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1 Extratos de fontes das “Filosofias Medievais” (sécs. II-XIII)1 Seleção e notas: Prof. Dr. Ricardo da Costa (Ufes)2 Temas selecionados3: A Filosofia. A Gnose. O Belo. A Linguagem e a Palavra. A Verdade. A Luz. A Natureza. O Mundo. A Experiência. O Argumento Ontológico. O Socratismo Cristão. A Humildade. O Fruto das Letras. A Comédia Humana. As Dignidades Divinas. Deus. A Morte. 1. Justino (†163) e a Busca da Filosofia (Diálogo com Trifon) ................................................................ 02 2. Clemente de Alexandria (c. 150-217) e a Gnose, na obra Stromata (Tapetes, ou Exposições científicas da verdadeira filosofia) ....................................................................... 03 3. Plotino (205-270) e o Belo, nas Enéadas ............................................................................................ 05 4. Gregório de Nissa (335-394) e a Linguagem, na obra Sobre a criação do homem ...................... 09 5. Agostinho (354-430) e a Verdade: “Existo, logo penso” (3 extratos) ...................................... 11 6. Boécio (c. 470-524) e seu encontro com a Filosofia, na Consolação da Filosofia ........................... 13 7. Pseudo-Dionísio, o Areopagita (séc. V) e a Dádiva da Luz, na Hierarquia Celeste .................. 15 8. João Escoto Erígena (c. 815-885), a Natureza, a Razão e a Autoridade, na Divisão da Natureza ............................................................................................................................ 17 9. Anselmo de Aosta (de Bec ou de Canterbury, 1033/34-1109) e o Argumento Ontológico, no Proslógio .................................................................................................. 19 10. Pedro Abelardo (1079-1142), e a importância da Linguagem, na Lógica para principiantes ................................................................................................................. 21 11. Bernardo de Claraval (1090-1153) e o Socratismo Cristão4, na Carta a Roberto, seu sobrinho e na obra Da Consideração (1149-1152) .................................. 22 12. Hugo de São Vítor (1096-1141) e a Leitura com Humildade, princípio do Conhecimento, no Didascálicon ....................................................................................... 25 13. João de Salisbury (c. 1115-1180), o Fruto das Letras e a Comédia Humana, no Polycraticus ...................................................................................................................................... 27 14. Anônimo do séc. XII, O que é Deus, em O Livro dos Vinte e Quatro Filósofos ........................ 33 15. São Boaventura (1221-1274) e a Palavra como Signo, na Recondução das Ciências à Teologia ............................................................................................... 35 16. Pseudo-Aristóteles (séc. XIII) e a Morte, em Sobre a maçã ou Sobre a morte de Aristóteles .................................................................................................................. 36 17. Santo Tomás de Aquino (c. 1225-1274) e busca do filósofo pela Verdade e pela Sabedoria, na Suma contra os gentios ...................................................................................... 39 18. Roger Bacon (c. 1210-1292), o Fim do Princípio da Autoridade e o Valor da Experiência, na obra Opus maius .................................................................................. 41 19. Ramon Llull (1232-1316) e as Dignidades Divinas, em sua Arte Breve (1308) ........................ 42 20. Sobre a Natureza da Filosofia, a Eternidade do Mundo, o Homem, a Ética e as Virtudes Cristãs, nas 219 Teses condenadas em 1277 ..................................................... 45 1 “...não se pode falar em „Filosofia Medieval‟, no singular, e sim em „Filosofias Medievais‟, no plural. A base da argumentação para tanto continua a mesma: se pensadores que possuem uma mesma fé produzem teologias tão diferentes, é porque possuem filosofias diferentes. E nestas filosofias, igualmente ortodoxas, que não se deixam reduzir uma à outra, é preciso fazer uma escolha.” – DE BONI, Luis Alberto. “Estudar Filosofia Medieval”. In: Filosofia Medieval. Textos. Porto Alegre: Edipucrs, 2000, p. 22. 2 Medievalista da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Acadèmic correspondente n. 90 da Reial Acadèmia de Bones Lletres de Barcelona. Site: www.ricardocosta.com 3 Material selecionado para exposição e análise na disciplina “História da Filosofia Medieval” (FIL-05094), ministrada para o curso de Filosofia da Ufes, no segundo semestre de 2007. 4 Expressão cunhada por Etienne Gilson, em sua magistral obra O Espírito da Filosofia Medieval (São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 278-303). http://www.ricardocosta.com/ 2 1. JUSTINO (†163) e a Busca da Filosofia, Diálogo com Trifon (depois de 202), MG t. 6, c. 477.5 Eu também nutria, a princípio, o desejo de tratar com algum destes filósofos. Dirigi-me, pois, a um estóico, e passei com ele bastante tempo. Entretanto, como nada adiantasse no conhecimento de Deus – ele mesmo era incrédulo e julgava desnecessário tal saber – abandonei-o, e associei-me a um dos que passam pelo nome de peripatéticos.6 Este homem se tinha em conta de muito perspicaz. Freqüentei-o por alguns dias. Pediu-me então que lhe pagasse um salário, para que as nossas relações não resultassem inúteis. Por isso abandonei-o, deixando mesmo de tê-lo em conta de filósofo. Mas como a minha alma persistisse no desejo ardente de conhecer a natureza e a excelência da filosofia, fui ter com um renomado pitagórico, que muito se vangloriava de seu saber. Ao tratar com ele da minha admissão como ouvinte e discípulo, perguntou-me: “Como assim? Já estudaste, porventura, a música, a astronomia e a geometria? Ou julgas poder contemplar alguma daquelas realidades que conduzem à felicidade sem teres aprendido primeiro estas ciências, que desembaraçam a alma das coisas sensíveis, e a tornam apta para as inteligíveis, de modo a poder contemplar o que é belo e bom em si mesmo?”. E tendo elogiado sobremaneira aquelas ciências e insistido na sua necessidade, despediu-me, pois tive que confessar que as ignorava. Escusado dizer que me entristeci bastante com esta nova desilusão, tanto mais que eu tivera a impressão de que ele sabia alguma coisa. Mas, refletindo sobre o tempo que teria que gastar naquelas disciplinas, não me senti disposto a tão longa demora. Cada vez mais perplexo, resolvi procurar os platônicos, que também desfrutavam de grande fama. Ora, justamente naqueles dias chegara à nossa cidade um dos representantes mais doutos e eminentes desta escola. Pus-me a freqüentá-lo com a máxima assiduidade. Fiz grandes progressos e apliquei-me diariamente a ele, tanto quanto me era possível. Senti-me tomado de um grande entusiasmo pelo conhecimento das coisas incorporais, e a contemplação das Idéias dava asas a meu espírito. Comecei logo a ter-me por sábio, e, tolo como era, cuidei chegar sem demora à contemplação de Deus. Pois este é o objetivo da filosofia platônica. *** 5 JUSTINO (†163). Diálogo com Trifon. In: BOEHNER, Philotheus e GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. Desde as Origens até Nicolau de Cusa. Petrópolis: Editora Vozes, 2000, p. 32. “Este texto do Diálogo com Trífon é de uma importância capital, por nos mostrar, num caso concreto e historicamente observável, como a religião cristã pôde assimilar imediatamente um domínio reinvidicado até então pelos filósofos (...) Justino se apresenta como o primeiro daqueles para quem a revelação cristã é o ponto culminante de uma revelação mais ampla e, não obstante, cristã a seu modo, pois de toda a revelação vem do Verbo e que Cristo é o Verbo encarnado. Podemos, pois, considerá-lo o ancestral dessa família espiritual cristã, da qual o cristianismo largamenteaberto reinvidica como seus todo o verdadeiro e todo o bem, que ele se dedica a descobrir para assimilar.” – GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 04 e 08. 6 Peripatético (“aquele que gosta de passear”) – todos os que aderem ao conjunto de doutrinas aristotélicas, e encontram na realidade (por isso “passeiam”) a explicação das coisas. Também se refere a uma escola, a Peripatética, que foi inspirada em alguns fundamentos da doutrina de Aristóteles. 3 2. CLEMENTE DE ALEXANDRIA (c. 150-217) e a Gnose, na obra Stromata (Tapetes, ou Exposições científicas da verdadeira filosofia), 6,9; 71,1; 75,3.7 É da natureza do gnóstico não obedecer senão aos impulsos necessários para o sustento corporal, tais como a fome, a sede, e outros do mesmo gênero.8 Entretanto, seria ridículo afirmar que o corpo do Senhor necessitasse de serviços para o seu sustento. Pois Ele não se alimentava por causa do seu corpo, que era conservado por uma força sagrada, mas com o único intuito de evitar que seus familiares formassem uma idéia errada a seu respeito, como, de fato, mais tarde alguns julgaram que sua revelação não passasse de mera aparência. Todavia, não estava sujeito a nenhuma paixão, e era inacessível a quaisquer movimentos passionais de prazer ou dor. Também os Apóstolos, instruídos pelo Senhor, eram capazes de dominar, à maneira dos verdadeiros gnósticos, a ira, o temor e a concupiscência; não cediam nem mesmo aos impulsos passionais tidos em conta de bons, como a coragem, o zelo, a alegria e a jovialidade, mantendo-se numa espécie de disposição de ânimo inteiramente inabalável, e numa atitude de domínio inalterável de si próprios – pelo menos após a ressurreição do Senhor. Pois ainda que os referidos impulsos sejam considerados bons na medida em que se fazem acompanhar da razão, não se pode, contudo, admiti-los no homem perfeito. Pois este não tem motivo para ser corajoso, visto não expor-se a perigos, porque nada do que a vida lhe depara lhe parece perigoso, e porque, mesmo independentemente da coragem, nada consegue demovê-lo do amor de Deus. Tampouco necessita de alegria, pois nunca cede à tristeza, convencido de que tudo lhe reverterá em bem; também não se irrita, porque nada pode provocar a ira a quem não cessa de amar a Deus e de entregar-se inteira e exclusivamente a Ele. Pela mesma razão não alimenta ódio contra qualquer criatura de Deus. É-lhe estranho também todo zelo apaixonado, pois de nada carece para conformar-se ao bem e ao belo; e com razão, não ama a pessoa alguma com este amor comum; ao contrário, ama o Criador através das criaturas. 7 CLEMENTE DE ALEXANDRIA (c. 150-217). Stromata (Tapetes, ou Exposições científicas da verdadeira filosofia). In: BOEHNER, Philotheus e GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. Desde as Origens até Nicolau de Cusa, op. cit., p. 46-47. “Nos escritos de Clemente deparamos, repetidamente, com três tipos de homens: o pagão, o crente e o gnóstico (...) Ao igualar o gnóstico ao crente, e ao enraizá-lo na mesma fé dos simples fiéis, Clemente conseguiu superar o grave perigo que o gnosticismo herético representava para a fé cristã. Ao gnosticismo heterodoxo opôs ele a sua gnose ortodoxa que, no fundo, outra coisa não é senão o conhecimento perfeito do místico.” – BOEHNER, Philotheus e GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. Desde as Origens até Nicolau de Cusa, op. cit., p. 39-40. 8 “Define-se de um modo geral o gnosticismo como toda tendência e pretensão de conseguir o saber absoluto, sem que isso signifique sempre o acesso ao mesmo por via puramente racional ou intelectual, mas antes mística e extática. Usualmente chama-se gnósticos a uma série de pensadores que elaboraram grandes sistemas teológico-filosóficos durante os primeiros séculos da era cristã, nos quais se encontram misturados as especulações de tipo neoplatónico com os dogmas cristãos e as tradições judaico-orientais.” – FERRATER MORA, José. Dicionário de Filosofia. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1982, p. 173. “Saber se Deus existe e o que se pode afirmar razoavelmente a seu respeito, em suma, conhecê-lo como filósofo, não parece mais suficiente; o que se busca é uma gnose (gnôsis), isto é, uma experiência unificadora e divinizadora que permita alcançá-lo num contato pessoal e unir-se realmente a ele. (...) Uma „gnose‟ é um saber cuja posse assegura a salvação, libertando de um erro primitivo ligado à história do mundo os que o possuem. Todas essas doutrinas vinculam-se primeiro ao cristianismo pelo papel que atribuem a Jesus, mas tendem a reduzir sua obra à simples transmissão do conhecimento que salva.” – GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média, op. cit., p. 31. 4 Não está, pois, sujeito à cobiça, nem a qualquer outro desejo, e não sente falta de coisa alguma, pelo menos no que respeita à alma, pois já se encontra unido ao seu amado pela caridade, e inseparavelmente ligado a Ele por sua própria escolha; aproxima-se progressivamente d‟Ele, graças ao seu autodomínio; sente-se feliz na abundância dos seus bens, e esforça-se por assemelhar-se o mais possível ao Mestre pelo domínio das paixões. Pois a palavra de Deus é espiritual e, por isso, Sua imagem só se manifesta no homem. Com efeito, o homem bom é igual e semelhante a Deus, graças à sua alma, como também Deus é semelhante ao homem. Pois a nota distintiva de todo homem é o espírito, pelo qual participamos da essência que nos caracteriza. Por este motivo, aquele que peca contra um homem é criminoso e ímpio. Há quem diga, com vã loquacidade, que não convém privar o gnóstico e o perfeito da ira e do ânimo, porque sem estas qualidades ele se tornaria incapaz de enfrentar os reveses e suportar os perigos. Se, além disso, lhe tirássemos a alegria, ele sucumbiria ao peso das adversidades, e sua morte seria extremamente triste. Mais ainda: quem carece de toda aspiração apaixonada não sente nenhum desejo pelas coisas que nos aparentam com o belo e o bem. É assim que muitos pensam. E, perguntam eles, se é impossível achegar-se ao belo sem almejá-lo, como poderia alguém aspirar a ele sem sentir-se apaixonado? Os que assim falam parecem desconhecer o modo de proceder do amor divino, pois este, ao invés de ser uma aspiração do amante, é uma aproximação amorosa, que transporta o gnóstico à unidade da fé, e isto sem qualquer dependência do espaço e do tempo. O amor lhe faz atingir, desde já, o lugar que lhe está reservado para o futuro, antedando-lhe, pelo conhecimento, o objeto de sua esperança. Por isso, já não deseja coisa alguma, pois já possui, na medida do possível, tudo quanto é digno de ser desejado. É, pois, com razão, que ele, amando à maneira dos gnósticos, se mantém naquela disposição inalterável. Também não tende apaixonadamente a assemelhar-se ao belo, pois já participa da beleza pelo amor. Que lhe aproveitariam o ânimo e o desejo, uma vez que já lhe foi dado aproximar-se, pelo amor, do Deus impassível, e ser contado, pelo mesmo amor, no rol dos seus amigos? Ser gnóstico ou perfeito, portanto, significa estar livre de toda agitação da alma. Pois o conhecimento produz o domínio de si próprio, e este, fixando-se numa disposição ou estado durável, tem por efeito a apatia, e não a simples moderação das paixões, pois a apatia é o fruto da completa extinção dos apetites. Mas o gnóstico também se aparta das chamadas tendências boas, ou seja, das emoções que acompanham as paixões. Quero referir-me, por exemplo, à alegria (que acompanha o prazer), ao abatimento (que se prende à aflição), e à cautela (que nasce do temor). Renuncia igualmente à exaltação apaixonada (associada à ira), se bem que muitos afirmem que tais emoções são um bem, não um mal. Pois é impossível que, uma vez chegado à perfeição da caridade, e admitido às alegrias imperecíveis, perenemente deliciosas e inesgotáveis da contemplação, alguém possa continuar a agradar-senas coisas inferiores e terrenas. Com efeito, que motivo racional haveria para volver aos bens mundanos, depois de atingida a “luz inacessível”, se não em termos de tempo e lugar, pelo menos por meio daquele amor gnóstico que conduzirá à herança e à restauração, quando o “retribuidor” virá confirmar efetivamente aquilo que o gnóstico já antecipou pelo amor, graças à sua decisão? Na verdade, o gnóstico que, impelido pelo amor, sai em busca do Senhor – embora o tabernáculo do seu corpo permaneça visível na terra – por certo não se desfaz da própria vida (isto lhe é vedado), mas torna a viver, depois de haver destruído seus apetites e cessado de depender do seu corpo, ao qual permite apenas o uso do que é necessário para impedir sua dissolução. 5 3. PLOTINO (205-270) e o Belo, nas Enéadas (“Sobre o Belo”).9 1. O Belo dirige-se principalmente à visão; mas também há uma beleza para a audição, como em certas combinações de palavras e na música de toda espécie, pois a melodia e o ritmo são belos. As mentes que se elevam para além do reino dos sentidos encontram uma beleza na conduta de vida: em atos, caráteres, bem como a encontram nas ciências e nas virtudes.10 Há uma beleza anterior a essa? O questionamento que se segue o mostrará. O que faz com que a visão vislumbre a beleza do corpo e a audição seja tocada pela beleza dos sons? Por que tudo o que está relacionado à Alma é belo? Todas as coisas belas tiram a sua beleza de um único princípio ou há uma beleza nas coisas corpóreas e outro nas incorpóreas? E o que são essas belezas ou essa beleza? Certas coisas, como as formas materiais, são belas não devido à sua própria substância, mas por participação.11 Outras são belas em si mesmas, como a virtude. Os mesmos corpos mostram-se ora belos, ora desprovidos de beleza, de modo que o ente do corpo é muito diferente do ente da beleza. Que beleza então é essa que está presente nas formas materiais? Eis a primeira pergunta a ser respondida em nosso questionamento. O que é que atrai o olhar do espectador para os objetos belos e faz com que se alegre com sua contemplação? Se encontrarmos a causa disso, talvez possamos nos servir dela como uma escada para contemplar as outras belezas. Quase todo mundo afirma que a beleza visível resulta na simetria das partes, umas em relação às outras e em relação ao conjunto, e, além disso, de certa beleza de suas cores. Neste caso, a beleza dos seres e de todas as coisas seria devida à sua simetria e à sua proporção. Para aquelas que pensam assim, um ser simples não será belo, mas apenas um ser composto. Ademais, cada parte não terá a beleza em si mesma, mas apenas ao combinar-se com as outras para constituir um conjunto belo. No entanto, se o conjunto é belo, é necessário que as partes também sejam belas, pois uma coisa bela não pode ser constituída de partes feias. Tudo o que ela contém precisa ser belo. Conforme essa opinião, as cores belas, e mesmo a luz do Sol, sendo 9 PLOTINO (205-270). Tratados das Enéadas. Polar: Editorial & Comercial, 2000, p. 17-35 (o capítulo sobre o belo corresponde à primeira Enéada em ordem cronológica, e à Enéada I 6 na ordem estabelecida por Porfírio). Ennéa, em grego, significa nove. “Neste tratado, o primeiro que compôs Plotino, de acordo com Porfírio (Vida de Plotino, IV, 22), o mais traduzido e o mais popularizado, se entrecruzam caracteristicamente os dois temas fundamentais da filosofia plotiniana: a metafísica e a mística. A identificação da beleza com a forma marca uma revolução na história da estética e permite ao seu autor estabelecer a seguinte gradação: a beleza sensível se identifica com uma forma imanente; a da alma com uma forma transcendente, mas secundária; e a própria da inteligência com a forma transcendente e primária, que é o Bem como princípio de forma e de beleza.” – IOGA, Jesús. Porfírio. Vida de Plotino – Plotino Enéadas I-II. Madrid: Editorial Gredos, 2001, p. 271. 10 A virtude significa propriamente força, poder, eficácia. Desde cedo foi entendida como um hábito que se torna possível por haver previamente nela uma capacidade de ser de um determinado modo. Em relação à coisa, a virtude é o que completa a boa disposição da mesma, e se confunde com o valor, a coragem, o ânimo: é o que caracteriza o homem. Este caráter é expresso pelo justo meio, a devida proporção ou moderação prudente. Em Platão são a sabedoria prática ou a prudência, o valor ou a coragem e a temperança. Aristóteles classificou-as como intelectuais (procedentes da alma) e não intelectuais (do hábito). Ver FERRATER MORA, José. Dicionário de Filosofia, op. cit., p. 419-420. 11 Plotino se vale do conceito aristotélico de substância: “Temos ciência das coisas particulares só quando conhecemos a essência necessária das mesmas, e com todas as coisas ocorre o mesmo que ocorre com o bem: se o que é bem por essência não é bem, então nem o que existe por essência existe, e o que é uno por essência não é uno (Met., VII, 6, 1031b 6). Esse argumento significa que tudo é o que é em virtude de sua essência necessária (substância, quod quid erat esse): portanto, tudo o que há de real ou de cognoscível nas coisas faz parte da essência necessária e existe necessariamente. – ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 925. 6 desprovidas de partes, e, portanto, desprovidas de uma bela simetria, seriam desprovidas de beleza. E por que o ouro é belo? E o relâmpago que vemos na noite, o que faz que ele seja belo? O mesmo pode ser perguntado dos sons, pois se essa opinião estiver correta, a beleza não poderia estar associada a um som simples. No entanto, freqüentemente cada um dos sons que fazem parte da composição é belo em si mesmo. E se é notório que quando um rosto, cujas proporções permanecem idênticas, mostra-se às vezes belo, às vezes feio, podemos ter alguma dúvida de que a beleza seja algo mais que a simetria dessas proporções, de que a causa da beleza do rosto bem proporcionado seja outra? Se nos voltarmos para as belas condutas e os belos discursos, poderemos atribuir a causa de sua beleza à simetria? É possível falar de simetria no que diz respeito às condutas nobres, às leis, aos conhecimentos ou às ciências? As teorias ou especulações podem ser simétricas umas em relação às outras? Se uma concordância entre elas faz com que sejam simétricas, também pode haver concordância entre teorias más. Por exemplo, a opinião de que a “honestidade é uma espécie de estupidez” harmoniza-se perfeitamente com a opinião de que a “moralidade é uma ingenuidade”. A correspondência e concordância entre ambas é completa. E se falarmos agora da virtude, que é uma beleza da Alma – e uma beleza que está realmente acima das mencionadas antes – como dizer que ela é composta de partes simétricas? Embora a Alma seja constituída de várias partes, suas virtudes não podem ter a simetria das dimensões e dos números: pois qual padrão de medida pode haver na relação entre as partes da Alma? Por fim, conforme essa opinião, no que consistiria a beleza da inteligência que permanece livre em si mesma? 2. Caminhemos então em direção à origem e indiquemos o princípio que concede a beleza às coisas materiais. Sem dúvida esse princípio existe. É algo perceptível ao primeiro olhar, algo que a Alma reconhece a partir de um antigo conhecimento e, ao reconhecê-lo, acolhe-o e entra em ressonância com ele. Por outro lado, quando contempla a feiúra, ela se agita, recusa-a e a repele como uma coisa discordante, que lhe é estranha. Afirmemos, portanto, que a Alma, pela própria verdade de sua natureza, por descender do mais nobre dentre os existentes na hierarquia do Ser, deleita-se ao ver seres do mesmo gênero que ela ou com traços semelhantes aos dela. Quando os vê, ela se surpreende, pois eles a remetem a si mesma, fazem com que se lembre de si e do que lhe pertence. Porém, será que há alguma semelhançaentre as belezas lá do alto e as deste mundo? Tal semelhança faria com que as duas ordens se assemelhassem; mas o que há em comum entre a beleza lá do alto e a beleza deste mundo? Toda e qualquer beleza deste mundo advém da comunhão com uma Forma ideal.12 Todas as coisas privadas de Forma e destinadas a receber uma Forma ou uma Idéia permanecem feias e estranhas ao pensamento divino13 enquanto não comungarem com um pensamento ou uma Idéia. A feiúra absoluta consiste nisso. Tudo o que não é denominado por uma Idéia e por um pensamento (logos) é algo feio. 12 Forma, figura latente e invisível, captável só pela mente. Platão a chama de idéia ou forma; Aristóteles (na Física e na Metafísica) afirma que a matéria é aquilo com o que se faz alguma coisa; a forma é aquilo que determina a matéria para ser alguma coisa, isto é, aquilo por que alguma coisa é o que é. 13 Logos spermatikoy – a razão seminal. 7 Porém, quando a Idéia (ou Forma ideal) se aproxima de algo e o organiza, combinando as várias partes das quais ele é composto, a Idéia as reduz a um todo convergente e, colocando-as de acordo entre si, cria a unidade – uma vez que a Idéia é uma unidade e o que é moldado por ela deve unificar-se, mas na medida do que é possível a uma coisa composta de muitas partes. Quando algo é conduzido à unidade, a beleza entroniza-se ali, pois ela se difunde por cada uma de suas partes individualmente e pelo conjunto (...) Assim, a beleza das coisas materiais provém de sua comunhão com um pensamento que provém dos deuses. (...) 4. Quanto às belezas mais elevadas, que não podem ser percebidas pelos sentidos, mas que são vistas pela Alma e a respeito das quais ela se pronuncia sem o auxílio dos órgãos dos sentidos, para contemplá-las temos de nos elevar ainda mais, abandonando os sentidos embaixo. Assim como aqueles que nasceram cegos não podem falar a respeito das belezas sensíveis, assim também não é possível se falar a respeito da beleza das condutas, das ciências e das outras coisas semelhantes sem ter antes se interessado por essas questões, nem é possível falar a respeito do esplendor da virtude sem antes ter contemplado a bela face da justiça e da temperança, “cuja beleza é maior que a da aurora e a do crepúsculo”.14 Tais belezas só podem ser vistas por aqueles que vêem com os olhos da Alma. E quando as vêem, experimentam um deleite, uma alegria e um assombro bem maiores do que os experimentados diante das belezas precedentes, pois nesse caso contemplam o reino da verdadeira Beleza. Eis o que experimentamos quando entramos em contato com a beleza: o maravilhamento, um súbito deleite, o desejo, o amor e uma alegre excitação. É possível sentir isso diante das belezas invisíveis. E as Almas realmente o sentem: praticamente todas as Almas, mas especialmente as Almas que as amam. O mesmo ocorre no que diz respeito à beleza dos corpos: todos a vêem, mas nem todos sentem o mesmo impacto; os que mais o sentem são os que chamamos de “amorosos”. 5. Então, temos de fazer a seguinte pergunta aos amantes da beleza que está além dos sentidos: “O que sentis antes as belas condutas, os belos caráteres, os modos virtuosos e a beleza da Alma? O que sentis quando vedes a vossa própria beleza interior? Que deleite, emoção e desejo de estarem convosco mesmos é esse que, recolhendo-vos em vosso verdadeiro eu, vos arrebata para fora do corpo?” Pois é isso que experimentam os verdadeiros amorosos. Porém, o que os faz experimentar isso? Não é a forma, cor ou dimensão alguma, mas a Alma: pois, embora não tenha cor, é nela que brilham a sabedoria e os resplendores de todas as outras virtudes. Experimentais isso quando vedes em vós mesmos ou em outra pessoa a grandeza da Alma, um caráter justo, a pureza dos costumes, a coragem de uma face nobre, a dignidade – esse respeito por si mesmo que advém de uma Alma calma, serena e impassível – e, brilhando sobre tudo isso, a luz da Inteligência, cuja essência é divina. Todas essas qualidades nobres devem ser reverenciadas e amadas – mas porque são chamadas belas? Porque realmente existem como belezas e quem quer que as veja afirma que elas têm uma existência real. Porém, o que significa a expressão “existência real”? Sem dúvida elas são belas, mas a razão também deseja saber o que faz com que, ao vê-las, o amor se inflame na Alma. O que é essa graça, esse resplendor que emana de todas as virtudes? Talvez se considerarmos o seu 14 ARISTÓTELES, Ética, V, 3. 8 contrário, a feiúra da Alma, e perguntarmos o que esta é e como surge, possamos responder mais facilmente a questão anterior. Imaginemos uma Alma feia, dissoluta e injusta, cheia de todas as concupiscências e desequilíbrios interiores, que por ser covarde está sempre com medo e por ser mesquinha está sempre com inveja. Uma Alma que só pensa nas coisas perecíveis e baixas, é sempre perversa, deleita-se com os prazeres impuros, vive a vida das paixões corporais e tem prazer com a sua própria feiúra. Só podemos dizer que essa feiúra veio até ela como um mal adquirido, que a suja, que a torna impura, a impregna com grandes males e, com isso, sua vida e suas sensações perdem sua pureza, de modo que ela leva uma vida obscurecida pela mistura com o mal, uma vida mesclada de morte. Esta Alma não mais vê o que uma Alma deve ver, não mais lhe é permitido permanecer em si mesma, pois ela é incessantemente atraída para a região exterior, inferior e obscura. Impura, arrastada para todos os lados pelas atrações dos objetos sensíveis, muito infectada pela natureza corporal, absorvendo muita matéria e acolhendo em si uma Forma (eidos) diferente da sua, ela troca sua Forma essencial por uma natureza que lhe é estranha. É como um homem que mergulha no lodo: sua beleza deixa de ser visível, pois só o lodo passa a ser visível. (...) 6. (...) A beleza é a existência real ou a verdadeira realidade, e a feiúra é o princípio contrário à existência. A feiúra é o primeiro mal. Assim, para Deus, as qualidades da bondade e da beleza são as mesmas, bem como as realidades do Bem e da Beleza. (...) 8. Como poderemos ver essa Beleza imensa que permanece, por assim dizer, no interior do santuário e não se dirige para fora para ser vista pelo profano? Que aquele que pode fazê-lo siga-a até a sua interioridade, abandonando a visão dos olhos, e não se volte para o esplendor dos corpos que admirava antes. Quando vemos as belezas corporais, não devemos correr atrás delas, mas saber que elas são imagens, traços e sombras; e que, portanto, devemos fugir em direção àquela Beleza da qual elas são uma imagem (...) Fujamos, então, para a nossa querida pátria15: eis o melhor conselho que se pode dar (...) Nossa pátria é o lugar de onde viemos e nosso Pai está lá. (...) 9. Então, o que esse olho interior vê? Ao despertar ainda não é capaz de olhar para o grande esplendor que está diante dele. Por isso, a Alma precisa habituar-se primeiro a contemplar as belas ocupações, depois as belas obras – não as produzidas pelas artes, mas pelos homens de bem – e, por fim, precisa habituar-se a contemplar as Almas daqueles que realizam belas obras. Mas como é possível sermos capazes de ver a Beleza da Alma boa? Volta o teu olhar para ti mesmo e olha. (...) Quando a tua interioridade estiver pura e não apresentar obstáculo algum à tua unificação; quando nada de exterior estiver misturado com o Homem Verdadeiro; quando te encontrares totalmente verdadeiro para com a tua natureza essencial e fores apenas essa luz verdadeira que não tem dimensão ou forma mensuráveis espacialmente, pois é uma luz absolutamente imensurável, maior que toda a medida e toda quantidade; quando te vires nesse 15 HOMERO, Ilíada, II, 140. 9 estado, então saberás que te tornaste uma potência viva e poderás confiar em ti mesmo;já não terás necessidade de alguém para te guiar, pois, embora ainda estando aqui, terás ascendido. Fixa então o teu olhar e vê. Esse é o único olho que vê a grande Beleza. (...) Portanto, todo aquele que queira contemplar a Deus e ao Belo, se torne antes divino e belo. Tornando a subir, chegará primeiro à Inteligência; verá que as Idéias são belas e reconhecerá que essa é a Beleza: que as Idéias são belas, pois elas provêm da Inteligência e do Ser. Para além da Beleza está o que chamamos de “natureza do Bem”, que irradia de si a Beleza.16 *** 4. GREGÓRIO DE NISSA (335-394) e a Linguagem, na obra Sobre a criação do homem, 8s.; 148C-149C17 Sendo o homem um ser vivo dotado de linguagem, era necessário que o instrumento do seu corpo fosse convenientemente adaptado para tal fim.18 Com efeito, observamos que os músicos 16 “A concepção plotiniana da beleza baseia-se na análise platônica contida em O banquete. Plotino descreve o movimento ascendente da alma, que se eleva e passa da beleza sensível à beleza inteligível, do diverso à unidade, até alcançar finalmente a visão indizível da beleza suprema. Nesse encontro, o sujeito se une ao objeto, o olhar se identifica com o que vê, a alma se torna ela mesma luz e beleza (...) Essa metafísica do Belo e da luz, na qual se percebe a influência de concepções orientais e de correntes esotéricas, marcará o pensamento de santo Agostinho e, através dele, o de toda a Idade Média. O neoplatonismo do Renascimento, particularmente graças aos trabalhos de Marsílio Ficino, irá revalorizar as grandes intuições plotinianas, cujos vestígios podem ser encontrados até o século XIX, no idealismo e no romantismo alemão.” – LICHTENSTEIN, Jacqueline. A pintura. Textos essenciais. Vol. 4: O belo. São Paulo: Ed. 34, 2004, p. 26-27. “Plotino (205-270 d.C.), nas Enéadas, também distingue a beleza das coisas materiais daquela que se contempla no mundo supra-sensível. Com os olhos naturais, segundo o filósofo neoplatônico, percebemos a beleza natural; com os olhos da alma, miramos as belezas mais elevadas e abandonamos o ilusório e enganoso terreno dos sentidos (Enéadas, I, 4). Com Plotino minimiza-se um pouco a idéia de participação e se acentua a dualidade entre o uno, percebido pela inteligência, e o múltiplo, identificado com as coisas materiais. Em Platão, o sensível é mímese do inteligível, porque o imita sem jamais igualá-lo, razão pela qual, em sua Teoria das Idéias, há mais dualidade do que propriamente dualismo entre o sensível e o inteligível, e mais gradação do que separação entre a beleza física e a espiritual. Em Plotino, o mundo material das belezas corporais parece relegado mais decisivamente a ser imagem, traço, sombra, espectro da verdadeira beleza. Por isso, o homem deve habituar sua alma à contemplação das belas ocupações, das belas obras, e especialmente das almas daqueles que realizam essas belas obras. De toda forma, para Plotino a beleza atrelada ao bem (ordem moral) é também um imperativo. Por isso, o símbolo maior da feiúra é a alma dissoluta e injusta, cheia de concupiscências e desequilíbrios – alma covarde, mesquinha, invejosa, infectada pelo deleite dos prazeres impuros das paixões corporais (Enéadas, I, 5). Com Plotino já está esboçada a tríade que marcará profundamente todo o pensamento medieval: Unum, Verum, Bonum. A beleza decorre da consideração desses transcendentais. Tais esferas de valor estavam integradas, completavam-se e não podiam separar-se. Por fim, para contemplar retamente a beleza – das criaturas e da natureza – haveria uma única exigência por parte da mente contemplativa (muito mais tarde definida belamente por Dante Alighieri [1265-1321]): um olhar claro e uma mente pura (“con occhio chiaro e con affetto puro”, Paraíso, Canto VI, 87).” – COSTA, Ricardo da. “Ramon Llull e a Beleza, boa forma natural da ordenação divina”. In: Revista Sofia 2006, número 1. Vitória: Edufes, 2006. 17 GREGÓRIO DE NISSA (335-394). Sobre a criação do homem. In: BOEHNER, Philotheus e GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. Desde as Origens até Nicolau de Cusa. Petrópolis: Editora Vozes, 2000, p. 104-105. 18 “Desde os pré-socráticos, muitos pensadores gregos equipararam „linguagem‟ e „razão‟: ser um „animal racional‟ significava, em grande parte, ser „um ente capaz de falar‟ e, ao falar, refletir o universo. Deste modo o universo podia falar, por assim dizer, de si mesmo, através do homem. A linguagem equivalia à estrutura da realidade. Desde os começos da „filosofia da linguagem‟, vemos até que ponto estão estreitamente unidas a questão da 10 produzem suas melodias consoante a natureza dos instrumentos: não usam a lira para tocar flauta, nem a flauta para tocar cítara; de modo semelhante, a conformação dos órgãos teria que adaptar- se à fala, para que esta se produzisse com toda a naturalidade através dos órgãos vocais. É por isso que o corpo foi dotado de mãos. Sem dúvida, os peritos nas artes da paz e da guerra poderiam nomear um sem-número de funções vitais dependentes do emprego das mãos, órgãos tão hábeis quanto úteis, mas a natureza deu-as ao corpo principalmente em atenção à linguagem. Pois se o homem estivesse privado de mãos, a forma do seu rosto deveria ser inteiramente semelhante a dos animais, a fim de poder desempenhar as funções nutritivas: terminaria em ponta, estreitando-se na parte do nariz; os lábios seriam salientes, calosos e grossos, para poderem arrancar a forragem; a língua situar-se-ia na parte interna da dentadura e seria diferentemente constituída, isto é, carnosa, resistente e áspera, para assistir aos dentes na trituração dos alimentos; ou então seria úmida e delgada nas bordas externas, como nos cães e outros animais carnívoros, nos quais ela se derrama pelos interstícios dos dentes agudos. Portanto, se o corpo não dispusesse de mãos, como poderia ele produzir a voz articulada, já que a formação dos órgãos da boca seria imprestável para a formação dos fonemas? Nada restaria ao homem senão balar19, ou berrar e rinchar, ou emitir bramidos à maneira dos bois e dos burros, ou produzir algum outro som semelhante aos dos brutos. Mas já que o corpo foi provido de mãos, a boca torna-se livre para servir de instrumento para a linguagem. Quem não vê que as mãos são uma propriedade característica da natureza dotada de linguagem, pois foi este meio que o Criador a tornou apta para o discurso? Tendo presenteado as suas criaturas com um dom divino, o Criador depositou em sua imagem as semelhanças dos seus próprios bens. Por isso, beneficiou-nos também, por pura bondade, com os demais bens. Do nous20 e do entendimento não se pode dizer que tenham sido propriamente doados, senão que foram “condoados”, ao proporcionar Deus à imagem o ornato de sua própria natureza. Todavia, em vista do caráter espiritual e incorpóreo do nous, este dom de nada lhe aproveitaria para a sociedade e o intercâmbio mútuo, a não ser que se encontrasse um meio de manifestar-lhe os movimentos. Era-lhe necessário, pois, tal instrumento orgânico, que lhe possibilitasse tanger os órgãos vocais à maneira de uma cítara, e expressar os movimentos internos pela articulação exata dos sons. Assim como o músico que, tendo perdido a própria voz em conseqüência de alguma enfermidade, deseja exibir a sua arte, faz executar os seus hinos por vozes estranhas, e passa a usar da flauta ou linguagem e a da realidade enquanto realidade. Não obstante as diferenças entre Heráclito e Parmênides, ambos concordavam, pelo menos, em considerar a linguagem como um aspecto da realidade: a „realidade falante‟.” – FERRATER MORA, José. Dicionário de Filosofia, op. cit., p. 240-241. 19 Balar – Soltar balidos (berros de ovelha). 20 “Nous (gr., mente). Razão e,em especial, a faculdade de apreensão intelectual, distinta do mero conhecimento empírico. Para Platão, o nous é a qualidade que permite apreender as formas. Aristóteles distinguiu o nous pathetikos (razão passiva) do nous mais elevado, o aspecto imortal da alma que está para a nous pathetikus como a forma está para a matéria.” – BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 269. “A alma ou nous humano é inseparável do corpo por ela habitado e informado, ainda mesmo que ele se decomponha em seus elementos. Como se vê, Gregório baseia-se na idéia de um paralelismo entre o nous humano e o nous divino” – BOEHNER, Philotheus e GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. Desde as Origens até Nicolau de Cusa. Petrópolis: Editora Vozes, 2000, p. 97. 11 do alaúde para manifestar a sua perícia, assim o espírito humano, este inventor de toda sorte de pensamentos, faz soar, qual músico habilidoso, os órgãos vivos de sua voz, servindo-se do seu timbre para exprimir seus pensamentos ocultos, já que não lhe é dado transmiti-los pela alma sozinha aos que não chegam ao conhecimento salvo pelas percepções corporais.21 *** 5. AGOSTINHO (354-430) e a Verdade: “Existo, logo penso” – 3 Extratos.22 – Tu, que desejas conhecer-te, sabes que existes? – Não sei. – És um ser simples ou composto? – Não sei. – Sabes que te moves? – Não sei. – Sabes que pensas? – Sei. – Logo, é verdade que pensas. – Certamente. Solilóquios, II, I, 1. Quem duvidará que vive, que recorda, que entende, que quer, que pensa, que sabe e que julga? Pois se duvida, vive; se está em dúvida acerca daquilo de que duvida, lembra-se (ou tem consciência disso); se duvida, sabe que está duvidando; se duvida, é porque quer ter certeza; se duvida, pensa; se duvida, sabe que não sabe; se duvida, julga que não se deve assentir temerariamente. E ainda que se pudesse duvidar de tudo o mais, disto não se pode duvidar. Caso contrário, já não haveria do que duvidar, o que tornaria impossível a própria dúvida. Da Trindade, X, 10; 981.23 21 “Através dos sentidos, o mundo externo age sobre o nous; pela linguagem, o nous age sobre o mundo externo. Pois é por meio dela que se manifesta a atividade espiritual interior. A linguagem serve para lançar pontes entre os homens, cujos espíritos não podem perceber senão o que lhes vem pelos sentidos.” – BOEHNER, Philotheus e GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. Desde as Origens até Nicolau de Cusa, op. cit., p. 100. 22 AGOSTINHO (354-430). Extratos. In: SARANYANA, Josep-Ignasi. La Filosofía Medieval. Desde sus orígenes patrísticos hasta la escolástica barroca. Pamplona: Eunsa, 2003, p. 75; BOEHNER, Philotheus e GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. Desde as Origens até Nicolau de Cusa, op. cit., p. 150; SANTO AGOSTINHO. O Livre Arbítrio. Braga: Faculdade de Filosofia, 1986, p. 87-88. Para Agostinho, “...a filosofia é o amor à sabedoria, e a sabedoria não é outra coisa que a contemplação e a posse da verdade: „O próprio nome da filosofia expressa uma grande coisa que deve ser amada com todo afeto, pois significa amor e desejo ardente da sabedoria‟ (AGOSTINHO, De moribus Ecclesiae catholicae, I, 21, 38). Definir a filosofia como a investigação ou estudo da verdade visando à posse da sabedoria não significa apenas um estudo especulativo, mas uma investigação que busca a vida feliz, a felicidade: „Por acaso pensas que a sabedoria é outra coisa que a verdade, na qual se contempla e se possui o sumo bem?‟ (AGOSTINHO, De libero arbitrio, II, 9, 26). Sabedoria e verdade, portanto, se identificam. Alcançá-las implica obter o sumo bem, possuir a felicidade. Por essa razão, a busca da sabedoria, da verdade, é também a busca da felicidade, que é o fim último a que tende todo homem, algo reconhecido por todos os filósofos, e no qual todos coincidiram: „Comumente todos os filósofos, com seus estudos, sua investigação, disputas e ações, buscam a vida feliz. Aqui está a única causa da filosofia. Penso que os filósofos têm isso em comum conosco‟ (AGOSTINHO, Sermo, CL, 4).” – In: RAMÓN GUERRERO, Rafael. Historia de la Filosofía Medieval. Madrid: Akal, 2002, p. 27-28. 23 “Tenha-se em mente que Santo Agostinho pretende mostrar a existência do mundo extramental (reduzido ao caso limite da existência do eu pensante) a partir da operação de pensar, que exige um sujeito. Descartes, por um método semelhante, pretende fundamentar a evidência de uma idéia que conduzirá à recuperação da realidade extramental. Agostinho parte da realidade extramental para mostrar, via pensamento, que sua não existência 12 Quem não existe, não pode se enganar. Por isso, se me engano, existo. Logo, se existo porque me engano, como posso enganar-me, crendo que existo, quando é certo que existo se me engano? Embora me engane, sou eu que me engano e, portanto, enquanto conheço que existo, não me engano. Segue-se também que, enquanto conheço que me conheço, não me engano. Como conheço que existo, assim conheço que conheço. A Cidade de Deus, XI, 26; 551, 6 s. Agostinho – Investiguemos, pois, se estás de acordo, por esta ordem: primeiramente, o modo como se torna evidente que Deus existe; depois, se d‟Ele procedem todas as coisas, precisamente enquanto são boas; finalmente, se a vontade livre deve ser contada entre as coisas boas. Averiguados estes pontos, ver-se-á claramente, segundo penso, se a vontade livre foi legitimamente dada ao homem. Assim, pois, e para partirmos de verdades perfeitamente evidentes, pergunto-te, antes de tudo, se tu mesmo existes. Ou receias porventura enganar-te a respeito desta pergunta, quando, se não existisses, de modo nenhum te poderias enganar? Evódio – Passa já a outras considerações. Agostinho – Por conseguinte, sendo evidente que existes, e que isso não seria para ti evidente de outra maneira, se não vivesses, também e evidente isto – que tu vives. Inteleccionas que estas duas realidades são evidentíssimas? Evódio – Intelecciono perfeitamente. Agostinho – Logo, é também evidente esta terceira realidade, a saber, que tu inteleccionas. Evódio – É evidente. Agostinho – Qual dentre essas três realidades se te afigura prevalecer? Evódio – A inteligência. Agostinho – Porque te parece isso? Evódio – Porque, sendo três essas realidades – existir, viver, inteleccionar – a pedra também existe, e o animal vive. Apesar disso, não é minha opinião que a pedra viva ou que o animal inteleccione. Em contraposição, é certíssimo não só que existe o ser que intelecciona, mas também que vive. Por isso, o ser em que se reúnem as três realidades, não hesito em o dijudiciar mais excelente que outro a que faltem as duas, ou uma que seja... O Livre Arbítrio, Livro II, III, 7.24 seria um absurdo (sum, ergo cogito). Descartes questiona sua existência para recuperá-la pela via do pensamento (cogito, ergo sum). Há, talvez, coincidência no método; mas os propósitos e pontos de partida são totalmente diferentes.” – SARANYANA, Josep-Ignasi. La Filosofía Medieval. Desde sus orígenes patrísticos hasta la escolástica barroca, op. cit., p. 75. 24 “Verdade é o êxito de um procedimento cognoscitivo, no qual se constrói uma correspondência – por mais difícil e esquiva que seja a verdade daquilo que oferecem os testemunhos de uma época. Segundo Aristóteles, „Negar aquilo que é e afirmar aquilo que não é, é falso, enquanto afirmar o que é e negar o que não é, é a verdade‟ (ARISTÓTELES, Metafísica, IV, 7, 1011 b 26 ss., V, 29, 1024 b, 25). Também é verdade que apreender a realidade a partir das fontes é um trabalho difícil. O historiador vive com esse problema diante de si (DUBY, Georges. A História Continua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor/Editora UFRJ, 1993,p. 34). Um conhecimento é verdadeiro na medida em que seu conteúdo concorda com o objeto intencionado (...) para os estudos históricos, o conceito de verdade deve ser um conceito relacional: quanto maior o número de comparações evidenciais mais preciso será o resultado. Esta teoria é também chamada teoria da verdade como correspondência (BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 401-404), e determina e precisa o conceito de verdade como aquilo que possui conformidade entre o intelecto e a coisa (HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 23). Embora para os historiadores não seja possível reconstituir completamente o evento (ou processo) analisado – como prega a doutrina da correspondência (BLAKE, Christopher. “Poderá a História Ser Objectiva?”. In: GARDINER, Patrick [org.]. Teorias da História. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, p. 416-417) –, a correspondência é obtida, ou boa parte da realidade é 13 6. BOÉCIO (c. 470-524) e seu encontro com a Filosofia, na Consolação da Filosofia.25 I.2. Enquanto meditava silenciosamente essas coisas comigo e confiava aos meus manuscritos minhas queixas lacrimosas, vi aparecer acima de mim uma mulher que inspirava respeito pelo seu porte: seus olhos estavam em flamas e revelavam uma clarividência sobre-humana, suas feições tinham cores vívidas e delas emanava uma força inexaurível. Ela parecia ter vivido tantos anos que não era possível que fosse do nosso tempo. Sua estatura era indiscernível: por vezes tinha o tamanho humano, outras parecia atingir o céu e, quando levantava a cabeça mais alto ainda, alcançava o vértice dos céus e desaparecia dos olhares humanos. Suas vestes eram tecidas de delicadíssimos fios, trabalhados minuciosamente e feitos de um material perfeito; ela revelou mais tarde ter sido ela própria quem teceu a veste.26 A poeira dos tempos, assim como acontece com o brilho das antigas pinturas, obscurecia um pouco seu esplendor. Embaixo de sua imagem estava escrito um Pi e em cima um Theta.27 E, entre essas duas letras, via- se uma escada cujos degraus ligavam o elemento inferior ao superior. No entanto, mãos violentas rasgaram sua veste e cada uma tomou um pedaço dela. Mas ela tinha livros na mão direita e um cetro na esquerda. Quando viu as Musas da poesia junto a mim, cantando versos de dor, ficou muito perturbada e, lançando-lhes olhares inflamados de cólera, disse: “Quem permitiu a estas impuras amantes do teatro aproximarem-se deste doente? Elas não só não podem remediar a sua dor como vão ainda acrescentar-lhe doces venenos (...) Afastai-vos, Sereias de cantos mortais, e deixai que eu e minhas próprias Musas curemos esse doente”. (...) Quanto a mim, estava com os olhos tão cheios de lágrimas que não podia discernir essa mulher que tinha tanta autoridade; calado, atirei-me ao solo e esperei em silêncio o que ela iria fazer. (...) I.4. E, fixando-me com toda a intensidade de seus olhos, ela me disse: “Mas és tu que outrora foste nutrido com nosso leite, com nosso alimento, que se exercia com uma força viril? E, no entanto, tínhamos te fornecido todas as armas necessárias para venceres, perdeste-as por tua culpa, e com elas vencerias! Tu me reconheces? Por que te calas? É a vergonha ou o abatimento? Oxalá fosse a vergonha! Mas não, é o abatimento que te oprime. (...) Ajudemo-lo. Comecemos por abrir seus olhos, que se cegaram pelas coisas humanas”. Tendo dito isso, ela enxugou com um pedaço de suas vestes os meus olhos inundados de lágrimas. I.5. Então se dissiparam as trevas noturnas, e, aos meus olhos, foi dada a capacidade de discernir novamente a luz. (...) (...) revivida, através da confrontação dos testemunhos da época.” – COSTA, Ricardo da. “Entre o Realismo e o Interpretismo: uma proposta alternativa de teoria histórica”, Internet, www.ricardocosta.com/pub/entre.htm 25 BOÉCIO (c. 470-524). A Consolação da Filosofia (trad. do latim por Willian Pi). São Paulo: Martins Fontes, 1998. 26 Os delicadíssimos fios de sua roupa são, metaforicamente, a capacidade dialética de argumentação da Filosofia. 27 Abreviaturas das palavras “Prática” e “Teoria”. “...o Theta era então a marca infamante impressa na carne dos condenados à morte, para distingui-los dos outros prisioneiros. Boécio sofreu essa queimadura. No símbolo que orna as vestes sagradas da Visitante, como não ver a ligação entre a condenação à morte e a ascensão espiritual de que ela é o ponto de partida?” – FUMAROLI, Marc. “Prefácio”. In: BOÉCIO. A Consolação da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. XXVI. 14 I.6. E dessa forma foram dissipadas as nuvens da tristeza; fui iluminado pela luz celeste e recebi o discernimento para contemplar aquela face. E, mal dirigi o olhar a ela, reconheci minha antiga nutriz, que desde a adolescência freqüentava a minha mente: era a Filosofia. (...) E ela disse: “Haveria eu de abandonar meu discípulo e não tomar também do fardo que suportas e da calúnia que te impuseram? Mas à Filosofia não é lícito deixar caminhando sozinho um discípulo seu. (...) Achas que esta é a primeira vez que a Sabedoria se confronta com os perigos e as más ações dos homens? E também não foi assim aos antigos, antes da época de nosso caro Platão, quando tivemos grandes embates com o perigo da estultícia? E na sua época não estava lá Sócrates que, vencendo uma morte injusta, foi levado por mim à imortalidade? (...) O que os levou a serem malvistos foi que, imbuídos de meus princípios morais, eles eram totalmente distintos da turba.” Portanto, não é de surpreender se neste oceano da vida somos perturbados por muitas tempestades, principalmente se desejamos afastar-nos dos homens maus. E seu número, embora grande, deve ser desprezado, pois eles não têm guia algum que os dirija, e ficam na ignorância, que os deixa ao capricho da Fortuna.28 (...) I.10. Quando acabei de gemer minhas mágoas, ela, com seu semblante tranqüilo e sem se deixar comover por minhas palavras, disse: “Bastou-me ver tua tristeza e tuas lágrimas para compreender que sofrias no exílio. Mas não poderia saber quão distante é o exílio, a menos que me narrasses. No entanto, não foste expulso de tua pátria, mas te desviaste dela. Ou, se preferes ser considerado como banido, foste tu mesmo que te baniste.” “De fato, não podias ser banido por ninguém. Se te lembrasses de tua verdadeira pátria, saberias então que ela não era, como a Atenas de outros tempos, governada pela opinião da maioria, mas por „um só mestre e um só rei‟29, que se alegra com o crescimento de seu povo, não com o banimento. De fato, deixar-se guiar e frear por ele e obedecer à sua justiça: nisso consiste a verdadeira liberdade.” (...) 28 Como veremos nos extratos seguintes, Boécio lega à Idade Média o tema da Fortuna – a fortuna imperatriz mundi. Entre os romanos, a Fortuna era uma divindade alegórica que representava o acaso. Presidia a todos os acontecimentos, distribuindo os bens e os males segundo sua cega vontade. Assumia diferentes designações: Fortuna Virilis (invocada pelos homens), Fortuna Muliebris (invocada pelas mulheres). No período imperial, uma estatueta de ouro da deusa presidia o dormitório dos imperadores. Outro bom exemplo é a coleção anônima de canções profanas denominada Carmina Burana (c. 1300, e provenientes da abadia bávara de Benedictbeuern) que, por tradição, transmite a obra do Arquipoeta (latino anônimo, †1165). Provavelmente da Renânia, patrocinado pelo arcebispo de Colônia e chanceler de Frederico Barba-Ruiva, Reinaldo de Dassel, a obra mais famosa do Arquipoeta, Confessio, expressou o brilho da Renascença cultural do século XII, com sua confiança na razão e na natureza.Nela sobressaem-se vigorosos impactos rítmicos, e, em duas canções (CB 16, CB 17) lamenta-se a pouca estabilidade da Fortuna, que, com seu sobe-e-desce, traz alegrias e desgraças aos homens: “I. O Fortuna / velut luna / statu variabilis / semper crescis / aut decrescis / vita detestabilis / nunc obdurat / et tunc curat / ludo mentis aciem / egestatem / potestatem / dissolvit ut glaciem.” (Ó Fortuna / tal a Lua / uma forma variável! / Sempre enchendo / Ou encolhendo / ó que vida execrável! / Pouco duras / quando curas / de nossa mente as mazelas / a pobreza / a riqueza / tu derretes ou congelas). “II. Sors immanis / et inanis / rota tu volubilis / status malus / vana salus / semper dissolubilis / obumbrata / et velata de / michi quoque niteris / nunc per ludum / dorsum nudum / fero tui sceleris.” (Bruta sorte / és de morte / tua roda é volúvel / benfazeja / malfazeja / toda sorte é dissolúvel / Disfarçada / boa fada / minha ruína sempre queres / simulando / estar brincando / minhas costas nuas feres). 29 HOMERO, Ilíada. 15 (...) I.13. Escondidas por negras nuvens As estrelas não podem emitir nenhuma luz. Se, na superfície do mar, o virulento Austro sacode as ondas30 Cuja transparência tem o aspecto do brilho do céu, Sob uma negra fusão de areia e lama extinguem-se seus fogos. A torrente que vai desbastando os cumes das altas montanhas Freqüentemente se choca contra um rochedo. Tu também, se queres, com uma luz límpida discernir a verdade, Renuncia à alegria, afasta os prazeres e também a dor. O espírito fica nebuloso e aprisionado quando está sob seu jogo.31 *** 7. PSEUDO-DIONISIO, O AREOPAGITA (séc. V) e a Dádiva da Luz, na Hierarquia Celeste, cap. I.32 Todo bom dom e toda dádiva perfeita vem de cima, descende do Pai das luzes.33 Mais ainda: a Luz procede do Pai, se difunde copiosamente sobre nós e, com seu poder unificador, nos atrai e nos leva para o alto, fazendo-nos retornar à deificante simplicidade una do Pai, congregando-nos n‟Ele, porque d‟Ele e para Ele são todas as coisas, como diz a Escritura.34 Assim, invoquemos a Jesus, Luz do Pai, “Luz verdadeira que, vindo a este mundo, ilumina todo homem”35, e é “por quem obtemos acesso”36 ao Pai, Luz, fonte de toda luz. Fixemos nosso olhar o melhor que pudermos nas luzes que os Padres nos transmitem através das Sagradas Escrituras; enquanto nos for possível, estudemos as hierarquias dos espíritos celestes, conforme a Sagrada Escritura nos revelou, de modo simbólico e anagógico.37 Centremos fixamente o olhar imaterial do entendimento na Luz mais transbordante que fundamental, que se origina no Pai, fonte de toda 30 Austro – Entre os antigos, o vento do sul. 31 Alteramos a metrificação do poema. Ademais, é fundamental levar em consideração que a poesia era, tanto para a tradição clássica quanto a medieval, a quinta essência da expressão inteligível, a própria manifestação da verdade. Por exemplo, Aristóteles considerou a capacidade cognoscitiva de imitação da Poética com um valor superior à imitação historiográfica (Poética, 6, 1448 b 5-14), o que equivalia colocar a Poesia na esfera da verdade filosófica. 32 PSEUDO-DIONISIO, O AREOPAGITA (séc. V). La Jerarquia Celeste. In: Obras Completas. Madrid: BAC, MCMXCV, p. 119-122. 33 A luz é portadora de inteligibilidade, tanto para os neoplatônicos quanto na Bíblia (Gn 1, 3-4; Ex 24, 17, por exemplo) 34 “Porque dele, e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente.” Rm 11, 36. 35 Jn 1, 9. 36 Rm 5, 2; Ef 2, 18; 3, 12. 37 “A Idade Média recebeu dos Padres da Igreja e dos doutores cristãos da Antigüidade um método de interpretação dos textos conhecido com o nome de doutrina dos quatro sentidos da Escritura. Sua elaboração responde a uma poderosa obrigação intelectual (...) Dentro dessa teoria se distingue o sentido histórico ou literal, que é o que tem o texto de maneira óbvia e evidente; remete a um fato ou a uma dada situação histórica. Não há nisso nenhum mistério. O sentido alegórico é a verdade religiosa geral ou o artigo da fé que o episódio anterior sugere ou anuncia. O terceiro sentido, que se chama moral ou tropológico, é o que pode tomar um texto quando o cristão tenta pôr na prática de sua vida a lição do texto. O quarto, o sentido anagógico, é o da mesma passagem, mas com respeito à vida futura, à que se seguirá à morte ou ao fim do mundo.” – PAUL, Jacques. Historia Intelectual del Occidente Medieval. Madrid: Catedra, 2003, p. 39-40. 16 Divindade. Por meio de figuras simbólicas, as bem-aventuradas hierarquias angélicas nos são ilustradas. Mas elevemos-nos sobre esta profusão luminosa até o puro Raio de Luz em si mesmo. Naturalmente, este Raio de Luz não perde nada de sua própria natureza, nem de sua íntima unidade. Mesmo quando atua e se multiplica exteriormente – como é próprio de sua bondade, para enobrecer e unificar os seres que estão sob sua providência38 – permanece interiormente estável em si mesmo, absolutamente firme em sua imóvel identidade. Dá a todos, na medida de suas forças, o poder de elevarem-se e unirem-se a Ele, de acordo com sua própria simplicidade. Contudo, este Raio divino não poderá nos iluminar se não estiver espiritualmente velado na variedade de figuras sagradas, acomodadas ao nosso modo natural e próprio, conforme a paternal providência de Deus. Por isso, nossa sagrada hierarquia foi estabelecida por disposição divina à imitação das hierarquias celestes, que não são deste mundo. Mas as hierarquias imateriais se revestiram de múltiplas figuras e formas materiais para que, conforme nossa maneira de ser, elevássemos-nos analogicamente desde estes signos sagrados até a compreensão das realidades espirituais, simples, inefáveis. Nós, homens, não poderíamos de modo algum elevar-nos pela via puramente espiritual para imitar e contemplar as hierarquias celestes sem a ajuda de meios materiais que nos guiassem, como requer nossa natureza. Qualquer pessoa que reflita se dá conta que a aparente formosura é sinal de mistérios sublimes; o bom odor que sentimos manifesta a iluminação intelectual39; as luzes materiais são imagem da copiosa efusão de luz imaterial; as diferentes disciplinas sagradas correspondem à imensa capacidade contemplativa da mente; as ordens e graus sagrados daqui de baixo simbolizam as harmoniosas relações do Reino de Deus; a recepção da Sagrada Eucaristia é sinal da participação em Jesus, e o mesmo ocorre com os seres do Céu que, de modo transcendente, recebem os dons, dados simbolicamente a nós. A fonte de perfeição espiritual nos proveu de imagens sensíveis que correspondem às realidades imateriais do Céu, pois cuida de nós e quer fazer-nos à sua semelhança. Deu-nos a conhecer as hierarquias celestes; instituiu o colégio ministerial de nossa própria hierarquia à imitação da celeste; enquanto é possível humanamente, em seu divino sacerdócio, revelou-nos tudo isso por meio das santas alegorias contidas nas Sagradas Escrituras, para elevar-nos espiritualmente desde o sensível e conceitual através de símbolos sagrados, até o simplíssimo cume daquelas hierarquias celestes. *** 38 Idéia extraída de Proclo (In Parm. 6, 231). 39 “Há muitas histórias sobre a força vital de fragrâncias: Demócrito teria sobrevivido três dias inalando o cheiro de pães quentes. Nos escritos sagrados de Mandeus fala-se de uma árvore da vida, no sul da Mesopotâmia, de que se diz: eu sou a videira da vida, a árvore do louvor, de cujo aroma qualquer um revive ao respirá-lo” – TER REEGEN, Jan. G. J. De pomo sive. De morte Aristotelis. Sobre a maçã ou Sobre a morte de Aristóteles (apres., introd. e notas de Jan G. J. Ter Reegen). Fortaleza: edUECE, 2006, p. 75, nota 18. 17 8. JOÃO ESCOTO ERÍGENA (c. 815-885), a Natureza, a Razão e a Autoridade, na Divisão da Natureza, Livro I.40 Mestre – Pensando muitasvezes e estudando com a maior diligência que posso a primeira e suprema divisão de todas as coisas que ou estão ao alcance de nossa mente ou a superam, as coisas que são e as que não são, veio-me à mente, como termo geral para designá-las, o grego physis e o latim natura.41 Por acaso pensas tu de outra maneira?42 Discípulo – Não. Estou totalmente de acordo, pois eu também, quando me ponho a raciocinar, penso que as coisas são assim. Mestre – Ficamos então de acordo que o nome de natureza é o nome geral tanto para as coisas que são como para as que não são? Discípulo – Sim, pois nada pode apresentar-se ao nosso pensamento a que não possa aplicar-se este nome. Mestre – Já que estamos de acordo que este termo é geral, dize-me, te rogo, como se faz a divisão em espécies e por diferenças43: ou, se preferes, procurarei eu fazer tal divisão e tu darás depois tua opinião a respeito. Discípulo – Começa então, pois estou impaciente para ouvir de ti a verdadeira opinião sobre esta matéria. Mestre – Penso que a divisão da natureza se faz por quatro diferenças em quatro espécies: a primeira é a divisão em natureza que cria e não é criada; a segunda, na que é criada e cria; a terceira, na que é criada e não cria; a quarta, na que não cria e não é criada. Mas nestas quatro há dois pares de opostos: a terceira se opõe à primeira, e a quarta à segunda; porém, a quarta fica relegada ao mundo dos impossíveis, visto que é de sua essência o não poder ser. Parece-te bem feita esta divisão ou não? Discípulo – Parece-me bem feita. Tenha, porém, a bondade de repeti-la, para que fique mais clara a oposição entre estas formas. Mestre – Creio que vês a oposição da terceira divisão com relação à primeira (a primeira, com efeito, é a que cria e não é criada: à qual, portanto, põe-se como contrária à que é criada e não 40 JOÃO ESCOTO ERIÚGENA (c. 815-885). A Divisão da Natureza. In: DE BONI, Luis Alberto. Filosofia Medieval – Textos. Porto Alegre: Edipucrs, 2000, p. 75-83. 41 O conceito de natureza como o princípio de vida (ou substância) e de movimento de todas as coisas existentes tal como se baseia Escoto Erígena está fundamentado em Aristóteles: “A natureza é o princípio e a causa do movimento e do repouso da coisa à qual ela inere primariamente e por si, não por acidente” (Física, II, 1, 192 b 20). A exclusão da acidentalidade distingue a obra da natureza da obra do homem. Contudo, a natureza não é somente causa, mas causa final (Física, II, 8, 199 b 32): é a tese do finalismo na natureza, que também se encontra na obra de Escoto Erígena. 42 “Natureza é, portanto, o termo mais apto para designar toda a realidade, compreendendo nele tanto as coisas que são como as que não são, o ser e o não-ser, tanto as que podem ser conhecidas pela mente humana como as que superam sua possibilidade de conhecê-las” – RAMÓN GUERRERO, Rafael. Historia de la Filosofía Medieval. Madrid: Akal, 2002, p. 99. 43 Espécie – conceito que é parte ou elemento de outro conceito, empregado por Platão, Aristóteles e na Isagoge de Porfírio: “Espécie é o que se situa sob o gênero e a que o gênero é atribuído essencialmente” (Isagoge, 4, 10). 18 cria), e a oposição da segunda com relação à quarta, já que a segunda é da que é criada e cria, à qual, por conseguinte, opõe-se em toda a linha à quarta, a da que não cria e nem é criada. Discípulo – Percebo-as claramente. Porém, deixa-me muito perplexo a quarta espécie que introduziste. Das outras três não me atreveria a apresentar qualquer dúvida, já que na primeira está designada, se não me engano, a causa de tudo quanto existe e de que não existe; na segunda, as causas primordiais; na terceira, aquelas coisas que se manifestam através de geração no tempo e no espaço. Por isso, penso que é necessário partir para uma discussão mais detalhada de cada espécie. Mestre – E pensas bem. Deixo, porém, à tua escolha determinar a ordem que devemos seguir no raciocínio, isto é, por qual espécie de natureza devemos começar. Discípulo – Parece-me que está fora de dúvida que devemos dizer da primeira, antes que de todas as demais, o que a luz que ilumina a toda mente se digne comunicar-nos. Mestre – Que assim seja. Antes, porém, creio que devemos dizer umas palavras a respeito desta que chamamos a divisão suprema e principal de todas, a saber, a divisão entre as coisas que são e as que não são. Discípulo – Parece-me muito razoável e prudente. Com efeito, não vejo outro princípio de onde deva partir nosso raciocínio, não somente porque se trata da primeira diferenciação, mas porque parece mais obscura que as demais, e de fato o é. Mestre – Pois bem, esta diferença fundamental que separa todas as coisas requer cinco modos de interpretação. O primeiro parece ser aquele pelo qual a razão nos persuade de que todas as coisas que caem sob a percepção dos sentidos corporais ou da inteligência se dizem com a verdade e racionalmente que são e, ao contrário, as que pela excelência de sua natureza escapam à percepção não só de todo o sentido, mas de todo entendimento e razão, parecem com razão que não são, o que não tem reta interpretação senão só em Deus e nas razões e essências de todas as coisas por ele criadas. E com razão, pois, como diz Dionísio Areopagita, é essência de todas as coisas aquele que é o único que verdadeiramente é, “pois – diz ele – o ser de todas as coisas é a divindade que está sobre o ser”.44 (...) Mestre – Assim, a verdadeira autoridade não se opõe à reta razão, nem a reta razão à verdadeira autoridade. Pois não há dúvida alguma que ambas dimanam de uma só fonte, a sabedoria divina.45 (...) Mestre – Que nenhuma autoridade te separe daquelas coisas que a razoável persuasão da reta contemplação te ensinou.46 (...) 44 PSEUDO-DIONISIO, O AREOPAGITA, Da hierarquia celeste, IV, 1. 45 “Vera enim auctoritas rectae rationi non obsistit, neque recta ratio verae auctoritati. Ambo siquidem ex uno fonte, divina videlicet sapientia, manare dubium non est.”, Da divisão da natureza, I, 66. In: RAMÓN GUERRERO, Rafael. Historia de la Filosofía Medieval, op. cit., p. 92. 46 “Nulla itaque auctoritas te terreat ab his quae rectae contemplationis rationabilis suasio edocet.”, Da divisão da natureza, I, 66. In: RAMÓN GUERRERO, Rafael. Historia de la Filosofía Medieval, op. cit., p. 92. 19 Mestre – Aprendemos que a razão é, por natureza, anterior, enquanto a autoridade é pelo tempo. Pois ainda que a natureza tenha sido criada simultaneamente com o tempo, a autoridade não começou a ser desde o início do tempo e da natureza. A razão, contudo, nasceu desde o princípio das coisas, com a natureza e o tempo. Discípulo – Isso nos ensina a própria razão. Pois a autoridade procede da reta razão, mas a razão nunca da autoridade. Toda autoridade que não seja dada como boa pela reta razão parece que está enferma. Em contrapartida, a verdadeira razão, por subsistir imutável e fundada nas virtudes, não precisa ser corroborada pela confirmação de nenhuma autoridade. Assim, nada me parece ser a verdadeira autoridade a não ser a verdade descoberta por virtude da razão, e consignada pelos santos padres em seus escritos para proveito da posteridade.47 (...) Mestre – Assim, devemos seguir a razão que investiga a verdade das coisas e que não é oprimida por nenhuma autoridade, para que ela manifeste publicamente e difunda aquilo que no âmbito de sua inquirição buscou com afã, e que, laboriosamente encontrou.48 *** 9. ANSELMO DE AOSTA (de Bec ou de Canterbury, 1033/34-1109) e o Argumento Ontológico, no Proslógio, II.49 Então, oh, Senhor, Tu que dás a inteligência da fé, dá-me, para que eu saiba, o que é necessário para entender que Tu existes tal como cremos, e que és o que cremos. E certamente cremos que Tu és algo maior do qual nada mais pode ser cogitado. Mas e se não existe tal natureza,como quando diz o insipiente50 em seu coração “não existe Deus”?51 47 “Mag.: Rationem priorem esse natura, auctoritatem vero tempore didicimus. Quamvis enim natura simul cum tempore creata sit, non tamen ab initio temporis atque naturae coepit esse auctoritas. Ratio vero cum natura ac tempore ex principio rerum orta est. Disc.: Et hoc ipsa ratio edocet. Auctoritas siquidem ex vera ratione processit, ratio vero nequaquam ex auctoritate. Omnis enim auctoritas, quae vera ratione non approbatur, infirma videtur esse. Vera autem ratio, quoniam suis virtutibus rata atque inmutabilis munitur, nullius auctoritatis astipulatione roborari indiget. Nil enim aliud mihi videtur esse vera auctoritas, nisi rationis virtute reperta veritas, et a sanctis Patribus ab posteritatis utilitatem litteris comendata.”, Da divisão da natureza, I, 69, In: RAMÓN GUERRERO, Rafael. Historia de la Filosofía Medieval, op. cit., p. 93. 48 “Nunc enim nobis ratio sequenda est, quae rerum veritatem investigat, nullaque auctoritate opprimitur, ne ea quae et studiose ratiocinantium ambitus inquirit et laboriose invenit, publice aperiat atque pronuntiet.”, Da divisão da natureza, I, 63, In: RAMÓN GUERRERO, Rafael. Historia de la Filosofía Medieval, op. cit., p. 93. 49 In: RAMÓN GUERRERO, Rafael. Historia de la Filosofía Medieval, op. cit., p. 127-128. “Eadmero (seu discípulo e biógrafo) nos fala de sua laboriosa e dramática gestação. Anselmo „encontrou nessa investigação, como ele mesmo contava, uma grande dificuldade. Esse pensamento lhe tirava o apetite e o sonho e, o que era ainda pior, lhe impedia de pôr a devida atenção nas vigílias e demais exercícios de piedade. Deu-se conta disso e, não tendo nada mais que uma idéia confusa do fim que perseguia, imaginou que essa idéia, objeto de suas preocupações, era uma tentação do demônio, e fez todos os esforços para tirá-la de seu espírito. Mas quanto mais tentava rechaçá-la, mas ela a perseguia. Uma noite em que não podia dormir, a graça de Deus brilhou em seu coração: o que buscava se manifestou à sua inteligência e encheu seu coração de uma alegria e um júbilo extraordinários‟ (Vita Anselmi 1, 26). Diz também Eadmero que é um „livro pequeno no tamanho, mas grande pelo peso dos pensamentos e de uma contemplação muito sutil; chamou-o Proslogium, porque nele se entretêm com Deus ou consigo mesmo.” – M. COLOMBÁS, García. La Tradición Benedictina. Ensayo histórico. Tomo tercero: Los siglos VIII-XI. Zamora: Ediciones Monte Casino, 1991, p. 561-562. 50 Em seu sentido literal: aquele que não tem sabedoria, que ignora. 51 Sl 13, 1. 20 No entanto, esse mesmo insipiente, quando me ouve dizer “algo maior do qual nada pode ser cogitado”, entende o que ouve, e o que entende está em seu intelecto, embora não entenda que isso exista. Pois uma coisa é a coisa estar no intelecto, e outra, entender que a coisa existe. Porque quando o pintor pensa antecipadamente o que tem de fazer, certamente o tem no intelecto, mas ainda não entende que exista o que ainda não fez. Contudo, após pintar, ele a tem no intelecto, e entende que existe o que fez. Portanto, o insipiente deve convencer-se que, ao menos em seu intelecto, existe algo maior do qual nada pode ser cogitado, porque, quando ouve isso, entende e, tudo o que se entende, está no intelecto.52 No entanto, aquilo maior do qual nada pode ser cogitado não pode existir somente no intelecto, pois se só existe no intelecto, pode pensar-se algo que seja maior e que também exista na realidade.53 Assim, se aquilo maior do qual nada pode ser cogitado só existe no intelecto, este mesmo ser, do qual nada maior pode ser cogitado, tornar-se-ia o ser do qual é possível pensar algo maior, mas certamente isso é absurdo.54 Portanto, existe, sem dúvida, algo maior do qual nada pode ser cogitado, tanto no intelecto quanto na realidade.55 52 Em outras palavras: uma coisa é maior se existente na inteligência e na realidade do que uma coisa existente apenas na inteligência. “O que deve ser considerado em primeiro lugar é que Anselmo afirma a existência da idéia de Deus inclusive no insipiente, o ignorante: até ele tem a idéia de Deus para poder negar sua existência, pois não poderia negá-la se carecesse do conceito de Deus ou se não compreendesse o que significa essa idéia” – RAMÓN GUERRERO, Rafael. Historia de la Filosofía Medieval, op. cit., p. 128. 53 Ou seja, uma coisa é certamente maior se é pensada como existente na inteligência e na realidade do que somente na inteligência. 54 Outra tradução dessa frase: “Se, portanto, „o ser do qual não é possível pensar nada maior‟ existisse somente na inteligência, este mesmo ser, do qual não se pode pensar nada maior, tornar-se-ia o ser do qual é possível, ao contrário, pensar algo maior: o que, certamente, é absurdo.” – SANTO ANSELMO DE CANTUÁRIA. “Proslógio” (trad. e notas de Angelo Ricci). Os Pensadores VII. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 108. 55 “Ergo, Domine, qui das fidei intellectum, da mihi, ut quantum scis expedire intelligam, quia es sicut credimus, et hoc es quod credimus. Et quidem credimus te esse aliquid quo nihil maius cogitari potest. An ergo non est aliqua talis natura, quia dixit insipiens in corde suo: non est Deus? Sed certe idem ipse insipiens, cum audit hoc ipsum quod dico: aliquid quo maius nihil cogitari potest, intelligit quod audit; et quo intelligit in intellectu eius est, etiam si nom intelligat illud esse. Aliud enim est rem esse in intellectu, aliud intelligere rem esse. Nam cum pictor precogitat quae facturus est, habet quidem in intellectu, sed nondum intelligit esse quod nondum fecit. Cum vero iam pinxit, et habet in intellectu et intelligit esse quod iam fecit. Convincitur ergo etim insipiens esse vel in intellectu aliquid quo nihil maius cogitari potest, quia hoc cum audit intelligit, et quidquid intelligitur, in intellectu est. Et certe id quo maius cogitari nequit, non potest esse in solo intellectu. Si enim vel in solo intellectu est, potest cogitari esse in re, quod maius est. Si ergo id quo maius cogitari nom potest, est in solo intellectu: id ipsum quo maius cogitari non potest, est quo maius cogitari potest. Sed certe hoc esse non potest. Existit ergo procul dubio aliquid quo maius cogitari non valet, et in intellectu et in re”, Proslogium, cap. II. In: RAMÓN GUERRERO, Rafael. Historia de la Filosofía Medieval, op. cit., p. 127-128. “O problema que está implicado no argumento anselmiano é o de saber se se pode pensar o absoluto como existente ou não. Quem aceite a presença de Deus na mente humana sem a necessidade da experiência; quem afirme nela uma presença do inteligível, não mediatizada pelo sensível; quem admita, em suma, uma teoria platônica do conhecimento, na qual se mantenha o inatismo das idéias, aceitará a prova ontológica, que não requer a experiência para nada. Pelo contrário, quem sustente que o homem só alcança o inteligível a partir do sensível, quem só reconheça como único ponto de partida do conhecimento humano os dados da experiência que nos chegam através do conhecimento sensível, quem, em definitivo, seja aristotélico em sua teoria do conhecimento, negará a validez do argumento, porque a idéia de Deus só será obtida enquanto se demonstre sua existência a partir da experiência dos distintos aspectos que o mundo limitado e finito oferece. Esta dupla alternativa de aceitação ou 21 10. PEDRO ABELARDO (1079-1142), e a importância da Linguagem, na Lógica para principiantes56 Para aqueles dentre nós que se introduzem na lógica, falemos previamente um pouco a respeito de sua característica própria, começando pelo gênero a que pertence, isto é, a filosofia. Ora, Boécio não chama de filosofia qualquer ciência, mas apenas a que se ocupa das coisas mais elevadas; de fato, não chamamos de filósofos a quaisquer pessoas dotadas de conhecimento, mas apenas
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