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FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO Otto Leopoldo W inck ... [et al.] Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6403-8 IESDE BRASIL S/A 2018 Filosofia da educação Otto Leopoldo Winck Ivo José Triches Cláudio Joaquim Rezende Wanderley Machado Luciano D. da Silva Natalina Triches Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br Capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: koya79, PanosKarapanagiotis/iStockphoto CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ F524 Filosofia da educação / Otto Leopoldo Winck ... [et al.]. - 1. ed. - Curitiba, PR : IESDE Brasil, 2018. 230 p. : il. ; 21 cm. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6403-8 1. Educação - Filosofia. I. Winck, Otto Leopoldo. II. Título. 17-46724 CDD: 370.1CDU: 370.1 © 2018 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais. Apresentação “Tudo o que é sólido se desmancha no ar”, escreveu Karl Marx no Manifesto Comunista, referindo-se à vertiginosa veloci- dade das mudanças na sociedade de sua época. Hoje, mais de 150 anos depois, podemos afirmar que essa constatação con- tinua atual. Vivemos, com efeito, sob o impacto de mudanças cada vez mais velozes, em um tempo em que valores e certezas outrora considerados sólidos liquefazem-se antes mesmo que outros lhes tenham substituído. Nesse sentido, a educação é uma caixa de ressonância dessas vertiginosas transformações. Ao mesmo tempo em que as instituições de ensino são o baluarte de algumas das mais antigas tradições, como a disciplina e a hierarquia, elas não deixam de ser profundamente afetadas pelas alterações do pre- sente mais imediato. As rebeliões juvenis do ano de 1968, por exemplo, tiveram como palco privilegiado as universidades. Daí a importância e urgência de pensarmos constante- mente a educação. E, para fazê-lo, nada melhor do que pedir- mos auxílio à filosofia. É o que faremos ao longo desta obra. No capítulo inicial, intentaremos esclarecer o conceito de filosofia. Em seguida, do capítulo 2 ao 14, faremos uma viagem pela história da filosofia ocidental, desde os seus antecessores gregos até correntes recentíssimas, como o existencialismo e a Escola de Frankfurt. Assim, nessa viagem lançaremos um olhar especial sobre alguns dos principais pensadores desse longo período, e esse olhar será acompanhado de exercícios de fixação e reflexão. Ademais, cada capítulo será complemen- tado com um ou mais textos extraídos dos próprios filósofos – isso porque acreditamos que conhecer a história da filosofia é, sobretudo, frequentar a reflexão dos pensadores que fizeram essa história. Os capítulos 15 a 18, por seu lado, abordam sob vários aspectos as relações entre filosofia e educação, destacando Vídeo algumas questões candentes dessa problemática. Já que a educação nunca ocorre sem um substrato filosófico, ainda que latente ou oculto, é importante trazer à tona esse diálogo incontornável. É da mútua fecundação entre essas duas disciplinas, muito próximas uma da outra, que poderá surgir uma com- preensão e uma prática de ensino e aprendizagem capazes não apenas de interpretar as velozes mudanças de nosso tempo como também de conduzi- -las para a construção de uma sociedade mais humana. Aliás, o próprio Marx declarou, na XI tese sobre Feuerbach, que “até agora os filósofos se limitaram a interpretar o mundo. Cabe-lhes agora transformá-lo”. Acrescentamos ape- nas que essa missão é também – e sobretudo – dos educadores. Dessa maneira, só nos resta desejar que essa viagem pelos horizontes imbricados da filosofia e da educação possa produzir muitos frutos, tanto na teoria quanto na prática de nossa ação pedagógica. Boa leitura! Sobre os autores Otto Leopoldo Winck Doutor e Mestre em Estudos Literários pela UFPR. Especialista em Filosofia com ênfase em Ética e Bacharel em Teologia pela PUC-PR. Ivo José Triches Mestre em Engenharia da Produção com ênfase em Mídias e Conhecimento pela UFSC. Especialista em Filosofia Clínica pelo Instituto Packter e em Filosofia Política pela UFPR. Especialista em Pensamento Contemporâneo e Graduado em Filosofia pela PUC-PR. Cláudio Joaquim Rezende Mestre em Filosofia Política pela UFG e Especialista em Filosofia Política pela UFPR. Graduado em Filosofia pela PUC-PR e em Direito pela Unibrasil. Wanderley Machado Especialista em História do Brasil e graduado em História. Luciano Donizeti da Silva Doutor em Filosofia pela UFSCAR, mestre e graduado em Filosofia pela UFPR. Natalina Triches Especialista em Tecnologias Aplicadas à Educação e em Gestão Escolar. Graduada em Filosofia pela UFPR. 6 Filosofia da educação Sumário 1 Um convite à filosofia 11 1.1 Por que filosofia? 11 1.2 Definições 12 1.3 Divisão de tarefas 14 1.4 A atitude filosófica e o senso comum 14 1.5 Nem dogmatismo nem ceticismo 16 2 Sócrates e a filosofia moral ocidental 19 2.1 O gênio grego, o mito e as origens da filosofia 19 2.2 Os filósofos naturalistas e os sofistas 21 3 Platão e o nascimento da razão ocidental 29 3.1 Platão: atleta e poeta 29 3.2 As vigas do pensamento platônico 31 3.3 O legado de Platão 33 4 Aristóteles e a filosofia como totalidade dos saberes 37 4.1 Filho de médico, mestre de príncipe 37 4.2 Os escritos de Aristóteles 38 4.3 Só o individual é real 39 4.4 A metafísica 40 4.5 O pai da lógica 42 4.6 A justa medida e o bem comum 43 5 De Aristóteles à Renascença 49 5.1 A filosofia na era helenística 49 5.2 Sob a égide da cruz 55 5.3 A Renascença e o divórcio entre razão e fé 63 Filosofia da educação 7 Sumário 6 Espinosa: uma filosofia da liberdade 67 6.1 A filosofia moderna: entre razão e experiência 67 6.2 Uma vida em diáspora 68 6.3 Uma vida de filósofo 70 6.4 O panteísmo de Espinosa 72 6.5 O ser humano 73 6.6 A moral, o sábio e a eternidade 74 6.7 Igreja e Estado 75 7 O Iluminismo e o Século das Luzes 79 7.1 Há algo de novo debaixo do Sol 79 7.2 Da Inglaterra e da França as luzes brilham para o mundo 81 7.3 Luzes e revolução 82 7.4 A máquina a vapor e a ferrovia: as luzes chegam à técnica 83 7.5 Nomes que brilham 84 7.6 O legado iluminista 87 8 Immanuel Kant e o idealismo alemão 91 8.1 Na encruzilhada da razão 91 8.2 O filósofo de Königsberg 92 8.3 Entre dogmatismo e ceticismo: a via kantiana 94 8.4 A razão no tribunal 95 8.5 O imperativo categórico 98 8.6 Kant e a educação 100 8.7 O idealismo alemão 101 9 A dialética idealista e materialista 105 9.1 Dialética: breve histórico 105 9.2 Hegel 107 9.3 O hegelianismo 108 9.4 Filósofo e agitador 110 9.5 O materialismo histórico 112 9.6 A práxis 114 8 Filosofia da educação Sumário 10 Schopenhauer: o mundo como representação 119 10.1 Contra Hegel 119 10.2 Uma vida taciturna 121 10.3 O mundo como representação 122 10.4 Tudo é dor 123 10.5 O nirvana 124 10.6 Schopenhauer e a educação 125 11 O positivismo e o desenvolvimento da ciência 127 11.1 Um mestre e uma musa 127 11.2 História e evolução 129 11.3 A religião da humanidade 130 11.4 Quando filosofia vira samba 131 12 Nietzsche educador 135 12.1 Vates e filósofos 135 12.2 Uma vida perigosa 136 12.3 Saúde precária e livros vigorosos 138 12.4 Uma filosofia feita com o martelo 139 12.5 O “anticristo” e a luta contra o platonismo do povo 140 12.6 O super-homem e a nova moral 141 12.7 Nietzsche e a educação 142 12.8 Nietzsche está vivo 143 13 A Escola de Frankfurt 147 13.1 A herdeira do facho 148 13.2 Uma escola crítica 148 13.3 Os momentos da teoria crítica 150 13.4 Teoria crítica versus teoria tradicional 150 13.5 Razão instrumental e indústria cultural 151 13.6 Principais expoentes 153 13.7 Luzes, razão e educação 157 Filosofia da educação 9 Sumário 14 Pragmatismo e existencialismo 161 14.1 Era dos extremos: as duas faces da moeda 161 14.2 Pragmatismo: origens e paternidade162 14.3 Existencialismo: “uma mística do inferno” 166 15 Filosofia e educação 179 15.1 Filosofia para quê? 179 15.2 Crise e filosofia 180 15.3 Filosofia e educação: isso dá certo? 182 15.4 Filosofar ou filosofar: eis a questão 183 16 Ética e educação 187 16.1 A refundação da ética 187 16.2 Ética e moral 188 16.3 A ética através dos tempos 189 16.4 A ética na educação 192 16.5 Reconstruindo a ética na escola: tarefas 193 17 Filosofia e formação humana na escola 197 17.1 No princípio 197 17.2 A educação como formação 198 17.3 A formação como humanização 200 17.4 A escola como espaço privilegiado da formação 202 18 Filosofia clínica e educação 205 18.1 Historicidade da filosofia clínica 206 18.2 Principais conceitos da filosofia clínica e sua aplicabilidade na educação 207 18.3 As contribuições da filosofia clínica no fazer pedagógico 208 18.4 Filosofia clínica e humanismo 208 Filosofia da educação 11 1 Um convite à filosofia A verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo. (Maurice Merleau-Ponty) Não se pode aprender a filosofia; somente se pode aprender a filosofar. (Immanuel Kant) 1.1 Por que filosofia? Entre as matérias escolares, a filosofia é vista não raro como a mais abs- trata e a mais distante dos interesses humanos imediatos. Depois do declínio da teologia, na Idade Moderna, coube à filosofia, a antiga serva da teologia (conforme a máxima dos teólogos medievais), o lugar de rainha. No entanto, ela seria também destronada com o advento das ciências positivas – aquelas que exigem o recurso da experimentação –, de modo que hoje é comum se perguntar o porquê da filosofia – pergunta que não é feita quando o assunto é matemática, física ou biologia. Mesmo disciplinas pertencentes ao arco das ciências humanas – como pedagogia, psicologia e sociologia – encon- tram justificativas mais facilmente que a filosofia. Ora, estuda-se pedago- gia para aprimorar o processo de ensino e aprendizagem, e a psicologia e a sociologia são necessárias para melhor compreender o funcionamento da mente humana e da sociedade. Mas e a filosofia, serve para quê? Em uma Vídeo Um convite à filosofia1 Filosofia da educação12 cultura em que se valoriza sobremaneira o que tem finalidade prática e uti- lidade imediata, o conhecimento filosófico parece fora de lugar, supérfluo e desnecessário. Todavia, é justamente aí que se revela sua imprescindibilidade. Em uma época e uma sociedade dominadas pela técnica, com os saberes (entre outros fatores, devido ao enorme cabedal de conhecimento e experiência acumulados) sendo extremamente especializados e, portanto, fragmentados, é indispensável um olhar que ofereça uma crítica e rigorosa visão de conjunto de todo esse horizonte. É imperioso – sob o risco de não sabermos nos localizar e, portanto, ficarmos privados de ação – um saber sobre esses saberes, um olhar sobre esses olhares, uma indagação sobre essas indagações, uma pergunta que nasce antes e não termi- na depois. Por que pensamos o que pensamos? Por que dizemos o que dizemos? Por que fazemos o que fazemos? Nossa reflexão tem por meta a educação e, portanto, vamos direcionar para ela nossos questionamentos. Por que tenho essas ideias acerca do processo educacional? Será que não há outra maneira de se compreender esse processo? Por que falo dessa maneira sobre ou com nossos educandos? Por que me comporto dessa maneira em relação a eles? A quem interessa esse método educacional? De que ponto de vista e de que lugar social ele foi pro- duzido? Isso é filosofia. E, aplicando-a ao processo do aprendizado, é filosofia da educação. 1.2 Definições Mas, afinal, o que é filosofia? Como podemos defini-la? Existem provavelmente tantas definições quantas são as escolas ou correntes da filosofia. O significado etimológico do termo é amor à sabedoria: phylos = “amigo”, “amor” sophya = “sabedoria” Porém, antes do substantivo filosofia, já era usado o verbo filosofar e o nome filósofo. Provavelmente Pitágoras (580-500 a.C.) foi o primeiro a autodenominar-se filósofo, embo- ra se discuta se o título possuía então o mesmo sentido que ganharia depois com Platão (426-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.). Para esses dois nomes paradigmáticos do pensa- mento ocidental, a filosofia é resultante da admiração e do estranhamento diante do espetá- culo do mundo. Enquanto para Platão a filosofia é o saber que, em face das contradições da realidade, atinge a visão do verdadeiro – isto é, das ideias –, para Aristóteles a sua função é a investigação das causas e dos princípios das coisas. Para ele, na medida do possível, o filósofo possui, para além da particularidade de cada objeto, a totalidade do saber. Por isso, a filosofia é a ciência do ser enquanto ser e, em última instância, a ciência do princípio dos princípios, da causa última. Vídeo Um convite à filosofia Filosofia da educação 1 13 Na Idade Média, a filosofia era uma aspiração à compreensão racional dos dados da fé. Na modernidade, ela foi ganhando cada vez mais autonomia. Para Francis Bacon (1561-1626), a filosofia é o conhecimento das coisas não pelos seus fenômenos transitórios, mas pelos seus princípios imutáveis. Para René Descartes (1596-1650), ela é o saber que averigua os princí- pios de todas as ciências e, enquanto filosofia primeira (a metafísica), ocupa-se da elucidação das verdades últimas. John Locke (1632-1704), George Berkeley (1685-1753) e David Hume (1711-1776), cada um por sua vez, consideram-na, em geral, como crítica das ideias abstratas e reflexão sobre a experiência. Por outro lado, Immanuel Kant (1724-1804), depois de traçar os limites da razão, concebe a filosofia como um conhecimento racional por princípios. Na corrente conhecida como idealismo alemão, a filosofia é entendida ora como o siste- ma do saber absoluto, dedução do mundo a partir do eu, como em Fichte (1762-1814), ora como em Hegel (1770-1831), como a consideração pensante das coisas, identificando-se as- sim com o espírito absoluto, isto é, o espírito plenamente consciente e conhecedor de si. Para Schopenhauer (1788-1860), ela é a ciência do princípio de razão como fundamento de todos os outros saberes e como autorreflexão da vontade. No positivismo, a filosofia torna-se um compêndio geral dos resultados das ciências. Já para Edmund Husserl (1859-1938), ela é uma ciência rigorosa que conduz à fenomenologia1 como disciplina filosófica fundamental. Por outro lado, para Wittgenstein (1859-1938) e os positivistas lógicos, ela não é um saber com um conteúdo específico, mas um conjunto de atos; não um conhecimento, e sim uma atividade. Em contrapartida, para Henri Bergson (1859-1941), a filosofia tem por objeto a substância da intuição, e, ainda que se utilize da ciência como instrumento, aproxima-se mais da arte. Como se vê, as definições e compreensões do que seja filosofia têm sido tão elásticas quanto contraditórias. Eis a seguir uma tentativa contemporânea de definição da filosofia: A filosofia não é ciência: é uma reflexão crítica sobre os procedimentos e concei- tos científicos. Não é religião: é uma reflexão crítica sobre as origens e formas das crenças religiosas. Não é arte: é uma interpretação crítica dos conteúdos, das for- mas, das significações das obras de arte e do trabalho artístico. Não é Sociologia nem Psicologia, mas a interpretação e avaliação crítica dos conceitos e métodos da Sociologia e da Psicologia. Não é política, mas a interpretação, compreensão e reflexão sobre a origem, a natureza e as formas do poder. Não é História, mas interpretação do sentido dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo e na compreensão do que seja o próprio tempo. Conhecimento do conhecimento e da ação humana, conhecimento da transformação temporal dos princípios do saber e do agir, conhecimento das mudanças das formas do real ou dos seres; a filosofia sabe que está na História e que tem uma história. (CHAUI, 2000, p. 16) Todavia, o importante em todas essas discussões é que, à medida quecrescia a cons- ciência do problema, erigia-se pouco a pouco uma verdadeira “filosofia da filosofia”, que 1 Fenomenologia é o estudo dos fenômenos, ou melhor, o estudo de como o indivíduo percebe os fenômenos, isto é, tudo aquilo que é apreendido pelos sentidos ou pela consciência. Um convite à filosofia1 Filosofia da educação14 tem a sua justificação no fato de a filosofia não ser nunca, por princípio, uma totalidade acabada, mas sempre uma totalidade possível. 1.3 Divisão de tarefas No entanto, desde cedo essa totalidade precisou de uma repartição de tarefas para po- der abarcar os mais variados ângulos de seu múltiplo objeto. Ainda que a divisão da filo- sofia em diferentes disciplinas não seja comum a todos os sistemas, como ocorre em Platão ou Santo Agostinho, ela é visível em muitos outros sistemas filosóficos. Foi em Aristóteles que apareceram pela primeira vez as divisões que seriam tão influentes no curso da filosofia ocidental. É a partir de seu sistema filosófico – espécie de enciclopédia do saber de seu tem- po – que se constituíram como disciplinas a lógica, a ética, a estética (poética), a psicologia (doutrina da alma), a filosofia política e a filosofia da natureza, todas elas dominadas pela filosofia primeira (metafísica). Ao longo do tempo, a elas viriam se acrescentar, dominando sobretudo o ensino da filosofia até o século XIX, a gnoseologia, a epistemologia, a ontolo- gia, a sociologia, além de um conjunto de matérias, como filosofia da religião, filosofia do Estado, filosofia do direito, filosofia da história, filosofia da linguagem etc., bem como a his- tória da filosofia. Algumas delas se tornariam autônomas, como a psicologia e a sociologia. Por outro lado, há aqueles que julgam, por diversos motivos, que se deve excluir do corpus filosófico disciplinas como a lógica e a metafísica. É possível estudar a filosofia de uma maneira sincrônica, isto é, abordando-a por meio de todas essas disciplinas, sem uma preocupação específica com suas evoluções temporais e os problemas decorrentes de influências, filiações, ramificações e desdobramentos. Também é possível estudá-la de um ponto de vista diacrônico, baseado em uma visada histórica, verificando no tempo o surgimento de suas principais correntes e o desenvol- vimento de suas disciplinas. Pode-se também usar uma abordagem que se sirva de am- bas as possibilidades. Por exemplo, pode-se ao mesmo tempo estudar tanto a ética e suas exigências atuais (abordagem sincrônica) quanto a sua evolução na história (abordagem diacrônica). Em nosso trabalho, privilegiaremos um enfoque diacrônico, lançando um olhar sobre alguns dos principais filósofos e escolas filosóficas da história, mas sem desprezar, em alguns momentos, uma óptica sincrônica. 1.4 A atitude filosófica e o senso comum Em que consiste uma atitude filosófica? Quando, de fato, estamos envolvidos no proces- so filosófico? O que há de fundamental na atitude filosófica é a sua capacidade de indagar: • O que a coisa é? • Como a coisa é? • Por que a coisa é assim? Vídeo Vídeo Um convite à filosofia Filosofia da educação 1 15 Essas questões fazem parte da atitude de alguém que se coloca em uma postura filosófi- ca diante do mundo. O filósofo é aquele que não aceita como dadas as respostas às questões com que ele se depara no mundo. De fato, a filosofia é um conhecimento instituinte na medida em que questiona o saber instituído, que é o saber já posto, já estabelecido, que goza de um certo consenso. De certa forma, é tudo aquilo que se tem por verdadeiro, por natural – em um determinado momen- to, em uma determinada sociedade. Resumindo, saber instituído é o senso comum. E, nesse processo de indagação acerca desse saber institucionalizado, o ser humano vai dando novos significados ao mundo e à sua própria existência. Quando nos referimos ao conceito de senso comum, nós o relacionamos ao conhecimento fragmentado da realidade. Platão definia esse tipo de conhecimento como doxa (“opinião”). Em outras palavras, emitimos parecer sobre tudo o que nos cerca e, no entanto, nessas opi- niões nos falta uma visão da totalidade. Não conseguimos perceber que tudo se encontra inter-relacionado. Ou seja, para que possamos ter uma visão da totalidade de um fenômeno, torna-se necessário apreendê-lo na sua relação com os demais fenômenos. Embora Platão tenha estabelecido vários níveis de compreensão da realidade, os dois principais são a doxa e a episteme. Um indivíduo que vive no âmbito da doxa é alguém que localiza sua existência apenas no senso comum. Por outro lado, pensar os problemas a partir da episteme (“ciência”) é pensá-los à luz da filosofia. Essa expressão designa a capacidade de olharmos para os fenômenos de maneira sistematizada. Uma reflexão somente é sistemática se for rigorosa, radical e de conjunto. Para explicitar a importância desses conceitos dentro do processo do filosofar, valemo-nos de um comentário de Maria Lúcia de Arruda Aranha. Neste trecho, a filosofia da vida pode ser tomada como sinônimo de doxa, opinião, senso comum: A filosofia é radical porque vai até as raízes da questão. A palavra latina radix, radicis significa literalmente “raiz” e, no sentido derivado, “fundamento”, “base”. Portanto, a filosofia é radical enquanto explica os fundamentos do pensar e do agir. A filosofia é rigorosa porque, enquanto a filosofia de vida não leva suas conclu- sões até as últimas consequências, o filósofo especialista dispõe de um método claramente explicitado que permite proceder com rigor, garantindo a coerência e o exercício da crítica. Para justificar suas afirmações com argumentos, faz uso de uma linguagem rigorosa, que permite definir claramente os conceitos, evitando a ambiguidade típica das expressões cotidianas. Para conseguir essa linguagem, o filósofo inventa conceitos, cria expressões novas ou altera e especifica o sentido de palavras usuais. A filosofia desenvolve uma reflexão de conjunto porque é globalizante, exami- na os problemas sob a perspectiva do todo, relacionando os diversos aspectos. Enquanto as ciências examinam “recortes” da realidade, a filosofia, além de po- der examinar tudo (porque nada escapa ao seu interesse), também visa o todo, a totalidade. (ARANHA, 2002, p. 107) Um convite à filosofia1 Filosofia da educação16 Outro aspecto a se salientar é que o conteúdo da reflexão filosófica, o tecido do seu pen- sar, é a trama dos acontecimentos do cotidiano. É por isso que nesse processo de indagação estão presentes tanto os temas aparentemente mais distantes de nossa experiência imediata quanto os problemas com que nos deparamos todos os dias em nossa vida. Em suma, na atitude filosófica está compreendido o pressuposto de que não podemos aceitar como óbvias e evidentes as coisas, as ideias, os fatos, as situações, os valores em ge- ral, os comportamentos de nossa existência cotidiana; jamais devemos aceitá-los sem antes havê-los submetido a uma crítica radical. É por essa razão que se justifica, mais uma vez, a importância da filosofia em nosso trabalho como educadores: ela impede a estagnação e res- significa a experiência. Se educar não se reduz apenas à transmissão de conhecimentos, mas é também uma reflexão crítica sobre o que é conhecimento e o que é educação, a filosofia não será apenas mais um conteúdo do processo educacional, mas o seu próprio alvo. 1.5 Nem dogmatismo nem ceticismo Novamente torna-se relevante um olhar sobre a etimologia das palavras. Skeptikós sig- nifica “aquele que observa”, “que considera”. Desse modo, cético é aquele que observa e considera, tanto que conclui pela impossibilidade mesma do conhecimento. Por outro lado, dogmatikós denota “aquele que se funda em princípios”. Assim, dogmático é todo aquele que se apega aprioristicamente aos princípios de uma doutrina. Dogma, por sua vez, pode ser compreendido como um princípio fundamental e indiscu- tível de uma determinada doutrina ou teoria, não necessariamente religiosa. Toda vez que verdadesirrefutáveis são aventadas, sem que elas possam ser demonstradas racionalmente, na verdade são dogmas que estão sendo aludidos. As tradições religiosas não têm necessariamente problemas com dogmas, pois toda fé está fundada, em última instância, em uma origem suprarracional. Todavia, sempre que na ciência se acena para verdades indemonstráveis, muitas vezes tomadas de empréstimo do senso comum ou da religião, se está resvalando da episteme para a doxa. No fim das contas, tanto o cético quanto o dogmático acabam produzindo uma visão imobilista do mundo. O primeiro porque acha impossível chegar a algum conhecimento real das coisas. O segundo porque, antes de se debruçar sobre a realidade, já traz, de antemão, as suas “verdades”. A filosofia, ao contrário, move-se entre o ceticismo e o dogmatismo – estando, na verdade, mais próxima do primeiro. Enquanto o cético declara que é impossível saber, o Vídeo Um convite à filosofia Filosofia da educação 1 17 dogmático diz que tem certeza que sabe. O filósofo, por sua vez, afirma que não sabe, mas quer saber – tendo consciência, entretanto, que todo saber é parcial e provisório. Com efeito, “a filosofia é a procura da verdade, não a sua posse” (ARANHA, 2002, p. 51). Ampliando seus conhecimentos Ciência e filosofia (DURANT, 2000, p. 26-27) Ciência é descrição analítica; filosofia é interpretação sintética. A ciência quer decompor o todo em partes, o organismo em órgãos, o obscuro em conhecido. Ela não procura conhecer os valores e as possibilidades ideais das coisas, nem o seu significado total e final; contenta-se em mostrar a sua realidade e sua operação atuais, reduz resolutamente o seu foco, con- centrando-o na natureza e no processo das coisas como são. O cientista é tão imparcial quanto a natureza no poema de Turguêniev: está tão inte- ressado na perna de uma pulga quanto nos paroxismos criativos de um gênio. Mas o filósofo não se contenta em descrever o fato; quer averiguar a relação do fato com a experiência em geral e, com isso, chegar ao seu significado e ao seu valor; ele combina coisas numa síntese interpretativa; tenta montar, de maneira melhor do que antes, esse grande relógio que é o universo e que o cientista perquiridor desmontou analiticamente. A ciência nos ensina a curar e a matar; reduz a taxa de mortalidade no varejo e depois nos mata por atacado na guerra; mas só a sabedoria – o desejo coordenado à luz de toda experiência – pode nos dizer quando curar e quando matar. Observar processos e construir meios é a ciência; criticar e coordenar fins é filosofia; e porque hoje os nossos meios e instrumen- tos se multiplicaram além de nossa interpretação e da nossa síntese de ideais e fins, nossa vida está cheia de som e fúria, não significando coisa alguma. Porque um fato nada é, exceto em relação ao desejo; não é com- pleto, exceto em relação a um propósito e a um todo. Ciência sem filosofia, fatos sem perspectiva e avaliação não podem nos salvar da devastação e do desespero. A ciência nos dá o conhecimento, mas só a filosofia nos dá a sabedoria. Um convite à filosofia1 Filosofia da educação18 Atividades 1. Com base nos trechos de Marilena Chaui e Will Durant que constam no capítulo, estabeleça os pontos de convergência e divergência entre a ciência e a filosofia. 2. Segundo as definições de filosofia que os filósofos foram estabelecendo ao longo dos tempos, relacione as colunas. 1. Bergson ( ) Ciência rigorosa que conduz à fenomenologia. 2. Locke, Berkeley e Hume ( ) Tem por objeto a substância da intuição. 3. Fichte ( ) É um conjunto de atos desprovido de conteúdo específico. 4. Wittgenstein ( ) Crítica das ideias abstratas e reflexão da experiência. 5. Kant ( ) Ciência do princípio da razão como fundamento dos saberes. 6. Husserl ( ) Sistema do saber absoluto. 7. Schopenhauer ( ) Conhecimento racional por princípios. 3. A respeito das proposições de Platão sobre a doxa (“opinião”, “senso comum”) e a episteme (“ciência”), assinale F (falso) ou V (verdadeiro) nos enunciados a seguir. )( Pensar os problemas a partir da doxa é pensá-los à luz da filosofia. )( O senso comum relaciona-se ao conhecimento fragmentado da realidade. )( Ao saber instituído (episteme) contrapõe-se o saber instituinte (doxa). )( Doxa é uma reflexão rigorosa, radical e de conjunto. )( Episteme diz respeito à capacidade de contemplarmos os fenômenos de maneira sistematizada. Filosofia da educação 19 2 Sócrates e a filosofia moral ocidental O mito é o nada que é tudo. (Fernando Pessoa) Diferentemente dos sofistas, Sócrates não se apresenta como professor. Pergunta, não responde. Indaga, não ensina. (Marilena Chaui) 2.1 O gênio grego, o mito e as origens da filosofia Tanto o termo quanto o conceito de filosofia têm a sua origem na Grécia antiga, mas isso não significa que outros povos não tenham desenvolvido formas particulares de pensamento crítico. De maneira especial, encontramos algumas dessas formas na Índia, na China e na Pérsia. Além disso, os gregos usufruíram de conhecimentos conquistados por povos mais antigos, como a astronomia dos caldeus e dos babilônicos e a agrimensura dos egípcios. No entanto, a forma de pensamento sistemático, racional e desvinculado da religião que ficou conhe- cida como filosofia nós devemos às peculiaridades do gênio grego. Como era esse gênio? Podemos resumir as suas características em alguns traços básicos: • Em primeiro lugar, o racionalismo, isto é, a consciência do valor máximo do conhecimento. • Mas esse conhecimento não é abstrato, e sim proveniente da experiência: é um conhe- cimento sensível. Vídeo Sócrates e a filosofia moral ocidental2 Filosofia da educação20 • Esse conhecimento sensível não se fecha sobre si mesmo, mas transcende o real em direção ao absoluto. • Sendo otimista, como consequência de seu racionalismo, o grego tenderá também ao pessimismo quando pressentir toda a irracionalidade do real. Contudo, todos esses traços se coadunam em um equilíbrio harmônico, como aprazia grandemente ao senso de proporções do espírito helênico1. E também outras causas colaboraram para o surgimento do pensamento filosófico: Nos séculos VII e VI a.C., a Grécia sofreu uma transformação socioeconômica considerável. De país predominantemente agrícola que era, passou a desenvol- ver de forma sempre crescente a indústria artesanal e o comércio. Assim, tor- nou-se necessário fundar centros de distribuição comercial, que surgiram ini- cialmente nas colônias jônicas, particularmente em Mileto, e depois também em outros lugares. As cidades tornaram-se florescentes centros comerciais, acarre- tando um forte crescimento demográfico. (REALE; ANTISERI, 1990, p. 20) Foi nas cidades ou pólis – que na Grécia eram sobretudo cidades-Estado – que se de- senvolveu outra importante criação grega: a política. O desenvolvimento urbano com as suas instituições e o lugar privilegiado da península grega – entreposto estratégico entre Ocidente e Oriente, arena de encontro de muitas etnias e de diversas culturas, cujo contato e rivalidade ensejaram comparações, análises e reflexões – resultaram em um ambiente pro- pício para o surgimento da filosofia. Entre os gregos, a arte e a filosofia são devidas, sobre- tudo, aos jônios2, que souberam exprimir em alto grau o gênio helênico. Mas como se deu, a partir desse gênio, e de maneira especial entre os jônios, a gênese da filosofia grega, matriz de todo o pensamento ocidental? Primeiramente, os gregos, como todos os povos, explicavam os fenômenos do universo e as suas origens por meio do mito. A palavra mito vem do grego mythós e deriva de dois verbos, tendo os sentidos de “contar, narrar, falar alguma coisa a alguém” e “anunciar, nomear, designar”. Para os gregos, o mito era um discurso proferido para ouvintes que recebiam o relato como verdadeiro porque este está fundado na autoridade daquele que narra. Refere-se quase sempre a algo fabuloso que se supõe acontecidoem um passado remoto, imemorial, impreciso. Os mitos podem reportar-se a grandes feitos heroicos, considerados frequentemente como o fundamento e o início de uma determinada comunidade ou do gênero humano como um todo. Podem também ter como objeto fenômenos naturais e, nesse caso, costumam ser apresentados alegoricamente. Além disso, muitas vezes os mitos contêm a personifica- ção de coisas ou de acontecimentos. Para os filósofos da Antiguidade, nem sempre o mito foi entendido como oposto à razão: alguns o admitiam como invólucro da verdade. Essa concepção foi adotada, por exemplo, por Platão, que considerava as narrações mitológicas como um modo de expressão de verdades que escapam ao raciocínio. Em todo caso, a explicação racional, objeto da filosofia, tem a sua 1 Helênico: que se refere à Grécia antiga, chamada Hélade, ou aos gregos antigos. 2 Os jônios eram habitantes da Jônia, conjunto de colônias da Grécia antiga nas ilhas e no litoral asiá- tico do Mar Egeu. Sócrates e a filosofia moral ocidental Filosofia da educação 2 21 origem no mito, desenvolvendo-se a partir dele, até sua plena autonomia. Se a explicação míti- ca dos fenômenos do universo é encontrada em todos os povos e em todas as épocas, devemos aos gregos os primeiros e decisivos passos da explicação racional do mundo. São muitas as maneiras que os historiadores subdividiram a história da filosofia clás- sica, que compreende um período de mais de um milênio. De um modo geral, podemos sintetizar essa época em quatro períodos: 1. Período naturalista – também chamado cosmológico3 ou pré-socrático, data do final do século VII ao final do século V a.C., quando a filosofia se ocupa fundamental- mente da origem do mundo e das causas das transformações na natureza. 2. Período humanista – também denominado antropológico4 ou socrático, ocorre do final do século V até todo o século IV a.C., quando o objeto principal da filosofia são as questões humanas, como a ética e a política. 3. Período sistemático – do final do século IV ao final do século III a.C., quando a filosofia tem por tarefa reunir e sistematizar todo o conhecimento anterior sobre o mundo e o ser humano. 4. Período helenístico – também conhecido como greco-romano ou religioso, surge do final do século III a.C. até o século VI d.C. Nesse longo período, que já alcança Roma e o pensamento cristão, a filosofia interessa-se principalmente pelas questões da ética, do conhecimento humano e das relações entre a humanidade e Deus. 2.2 Os filósofos naturalistas e os sofistas O primeiro período da filosofia grega toma o nome de naturalista ou cosmoló- gico porque a especulação dos filósofos volta-se para a natureza, o mundo exterior. Esse período surgiu e se desenvolveu fora da Grécia propriamente dita, nas flo- rescentes colônias da Ásia Menor5 e do sul da Itália, tendo o seu início nos fins do século VII e o seu término dois séculos depois. 2.2.1 A escola jônica A primeira expressão dessa fase – inaugurando por assim dizer o pensamento ocidental – é a chamada escola jônica, que floresceu em Mileto, na Ásia Menor, ao longo do século VI. Os jônios procuravam a substância última de todas as coisas em uma única matéria, animada por uma energia interior (daí hilozoísmo, “matéria animada”, ser o nome dessa doutrina). Seu primeiro representante é Tales de Mileto (624-546 a.C.), para quem a água era a substância primordial de todas as coisas. Para Anaximandro (610-547 a.C.), também de Mileto, o elemento primordial seria o 3 Em grego, cosmos significa “mundo” e por isso esse período recebeu o nome de cosmológico. 4 Em grego, ântropos significa “homem” e por isso esse período recebeu o nome de antropológico. 5 Na Antiguidade, era conhecida como Ásia Menor a extremidade ocidental da Ásia, em linhas gerais correspondendo ao território do que conhecemos hoje como Turquia. Vídeo Sócrates e a filosofia moral ocidental2 Filosofia da educação22 apeiron (o indeterminado, sem fim e em constante movimento). Já para Anaxímenes (585-528 a.C.), também da mesma cidade, esse princípio era o ar. O expoente mais célebre dessa escola é Heráclito (aproximadamente 540-470 a.C.), de Éfeso, na Jônia. Para ele, o elemento primordial era o movimento, o eterno vir a ser: tudo está sujeito a um fluxo perpétuo, representado pelo fogo. O vir a ser é luta, conflito de opostos, antítese de vida e morte. Esse movimento só será reconduzido à estabilidade pela sabedoria universal, que determina o acordo entre as oposições. Por esse motivo, Heráclito é considerado o pai da dialética, a qual considera que a razão das coisas está na constante luta dos contrários. É de Heráclito a ideia de que o mesmo homem não se banha duas vezes no mesmo rio, pois, ao tentar um segundo banho, o rio já terá mudado, já será outro devido ao contínuo fluxo das águas. E, como as coisas mudam constantemente, aquele homem já não será o mesmo da primeira vez. 2.2.2 Pitágoras e a escola itálica Pitágoras (571-497 a.C.), fundador da escola pitagórica ou itálica, nasceu em Samos, uma ilha do Mar Egeu, mas pontificou nas colônias do sul da Itália. Para ele, o princípio pri- mordial da realidade é representado pelo número, ou seja, pelas relações matemáticas. Toda a multiplicidade do mundo e o vir a ser é explicado pelo pitagorismo por meio da luta dos opostos, da qual os números pares e os ímpares são paradigmáticos. Esse conflito é recondu- zido ao equilíbrio pela harmonia matemática que rege o universo todo, tanto material quan- to moral. Outros representantes dessa escola são Filolau de Crótona e Árquitas de Tarento. 2.2.3 Xenófanes e a escola eleata Essa escola empresta o seu nome da cidade de Eleia, no sul da Itália, e seu fundador é Xenófanes (cerca de 570-460 a.C.), nascido em Cólofon, na Ásia Menor. Mas o seu maior representante é Parmênides de Eleia (cerca de 530-460 a.C.), para quem o elemento original das coisas é o ser, uno, idêntico, imutável e eterno, representado como uma esfera suspensa no vácuo, sendo que o mundo sensível não passa de ilusão. Zenão (cerca de 495-430 a.C.), também de Eleia, discípulo de Parmênides, é famoso pe- las controvérsias nas quais tentava demonstrar a inexistência do movimento. 2.2.4 A escola pluralista Empédocles (cerca de 492-493 a.C.), de Agrigento, Sicília, toma dos eleatas a doutrina da eternidade e da imutabilidade do ser, mas o divide em quatro elementos fundamentais – a terra, a água, o ar e o fogo –, explicando a multiplicidade e a mudança dos fenômenos mediante as várias recombinações desses elementos. Como Heráclito, acreditava na realida- de do movimento. Pensava, entretanto, que o amor e o ódio são as duas forças primordiais que presidem a combinação dos quatro elementos. Sócrates e a filosofia moral ocidental Filosofia da educação 2 23 Já para Anaxágoras (cerca de 500-428 a.C.), a realidade é constituída de uma infinidade de minúsculas partículas, eternas e imutáveis, de natureza diversa, servindo para explicar a variedade das coisas. O noûs é a inteligência imanente que controla e seleciona essas partí- culas, tirando-as do caos e ordenando-as conforme sua similaridade. Todavia, Demócrito (460-370 a.C.), natural de Abdera, na Trácia6, é o maior represen- tante dessa corrente, também chamada atomística. Para ele, o ser de Parmênides é dividido em uma infinidade de corpúsculos simples e homogêneos, denominados átomos, os quais, suspensos no vazio, movem-se devido à variedade de tamanho e à consequente diversidade de gravidade de cada uma dessas partículas. Os átomos, o vazio e o movimento constitui- riam a razão de tudo. 2.2.5 Os sofistas e a arte da persuasão De 500 a 448 a.C., houve as chamadas Guerras Médicas, relatadas em Histórias, de Heródoto. As cidades jônicas, pertencentes à Grécia e situadas na Ásia Menor, revoltaram-se contra o Império Persa e foram apoiadas por algumas cidades do continente, por fim sendo lideradas por Atenas. Depois das vitórias dos gregos sobre os persas, assistimos ao triunfode Atenas, que se torna o eixo social, político e cultural do universo grego. É o chamado sé- culo de Péricles7, quando a democracia se encontra em seu auge. A democracia ateniense, que se tornaria fundamental para o desenvolvimento da filosofia, tem uma característica essen- cial que a distingue da democracia moderna: é uma democracia direta, sem a mediação de representantes eleitos. Assim, para lograr que a sua opinião fosse acatada nas assembleias, o cidadão precisava ser dotado de talentos oratórios. Nisso entram os sofistas, mestres da eloquência, encarregados de ensinar aos jovens das famílias das classes mais abastadas a arte da persuasão. Professores encarregados de transmitir os princípios da retórica e da oratória, os sofis- tas alegavam que os ensinamentos dos filósofos cosmologistas estavam eivados de erros, além de não terem nenhuma utilidade para a vida da pólis. Portanto, com os sofistas há uma mudança de foco na pesquisa filosófica: a preocupação com a natureza, que esteve no cen- tro das atenções dos pensadores anteriores, começa a refluir, dando lugar ao interesse pelo humano – daí também o nome de antropológica ou humanista dado a essa fase. “Com efeito, os sofistas operaram uma verdadeira revolução espiritual, deslocando o eixo da reflexão da physis e do cosmos para o homem e aquilo que concerne à vida do homem como membro de uma sociedade” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 73). Protágoras (cerca de 480-410 a.C.), um dos maiores nomes da sofística – assim como Górgias (484-375 a.C.) e Hípias (cerca de 435-343 a.C.) –, dizia que o homem é a medida de todas as coisas. Em relação ao período anterior, isso significava uma abertura para o subje- tivismo: dizer que o homem é a medida de todas as coisas significa dizer “que as coisas são 6 A Trácia é uma região do sudeste da Europa, englobando o que hoje é o nordeste da Grécia, o sul da Bulgária e a parte europeia da Turquia. 7 Péricles foi uma das principais lideranças políticas de Atenas. Sua época, o século V a.C., foi um pe- ríodo de esplendor para Atenas, no qual conviveram grandes nomes, como Fídias, Sófocles, Policleto, Calícrates e Sócrates. Sócrates e a filosofia moral ocidental2 Filosofia da educação24 como lhe parecem; não, porém, como aparecem ao homem em geral, mas como aparecem ao homem hic et nunc [“aqui e agora”]: é verdadeiro – e é bem – o que aparece como tal a cada qual e a cada momento” (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1984, p. 109). Daí porque não é raro os sofistas serem acusados de relativistas e céticos – para os relativistas, tudo pode ser verdade, enquanto para os céticos não é possível alcançar a verdade. É nesse contexto que aparece Sócrates, como um meteoro, dividindo a filosofia grega em antes e depois dele. 2.2.6 O filho da parteira Nascido em Atenas (470 ou 469 a.C.), filho de um escultor e de uma parteira, desde cedo Sócrates se entregou à reflexão e ao ensino filosófico, não se deixando levar pelos cuidados da vida doméstica e da política. No entanto, ao contrário dos outros filósofos, não fundou uma escola, preferindo ensinar em lugares públicos, como nos ginásios, nas praças e nos mercados. Exerceu um enorme fascínio sobre os atenienses, especialmente os mais jovens, mas a sua ironia e atitude crítica foram-lhe aos poucos granjeando inimizades entre as par- celas influentes da sociedade. Por fim, foi acusado de corromper a juventude e demonstrar impiedade diante dos deuses da cidade. Todavia, Sócrates não quis se defender. Condenado à pena capital, morreu aos 71 anos, em 399 a.C., ingerindo cicuta (um veneno extremamente letal, extraído da planta de mesmo nome), depois de ter recusado os projetos de fuga propostos por alguns de seus discípulos. Sua morte foi o coroamento de uma vida dedicada ao conhecimento e à virtude, já que ele se transformou no marco de alguém que preferiu morrer a negar suas convicções. Sócrates não escreveu nada: tudo o que se sabe de sua pessoa chegou por meio de seus discípulos, como Xenofonte e Platão – e não são poucos os debates da crítica para estabe- lecer o que é confiável nessas fontes. O certo, porém, é que Sócrates se beneficia da virada antropológica efetuada pelos sofistas. Contudo, ao contrário destes, não se interessa pelo ser humano empírico (o ser humano individual, como é visto e apreendido pelos sentidos), mas pelo humano em geral, com propósitos morais. Como os sofistas, ele começa por criticar o senso comum, o saber instituído, a opinião, a doxa – mas não para aí, o que não seria mais do que um ceticismo: ele transcende o saber imediato em busca do saber autêntico, que seria racional e perene. Esse conhecimento esta- ria dentro de cada um e, para encontrá-lo, Sócrates, um filho de parteira, serve-se de uma técnica por ele chamada de maiêutica, um método que consiste em “parir”, “dar à luz” ideias complexas a partir de perguntas simples, articuladas a partir de um determinado assunto. Assim ele explicava o seu método: A minha arte obstétrica tem atribuições iguais às das parteiras, com a diferença de eu não partejar mulheres, porém homens, e de acompanhar as almas, não os corpos, em seu trabalho de parto. Porém, a grande superioridade de minha arte consiste [...] na faculdade de conhecer de pronto se o que a alma dos jovens está na iminência de conceber é alguma quimera ou faculdade ou fruto legítimo e verdadeiro. (apud PENHA, 1994, p. 35) Sócrates e a filosofia moral ocidental Filosofia da educação 2 25 Daí também a sua máxima: gnothi seauton, “conhece-te a ti mesmo”. O aludido preceito socrático pretende mais do que orientar o indivíduo ao simples conhecimento de si próprio. Seu alcance é maior: é um convite [...] ao aprofun- damento da condição humana, do qual [...] nos desviamos quando levados pelo conhecimento enciclopédico sobre a natureza das coisas. (PENHA, 1994, p. 33) Partindo desse pressuposto, Sócrates constrói uma ética racionalista, na qual a virtu- de passa a ter um papel fundamental. Mas em que consiste a virtude? Antes de tudo, ela se identifica com o conhecimento. Os gregos chamavam-na areté, “significando aquilo que torna uma coisa boa e perfeita naquilo que é, ou melhor ainda, significa aquela atividade ou modo de ser que aperfeiçoa cada coisa, fazendo-a ser aquilo que deve ser” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 88). Desse modo, ele nos diz que a causa do mal é a ignorância: se co- nhecêssemos o bem, não praticaríamos o mal. Por essa razão, o conhecimento de si mesmo é condição suficiente e necessária para a obtenção da areté. O autodomínio e a liberdade são as bases para se atingir a virtude. Para ele, o ser humano é o artífice da sua própria felicidade ou infelicidade. Mas, afinal, o que é o ser humano para Sócrates? “O homem é sua alma, enquanto é per- feitamente a sua alma que o distingue especificamente de qualquer outra coisa. E, por alma, Sócrates entende a nossa razão e a sede de nossa atividade pensante e eticamente operante” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 87). Por isso, a essência do ser humano, segundo Sócrates, é sua psyché. Nesse sentido, ele é considerado o fundador da filosofia moral do Ocidente. Outra ideia relevante no pensamento socrático é a noção de humildade. Sua máxima “só sei que nada sei” é ilustrativa disso. Quando era elogiado por seus discípulos, ele fazia tal afirmação. Para demonstrar que esse era um valor incorporado em sua prática cotidiana, Sócrates construía suas afirmações a partir da relação dialógica com seus interlocutores. Além disso, a dialética socrática é perpassada pela ironia. Em sua etimologia, o conceito de ironia significa “a arte de interrogar”. Quando Sócrates utilizava tal recurso, tinha por objetivo mostrar que, aquele com quem estava dialogando, na verdade estava ignorando o que julgava conhecer. Por meio desse processo, desejava tornar seu interlocutor cônscio da própria ignorância para que ele pudesse partir em busca da verdade. Finalmente, mais que suas palavras, sua postura como filósofo mostrou que a filosofia nãoé uma forma de conhecimento hermético, fechado, reservado somente a uma elite de iniciados: Sócrates interpelava os transeuntes com quem se deparava e discutia com eles os temas do cotidiano. Refletia, por exemplo, sobre a liberdade, o amor, a amizade, a verdade – questões que tocam a todos. Comentando a morte de Sócrates, Marilena Chaui afiança que [...] o maior erro dos juízes foi não terem ouvido o mais importante ensinamento de Sócrates, isto é, que todos os homens são iguais porque todos são capazes de ciência, todos são dotados de uma alma racional na qual se encontra a verdade e todos são capazes de virtude. Razão, ciência, verdade e virtude são universais e todos os homens são, por natureza, capazes delas. (CHAUI, 2000, p. 155) Sócrates e a filosofia moral ocidental2 Filosofia da educação26 Ampliando seus conhecimentos Sócrates e Polo (PLATÃO, 1986, p. 98-102) SÓCRATES: – [...] Vê, pois, se estás disposto a ceder-me o turno da argu- mentação, respondendo às perguntas. Eu creio deveras que nós – eu, tu e toda gente – julgamos pior cometer a injustiça do que sofrê-la, e pior do que expiá-la não a expiar. POLO: – Mas, a meu ver, nem eu, nem ninguém mais, o admitimos. Quem, se não tu, a cometer uma injustiça, preferiria sofrê-la? SÓCRATES: – Eu? Sim, como tu e toda gente. POLO: – Ora, ora! Nem eu, nem tu, nem ninguém mais. […] SÓCRATES: – E quando de duas coisas feias uma é mais feia, assim é por sobrelevar ou na dor, ou no dano. Ou não é forçosamente assim? POLO: – É, sim. SÓCRATES: – Adiante. Que dizíamos há pouco sobre praticar e sofrer injustiça? Não dizias que sofrê-la é pior, mas praticá-la é mais feio? POLO: – Dizia. SÓCRATES: – Então, se praticá-la é mais feio do que sofrê-la, assim é por ser mais doloroso e sobrelevar em dor, ou dano, ou ambas as coisas. Não é isso também forçoso? POLO: – Como não? SÓCRATES: – Ora, examinemos em primeiro lugar se praticar uma injustiça sobreleva em dor sofrê-la e se padecem mais os autores do que as vítimas. POLO: – Isso, Sócrates, absolutamente não. Mártir da filosofia e da fidelidade aos seus princípios, Sócrates permanece vivo até hoje não só em seu exemplo, mas sobretudo como base da construção do edifício da moral do Ocidente. Sócrates e a filosofia moral ocidental Filosofia da educação 2 27 SÓCRATES: – Então, não é em dor que sobrelevas? POLO: – Não, por certo. SÓCRATES: – Se na dor, não, não sobrelevaria portanto em ambos os motivos. POLO: – Não, é claro. SÓCRATES: – Resta, pois, a outra razão? POLO: – Sim. SÓCRATES: – O dano? POLO: – Naturalmente. SÓCRATES: – Ora, se praticar uma injustiça sobreleva em dano, será pior do que sofrê-la. POLO: – Claro que sim. SÓCRATES: – É ou não é fato que anteriormente a maioria das pessoas e tu também concordáveis em que é mais feio ser o autor do que a vítima? POLO: – Sim. SÓCRATES: – E revelou-se agora pior. POLO: – Aparentemente. SÓCRATES: – Acaso, entre o mais e o menos danoso e feio, preferirias o primeiro? Não hesites em responder, Polo; não te fará dano algum. Ao contrário, confia-te bravamente à razão como a um médico e responde sim ou não à minha pergunta. POLO: – Bem, Sócrates, eu não preferiria. SÓCRATES: – Alguém no mundo o faria? POLO: – Não creio, a pensar assim. SÓCRATES: – Portanto, eu dizia a verdade: nem eu, nem tu, nem qualquer outra pessoa preferiríamos cometer injustiça a sofrê-la, por ser mais danoso. Sócrates e a filosofia moral ocidental2 Filosofia da educação28 Atividades 1. Segundo o princípio primordial que os filósofos naturalistas ou cosmológicos aven- taram para a origem das coisas, relacione as colunas. a. Anaximandro de Mileto ( ) A água. b. Demócrito ( ) O apeiron (o indeterminado, sem fim e em terno movimento). c. Pitágoras ( ) O ar. d. Tales de Mileto ( ) Terra, água, ar e fogo. e. Empédocles ( ) O movimento, o vir a ser re-presentado pelo fogo. f. Anaxímenes de Mileto ( ) O número. g. Heráclito ( ) O átomo. 2. Com base no conceito de maiêutica e no exemplo dele apresentado no Ampliando seus conhecimentos, crie um diálogo entre Sócrates e o interlocutor do filósofo. Com base no capítulo, Sócrates deve procurar extrair a verdade a partir do método socrático de pergunta e resposta. Já seu interlocutor deve se deixar conduzir até que do senso comum se chegue a ideias mais pertinentes e perspicazes. A seguir existem alguns exemplos de temas que podem ser abordados nesses diálo- gos socráticos: • A educação é o único caminho para o desenvolvimento de um país. • A mulher só se realiza plenamente na maternidade. • Artistas e cientistas vivem sempre no mundo da lua. 3. Leia abaixo o trecho de uma letra do compositor Chico Buarque. Bom conselho Ouça um bom conselho Que eu lhe dou de graça Inútil dormir que a dor não passa Espere sentado Ou você se cansa Está provado, quem espera nunca alcança (BUARQUE, 1972) Agora responda: quais são os pontos de contato entre essa letra e o método socrático? Filosofia da educação 29 3 Platão e o nascimento da razão ocidental 3.1 Platão: atleta e poeta Ao contrário de Sócrates, que era filho de membros das classes popu- lares, Platão era de ascendência aristocrática. Seu pai orgulhava-se de ter o rei Codros entre os seus antepassados e sua mãe de ter parentesco com Sólon1. Nascido em Atenas (428 ou 427 a.C.), seu nome original era Aristócles. Platão é apelido, derivado, segundo alguns, de seu porte atlé- tico (ombros largos) ou, segundo outros, da largueza de seu estilo. Com sua origem, era natural que desde cedo Platão visse na carreira política o seu destino. Aos 20 anos, travou contato com Sócrates – 40 anos mais velho – e por oito anos usufruiu de seus ensinamentos e de sua amizade. A morte trágica do mestre imprimiu uma marca em todas as fases do pensamento de Platão. Ele passou a desprezar a democracia e as massas, ideando um modo de governo dirigido pelos mais sábios e capazes. 1 Sólon (640-560 a.C.) foi um estadista e poeta ateniense. Autor de um código de leis que introduziu grandes re- formas nos primeiros 25 anos do século VI a.C., em Atenas. Essas leis enfraqueceram significativamente o poder da aristocracia, que se fundamentava nos privilégios de nascimento. Sólon substituiu as leis draconianas por um estatuto menos severo, que se tornaria a base para as leis clássicas surgidas posteriormente. Vídeo Platão e o nascimento da razão ocidental3 Filosofia da educação30 A partir disso, fez várias viagens para instruir-se. Conheceu o Egito, o sul da Itália (onde estabeleceu relações com os pitagórigos), a Sicília (lugar em que não teve sucesso no intento de influenciar positivamente o rei, tendo sido vendido como escravo e resgatado mais tarde). De volta a Atenas, fundou nos jardins do parque dedicado ao herói Academos a sua célebre escola, destinada a desenvolver as ideias de Sócrates e a rebater as dos sofistas. A Academia, como ficou conhecida, adquiriu grande prestígio, e a ela recorreram homens de todos os cantos, sendo ali desenvolvidos os ideais de uma educação para a autonomia do indivíduo. O ideal da educação autônoma significa: • em primeiro lugar: ensinar o livre espírito de pesquisa, o compromisso do pensa- mento apenas com a verdade; • em segundo lugar: estimular a autodeterminação ética e política. Em vez de transmitir doutrinas, a Academia tinha por premissa ensinar a pensar ou, como lemos no Mênon, que é um dos textos de Platão, “o dever de procurar o que não sa- bemos”. Ao contrário de transmitir valores éticos e políticos, a Academia propunha ensinar a criá-los, isto é, a propô-los a partir da reflexão e da teoria. Ali estudaram, entre outros, o matemático Eudóxio e o jovem Aristóteles. Nela prevaleceu o espírito socrático: a discussão oral e o desenvolvimento do vigor intelectual do estudante, sendo menos importantes as exposições escritas (CHAUI, 2000, p. 175). Em 347 a.C., aos 80 anos, reconhecido e admirado, morre Platão, tendo sido velado por uma verdadeira multidão. De suagrandeza nos dá testemunho um dos maiores pensadores do século XX: “Poucos filósofos, se é que algum, alcançaram a sua amplitude e profundi- dade e nenhum o superou. Qualquer pessoa que se dedique à investigação filosófica será insensata se ignorá-lo” (RUSSELL, 2002, p. 107). Praticamente toda a produção de Platão chegou até nós, compreendendo 36 diálogos, 13 epístolas e uma coleção de definições, sendo esta provavelmente apócrifa – isto é, pode ser que tais definições sejam erroneamente atribuídas a Platão, não há certeza se a autoria realmente é dele. Seu interesse abarca as mais diversas áreas do conhecimento: ciências, ma- temática, retórica, arte, política etc. Suas obras mais importantes e conhecidas são: • Apologia de Sócrates, em que resgata os pensamentos do mestre; • O banquete, em que versa sobre o amor de uma forma dialética; • A república, na qual analisa desde a política e a ética até questões metafísicas, como a imortalidade da alma. No entanto, um problema sobre a real compreensão do pensamento platônico diz res- peito às “doutrinas não escritas”. Antigas fontes revelam que, na Academia, Platão ministrou cursos cujo teor ele não quis deixar por escrito. Para ele, “O conhecimento dessas coisas não é de forma alguma transmissível como os outros conhecimentos” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 20). Para muitos estudiosos, esse aspecto é decisivo para se ter uma visão de conjunto da filosofia platônica, e essa tradição oral pode ser de certa forma reconstituída pelos escritos dos discípulos de Platão. Além disso, é bom ter em mente que Platão, a despeito de ter expulsado Platão e o nascimento da razão ocidental Filosofia da educação 3 31 de sua república os poetas, é um filósofo de inspiração poética. Por trás do sábio, é visível, em sua produção, a veia do artista, manifestada no recurso às metáforas, às fábulas e aos mitos. No tocante ainda à sua obra, deve-se destacar a influência de Sócrates. É verdade que em seus escritos percebem-se elementos de diversos filósofos pré-socráticos, como Parmênides e Heráclito, por exemplo. Contudo, nenhuma influência foi tão grande e decisiva quanto a de Sócrates, a ponto de nos livros de Platão, sobretudo nos diálogos socráticos, ser difícil dis- tinguir aquilo que é do mestre e aquilo que é efetivamente do discípulo. Assim, é por meio dos textos de Platão que conhecemos as ideias de Sócrates, e é por meio de Sócrates, tornado seu porta-voz, que conhecemos as ideias de seu discípulo mais célebre. 3.2 As vigas do pensamento platônico Assim como em Sócrates, para Platão a filosofia tem um objetivo prático, mo- ral: a incumbência de resolver os grandes problemas da vida. Todavia, ao con- trário de seu mestre, que restringia o âmbito da filosofia ao ser humano, Platão a estende a toda a realidade. Nas pegadas de Sócrates, Platão também distingue um conhecimento sensível (a opinião, a doxa) e um conhecimento intelectual (a ciência, a episteme). Mas, enquanto Sócrates fazia derivar o segundo do primeiro, para Platão o universal e imutável conhecimento intelectual não pode se originar do conhecimento sensível, particular e mutável. Nas palavras de João da Penha (1994, p. 36): As ideias estão separadas das coisas, o mundo inteligível está fora e acima do mundo sen- sível. A multiplicidade e instabilidade das coisas resultam de uma ilusão dos sentidos. A única realidade objetiva, perfeita, são as ideias, não passando aquilo que vemos de pálidas representações daquelas. As coisas são cópias imperfeitas e fugazes de arquétipos de mo- delos ideais. É no mundo dos inteligíveis, situado na esfera celeste, que habitam as ideias, essência de tudo o que existe e de suas perfeições. Jostein Gaarder (1999, p. 100) apresenta um exemplo significativo dessa teoria de Platão: Por que todos os cavalos são iguais, Sofia? Talvez você ache que eles não são iguais. Mas existe algo que é comum a todos os cavalos; algo que garante que nós jamais teremos pro- blemas para reconhecer um cavalo. Naturalmente, o “exemplar” isolado do cavalo, este sim “flui”, “passa”. Ele envelhece e fica manco, depois adoece e morre. Mas a verdadeira “forma do cavalo” é eterna e imutável. Desse modo, os conceitos ou as ideias que temos em nossa mente são eternos e imutáveis, e, por isso, necessários2. São os arquétipos, isto é, formas ou modelos espirituais a partir dos quais todos os fenômenos são originados. A realidade, por 2 Necessário, em filosofia, é tudo aquilo que não pode não ser; que não há outra forma de ser. É algo inelutável. Vídeo Platão e o nascimento da razão ocidental3 Filosofia da educação32 sua vez, é mutável e imperfeita, ou seja, contingente3. O conhecimento por meio dos sentidos e o conhecimento por meio da razão trazem resultados completamen- te diferentes. Os dados dos sentidos apenas nos permitem apreender simulacros (cópias imperfeitas) das ideias, levando-nos a formular opiniões (não raro) contra- ditórias e superficiais sobre a realidade. No entanto, a experiência sensível que nos é dada pelos sentidos é fundamental para desencadear o processo de conhecimento. O conhecimento ocorre quando nos recordamos imperfeitamente dos arquétipos que a alma teria contemplado no mundo das ideias antes do nascimento corporal. A esse processo dá-se o nome de anamnesis (reminiscência). Trata- -se, todavia, do nível mais baixo do conhecimento. O mundo das ideias, por sua vez, só pode ser intuído pela razão, o que implica uma ruptura radical com os dados dos sentidos aos quais estamos acostumados. O conhecimen- to, para Platão, passa ainda por três níveis fundamentais: • o conhecimento sensível, que é efetuado pelos sentidos no mundo dos fenômenos; • o conhecimento discursivo, que implica o conhecimento da matemática, a única ciência que possui uma natureza não corpórea; • o conhecimento intelectivo, ao qual só a filosofia é capaz de levar, por meio de um corte completo com a experiência sensorial. Por meio desses três níveis, a mente se eleva do múltiplo e sensível até o uno, universal e inteligível. Para Platão, ainda, o divino é representado pelo mundo das ideias, no ápice do qual se encontra a ideia do bem, seguida de três ideias que a caracterizam: • a beleza; • a proporção; • a verdade. Como a multiplicidade dos fenômenos é unificada pelas respectivas ideias, unas e imu- táveis, do mesmo modo a multiplicidade das ideias encontra a sua unidade na ideia do bem, que é o ser sem o qual não se entende o vir a ser. E, embora ela apresente atributos divinos, a essa realidade suprema falta o poder criador, ou melhor, ordenador, de que é dotado o demiurgo, o qual, ainda que superior à matéria, é inferior às ideias, de cujo modelo se serve para ordenar o mundo, extraindo o cosmos do caos. Da mesma maneira que o demiurgo, mas subordinado a ele, as almas têm uma função mediadora entre as ideias e a matéria. Segundo Platão, existem três tipos de alma: • alma concupiscente, própria dos vegetais; • alma irascível, própria dos animais; • alma racional, exclusiva do ser humano. 3 Contingente, em filosofia, é o contrário de necessário, ou seja, é aquilo que existe, mas poderia não existir. Platão e o nascimento da razão ocidental Filosofia da educação 3 33 Entretanto, no ser humano os três tipos de alma encontram-se reunidos hierarquica- mente. A alma racional, destinada ao conhecimento das ideias, localiza-se na cabeça e tem como virtude principal a sabedoria. A alma irascível, associada à vontade, situa-se no peito e tem por virtude cardeal a força. A alma concupiscente, por seu turno, tem por sede o ventre e como virtude capital a moderação. A alma racional controla as outras duas, e por meio das três virtudes obtém-se o pleno domínio do corpo e das paixões, alcançando-se assim a justiça e a felicidade. Nesse sentido, o corpo seria um obstáculo para a natureza racional do ser humano. A moral platônica, portanto, ancorada no dualismo corpo-alma, é uma moral ascética, de renúncia ao mundo. O objetivoda humanidade encontra-se além deste mundo, na contem- plação do mundo das ideias. Quanto ao destino individual das almas depois da morte, segundo Platão, as almas dos filósofos e de todos que souberam se desprender do mundo sensível voltam para o mundo das ideias; as dos seres apegados à matéria vão para um lugar de danação; enquanto as outras se reencarnam em corpos mais ou menos nobres segundo o bem ou mal que tiverem praticado. Aliás, para Platão, cabe também aos filósofos o governo de sua república ideal e nela haveria basicamente três classes: • a dos filósofos, encarregados da direção do Estado; • a dos guerreiros, responsáveis pela sua defesa; • a dos produtores – agricultores e artesãos –, os quais, submetidos aos outros, se- riam os responsáveis pela sua sustentação econômica. Compreendendo que os interesses privados, domésticos, não raro entram em choque com os interesses da coletividade, Platão não hesita em sacrificar os primeiros em proveito dos últimos. Todavia, se a natureza do Estado é sobretudo ética, o seu fim principal é pedagógico: antes de tudo, o Estado deve zelar pelo bem espiritual dos cidadãos, educando-os na virtude, e somente em um segundo momento ele deve se ocupar com o bem-estar desses cidadãos. 3.3 O legado de Platão Se Aristóteles, o mais famoso discípulo de Platão, seria o responsável por grande parte da construção do arcabouço científico do Ocidente, caberia ao mestre o estabelecimento de sua estrutura espiritual. Opondo o mundo das ideias ao mundo da matéria, Platão criaria as condições – que seriam reforça- das mais tarde pelo cristianismo – para que se produzisse durante muitos sé- culos uma repulsa profunda por tudo o que estivesse relacionado com a ordem material e sensível, como o corpo e a sexualidade, em proveito do mundo do espírito, da mente, das ideias. Essa cisão entre corpo e alma, matéria e espírito, que deixaria suas marcas na identidade ocidental, nós devemos a Platão. Não poucos pensadores – entre os quais Nietzsche – tentariam mais tarde descons- truir essa herança. Em todo caso, de certa forma Platão foi a pedra fundamental do edifício filosófico e espiritual do Ocidente. Não é tarefa de pouca monta livrarmo-nos de sua influência. Vídeo Platão e o nascimento da razão ocidental3 Filosofia da educação34 Ampliando seus conhecimentos Imaginemos uma caverna separada do mundo (CHAUI, 2000, p. 195) Imaginemos uma caverna separada do mundo externo por um alto muro, cuja entrada permite a passagem da luz exterior. Desde seu nascimento, geração após geração, seres humanos ali vivem acorrentados, sem poder mover a cabeça para a entrada nem se locomover, forçados a olharem ape- nas para a parede do fundo e sem nunca terem visto o mundo exterior nem a luz do sol. Acima do muro, uma réstia de luz exterior ilumina o espaço habitado pelos prisioneiros, fazendo com que as coisas que se pas- sam no mundo exterior sejam projetadas como sombras nas paredes do fundo da caverna. Por trás do muro, pessoas passam conversando e carre- gando nos ombros figuras de homens, mulheres, animais, cujas sombras são projetadas na parede da caverna. Os prisioneiros julgam que essas sombras são as próprias coisas externas, e que os artefatos projetados são seres vivos que se movem e falam. Um dos prisioneiros, tomado pela curiosidade, decide fugir da caverna. Fabrica um instrumento com o qual quebra os grilhões e escala o muro. Sai da caverna. No primeiro instante, fica totalmente cego pela luminosidade do sol, com a qual seus olhos não estão acostumados; pouco a pouco se habitua à luz e começa a ver o mundo. Encanta-se, deslumbra-se, tem a felicidade de, finalmente, ver as próprias coisas, descobrindo que, em sua prisão, vira apenas sombras. Deseja ficar longe da caverna e somente voltará a ela se for obrigado, para contar o que viu e libertar os demais. Assim como a subida foi penosa, porque o caminho era íngreme e a luz ofuscante, também o retorno será penoso, pois será preciso habituar-se novamente às trevas, o que é muito mais difícil do que se habituar à luz. De volta à caverna, o prisioneiro será desajeitado, não saberá mover-se nem falar de modo compreensível para os outros, não será acreditado por eles e correrá o risco de ser morto pelos que jamais abandonaram a caverna. Platão e o nascimento da razão ocidental Filosofia da educação 3 35 Atividades 1. Com base no texto de Marilena Chaui apresentado no Ampliando seus conhecimentos, qual é a mensagem deixada por esse mito? E, no seu entendimento, quais são as cavernas de hoje? O que a educação pode fazer para ajudar os educandos a liberta- rem-se de suas cavernas? 2. Segundo as principais linhas do pensamento platônico, relacione as colunas a seguir. a. As coisas ( ) só pode ser intuído pela razão. b. Os conceitos ou ideias ( ) é contingente. c. A alma concupiscente ( ) é própria dos vegetais. d. A república ideal ( ) são cópias imperfeitas de arquétipos de modelos ideais. e. O mundo das ideias ( ) é governada pelos filósofos. f. A realidade ( ) são necessários. 3. Quanto ao legado de Platão, assinale a única alternativa correta. a. É o responsável por grande parte da construção do arcabouço científico do Ocidente. b. Não poucos pensadores (entre os quais Nietzsche) tentariam mais tarde refor- mular, a partir de novas bases, a herança de Platão. c. É o principal responsável pela repulsa concernente a tudo o que esteja relaciona- do com a ordem material e sensível. d. É incompatível com a dogmática cristã, que desde o princípio preferiu a filosofia de Aristóteles. e. Essa cisão entre corpo e alma, matéria e espírito, que deixaria suas marcas na identidade ocidental, nós devemos mais a Sócrates que a Platão. Filosofia da educação 37 4 Aristóteles e a filosofia como totalidade dos saberes 4.1 Filho de médico, mestre de príncipe Se elementos da filosofia platônica persistem nos substratos inconscien- tes do Ocidente, sobretudo em seus veios religioso e espiritual, o pensa- mento de Aristóteles (o mais famoso discípulo de Platão) foi praticamente hegemônico – e ainda é cedo para afirmar, como pretendem alguns, que tenhamos entrado em uma fase pós-aristotélica. Diferentemente de Sócrates e Platão, Aristóteles era estrangeiro em Atenas: sua família era de Estagira, colônia grega da Trácia, na fronteira com a Macedônia, onde ele nasceu em 384 ou 383 a.C. Por ter nascido na cidade de Estagira, por vezes ele é chamado de “o estagirita”. Seu pai foi médico na corte de Macedônia, servindo ao rei Amintas, que era pai de Felipe e avô de Alexandre. Graças a essa influência, o futuro filósofo beneficia-se desde cedo de uma atmosfera de pesquisa empírica, experimental, sem dúvida alguma decisiva para os vários tratados sobre questões biológicas que escre- veria mais tarde. Aos 18 anos, já órfão, ele mudou-se para Atenas, ingressando na Academia platônica, onde permaneceu por 20 anos convivendo com os maiores nomes do pensamento da época. Todavia, com a morte de Platão, Aristóteles se afastou da escola, já que a direção dela tendia para áreas que não eram inteiramente de seu interesse. Vídeo Aristóteles e a filosofia como totalidade dos saberes4 Filosofia da educação38 Assim, nos 12 anos seguintes ele viajou pela Ásia Menor, vivendo e lecionando em várias cidades, em uma fase importantíssima de sua vida, até que, por volta de 343 a.C., Felipe da Macedônia o convocou para a corte, encarregando-lhe da educação de seu filho, Alexandre, o Grande. Pouco depois da ascensão de Alexandre ao trono, em 336, Aristóteles retornou a Atenas, onde fundou uma escola própria, o Liceu, assim denominado devido ao templo dedicado a Apolo Lício que ficava nas proximidades. Em virtude do seu hábito de lecionar caminhando, a escola recebeu o nome de Perípatos, que significa “passeio”, e os seus seguidores foram chamados de peripatéticos. “Foram es- ses os anos mais fecundos na produção de Aristóteles, o período que viu o acabamento ea grande sistematização dos tratados filosóficos e científicos que chegaram até nós” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 175). Com a morte de Alexandre, irrompeu em Atenas uma rebelião contra a dominação mace- dônica. Culpado por ter sido tutor do grande soberano, Aristóteles foi acusado de impiedade, assim como Sócrates. No entanto, sem a mesma vocação para o martírio, Aristóteles fugiu para Cálcis, onde havia uma propriedade sua, deixando a direção do Liceu com Teofrasto, um de seus discípulos. Com apenas poucos meses de exílio, veio a falecer em 322 a.C., aos 60 anos. 4.2 Os escritos de Aristóteles Os escritos de Aristóteles chegam às centenas – não faltando autores antigos que lhe atribuem a autoria de cerca de mil volumes. O certo é que os textos de Aristóteles se dividem basicamente em dois grandes grupos: 1. Os escritos exotéricos, destinados ao grande público, compostos sobretudo em for- ma de diálogos, à semelhança de Platão; 2. Os escritos esotéricos, de aspecto mais didático, produzidos para os alunos e, em alguns casos, pelos próprios alunos, como notas tomadas das aulas do mestre – a maior parte do que nos chegou pertence a esse grupo. No entanto, a primeira edição completa de suas obras só veio a lume pela metade do último século antes de Cristo, graças ao esforço de Andrônico de Rodes, seu décimo suces- sor na direção do Liceu. A classificação tradicional do corpus aristotélico, como a que segue, tem por base essa edição: • Escritos lógicos – um conjunto de escritos sobre a lógica (que Aristóteles conside- rava um instrumento indispensável da ciência) e que recebeu mais tarde o título de Organon. • Escritos sobre a física – esse grupo abrange as obras de ciências naturais e a psicologia. • Escritos metafísicos – essa compilação, feita depois da morte do filósofo por meio de seus apontamentos, refere-se à metafísica, cujo nome foi dado devido ao lugar que ocupa na coleção de Andrônico, isto é, “depois da física”. Vídeo Aristóteles e a filosofia como totalidade dos saberes Filosofia da educação 4 39 • Escritos morais e políticos – a Ética a Nicômaco, assim chamada porque é dedicada a Nicômaco, seu filho; a Ética a Eudemo, inconclusa, considerada hoje em dia uma versão mais antiga do livro anterior; a Grande Moral, compêndio das duas prece- dentes, em especial da segunda; e a Política, também incompleta. • Escritos retóricos e poéticos – a Retórica e a Poética, que, no seu estado atual, é apenas uma parte do que Aristóteles escreveu. Quanto à abrangência e à grandeza do empreendimento aristotélico e o estilo em que suas obras foram redigidas, transcrevemos o bem-humorado comentário de Will Durant (2000, p. 75): Temos aqui, evidentemente, a Encyclopedia Britannica da Grécia: todos os pro- blemas abaixo e ao redor do sol têm um lugar nela [...]. Aqui está uma síntese de conhecimento e teoria que nenhum homem tornaria a realizar até a época de Spencer, e mesmo então com uma magnificência que não chegava à metade dela; aqui, melhor do que a impulsiva e brutal vitória de Alexandre, estava uma conquista do mundo. Se a filosofia é a procura da unidade, Aristóteles merece o elevado título que 20 séculos lhe deram: Ille Philosophus – O filósofo. Naturalmente, a um espírito de tal pendor científico faltava a poesia. Não de- vemos esperar de Aristóteles o brilhantismo literário que inunda as páginas do filósofo-dramaturgo Platão. Em vez de nos dar uma alta literatura, na qual a filosofia esteja corporificada (e obscurecida) em mitos e imagens, Aristóteles nos dá ciência, técnica, abstrata, concentrada [...]. Em vez de dar termos à literatura, como fez Platão, ele construiu a terminologia da ciência e da filosofia; pratica- mente não podemos falar de qualquer ciência, hoje, sem empregar termos que ele inventou; eles jazem como fósseis no substrato de nossa linguagem: faculdade, média, máxima [...], categoria, energia, realidade, motivo, fim, princípio, forma – estas indispensáveis moedas do pensamento filosófico foram cunhadas em sua mente. Com Aristóteles, assistimos à passagem de uma filosofia ainda tateante a uma filosofia madura, rigorosa, autônoma. Nele se concretiza, mais do que em qualquer outro antes dele, o domínio do logos sobre o mythos, da razão sobre a imaginação. Podemos afirmar ainda que com o filósofo de Estagira se manifesta, pelo menos em seus princípios epistemológicos, o que viria a ser a ciência ocidental. 4.3 Só o individual é real Para compreendermos a originalidade da contribuição do pensamento de Aristóteles, é preciso levar em conta dois fatores essenciais: a formação prática herdada de seu pai e a força da filosofia platônica. São duas tendências opos- tas que encontrarão nele uma síntese original, a formação prática funcionando como ponto de partida e pano de fundo para a superação da filosofia platôni- ca. Assim, em Aristóteles a pesquisa empírica fornece o instrumental para a Vídeo Aristóteles e a filosofia como totalidade dos saberes4 Filosofia da educação40 refutação da teoria platônica das ideias. Em outros termos, em Aristóteles é formulada uma filosofia realista em comparação ao pensamento idealista de Platão. O ponto de partida dessa nova filosofia consiste em conceber, ao contrário de Platão, que somente o individual é real: o que realmente existe é o indivíduo material concreto. Esse indivíduo concreto seria o constituinte último da realidade, a qual, mais do que uma mani- festação imperfeita do mundo das ideias, é composta do conjunto de indivíduos materiais e concretos existentes. Além disso, para Aristóteles a experiência é a única fonte de conhecimento autêntico: con- tra Platão, ele postula que não existem ideias puras a serem investigadas ou procuradas por trás das aparências. A inteligência humana conta apenas com o que está acessível aos sentidos. Dessa forma, no intelecto não há nada que antes não tenha passado pelo concreto. Trata-se de interessar-se imediatamente pelas coisas, pois é a partir delas que se extraem as ideias. Aprofundando a análise, Aristóteles afirma que o indivíduo concreto – o único real e existente – é constituído de matéria e forma. “A matéria é o princípio da individuação e a forma a maneira como, em cada indivíduo, a matéria organiza-se” (MARCONDES, 2000, p. 72). Assim, cada indivíduo tem uma matéria específica, particular, e uma forma comum, partilhada com os indivíduos da mesma espécie. Matéria e forma são indissociáveis, pois a matéria existe apenas dentro de uma forma específica. A fim de compreendermos melhor, vejamos o exemplo da estátua: a matéria dela é o mármore ou o bronze, por exemplo, e a forma é a bela Afrodite ou o feio Sócrates. E só o individual é real. O universal, por sua vez, somente existe em nossa mente por meio da abstração. O caminho por meio do qual o intelecto chega ao conhecimento é a abstração – que é o processo segundo o qual a inteligência separa matéria e forma. O co- nhecimento dá-se quando relacionamos os objetos que possuem a mesma forma e fazemos abstração de sua matéria, ignorando suas características particulares. Formulemos um exemplo de abstração: pelos sentidos, conheço um ser, identifico que ele é semelhante a outros da mesma espécie. Trata-se de um mamífero ruminante que cha- mamos de vaca. A ideia de vaca não existe em estado puro, não há um mundo das ideias onde exista uma vaca arquetípica, modelo para todas as vacas do universo. O que existe de fato é essa vaca particular, que posso ver com os meus olhos. Mas, por um processo de abstração, chego à ideia de vaca, comum a todas as vacas que eu possa conhecer. Em termos aristotélicos, posso afirmar que a ideia que tenho da vaca é a sua essência1. É baseado nessa ideia que reconheço uma vaca concreta, mas a ideia não existe sem os seres individuais que eu percebo pelos sentidos. 1 A distinção entre essência e existência é uma das classificações da metafísica aristotélica. Existência indica o ser que está acima do nada. Pela essência, ele passa a
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