma técnica terapêutica poderosa e eficaz para uma ampla gama de condições, incluindo dor, ansiedade e transtornos do humor. Neste capítulo, você vai estudar as bases históricas que influenciaram o desen- volvimento científico da hipnose, fundamentadas no método ericksoniano, com abrangência dos estudos de Bandler e Grinder sobre programação neurolinguística. Hipnoterapia na prática em saúde Flávia Cristina Morone Pinto Do mesmerismo à hipnose Não é de hoje que procedimentos identificados como hipnóticos são pra- ticados, só que antigamente eles eram associados com práticas religiosas e curativas, envolvidos numa atmosfera de transes inexplicáveis, cercados de mistérios e superstições. Há registros de uma prática similar à hipnose registrada no papiro Ebers, documento que aponta fatos a respeito da teoria e da prática da medicina egípcia por volta do século XVI a.C. Dentre os registros, existe a descrição de um tratamento no qual o médico colocava as mãos sobre a cabeça do paciente e, afirmando possuir poderes sobre-humanos, recitava estranhos mantras que sugeriam curas, o que se assemelha com o que hoje chamamos de hipnose (CARREIRO, 2008). Há também registros chineses aproximadamente da mesma época, no século XVIII a.C., da indução a um certo tipo de transe hipnótico para se buscar a aproximação entre os pacientes e seus antepassados (BAUER, 2002). Essa fase simboliza a era mística da hipnose, quando havia uma associação dessa prática com questões religiosas, divinas, espirituais e contemplativas. Muito tempo mais tarde, no século XVIII, a hipnose teve uma época de entusiasmo, uma fase áurea. Então, a prática era conhecida como magne- tismo, desenvolvida por meio de mesmerismos. Existia até a sociedade dos mesmeritas, em correspondência ao nome do seu fundador, o alemão Franz Anton Mesmer (1734–1815). Não seria incorreto afirmar que Mesmer inaugurou essa fase nos tempos modernos, em pleno “século das luzes” e supostamente apoiando-se na teoria física do magnetismo (AGUIAR, 2016). Dentre os discípulos de Mesmer, uma personalidade influente, o Marquês de Puységur, um membro da sociedade dos mesmeritas, começou a explorar as técnicas do mestre, inclusive para fins terapêuticos. A partir daí, desenvolveu uma técnica diferenciada de magnetismo e começou a chama-la de sonam- bulismo, ou a crise perfeita, e a aplicá-la amplamente. No entanto, Mesmer foi condenado como charlatão, sendo impedido de praticar a medicina, e isso parecia afetar o trabalho desenvolvido pelo Marquês de Puységur. Apesar disso, alguns adeptos de Mesmer mantiveram as sociedades mesmeritas, no início secretamente e depois tornando-as públicas, sob o nome de sociedades magnéticas. Tempos depois, os membros da Sociedade Magnética de Paris elaboraram um minucioso relatório e encaminharam à Faculdade de Medicina da cidade, solicitando a reabertura do processo que condenara o mesmerismo. Eles obtiveram revisão do julgamento, considerando o magnetismo como agente de fenômenos fisiológicos ou como elemento terapêutico, que deveria entrar no quadro de ensino da medicina e ser empregado por médicos ou por especialistas comprovados (CARREIRO, 2008). Hipnoterapia na prática em saúde2 As práticas de Mesmer e do Marquês de Puységur incentivaram estudos de Martin Charcot, um neurologista francês considerado atualmente o pai da neurologia moderna (GOMES ENGELHARDT, 2013). Contudo, foi o médico escocês James Braid (1795–1860) que cunhou o termo hipnose (do grego hipnos = sono). Encerrava-se assim a fase do mesmerismo e iniciava-se uma nova era, a da hipnose clássica. Então, Charcot inclinou-se ao estudo da histeria e deu à hipnose um novo impulso. Em seguida, no início do século XX, Sigmund Freud consolidou o significado terapêutico das práticas mesmeristas, já concebidas como hipnose, empregando-as na terapia psicanalítica (GONÇALVES; ORTEGA, 2013). Mais tarde, porém, Freud acabou abandonando o uso da hipnose, por acreditar que trataria apenas os sintomas da doença e não as causas em si. Em meados do século XX, o psiquiatra Milton Erickson despontou com uma abordagem que viria a revolucionar a hipnoterapia (BAUER, 2002). Sur- gia então a hipnose naturalista, que mais tarde seria alvo dos estudos de Bandler e Grinder (1982), como uma das ferramentas terapêuticas no campo da programação neurolinguística (PNL). A hipnose ericksoniana não é apenas uma abordagem terapêutica, é um conhe- cimento eficaz tanto dentro do consultório quanto na rotina do dia a dia, todos nós temos o desejo de incentivar mudanças significativas em todos os âmbitos de nossas vidas. É uma filosofia que ajuda os pacientes a superar obstáculos que a princípio acreditavam que eram insuperáveis (CAMPOS; OLIVEIRA, 2017, p. 386). Milton Erickson trouxe à hipnose o que Freud não conseguiu explorar. Ele desenvolveu uma técnica que passaria a tratar a causa da enfermidade, a raiz do problema, e não somente seus sintomas. A hipnose como modalidade terapêutica Historicamente, a hipnose, representada pelo mesmerismo, sonambulismo e psicoterapias, esteve vinculada à religião e às questões místicas, libertando-se desse vínculo somente nos tempos modernos, ao construir uma atmosfera científica reinante (Marie, 2004). Atualmente, vem sendo largamente empre- gada na prática de saúde, como hipnose clínica ou simplesmente hipnoterapia. Assim, com os avanços no campo científico, a partir dos estudos iniciados por Freud e consolidados por Bandler e Grinder (1982), a hipnose passou a ser concebida como um recurso neurofisiológico. Cabe destacar que esse recurso está presente em todos os seres humanos: algumas pessoas sabem como acessá-lo e usá-lo de forma natural e espontânea; outras se permitem acessá-lo e explorá-lo para fins terapêuticos, de forma induzida; e ainda Hipnoterapia na prática em saúde 3 existem aquelas que, por diversos motivos, não são capazes de acessar esse recurso, mesmo que por tentativas de indução. Na prática induzida, a hipnose é conduzida por um profissional qualifi- cado, sendo chamada de hipnoterapia. Muito se usa a hipnose para remover atitudes negativas, medos, padrões de comportamento não adaptativos e autoimagens negativas subjacentes aos sintomas. A razão pela qual a hipnose é tão eficaz em facilitar a terapia é que as percepções, crenças e atitudes incongruentes são impedidas de interferir com a sugestão e, portanto, com o condicionamento. Assim, o principal uso da hipnose não é como um meio de remoção direta de sintomas, e sim como ferramenta de reprogramação neurocomportamental (BARRIOS, 1970). Um dos caminhos para isso é a aplicação da hipnose a partir de estratégias linguísticas de comunicação com o paciente, em que, por métodos indiretos, é conduzida a indução ao transe. Esse é o método desenvolvido por Erickson, que fazia uso de metáforas, criando e contando histórias, repletas de sugestões. Cabe destacar duas terminologias importantes no contexto da hipno- terapia: sugestão e transe. O processosugestivo utiliza a linguagem para integração e reorganização dos processos inconscientes capazes de ativar recursos terapêuticos de acordo com a demanda clínica do paciente. A su- gestão está vinculada às noções e capacidades imaginativas, sempre ligada a algum sentido físico, e que acessa o campo da emoção e da ideia, ou seja, uma dimensão subjetiva. Já o transe hipnótico, segundo Erickson (BAUER, 2002; CAMPOS, 2017; NEU- BERN, 2002), pode ser concebido como um fenômeno cotidiano e natural, experimentado de forma particular por cada pessoa. Trata-se de um estado de consciência que permite o relaxamento físico e mantém a perspicácia mental, induzido por meio de histórias e metáforas. Dessa forma, pode aproveitar os aprendizados já trazidos pelo paciente, de maneira que suas expressões, sintomáticas ou não, sejam utilizadas a favor do tratamento. O estilo metafórico e a linguagem devem ser personalizados para cada paciente e redefinidos em favor do processo terapêutico. Assim, por meio de analogias, metáforas e contos de histórias, pode-se acessar o inconsciente de forma simbólica e indireta, sem ativar indevidamente as resistências, permitindo ao próprio paciente a construção das associações capazes de criar soluções que atendam às suas necessidades (NEUBERN, 2009). De acordo com a Associação Americana de Psicologia (HYPNOSIS, c2020, documento on-line, tradução nossa) a “[...] hipnose é um estado de consciência que envolve atenção focada e consciência periférica reduzida, caracterizado por uma maior capacidade de resposta à sugestão”. Hipnoterapia na prática em saúde4 Na prática clínica, a hipnose é um conjunto de técnicas psicológicas (hipnocom- portamentais, hipnocognitivas, hipnoanalíticas e de hipnoanálise) que podem ser potencializadas e usadas com os diversos estados de transe hipnótico. Sendo que a hipnose é um estado de consciência expansiva no qual os poderosos recursos inter- nos e o conhecimento que adquirimos durante toda a vida, e que usamos de forma inconsciente, tornam-se de repente disponíveis (CAMPOS; OLIVEIRA, 2017, p. 385). São chamados de recursos internos todo e qualquer componente dispo- nível para resolver ou satisfazer uma necessidade. Pode ser uma habilidade física, um aspeto cognitivo e/ou um elemento emocional. Na hipnoterapia, esses recursos podem ser reprogramados e direcionados para o equilíbrio e subsequente recuperação das mais diversas condições clínicas (LOPES; AMORIM, 2012). Assim, a hipnose é concebida como uma modalidade terapêutica que requer formação e treinamento por parte do terapeuta, sendo a hipnoterapia um conjunto de técnicas capazes de induzir a pessoa a alcançar um estado de consciência que permite alterar comportamentos indesejados, preconizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e reconhecida pelo Ministério da Saúde pela Portaria nº 702, de 21 de março de 2018 (BRASIL, 2018). Alfred Barrios, em um estudo clássico, concluiu que por meio da psicanálise seria possível recuperar 38% da mente do paciente em 600 sessões. Já pela terapia cognitiva comportamental seria possível recuperar 72% da mente do paciente em 22 sessões, enquanto que pela hipnoterapia seria possível recuperar a mente em seis sessões (BARRIOS, 1970). Aplicações terapêuticas da hipnose Entendido o conceito de hipnose, vejamos agora o que pode ser tratado por meio dessa terapia. A resposta é simples: tudo aquilo que tem origem no emocional ou que afeta o campo emocional. Sendo assim, a enfermidade, seja ela de natureza física ou psicológica, passa a ser compreendida como um fenômeno a ser explorado tal como ele se apresenta na consciência do sujeito (percepção) alvo da hipnoterapia. Dentre as aplicações clássicas da hipnose estão as demandas ligadas a dores crônicas, justamente pelo aspecto subjetivo relacionado à percepção da dor. Para explicar o processo fenomenológico relacionado a uma enfermidade à luz de Erickson, Gonzalez Rey (2007) e (NEUBERN, 2004), compreende-se que Hipnoterapia na prática em saúde 5 a dor, por exemplo, é um processo subjetivo, no sentido amplo e complexo de tal expressão. Ela é vivida por um sujeito e se configura na construção de sentidos e processos subjetivos complexos a partir das trocas socioculturais em que esse sujeito toma parte (NEUBERN, 2009). No entanto, considerando que a hipnose, enquanto modalidade tera- pêutica, e a subjetividade, no tocante ao fenômeno, estão entrelaçadas, as possibilidades de atuação do terapeuta diante das demandas clínicas passam necessariamente pela questão dos sentidos próprios produzidos pelo paciente, pelo contexto de diálogos e pela postura de mimetismo para interação com o mundo de crenças e valores do sujeito (NEUBERN, 2010). Portanto, mais importante do que denominar as enfermidades tratá- veis pela hipnoterapia é a capacidade do terapeuta acessar e compreender os fatores subjetivos que possam explicar um determinado fenômeno. Tal exercício exige habilidade, dedicação, sensibilidade e cautela. Cada sujeito é um ser único, devendo ser respeitado em seu conjunto de crenças e valores mediante uma abordagem holística e integrativa. Considerando o aspecto fenomenológico relacionado à enfermidade, opta- -se por uma via de acesso ao conteúdo inconsciente que é dada pela sugestão hipnótica. Segundo Martins (2015, p. 30), o valor do método fenomenológico para as neurociências é que ele permite “[...] a chegada à essência dos atos de lembrar, pensar, imaginar, entre outros”. Por sua vez, segundo Silva (2019, documento on-line): Em síntese, pode-se constatar que [...] o direcionamento vai tanto da busca de recordações passadas à construção de interpretações, quanto do resgate de um acontecimento real à busca de sentidos para tal; a passagem da hipnose e da sugestão para o método da associação livre; e a metáfora de “corpo estranho” gradualmente sendo substituída pelas ideias de conflito e do trabalho de elabo- ração psíquica. Nesse contexto, algumas perguntas são latentes e merecem a atenção do hipnoterapeuta: trauma ou fantasia? Catarse ou interpretação? Afeto e re- presentação? Essas são questões da metapsicologia freudiana que precisam ser estudadas e investigadas pelo profissional. O poder da sugestão As sugestões hipnóticas podem fazer uso da semiótica, ou seja, do estudo da construção do significado relacionado aos signos semióticos (ícones, índices e símbolos), relacionando-os aos níveis de experiência vivida do sujeito, para Hipnoterapia na prática em saúde6 que se estabeleça uma comunicação efetiva com o paciente. Nesse sentido, trabalha-se com sugestões hipnóticas para acessar o conteúdo inconsciente que precisa ser explorado. Tais sugestões são aplicadas quando o paciente atinge o estado hipnótico desejado (transe hipnótico). A sugestão hipnótica pode, de fato, servir como um treinador motivacional e pode ser usada efe- tivamente para alterar crenças e comportamentos (PEREIRA, 2017). As sugestões terapêuticas podem ser formuladas por meio de histórias, narrativas e metáforas, construídas com base no conteúdo da anamnese que precede a sessão de hipnose. Dependendo das características do fenômeno a ser explorado e acessado, pode ser necessária mais de uma sessão anterior à aplicação da hipnose. Para construção do conteúdo a ser aplicado como sugestão, pode-se optar por diversas abordagens, como o uso de cartas associativas, desenhos e ilustrações, visualizações criativas ou qualquer outra alternativa que faça parte do universo de crenças e valores do paciente. A questão crucial é saber até que ponto o paciente está sugestionável a uma determinada ideia ou sensação, conhecendo as crenças limitantes que podem bloquear o processo terapêutico. Nesse âmbito, a calibração (observação minuciosa de gestos, posturas e expressões) e o espelhamento (também chamado de rapport, ou seja, a capacidade do terapeuta se colocar no lugar do paciente) serão essenciais para saber o quanto o paciente está apto a acessare alterar um determinado fenômeno. Assim, o terapeuta pode se conectar e determinar o momento adequado para a intervenção hipnótica. Vale destacar que a sugestão hipnótica exerce influência indireta sobre a mente inconsciente. Uma vez que o terapeuta opte pelo uso da sugestão hipnótica, deve-se observar e investigar o quanto o recurso interno foi acessado e incorporado pelo paciente, de acordo com a finalidade terapêutica. Para isso, ao final da sessão as etapas de calibração e rapport devem ser novamente empregadas. Até que ponto somos sugestionáveis? O poder de sugestão sobre nossas ações e, sem dúvida, sobre a forma como percebemos a realidade é extremamente significativo. A forma como concebemos uma ideia pode estar relacionada a um conjunto de crenças e valores. Tais aspectos podem atuar como gatilhos para desencadear uma cascata de efeitos emocionais ou mesmo bloqueá-los. A sugestão tem sido usada para fins terapêuticos, como na hipnoterapia. Nesse caso, o terapeuta deve ser capaz de identificar gatilhos potenciais ou crenças limitantes e avaliar se o paciente seria capaz de aceitar uma determinada sugestão. A capacidade de compreender os estados mentais (ou seja, sentimentos, desejos, crenças e intenções) dos outros e de si mesmo é uma das características Hipnoterapia na prática em saúde 7 que o hipnoterapeuta deve desenvolver. Para desenvolver essa habilidade, comece observando o quão sugestionável você mesmo é. Observe quais tipos de ideias você geralmente aceita e também aquelas que rejeita. Observe o quanto você é influenciado por um comercial, uma propaganda, uma marca... e o que faz você aceitar tais sugestões. Tente relacionar as sugestões aos seus estados emocionais. Avalie e seja capaz de ver o quão sugestionável você mesmo é. Etapas de uma sessão de hipnoterapia As etapas de uma sessão de hipnoterapia serão descritas com base na me- todologia de Milton Erickson (BAUER, 2002; CAMPOS, 2017; NEUBERN, 2002), como parte de um conjunto técnicas de programação neurolinguística. Trata- -se de um método que aplica a hipnose de forma indireta, utilizando uma abordagem sutil, a partir de metáforas, contradições, símbolos e antídotos para influenciar o comportamento do paciente, em vez de ordens diretas. Parte-se da premissa de que, seja qual for a situação clínica do paciente (doença física, psicológica ou questão social), ele pode e merece viver uma vida melhor, com mais qualidade. Nesse contexto, a hipnoterapia oferece a chance de reflexão e ressignificação de crenças e valores implantados no curso de vida desse sujeito e que possam estar afetando a percepção dos sinais/sintomas geradores de sua condição clínica. Nesse contexto, os sujeitos são entendidos como (NEUBERN, 2002, p. 371): Complexos, singulares, autorregulados e modificam-se à cada instante; não se permitem apreender pelas formas tradicionais de construir teorias; remetem a um universo imponderável mais invisível que visível e permeado por acontecimentos, desordens e caos; exigem formas indiretas de abordagem em que a linguagem ana- lógica e anedótica passa a conviver com o rigor científico; implicam na superação de dicotomias tácitas para o pensamento psicológico. Desse modo, a hipnoterapia surge como uma nova racionalidade médica, capaz de respeitar o ser humano em sua totalidade, levando a uma compre- ensão da subjetividade humana no processo saúde–doença. Por esse prisma, é necessário conhecer as etapas a serem seguidas em uma sessão de hipno- terapia. Cada etapa incorpora os atributos necessários para compreender o processo saúde–doença como um fenômeno a ser explorado subjetivamente, considerando o paciente como um ser único e singular. De forma geral e simplificada, as etapas de uma sessão de hipnoterapia podem ser divididas em anamnese, intervenção clínica, integração e encer- ramento, conforme descrito no Quadro 1. Hipnoterapia na prática em saúde8 Quadro 1. Etapas de uma sessão de hipnoterapia Etapa Detalhamento Tempo esperado Anamnese O paciente é recebido e a avaliação inicial é realizada. Dialogicamente, terapeuta e paciente interagem a fim de criar uma atmosfera de respeito mútuo e confiança entre ambas as partes. Nesta fase, o terapeuta deve utilizar estratégias para compreender a natureza das queixas apresentadas pelo paciente, incluindo os fenômenos biopsicossociais que podem estar interligados. Isso é o que se espera para a primeira sessão de hipnoterapia, quando paciente e terapeuta ainda não se conhecem. Nas sessões subsequentes, uma vez estabelecido o plano terapêutico, esta etapa pode ser mais resumida. 30 minutos Intervenção clínica Etapa em que o paciente será convidado à hipnose. Ele será informado de como o processo será conduzido e precisa saber que tudo será feito com segurança. A indução hipnótica começa gradativamente e evolui de acordo com a aceitação do paciente. O terapeuta precisa observar como o paciente reage aos comandos, por meio de sua postura corporal, seu comportamento e suas expressões faciais, entre outros aspectos que possam ser relevantes. 30 minutos Integração Integrar significa unir as partes e formar um todo, significa trazer à tona aspectos que foram identificados na anamnese e trabalhados durante a indução hipnótica, e significa avaliar como isso foi recebido/aceito pelo paciente. A partir daí, é construída uma ponte para o futuro, sobre como o paciente se sente a partir de agora ou como pretende utilizar este novo recurso/habilidade dali em diante. 20 minutos Encerramento Momento em que se deve questionar as expectativas do paciente e possíveis dúvidas e discutir as etapas do plano terapêutico e futuras sessões a serem agendadas. O terapeuta deve observar o quanto o paciente está apto a ser liberado (acordado, lúcido e orientado) e a sair do consultório com segurança. 10 minutos Hipnoterapia na prática em saúde 9 Calibração, espelhamento, hipnose e modelagem A primeira etapa da sessão pode ser chamada de anamnese ou acolhimento, em que o paciente é recebido e a avaliação inicial é conduzida. O hipnote- rapeuta deve receber o paciente gentilmente, de preferência em um lugar tranquilo e favorável à aplicação da hipnoterapia. O ambiente precisa ser respeitoso e o paciente precisa se sentir seguro. Para isso, faça perguntas simples, cotidianas e avance aos poucos. Ouça-o e ofereça suporte. Nesse momento, você já deve ser capaz de observar como o paciente responde, ao observar suas linhas de expressões, postura corporal e comportamento. Aqui entra a calibração, ou seja, a capacidade do terapeuta perceber atentamente o estado de outra pessoa, lendo os sinais não verbais. Naturalmente, comece a fazer o espelhamento, ou seja, a mimetizar algu- mas posturas, expressões ou comportamentos do paciente, de forma sutil, deixando-o confortável. Isso promoverá uma conexão com ele, uma conexão empática e respeitosa. É importante que você continue conversando com o paciente, mas agora, vencida a etapa de reconhecimento e apresentação, você já deve trabalhar aspectos mais específicos da terapêutica. Para isso, você pode utilizar cartas terapêuticas, desenhos, ilustrações, visualizações ou qualquer outro processo que lhe ofereça informações sobre o paciente que possam ser alinhadas como sugestão terapêutica. A segunda etapa da sessão é a intervenção clínica, em que a indução hipnótica será realizada. Essa etapa se inicia com relaxamento físico e men- tal, a fim de reduzir o estado crítico-racional. Quando você perceber que o paciente está confortável, sentindo-se seguro, inicie os comandos para que ele atinja o estado hipnótico, de forma conversacional, por comandos indiretos. É muito importante que você controle o tom de voz e o volume. Tudo que existe no ambiente pode e deve ser utilizado a favor da indução hipnótica. Caso exista algum ruído, diga ao paciente que este ruído o deixa ainda mais relaxado, por exemplo. Quando o paciente atingir o estado de transedesejado, inicie a modelagem, podendo, para isso, ser empregada uma sugestão de acordo com a avaliação inicial. O transe hipnótico torna o sujeito mais presente, pois produz um estado de alta concentração, conectando-o com uma inteligência potencial necessária à produção de novos movimentos para a clínica. A terceira etapa da sessão é chamada de integração. Nessa fase, o paciente pode já estar de olhos abertos, mas ainda em transe. É necessário oferecer suporte e tempo para que ele integre os comandos recebidos e aos poucos des- perte. Permita que o paciente conceba ideias e expresse como está se sentindo. Hipnoterapia na prática em saúde10 Esse é o momento de fazer uma ponte para o futuro, ou seja, de promover uma reflexão daquilo que foi sugestionado, aprendido e integrado para a mudança de comportamento e atitude no futuro (expansão da consciência e alteração do campo preceptivo). É muito importante, nesse momento, enfatizar o lado positivo daquilo que o paciente traz e encorajá-lo a seguir com a terapia. Pode ser que o paciente precise de mais de uma sessão, então deixe claro o que será trabalhado em cada sessão e quais são os resultados esperados. Por fim, encerre a sessão agradecendo ao paciente, certificando-se de que ele está bem, lúcido e acordado. Para isso, você pode fazer perguntas simples, oferecer água, café e, enquanto isso, observar suas expressões faciais, sua postura corporal e seus comportamentos em geral. Eis a seguir algumas recomendações gerais importantes para a prática da hipnoterapia. � É preciso tirar a mente do piloto automático. Ao interromper processos que colocam a mente no piloto automático, instantaneamente a mente se abre para a sugestão. Tente quebrar a rotina, mudar um hábito ou alterar um comportamento. Comece, antes de tudo, oferecendo ao pa- ciente uma experiência sutil de quebra do estado sonambúlico. Muitos não percebem, mas costumamos vivenciar durante o dia diversos níveis de transe e, em muitos momentos, entramos em estados sonambúlicos, ou seja, hipnotizados por alguma coisa. Isso acontece ao assistir um filme, ao entrar em redes sociais, ao realizar uma atividade rotineira ou até mesmo ao fazer uma simples caminhada. � Quando o paciente entrar em estado de transe (mesmo que superfi- cial), você precisará estar consciente e alerta para poder operar com responsabilidade o sistema — a mente. Então, comece quebrando este estado, quebrando o padrão. Para isso, você precisará interagir com o paciente e se conectar com ele. � Embora muitas pessoas procurem a hipnoterapia afirmando que desejam mudar algo em si mesmas, elas nem sempre estão preparadas para a mu- dança. Por isso, durante a anamnese é muito importante avaliar o quanto tal mudança poderá afetar a vida do paciente. Ofereça a ele a oportuni- dade de avaliar e refletir sobre as perdas e ganhos de uma determinada mudança. Não estranhe se ao final ele disser que não está pronto para fazer isso. Nesse caso, será preciso trabalhar as questões que impedem o paciente de avançar. Respeite o tempo do paciente e ofereça suporte. � Deve-se ter cautela sobre a aplicação de hipnose junto a pacientes gestantes, pois a carga emocional pode afetar seu estado geral. Hipnoterapia na prática em saúde 11 Por questões históricas, clínicas e epistemológicas, a hipnose demo- rou a entrar no rol das práticas de saúde, devido a uma lacuna de teor científico, o que promoveu uma rutura no desenvolvimento dessa prática. Ser científico, mesmo ciente da complexidade que envolve a adoção de tal paradigma no campo das práticas integrativas e complementares, ainda é uma exigência. Preenchida essa lacuna, a hipnose ganhou espaço entre as práticas de saúde e tem sido amplamente utilizada. É importante destacar que a hipnoterapia faz parte de um conjunto de práticas concebidas como holísticas, sendo com- preendida à luz de uma nova racionalidade médica. Diante disso, considera-se que o terapeuta é um mediador capaz de promover condições nas quais a autorregulação do sujeito crie soluções para seus problemas. Exemplo Vejamos a seguir um exemplo passo a passo para indução hipnótica. “Sente-se. Relaxe. Feche os olhos suavemente e mantenha-os fechados.” Ofereça ao paciente informações sobre o ambiente, chamando a atenção — foco — para o que está mais distante até aquilo que esteja mais próximo dele. Diga, por exemplo: “Perceba o som do ar condicionado, sinta o frescor/ calor do ambiente, perceba onde você está, a cadeira, o encosto, o tecido...”. Comece a estimular e sugerir no paciente um relaxamento progressivo, da ponta dos pés até a cabeça (partes externas) e depois da respiração até os órgãos e sentidos (partes internas). Trate agora de sua consciência: “Diga-me, de 1 a 5, sendo 5 o mais cons- ciente, qual seu nível de consciência”. Independentemente da resposta, afirme ao paciente ser 5. “Agora que você está no nível 5, imagine como seria o nível 4. Agora eu quero que você [chamar a pessoa pelo nome] imagine-se no nível 4, mais e mais relaxado. Agora no seu momento [espaço] e no seu tempo, você respira lentamente e vai do nível 5 para o 4”. “Agora que você está no nível 4. Muito bem, certamente em um momento seu corpo estará mais solto e mais relaxado [ou o recurso que a pessoa precisa, como felicidade, paz, etc.]. A cada nível você fica mais feliz [e seguro] e mais relaxado. Sinta como é estar no nível 4 e abra um sorriso para me mostrar isso quando você desejar [espaço-tempo]. “Agora sinta como é estar no nível 3. No seu tempo, quando você estiver lá, sinta a paz intensa [ou outro recurso — sugestão hipnótica inicial] que há em você. Em uma respiração leve você vai, no seu tempo, descer para do nível 4 para o 3. Hipnoterapia na prática em saúde12 “Agora imagine-se no nível 2. Nesse nível, uma coisa curiosa vai acontecer. Você perceberá que existem coisas [avance na sugestão — comece a instalar um recurso — por meio de uma narrativa, metáfora, etc.]... Agora se prepare para, no seu tempo, estar no nível 2. Faça uma respiração leve e profunda e, no seu tempo, desça para o nível 2. Sinta e aceite todas as sugestões [reafirme a sugestão — instale um recurso — continue a narrativa, metáfora, etc.]. “Agora você pode descer mais um nível, quando assim desejar. Você es- tará no nível 1, pleno, completo, em paz. Muito relaxado e tranquilo. Seguro. Muito seguro [avalie se os recursos estão instalados — expressões, posturas, comportamentos].” Neste momento, consolide o plano terapêutico, para resolver um conflito, gerar novos recursos e/ou ressignificar uma situação. Perceba as respostas pela fisiologia e por expressões e microexpressões. Instale o processo de cura ou o que se deseja fazer. “Agora você é o maestro do seu corpo. Você afinará essa orquestra. Produ- zirá uma linda sinfonia. Tudo está sob controle. Agora que você chegou nesse estado, você é capaz de sentir e aceitar as mudanças [ou o que foi resolvido]. Faça uma respiração lenta e profunda. “Em 1, 2, 3 você poderá abrir os olhos e quando voltar sentirá 10 vezes mais o que você está sentido agora [integre os recursos — calibre e faça a ponte para o futuro]. Eu estou me perguntando como foi para você essa experiência…” Referências AGUIAR, F. Psicanálise e psicoterapia: o fator da sugestão no “tratamento psíquico”. Psi- cologia: Ciência e Profissão, v. 36, n. 1, p. 116-129, 2016. Disponível em: https://www. scielo.br/pdf/pcp/v36n1/1982-3703-pcp-36-1-0116.pdf. Acesso em: 17 dez. 2020. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n° 702, de 21 de Março de 2018. Altera a Portaria de Consolidação nº 2/GM/MS, de 28 de setembro de 2017, para incluir novas práticas na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares - PNPIC. Brasília, DF: MS, 2018. 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