Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
INSTITUTO FEDERAL DO PARANÁ MARILIZE ALIPIO DOS SANTOS NO ENTRELAÇAR DOS FIOS DE CIPÓ: A CONSTRUÇÃO E RECONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES CULTURAIS NO MERCADO MUNICIPAL DO ARTESANATO DE PARANAGUÁ PARANAGUÁ 2022 MARILIZE ALIPIO DOS SANTOS NO ENTRELAÇAR DOS FIOS DE CIPÓ: A CONSTRUÇÃO E RECONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES CULTURAIS NO MERCADO MUNICIPAL DO ARTESANATO DE PARANAGUÁ Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso Superior de Licenciatura em Ciências Sociais, do Instituto Federal do Paraná – IFPR – Campus Paranaguá, como requisito parcial para obtenção do título de Licenciada em Ciências Sociais. Orientadora: Profa. Dra. Patricia Martins PARANAGUÁ 2022 Dedico o presente trabalho a minha família, em especial à minha mãe, que foi a minha maior inspiração. AGRADECIMENTOS Primeiramente agradeço a Deus, por estar comigo em todos os momentos, me mantendo forte e corajosa, sem me apavorar e nem desanimar. Agradeço a minha família, pelo apoio e compreensão nos momentos que eu não pude estar presente. Agradeço as minhas amigas, amigos e colegas de turma, que tornaram mais leves todas as angústias sentidas durante os anos de graduação, bem como o apoio durante a pandemia de Covid-19, principalmente psicológico. Agradeço às professoras e professores, que me incentivaram, que acreditaram que seria possível concluir o curso, mesmo quando nem eu acreditava e também ofereceram apoio nos momentos críticos. Agradeço à minha orientadora, que contribuiu para que esse trabalho saísse do projeto e se tornasse efetivamente uma pesquisa. Agradeço a Capes, por me permitir fazer parte do Programa de Iniciação à Docência (PIBID) e o Programa Residência Pedagógica, o que proporcionou momentos de observações e regências das aulas, podendo assim participar do cotidiano escolar ainda na graduação, o que contribuiu para eu seguir em busca da conclusão da licenciatura. Agradeço ao Instituto Federal do Paraná – Campus Paranaguá, por ter me contemplado com o Programa de Assistência Estudantil (Pace), o que proporcionou custeio de parte das despesas com transporte e alimentação. Também quero agradecer a todas as artesãs e artesãos que contribuem para construção e reconstrução das Identidades Culturais, em especial as artesãs do Mercado Municipal do Artesanato de Paranaguá, que aderiram a ideia da presente pesquisa, o que me permitiu conhecer a fundo o universo das cestarias de cipó e seus significados. Em suma, agradeço todas essas interações, aprendizados e trocas de conhecimentos ao longo desse período, pois contribuíram para transformações na minha própria identidade e resultaram na permanência e o êxito de concluir o curso. SANTOS, Marilize Alipio. No entrelaçar dos fios de cipó: A construção e reconstrução das identidades culturais no Mercado Municipal do Artesanato de Paranaguá. 2022. Trabalho de conclusão de curso de graduação em Licenciatura em Ciências Sociais, Instituto Federal do Paraná, Campus Paranaguá – IFPR, 2022. RESUMO A abordagem da presente pesquisa ocorre sobre a formação das identidades culturais, através da realização da atividade artesanal frente ao mundo globalizado. Propõe-se analisar como as cestarias de cipó, expostas e comercializadas no Mercado Municipal do Artesanato de Paranaguá, estão relacionadas com a construção e reconstrução das identidades culturais. A discussão será feita a partir da análise do que se define como sendo atividade artesanal e artesanato, construção e reconstrução das identidades culturais, incluindo os processos de transformações das cestarias de cipó frente ao mundo globalizado. Para alcançar os objetivos propostos, a pesquisa adotou como metodologia a pesquisa bibliográfica, pesquisa documental e pesquisa qualitativa. Para tal, foi analisado o que se compreende como sendo a atividade artesanal e artesanato, incluso nessa abordagem as questões de envolvimento da relação das cestarias, e definido o processo de construção e reconstrução das identidades culturais, através das cestarias de cipó, para ir de encontro com o que as próprias artesãs narram sobre suas categorias nativas. Busca-se responder a seguinte indagação: como se dá a construção das identidades culturais através das cestarias de cipó frente ao mundo globalizado? Os resultados demonstram que objetos feitos artesanalmente trazem consigo a criatividade artesãs e artesãos, a influência do meio social e período histórico que ele está inserido e a herança dos povos que constituem a cultura. E, as cestarias de cipó como sendo o produto da atividade artesanal, constitui-se como representação da identidade cultural. Concluiu-se até aqui que, as identidades culturais se constroem e se reconstroem através das cestarias de cipó frente ao mundo globalizado, quando artesãs e artesãos interagem com diferentes culturas e grupos, e interiorizam alguns de seus elementos, e dão sentido a essas mudanças. E, as expressam através das cestarias de cipó, os quais são compartilhados pelo grupo, sendo esse o motivo que os mantém unidos enquanto grupo e com uma identidade própria. Diante disso, as transformações que as cestarias de cipó passam frente ao mundo globalizado, atendem ao período histórico e ao contexto social que estão inseridas, pois, assim como as culturas, as identidades culturais não são algo que está cristalizado no tempo, mas sim em constante transformação diante das interações, e sendo elas suas representações, também acompanham essas transformações, caso contrário perderiam seu significado. Palavras-chave: Caiçara; Cestarias; Cipozeiras; Cultural; Identidade. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 Mercado Municipal do Artesanato de Paranaguá .................................................... 10 Figura 2 Mãe do cipó Imbé na copa da árvore ....................................................................... 21 Figura 3 Artesã Suely Alípio fazendo a seleção dos fios de cipó Imbé ................................. 21 Figura 4 Artesãs Fátima Rocha e Suely Alípio extraindo os fios de cipó Imbé ..................... 22 Figura 5 Artesãs com os fios de cipó Imbé prontos para serem transportados ...................... 23 Figura 6 Cestinhas, chapeuzinho e lequinhos com cipó Imbé beneficiado ............................ 24 Figura 7 Artesãs Suely Alípio e Fátima Rocha retirando a casca externa que envolve o fio de cipó Imbé .................................................................................................................................. 25 Figura 8 Artesã Suely Alípio passando o cipó Imbé na raspadeira ........................................ 26 Figura 9 Balaio, cesta e vaso de cipó Imbé com casca ........................................................... 28 Figura 10 Cestarias de cipó Imbé expostas no Mercado Municipal do Artesanato de Paranaguá.................................................................................................................................. 29 Figura 11 Artesã Fátima Rocha tecendo um cesto com fundo de madeira ............................ 43 Figura 12 Cestaria de cipó Imbé com acabamento em verniz ................................................ 44 Figura 13 Cestarias em cipó Imbé sem verniz ........................................................................ 45 Figura 14 Samburá de cipó Imbé ............................................................................................ 45 Figura 15 Bolsa confeccionada com base decipó e alças de fio industrializado ................... 46 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS BCA Base Conceitual do Artesanato Brasileiro CNA Comissão Nacional do Artesanato IBGE Instituto Brasileiro de Geografia Estatística IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional MAE Museu de Arqueologia e Etnologia PAB Programa do Artesanato Brasileiro SENAR Serviço Nacional de Aprendizagem Rural SICAB Sistema de Informações Cadastrais do Artesanato Brasileiro UFMA Universidade Federal do Maranhão UFPR Universidade Federal do Paraná SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 8 CAPÍTULO 1: ATIVIDADE ARTESANAL E ARTESANATO ...................................... 13 1.1 SABERES ARTESANAIS NA CONFECÇÃO DE CESTARIAS DE CIPÓ................ 16 1.2 USO DA MATÉRIA-PRIMA E A RELAÇÃO COM O AMBIENTE .......................... 18 1.3 BENEFICIAMENTO DA MATÉRIA-PRIMA ............................................................. 23 1.4 CONFECÇÃO DAS CESTARIAS DE CIPÓ ................................................................ 27 1.5 COMERCIALIZAÇÃO DAS CESTARIAS DE CIPÓ .................................................. 28 CAPÍTULO 2: CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES CULTURAIS ............................ 30 2.1 CULTURA ...................................................................................................................... 30 2.2 IDENTIDADE ................................................................................................................ 36 2.3 IDENTIDADE CULTURAL .......................................................................................... 38 CAPÍTULO 3: TRANSFORMAÇÕES DO MUNDO GLOBALIZADO ....................... 40 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 47 REFERÊNCIAS...................................................................................................................... 49 ANEXO I - QUESTIONÁRIO .............................................................................................. 52 ANEXO II - ROTEIRO DE ENTREVISTA GRAVADAS EM ÁUDIO .......................... 53 8 INTRODUÇÃO Objetos feitos a mão sempre estiveram presentes na minha vida, matérias-primas e objetos artesanais, ainda se misturam com os móveis da casa. Minha mãe Suely Alipio e sua amiga Fátima Rocha, exercem a atividade artesanal há cerca de vinte anos, na confecção de cestarias de cipó, as quais elas expõem e comercializam no Mercado Municipal do Artesanato de Paranaguá. E, por quinze anos, também tive como fonte de renda os trabalhos manuais. Mesmo tendo essa certa familiaridade com a atividade artesanal e com o Mercado Municipal do Artesanato, nunca os tinha visto com um olhar de pesquisadora. O tema da presente pesquisa, surgiu no primeiro ano da graduação, após uma aula da disciplina de Antropologia, ministrada pela professora Francieli Lisboa Almeida, a qual se constituiu em uma saída à campo, com uma visita guiada ao Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE – UFPR)1. O museu estava com diversas exposições, dentre elas uma exposição de longa duração, intitulada como: “Assim vivem os homens”. Nessa exposição, vi expostos objetos artesanais, os quais alguns eram iguais aos que minha mãe e sua amiga produzem e comercializam no Mercado Municipal do Artesanato de Paranaguá. Diante disso, fui em busca de descobrir a origem de tais objetos. Assim, no guia da exposição, que é distribuído na entrada do museu, pude consultar a origem dos objetos que compõem o acervo dessa exposição. E, descobri que o acervo é composto por objetos que representam a cultura popular, onde a utilização destes objetos ocorrem na pesca e no cotidiano dos caiçaras de São Paulo e principalmente do litoral do Paraná. Nesse contexto, decidi que o meu objeto de pesquisa seria as cestarias de cipó, pois, indaguei-me sobre qual era a relação que as cestarias de cipó, que são comercializadas no Mercado Municipal do Artesanato de Paranaguá têm com a cultura local. E, daquele dia em diante, comecei a trabalhar na presente pesquisa. A presente pesquisa intitula-se como: “No Entrelaçar dos Fios de Cipó: A Construção e Reconstrução das Identidades Culturais no Mercado Municipal do Artesanato de Paranaguá” e ocorre sobre a análise da formação das identidades culturais através do trabalho artesanal frente ao mundo globalizado. Com esse contexto, busca-se responder a seguinte indagação: como se dá a construção e reconstrução das identidades culturais através das cestarias de cipó frente ao mundo globalizado? 1 Museu de Arqueologia e Etnologia, gerido pela Universidade Federal do Paraná. 9 Diante dessa indagação, a realização da presente pesquisa justifica-se por diferentes motivos, sendo eles: Mesmo diante do fato de que a partir do século XX, muitos objetos utilizados para atender as necessidades cotidianas deixaram de ser produzidos de modo artesanal, por povos nativos das localidades, e passaram a ser feitos por máquinas, dentro das indústrias. E, que esse novo modo de produzir objetos tenha impactado a vida cotidiana. E, que esse novo modo de produzir tenha se intensificado com a expansão em escala mundial da industrialização dos produtos, devido a globalização, que de acordo com Giddens (1991, 60), pode ser compreendida como a “intensificação das relações sociais em escala mundial, que ligam localidades distantes”. As artesãs e artesãos continuam confeccionando objetos artesanais, os quais se fazem presentes na sociedade contemporânea. Um exemplo dessa afirmativa, são os objetos artesanais que continuam sendo confeccionadas e expostos para comercialização no município de Paranaguá, no Mercado Municipal do Artesanato. O município de Paranaguá está localizado na região litorânea do Estado do Paraná, sua fundação é datada no ano de 1648, quando o Estado do Paraná ainda não era emancipado do Estado de São Paulo. É o município mais antigo do Estado, sendo considerado como a mãe do Paraná. O Mercado Municipal do Artesanato (lócus desta pesquisa) ilustrado na figura 1, está localizado no Centro Histórico do município, às margens do rio Itiberê. Sua construção é datada em 1914. Seu prédio, assim como os que lhe rodeiam, foi tombado como Patrimônio Cultural Brasileiro em 2009, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)2, pois apresenta características arquitetônicas de construções históricas do século XVIII e XIX. Sua primeira funcionalidade foi como Mercado do Peixe, onde seu funcionamento ocorria durante a madrugada e atendia como escoamento do produto da pesca dos pescadores artesanais locais. Posteriormente o prédio foi restaurado, e em 1983 passou então a ser utilizado como Mercado Municipal do Artesanato. 2 O IPHAN foi criado em 13 de janeiro de 1937, por meio da Lei nº 378, é uma autarquia federal vinculada ao Ministério do Turismo que responde pela preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro. Cabe ao Iphan proteger e promover os bens culturais do país, assegurando sua permanência e usufruto para as gerações presentes e futuras. (IPHAN 2022) 10 Figura 1 Mercado Municipal do Artesanato de Paranaguá Fonte: (IPHAN 2022) Segundo a Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Paranaguá, que é responsável pela gestão do Mercado Municipal do Artesanato, atualmente esse imóvel é dividido em nove espaços, os quais são ocupados por artesãos e artesãs locais, que trazem em seusobjetos a representação da cultura parnanguara, pois, são confeccionados com técnicas ancestrais de povos e comunidades tradicionais que contribuíram para o povoamento do município. Nesse sentido, a presente pesquisa também se justifica por poder contribuir como material de divulgação desse espaço, e seus objetos que são produzidos de modo artesanal, difundir sua importância cultural; servir como material didático, para que docentes discutam em suas aulas as identidades culturais locais; cumprir com o que sugere a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)3, em seu Art. 43, inciso IV, sobre a finalidade da educação superior, que é “promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos e técnicos que constituem patrimônio da humanidade e comunicar o saber através do ensino, de publicações ou de outras formas de comunicação” (BRASIL 1996). Bem como, contribuir para o desenvolvimento de novas pesquisas sobre a temática. Como objetivo geral, a pesquisa propõe-se analisar: como as cestarias de cipó expostas e comercializadas no Mercado Municipal do Artesanato de Paranaguá estão relacionadas com a construção e reconstrução das identidades culturais. Para isso, foi preciso traçar os seguintes objetivos específicos, sendo eles: analisar o que se define como sendo atividade artesanal e artesanato; discutir como ocorre a construção e reconstrução das identidades culturais através 3 LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, sancionada através da Lei n° 9.394/1996. (BRASIL 1996) 11 das cestarias de cipó e compreender os processos de transformação das identidades culturais e suas representações frente ao mundo globalizado. Para alcançar os objetivos propostos, em um primeiro momento a presente pesquisa adotou como metodologia a pesquisa bibliográfica e pesquisa documental. Para tal, foi analisado o que se compreende como sendo a atividade artesanal e artesanato, incluso nessa abordagem as questões de envolvimento da relação das cestarias e definido o processo de construção e reconstrução das identidades culturais frente ao mundo globalizado, para ir de encontro com que as próprias artesãs nos dizem sobre suas categorias nativas. Em um segundo momento, a pesquisa adotou como metodologia a pesquisa qualitativa, com observação participante e entrevistas semiestruturadas com questões em aberto. Elegeu-se para a pesquisa um dos espaços do Mercado Municipal do Artesanato de Paranaguá, que é ocupado há cerca de dezessete anos pelas duas artesãs, Fátima Rocha de 67 anos e Suely Alipio4 de 68 anos, que expõem e comercializam cestarias de cipó. Para conhecer e fazer o levantamento das cestarias de cipó que são comercializadas no local, foram aplicados questionários, (Anexo I) e foram realizados registros fotográficos. Em um terceiro momento, foi feita uma pesquisa de campo, realizada em 8 de março de 2022, no distrito de Alexandra5, local esse que as interlocutoras da presente pesquisa extraem a matéria-prima. Para tal, foi realizada observação participante, desde a extração da matéria- prima até a transformação em produto acabado para a comercialização, registros fotográficos dos processos e entrevistas semiestruturadas (Anexo II) gravadas em áudio, onde as artesãs puderam narrar suas experiências, dificuldades enfrentadas para obter a matéria-prima e as diversas técnicas que são aplicadas em seu saber nativo. Posteriormente, fez-se o desenvolvimento da pesquisa, com o tratamento dos dados, análise dos questionários aplicados e entrevistas feitas, revisão das fontes de fundamentação teórica, transcrição das narrativas, escolha das fotos que documentam a presente pesquisa – nesse ponto, vale ressaltar que as fotos foram escolhidas conjuntamente com as artesãs, para 4 Representante dos cipozeiros e cipozeiras do Paraná, na composição 2021/2023, junto ao Conselho Estadual de Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais do Estado do Paraná, que foi instituído pela Lei 17.425/2012, de 18 de dezembro de 2012, que “tem por finalidade possibilitar a participação popular nas discussões e auxílio na implementação e fiscalização das políticas públicas para o desenvolvimento sustentável dos povos indígenas e comunidades tradicionais que se utilizem da autodefinição ou autoatribuição” (PARANÁ 2012) 5 Alexandra é um distrito localizado no litoral do Paraná, pertencente à cidade de Paranaguá. (PARANAGUÁ 2022) 12 que melhor representassem o seu saber fazer –, e pôr fim fez-se às considerações finais da presente pesquisa. O texto organiza-se em três capítulos e considerações finais, construídos a partir de fundamentação teórica, análise documental, observação participante, registros fotográficos e narrativas das artesãs. O primeiro capítulo intitula-se como: “Atividade Artesanal e Artesanato”. Neste primeiro capítulo analisa-se o que se compreende como sendo a atividade artesanal e artesanato, seus produtores, suas categorias, seu produto e sua importância para a construção e reconstrução das identidades culturais. Para tal, utiliza-se das perspectivas e conceituações de diferentes autores, como por exemplo: Paulo Keller, Ricardo Lima, Néstor Canclini e Antonio Carlos Diegues. O segundo capítulo intitula-se como: “Construção das Identidades Culturais". Com esse capítulo responde-se o seguinte questionamento: como se dá a construção da identidade cultural através das cestarias de cipó? Para isso, parte-se de algumas definições do que se conceitua como sendo Cultura, Identidade e por fim Identidade cultural. Para tal, faz-se um compilado conceitual de diferentes autores, como por exemplo: Stuart Hall, Marilena Chauí, Antonio Arantes, Roque Laraia e Anthony Giddens. O terceiro capítulo intitula-se como: “Transformações do mundo globalizado”. Nesse último capítulo, compreende-se os processos de transformação das identidades culturais e suas representações frente ao mundo globalizado. Para tal, utilizou-se das contribuições dos autores Stuart Hall, Anthony Giddens e Antonio Carlos Diegues. E por fim, apresenta-se as considerações finais a respeito dos resultados da presente pesquisa. 13 CAPÍTULO 1: ATIVIDADE ARTESANAL E ARTESANATO Inicialmente, na presente pesquisa, objetiva-se esclarecer conceitos iniciais acerca do tema. Com foco nisso, este primeiro capítulo busca analisar o que se compreende como sendo a atividade artesanal e artesanato, seus produtores, suas categorias, seu produto e sua importância para a construção e reconstrução das identidades culturais. O capítulo é construído a partir de fundamentação teórica, observação participante, registros fotográficos e narrativas das artesãs, que produzem de modo artesanal cestarias de cipó e as comercializam no Mercado Municipal do Artesanato de Paranaguá. Partindo desses pontos, será possível avançar nas próximas discussões acerca do tema que se sucedem nos próximos capítulos. A atividade artesanal se faz presente no processo histórico percorrido pela humanidade, é um fenômeno social, que remete tanto à tradição quanto à contemporaneidade, é uma das mais importantes da indústria criativa. Sua história no mundo teve seu início junto com a própria história do homem, surgindo da necessidade de se produzir bens de utilidades e de uso rotineiro. Diante disso, os produtos resultantes dessa atividade artesanal são o que hoje se conceitua como sendo artesanato. Lima (2011), em uma entrevista concedida ao professor Dr. Paulo Keller, do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMA6, no Museu de Folclore Edison Carneiro7, reforçou essa afirmativa, defendendo que tudo que é feito pelas mãos sem o auxílio de máquinas, é definido como sendo artesanato, sendo essa oposição que difere do produto industrial. E ressaltouque, o artesanato surgiu da necessidade de se produzir bens de utilidades e de uso rotineiro. Sua história teve início no mundo com a própria história do homem. Toda a antiguidade foi assim construída, pois por um longo período de tempo esse foi o único modo de se confeccionar objetos. Até a Revolução Industrial, tudo que já foi produzido pela humanidade foi feito à mão. Através do artesanato, o homem se satisfaz e ainda satisfaz demandas essenciais do seu meio social e econômico. E essa criação, expressa a capacidade criativa e produtiva do homem como forma de trabalho. Nesse sentido, Canclini (1983), enfatiza que na trajetória que o artesanato percorre desde sua produção até sua circulação e consumo, estão presentes diversas dimensões, as quais 6 Universidade Federal do Maranhão. 7 O Museu de Folclore Edison Carneiro, criado em 1968, soma hoje cerca de 17 mil objetos, que alimentam a exposição de longa duração, Os objetos e suas narrativas (no momento fechada para reforma em seu espaço), e as exposições temporárias da Galeria Mestre Vitalino. (IPHAN 2022) 14 suas funções podem ser examinadas. Tais como: “função econômica dos fatos culturais: serem instrumentos para a reprodução social; a função política: lutar pela hegemonia; as funções psicossociais: construir o consenso e a identidade”. (CANCLINI 1983) Diante disso, no Brasil, cada região possui seu artesanato típico e de acordo com a vida de suas comunidades locais, isso se dá ao fato do país possuir uma grande extensão territorial e ser heterogêneo, o qual proporciona múltiplas manifestações culturais. Segundo Gomes (2021), a origem do artesanato no Brasil “sempre esteve ligada à subsistência das tradições, fato muito importante para a consolidação de uma identidade cultural” (GOMES 2021). E as cestarias seriam uma das primeiras manifestações artesanais no Brasil produzidas primeiramente pelos povos indígenas. A partir disso, na contemporaneidade a atividade artesanal de confecção de cestarias, além de continuar sendo confeccionadas pelas comunidades indígenas, também é desenvolvida pelas artesãs e artesãos, que trazem esse saber fazer artesanal dessa herança cultural tradicional. Nesse sentido Keller (2019), define o que se entende por artesão ou artesã: “O artesão ou artesã pode entender-se como uma categoria cultural e de caráter simbólico, pois é definida desde as narrações tradicionais e locais. ” (KELLER 2019) Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), no ano de 2019 haviam cerca de 10 milhões de pessoas exercendo a atividade artesanal no Brasil. Diante desse fato, vale ressaltar que o país sempre teve uma grande quantidade de trabalhadores identificados como artesãs e artesãos. Mas, somente em 1991, foram criadas algumas políticas públicas para que atendesse suas demandas. Uma das políticas públicas desenvolvidas para atender parte de suas demandas, foi o Programa do Artesanato Brasileiro (PAB)8. Criado em 1991, e ativo desde então, o programa tem como objetivo promover medidas que valorizem o trabalho das artesãs e artesãos. Nesse sentido, embora o PAB tenha atendido parte das demandas das artesãs e artesãos, a atividade artesanal ainda não era reconhecida como profissão. Esse fato ocorreu somente no ano de 2015, quando a então presidenta da República Dilma Rousseff sancionou a Lei n° 13.180, de 22 de outubro de 2015. Em seu Art. 1° parágrafo único, consta a descrição do que se presume como sendo a profissão do artesão: A profissão de artesão presume o exercício de atividade predominantemente manual, que pode contar com o auxílio de ferramentas e outros equipamentos, desde que visem 8 Programa do Artesanato Brasileiro. O programa foi criado vinte e um de março de 1991, com o objetivo de coordenar e desenvolver atividades que vissem a valorização do artesão brasileiro. (BRASIL 2015) 15 a assegurar qualidade, segurança e, quando couber, observâncias às normas oficiais aplicáveis ao produto. (BRASIL 2015) Como visto anteriormente, no ano de 2019 haviam cerca de 10 milhões de pessoas exercendo a atividade artesanal no país. Mas, após consulta ao banco de dados do Sistema de Informações Cadastrais do Artesanato Brasileiro (SICAB), para se verificar a quantidade de pessoas atendidas pelo reconhecimento da profissão, foi constatado que destes, somente cerca de 170 mil estavam cadastrados. Diante desse fato, é possível concluir que, apesar da regulamentação da profissão de artesão, estabelecida pela Lei n° 13.180 de 2015, a maioria desses trabalhadores permanece na informalidade. Nesse contexto, no ano 2018, a fim de reparar algumas lacunas do PAB, é então incluída ao PAB a Comissão Nacional do Artesanato (CNA), que dispôs sobre a Base Conceitual do Artesanato Brasileiro (BCA), através da portaria n° 1.007-SEI, de 11 de junho de 2018. Em seu capítulo III, seção I, Art. 8°, é atualizado o que se compreende como sendo artesão: É considerado artesão toda pessoa física que, individualmente ou coletivamente, utiliza uma ou mais técnicas no exercício de um trabalho que seja predominantemente manual, que domine integralmente os processos e as técnicas, transformando matéria- prima em produto acabado que expressam identidades culturais brasileiras. (BRASIL 2018) Diante da nova Base Conceitual do Artesanato Brasileiro, que foi instaurada, também foram definidos o que se presume como sendo artesanato, suas classificações e finalidades. Assim, o que se presume como sendo artesanato passa a ser compreendido como: “todo produto resultante da transformação de matéria-prima em estado natural, em produto pronto, através da utilização de técnicas de produção artesanal que expressem a criatividade, identidade cultural, habilidade e qualidade” (BRASIL 2018). A classificação do artesanato passou a ser dividida conforme sua origem. Assim o artesanato agora é dividido em: Artesanato Tradicional; Arte Popular; Artesanato Indígena; Artesanato Quilombola; Artesanato de Referência Cultural e Artesanato Contemporâneo Conceitual. O produto resultante do artesanato, também passou a ser classificado conforme sua finalidade. Sendo assim, agora o produtor artesanal pode dividir sua produção em: objetos para adorno; objetos decorativos; objetos educativos; objetos lúdicos; objetos religiosos/místicos; objetos profanos; objetos utilitários e objetos para lembranças/ souvenires, que representam uma região ou uma manifestação cultural. 16 A partir do que foi analisado até aqui, conclui-se que: a confecção das cestarias de cipó, configuram-se como sendo uma atividade artesanal, pois são confeccionadas de modo predominantemente manual e são classificadas como um produto dessa atividade, sendo então um artesanato. Os quais são desenvolvidos por artesãs que transformam a matéria-prima (cipó) em produto pronto (cestarias), com uso exclusivo das mãos ou com ajuda de pequenas ferramentas em sua execução. Diante do que exposto até aqui, parte-se para a próxima seção do presente capítulo. O qual se analisará em qual classificação de origem as cestarias se enquadram, e definirá em quais dessas categorias as cestarias de cipó, expostas e comercializadas no mercado Municipal de Paranaguá, estão alinhadas. 1.1 SABERES ARTESANAIS NA CONFECÇÃO DE CESTARIAS DE CIPÓ No Brasil, os saberes artesanais de confecção de cestarias de cipó que hoje é desenvolvido por artesãs e artesãos, tem sua origem no conhecimento ancestral indígena, pois, diante da miscigenação ocasionada pela colonização, esse conhecimento foi difundido entre os povos e comunidades tradicionais, sendo passado de geração em geração desde então. Esse conhecimento geralmente era transmitido dentro do próprio seio familiar.Por sua vez, as artesãs que confeccionam as cestarias de cipó, narram que não aprenderam seu saber fazer artesanal dentro do seio familiar, mas sim, através de curso ministrado pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR)9 e através de uma amiga cipozeira da própria comunidade caiçara. Segundo a artesã Fátima Rocha, como ela possui em sua propriedade uma abundância de matéria-prima, ela buscou uma alternativa de poder aproveitar esses recursos naturais, e nessa busca amigos indicaram o SENAR. O SENAR então trouxe em sua propriedade uma professora, que possui o conhecimento de trabalhar com fibras naturais. As artesãs fizeram o curso, e aprenderam diversas técnicas, que vão desde a extração da matéria-prima até o processo de comercialização. Porém, segundo elas, o conhecimento mais significativo foi passado por uma amiga, que traz esse conhecimento artesanal ancestral de sua família, que vêm sendo 9 Serviço Nacional de Aprendizagem Rural, criado pela Lei n° 8.315, de 23/12/1991, com a finalidade de formar profissionais e a promoção social do homem do campo. (BRASIL 1991) 17 passado de geração em geração, onde sua mãe, sua avó e todas as gerações passadas possuíam, pois, aprenderem através da oralidade e observação no seu cotidiano dentro da comunidade tradicional10 caiçara. Diante disso, é importante ressaltar que o município de Paranaguá começou seu povoamento a partir do que se compreende como sendo a comunidade caiçara, que de acordo com Diegues (2004), apresenta formação a partir da miscigenação entre os indígenas, os portugueses e os africanos. O autor descreve que o território que é considerado como sendo caiçara, está localizado no espaço litorâneo entre o sul do Rio de Janeiro e o Paraná, onde seu povoamento originou-se no período dos grandes ciclos econômicos litorâneos do período colonial, e se fortaleceram com a decadência das atividades relacionadas a agricultura. E, que atualmente a maioria das áreas que são compreendidas como sendo caiçaras, passaram a ter como principal atividade econômica a pesca, o turismo, os serviços e o artesanato, sendo esse fator responsável pelas mudanças no modo de vida caiçara. Nesse sentido, Diegues salienta como podemos compreender o que seria esse modo de vida caiçara: [...] modo de vida caiçara, entendido como a forma pela qual as comunidades praianas ou praieiras do Sudoeste organizam a produção material, as relações sociais e simbólicas dentro de um determinado contexto espacial e cultural. A produção material e não material da vida não são espaços separados, mas combinam-se para produzir seu modo de vida. (DIEGUES 2004, 22) Nesse contexto, de acordo com a Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Paranaguá e a classificação da Base Conceitual do Artesanato Brasileiro, as cestarias de cipó estão enquadradas no que se compreende como sendo Artesanato Tradicional, pois são confeccionadas a partir de técnicas que são transmitidas de geração em geração por comunidades tradicionais11, preservando a memória cultural da comunidade. Assim, considera-se que as artesãs possuem o conhecimento do saber fazer artesanal tradicional, esse, o qual vêm sendo passado de geração em geração dentro das comunidades 10 [...] O fato de não utilizarem a escrita, de serem sociedades em que o conhecimento é gerado e transmitido pela oralidade através de um linguajar particular; conhecerem ciclos naturais e dependerem deles para sua sobrevivência; de viverem em pequenos aglomerados com atividades organizadas no interior de unidades familiares, em que as técnicas têm baixo impacto sobre a natureza, fazem que as comunidades caiçaras possam ser definidas como “tradicionais”. (DIEGUES 2004, 22) 11 A partir do decreto N° 6.040, de 7 de fevereiro de 2007 que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais: “compreende-se como sendo povos e comunidades tradicionais os seguintes grupos: Grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição” (BRASIL 2007) 18 tradicionais caiçaras e os utilizam para confeccionar as cestarias de cipó que elas comercializam, que agora são tradicionais e contemporâneos, pois estão imersos em tramas de relações sociais e econômicas na sociedade contemporânea, assim como remete a saberes artesanais tradicionais na forma de confeccionar as cestarias. Mas, antes de estarem prontas para a comercialização, as cestarias em cipó percorrem um longo caminho, o qual demanda uma enorme gama de conhecimento e de técnicas, que são desenvolvidas em várias etapas. Na presente pesquisa, foram acompanhadas através de observação participante essas etapas, as quais serão apresentadas nas seções seguintes deste capítulo. Começando pela extração da matéria-prima, passando pelo processo de beneficiamento da matéria-prima, depois pelas técnicas utilizadas na confecção das cestarias e pôr fim, à etapa de comercialização das cestarias de cipó. 1.2 USO DA MATÉRIA-PRIMA E A RELAÇÃO COM O AMBIENTE Áreas que antes eram repletas de florestas, ricas em fauna e flora, hoje encontram-se degradadas, devido a desmatamentos, queimadas, avanço de pastos, plantações de monocultura e especulação imobiliária. A partir disso, os locais utilizados para extração de matéria-prima, os quais artesãos e artesãs utilizam para seu fazer artesanal, está cada dia mais escasso. Diante de tal fato, com as várias espécies de cipó, que são utilizados como matéria-prima na atividade artesanal de confecção das cestarias, não é diferente. Nesse contexto, o cipó Imbé (Philodendron corcovadense Kunth), o qual as artesãs do Mercado Municipal do Artesanato de Paranaguá, utilizam como matéria-prima na confecção de seu saber fazer artesanal, é extraído dentro da propriedade privada12 da artesã Fátima Rocha, pois ali ainda encontram-se em abundância. Como a artesã Fátima Rocha afirma: As matérias-primas são abundantes onde a gente tira, porque é dentro da minha propriedade, mas tem lugares ao redor que não tem mais cipó, foi tudo desmatado, tem lugares que sofrem queimadas. Mas, dentro da área que eu e Suely buscamos, ainda há riqueza de matérias-primas. (Entrevista concedida à autora em 08/03/ 2022) 12 A propriedade privada da Artesã Fátima Rocha, possuí atualmente cerca de 11 alqueires (cerca de 266.200 m2), desse total, é desmatado somente onde possui sua residência e as residências de seus familiares. (Entrevista concedida à autora em 08/03/ 2022) 19 Com a pesquisa à campo com observação participante, teve-se a oportunidades de acompanhar e registrar todo o processo de extração da matéria-prima dentro dos limites da propriedade da artesã Fátima Rocha, que está localizada no distrito de Alexandra13. Sendo assim, chegando em Alexandra na propriedade da artesã Fátima Rocha, observa- se: que o local está em volto de muita mata, e o local onde é feita a extração dos fios de cipó é ao redor da própria residência familiar, onde desde sua varanda possuem presentes algumas peças confeccionadas com cipó, demonstrando que seu saber fazer artesanal faz parte de seu cotidiano. A extração da matéria-prima é um trabalho coletivo feito por essas duas mulheres, o que fortalece o vínculo já existente. E envolvem diversas etapas a serem seguidas pelas artesãs. Essas etapas, começam antes mesmo que elas adentrem na mata e efetivem de fato a extração. Segundo as artesãs narram, elas só partempara mata fazer a extração da matéria-prima na lua minguante e quando possuem uma certa demanda de cestarias. Assim, elas já escolhem os fios que serão extraídos conforme a necessidade dessas encomendas. Nesse sentido, a artesã Fátima Rocha descreve o primeiro passo a ser seguido por elas: Primeiro passo para pegar o material é: mentalizar o que eu vou fazer, dentro daquilo que eu quero produzir eu vou catar o material para as peças. Por exemplo: no caso do cipó, eu quero fazer um cachepô ou um cesto, eu imagino o tamanho do cesto mais ou menos, ou a quantidade, aí vou para o mato. (Entrevista concedida à autora em 08/03/ 2022) Diante disso, o próximo passo é o preparo com a segurança, pois devido a ser uma área de mata preservada, é suscetível a animais que possam ser peçonhentos. As artesãs, narram que antes mesmo de começar a trilha para chegada no local da extração do cipó, é preciso colocar botas, calça, blusa de manga comprida e passar repelente, pois ali é propício a encontrar animais no caminho. A artesã Suely Alípio reforça: É bom colocar! Eu tenho medo das cobras que podem estar escondidas no meio das folhas no caminho, das aranhas e de pegar carrapatos, porque tem disso aqui, a gente às vezes acaba voltando do mato com alguns. Mas, estamos na casa deles, então a gente só tem que ter cuidado. (Entrevista concedida à autora em 08/03/ 2022) Após as artesãs estarem vestidas e calçadas adequadamente, para que se evite ao máximo acidentes inconvenientes com animais peçonhentos, elas separam os instrumentos 13 De acordo com o (IBGE), Alexandra é um distrito localizado no litoral do Paraná na cidade de Paranaguá e primeiramente era nomeado como sendo Rio das Pedras. Através do Decreto-lei Estadual n. º 6.667, de 31/03/1938, o distrito de Rio das Pedras tomou o nome de Alexandra. (IBGE 2022) 20 utilizados para a extração da matéria-prima. Sendo esses: Facão, foice, bambu comprido com uma lâmina na ponta14. Sendo assim, com tudo pronto, elas partem para a trilha que leva até o local da extração da matéria-prima, que fica a cerca de quinze minutos da residência. Logo no começo da trilha, pede-se que as artesãs descrevam, o que sentem ao entrar na mata para fazer a extração da matéria-prima para a confecção de seu saber artesanal? Ao se referir a sensação que sente, ao entrar na mata para fazer a extração do cipó Imbé, a artesã Suely Alípio descreve como sendo: A sensação que eu sinto é que quando eu entro na mata para tirar o cipó, parece que estou entrando no céu. Eu sinto que aqui é o meu lugar! Até esqueço das dores e dos problemas. Não tem nem como explicar, o ar e cheiro aqui são diferentes. Mesmo com os perigos dos bichos nos morderem, eu amo fazer isso! (Entrevista concedida à autora em 08/03/ 2022) A artesã Fátima Rocha descreve sua sensação como sendo: Eu me sinto em liberdade, livre de qualquer compromisso com outro ser humano, livre de qualquer compromisso com a sociedade. De ter que mostrar uma coisa que a sociedade cobra da gente, uma postura. Você se solta aqui, não sente esse tipo de aprisionamento da sociedade. Eu sinto assim, uma liberdade de alma mesmo! Até o cheiro do mato, o ar é diferente. As coisas que a gente vai descobrindo, a gente vai se inteirando das coisas que tem, das coisas mínimas, uma flor, de uma semente, de um galho, da cor do tronco de uma árvore. São sensações que por mais que você ande todo dia no mesmo caminho, todo dia você encontra uma coisa diferente, a natureza tem alguma coisa diferente para te mostrar. E cada descoberta é um renovo. É assim! Cada vez é uma descoberta diferente, que faz bem tanto para o físico quanto para o espiritual. (Entrevista concedida à autora em 08/03/ 2022) De acordo com a descrição das artesãs, sobre a sensação sentida por elas, é possível perceber, que quando elas adentram na mata, para fazer a extração da matéria-prima, elas se reconhecem como pertencentes àquele local e aquele fazer que vem sendo repassado na comunidade caiçara. No percurso até a trilha, deparamos com uma grande árvore, com muitos fios pendurados vindos de sua copa. Então, a artesã Fátima Rocha mostra que esses fios pendurados são os fios de cipó Imbé, utilizados por elas como matéria-prima, e que lá na copa da árvore, está o que elas chamam de mãe do cipó (figura 2), que é de onde partem todos esses fios pendurados. 14 Adaptado por elas para atender a necessidade do corte do cipó Imbé nas copas das árvores com grandes alturas. (Entrevista concedida à autora) 21 Figura 2 Mãe do cipó Imbé na copa da árvore Fonte: Marilize A. Santos (2022) Segundo as artesãs, só no olhar e no tocar, elas já conseguem distinguir quais estão no ponto de serem extraídos (figura 3). Assim a artesã Fátima Rocha afirma: O cipó tem que estar maduro. A gente já sabe como é que ele está no tocar e no olhar para ele, você já sabe quanto ele está maduro, e quando não está. Então tem tudo isso, todo esse cuidado para não cortar ele muito novo, porque não vai ter utilidade e vai acabar sendo jogado fora. (Entrevista concedida à autora em 08/03/ 2022) Figura 3 Artesã Suely Alípio fazendo a seleção dos fios de cipó Imbé Fonte: Fátima Rocha (2022) Nessa fala fica exposto o que Diegues (2004) chamou de “manejo tradicional do ambiente” e o autor aponta que, as comunidades caiçaras possuem um amplo conhecimento 22 sobre a fauna, flora e os sistemas tradicionais de manejo dos recursos naturais de que dispõem, e isso contribui para a conservação da biodiversidade. Assim, após essa seleção visualizada na figura 3, elas partem para a extração dos fios de cipó. Segundo as artesãs, as técnicas utilizadas para extração dessa matéria-prima são feitas de modo sustentável, para que a planta não sofra danos com a retirada dos fios. Para isso, é preciso fazer a correta retirada, para que a planta continue produzindo mais fios e não aconteça a morte da mãe do cipó Imbé. Sendo assim, as artesãs buscam fazer a extração do cipó Imbé, existentes na propriedade, com equilíbrio e de modo que o seu desenvolvimento seja sustentável15, utilizando a técnica de corte (figura 4), para que assim não se comprometa as gerações futuras. Como Fátima explica: Eu e a Suely usamos um bambu com uma faca na ponta, ou um gancho afiado na ponta, para poder cortar o cipó de maneira sustentável, porque muita gente vai para o mato sem equipamento nenhum, porque eles boleiam o cipó, e isso é uma coisa que a gente não faz, a gente trabalha de maneira sustentável. Então se você bolear o cipó, lá em cima ele vai arrebentar na mãe, e ali não nasce mais nada. E como a gente corta com o gancho, onde foi cortado vai nascer mais dois ou três fios num determinado período, leva cerca de seis meses a um ano. (Entrevista concedida à autora em 08/03/ 2022) Figura 4 Artesãs Fátima Rocha e Suely Alípio extraindo os fios de cipó Imbé Fonte: Marilize A. Santos (2022) 15 De acordo com o decreto n° 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, em seu Art. 3°, o desenvolvimento sustentável é o uso dos recursos naturais para que se tenha melhoria na qualidade de vida da geração atual, de modo que garanta essa possibilidade para as próximas gerações. (BRASIL 2007) 23 Após a extração, que leva cerca de três horas, esses fios são enrolados para serem transportados (figura 5). O transporte é feito nos ombros das próprias artesãs por todo o trajeto da trilha até a residência, onde seguirá para as próximas etapas. Figura 5 Artesãs com os fios de cipó Imbé prontos para serem transportados Fonte: Fátima Rocha (2022) 1.3 BENEFICIAMENTO DA MATÉRIA-PRIMA Logo após os fios de cipó Imbé serem extraídosda mata, e serem transportados até a residência, as artesãs fazem a classificação desses fios. O fio é avaliado e classificado por espessuras. Assim, as artesãs já separam quais fios seguirão para o processo de beneficiamento e quais continuarão em seu estado primitivo. A partir disso, para peças mais rústicas e maiores, que suportarão mais pesos e que servirão tanto para decoração ou ambientes externos, as artesãs deixam o cipó Imbé em seu estado primitivo. Como as artesãs afirmam: O cipó com casca, geralmente é utilizado para balaio, cesta, cachepô e vaso, porque ele é bem mais resistente, aguenta mais peso. Numa luminária na varanda, ela vai durar muito mais e continuar bonita, ao contrário de uma sem casca que vai embolorar, vai ficar feio, vai estragar bem mais rápido. Então o cipó com casca ele pode ser utilizado para peças que ficam na parte externa das casas e podem ser lavados. (Entrevista concedida à autora em 08/03/2022) 24 Já para peças um pouco menores, mais finas ou para artigos delicados e que não suportam grandes pesos (figura 6), o cipó Imbé passa pelo processo de beneficiamento do fio. Figura 6 Cestinhas, chapeuzinho e lequinhos com cipó Imbé beneficiado Fonte: Marilize A. Santos (2022) A fim de executarem por completo o processo de beneficiamento dos fios de cipó Imbé, as artesãs necessitam seguir algumas etapas até chegarem ao ponto de tecer as cestarias. Assim, a primeira etapa a ser seguida no beneficiamento é a retirada da casca externa que envolve os fios de cipó Imbé. Para fazer a retirada dessa casca externa, as artesãs amarram o fio de cipó em uma base fixa, que fica na parte externa da residência, e com o auxílio de uma pequena faca, faz-se a retirada da ponta desse fio. Posteriormente as artesãs puxam essa casca externa que envolve os fios, para que fique só a parte interna desse fio. Como pode ser observado na figura 7. 25 Figura 7 Artesãs Suely Alípio e Fátima Rocha retirando a casca externa que envolve o fio de cipó Imbé Fonte: Marilize A. Santos (2022) A próxima etapa, é desamarrar o fio da base fixa, onde foi feita a retirada da casca externa que envolve o fio, para na sequência seguir para a próxima etapa, que as artesãs denominam como sendo o processo de partir os fios. No processo de partir, um mesmo fio, dependendo de sua espessura, pode ser dividido em cerca de três a quatro fios, o que garante um bom rendimento da matéria-prima. Após a retirada da casca externa e o processo de partir, a próxima etapa é levar o fio para secar ao sol. É preciso que o cipó seja exposto ao sol por um determinado tempo, pois caso contrário ele poderá apresentar fungos e se tornar quebradiço, como afirmam as artesãs: Quando o sol está bem forte leva umas duas horas para o fio secar. Prá trabalhar se for cipó com casca, não tem problema nenhum em não ter sol. Agora no momento que você tira a casca, e você raspa ele, ele precisa de sol para ficar clarinho, senão ele fica amarelo, aí não fica uma cor bonita para trabalhar e ele cria fungos, embolora muito fácil. Agora se ele estiver bem seco, aí não tem problema nenhum, aí ele vai ficar bem branquinho, e fica fácil quando você vai trabalhar com ele, só precisa umedecer novamente para poder tecer, mas daí, não tem o perigo dele ficar amarelo e nem embolorar. (Entrevista concedida à autora em 08/03/2022) Após a retirada da casca que envolve os fios, ter passado pelo processo de partir e estar seco, a próxima etapa é deixar esse fio com a mesma espessura. Para atingir a espessura desejada, o fio é passado em um equipamento, o qual é chamado pelas artesãs de raspadeira16, 16 Essa raspadeira é uma espécie de caixa retangular, revestida por uma lata na parte dentro, essa lata possui diversos furos com circunferências variadas. (Observação participante) 26 confeccionada pelas próprias artesãs, como descreve a artesã Fátima Rocha: “A raspadeira a gente mesmo faz com um retângulo de madeira, com furos e com uma lâmina, uma lata que você fura na mesma direção. É fácil de fazer, mas tem quem faça para vender”. (Entrevista concedida à autora em 08/03/ 2022) De acordo com as artesãs, para que os fios de cipó Imbé suportem serem passados pelo processo de beneficiamento, para atingir a espessura desejada, eles precisam ser hidratados, para que o fio não acabe se rompendo durante o processo. Como descreve a artesã Suely Alípio: Fazemos a raspagem para os fios ficarem com a mesma espessura, e eliminar as imperfeições e o trabalho ficar mais bonito. Após esses fios serem retirados do sol eles precisam ser molhados, para ficarem flexíveis e suportarem passar pelo processo de raspagem, pois se for feito com o fio seco, ele acaba arrebentando e perdemos esse fio. (Entrevista concedida à autora em 08/03/ 2022) Para hidratar os fios, as artesãs utilizam um recipiente cheio de água, o qual elas submergem esses fios na água por alguns minutos. Posteriormente, o fio é retirado da água e passado na raspadeira diversas vezes, até que atinja a espessura desejada (figura 8), concluindo assim o processo de beneficiamento do fio de cipó Imbé. Figura 8 Artesã Suely Alípio passando o cipó Imbé na raspadeira Fonte: Marilize A. Santos (2022) 27 1.4 CONFECÇÃO DAS CESTARIAS DE CIPÓ Para desenvolver o saber artesanal de confecção das cestarias, as artesãs fazem uso da matéria-prima tanto em seu estado primitivo, quanto após o processo de beneficiamento, apresentada na seção anterior. E fazem uso de diferentes técnicas. Dentre as técnicas, que são utilizadas para confecção das cestarias em cipó Imbé, está a técnica artesanal do trançado17, essa técnica tem origem na cultura caiçara, as quais são uma herança do conhecimento da cultura indígena que faz parte de sua matriz étnica, o qual foi transmitida através de curso e por uma amiga que detêm esse conhecimento ancestral. Para execução da técnica do trançado as artesãs fazem uso de poucas ferramentas, sendo elas: uma agulha grossa, e uma chave de fendas, que é utilizada para fazer as aberturas onde o fio vai passar, por exemplo: para fazer a alça do balaio. Para dar início a atividade artesanal do trançado, utilizado na feitura das cestarias, as artesãs primeiramente escolhem os fios que possuam espessura semelhante, mas, por conta de os fios de cipó Imbé variarem de comprimento, é impossível elas terem precisão de quantos fios serão utilizados para cada peça, por isso, somente durante a execução elas saberão quantos fios serão necessários para concluir a peça. O segundo passo para confecção das cestarias é dar o início ao trançado. Nos balaios, cestos e vasos (figura 9), o entrelaçar dos fios de cipó Imbé, tem seu início sempre pelo fundo, seguindo posteriormente para as bordas. O fundo das peças é a parte mais importante das cestarias, pois essa será a base da peça e o que dará o seu suporte. Diante disso, é necessário que esse fundo seja bem construído, para que fique bem estruturado e forte. Como afirma a artesã Suely Alípio: O fundo do cesto tem que ser bem feito, pois, é ali que começa a ser feito o trançado. Se lá no começo do cesto, do balaio ou do vaso, a gente não ver que tem algo errado, quando chegar lá no final, o trabalho vai ficar mal feito e os cestos, os balaios e os vasos vão ficar moles, tortos e fracos. (Entrevista concedida à autora em 08/03/2022) Segundo as artesãs, a partir desse trançado inicial é possível produzir diferentes peças, pois é basicamente o mesmo procedimento, o que varia é a quantidade de fios e a forma como 17 De acordo com a (BCA), a técnica artesanal do trançado consiste no “entrelaçamento de fibras em forma de fios, iniciando-se mediante o cruzamento de duas ou mais tiras/talas,entrelaçando sempre novas tiras/talas, até obter-se a forma final”. (BRASIL 2018) 28 serão organizados para começar o processo de trançar e também o acabamento, pois produzem diversos modelos de cestarias, e cada modelo demanda um tipo de acabamento. Figura 9 Balaio, cesta e vaso de cipó Imbé com casca Fonte: Marilize A. Santos (2022) 1.5 COMERCIALIZAÇÃO DAS CESTARIAS DE CIPÓ Após as cestarias estarem prontas, elas são levadas para que seja feita sua comercialização no Mercado Municipal do Artesanato de Paranaguá. Nota-se que a comercialização é realizada pelas próprias artesãs. Diante disso, é possível considerar que as artesãs possuem um papel ativo em todas as etapas que as cestarias de cipó Imbé percorrem. Começando na extração da matéria-prima, depois pelo beneficiamento, confecção, precificação do valor que cada cestaria será vendida, posicionamentos que essas peças serão expostas nas prateleiras (figura 10), até a etapa de comercialização. As cestarias em cipó Imbé expostas no Mercado Municipal de Paranaguá (figura 10) são valiosas, não somente pelas técnicas empregadas, mas também porque envolvem toda uma significação na vida dessas artesãs, pois ao transformarem o fio de cipó Imbé em seu estado natural em produto pronto, através das técnicas de produção artesanal e uso de seus saberes e fazeres, elas expressam criatividade, habilidades, valores históricos e culturais da sua cultura e do grupo que pertencem. Fato esse, que proporciona aos clientes da própria localidade, bem 29 como turistas que estão visitando a cidade, não só a oportunidade de adquirir um objeto, mas, também a oportunidade de que estes interajam com a identidade cultural local. Figura 10 Cestarias de cipó Imbé expostas no Mercado Municipal do Artesanato de Paranaguá Fonte: Suely Alípio (2022) Diante disso, o posicionamento de Melo e Froehlich (2021) é que a atividade artesanal desempenha esse papel importante nas sociedades, pois o artesanato possui um forte impacto na construção de uma identidade local. Nesse sentido, diante do que foi exposto até aqui, considera-se que as cestarias de cipó expostas e comercializadas no Mercado Municipal do Artesanato de Paranaguá, desempenham um papel importante na construção das identidades culturais. No capítulo seguinte, busca-se traçar o caminho para responder à seguinte indagação: Como se dá a construção e reconstrução das identidades culturais através das cestarias de cipó? 30 CAPÍTULO 2: CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES CULTURAIS Como apresentado no capítulo anterior, cada região possui seu artesanato típico e de acordo com a vida das comunidades locais, se tornando assim parte da identidade cultural de um povo. Nesse sentido, o segundo capítulo, intitulado como: “Construção das Identidades Culturais”, busca-se responder o seguinte questionamento: como se dá a construção das identidades culturais através das cestarias de cipó? Para isso, parte-se de algumas definições do que se conceitua como sendo Cultura, Identidade e por fim Identidade cultural. Cada uma delas, será tratada em seu contexto, para responder o mesmo questionamento inicial. 2.1 CULTURA O conceito de cultura, o qual temos na atualidade, sofreu muitas variações ao longo do seu processo histórico. O termo vindo do verbo latino colere, primeiramente era utilizado para designar o cultivo de plantas e o cuidado com os animais. Já em definições mais tradicionalistas, o termo “cultura” abrangia a soma de ideias e falas grandiosas de uma sociedade. Como por exemplo, as que eram representadas nas telas pintadas, obras literárias, músicas clássicas e na filosofia, sendo essa considerada a “alta cultura de uma época”. (HALL 2016) Nesse sentido, sua definição mais utilizada passou a ser atrelada a ideia do refinamento, a qual, consistia em afirmar que os sujeitos que possuíam cultura, ou seja, considerados “cultos”, eram os sujeitos que eram dotados de conhecimentos. Esse conhecimento do indivíduo “culto”, estava atrelado a locais frequentados, aos diplomas e titulações que possuía, assim, os que não possuíam certas titulações e nem frequentava locais que apresentavam a “alta cultura” eram considerados “incultos”. Com o passar do tempo, o termo passou por mudanças em sua conceituação, todavia, a separação do que era denominado como sendo “culto” e “inculto” tornou-se latente. Desse modo, a cultura e as artes passaram a ser divididas de dois modos: cultura erudita, marcada por produções e criações consideradas belas artes, o qual seu público era formado por indivíduos 31 pertencentes a elite, como por exemplo, intelectuais e artistas, e cultura popular18, propícia aos trabalhadores, é constituída por exemplo por: danças, músicas regionais, mitos, lendas, festas religiosas e artesanatos. Nessa perspectiva, a cultura popular era caracterizada sempre de forma negativa, vista até mesmo como uma cultura atrasada e desprovida de qualidades, como apontado por Hall: “Por muito tempo, o confronto entre alta cultura e cultura popular foi a maneira clássica de se enquadrar o debate sobre o tema (em que esses termos vêm inevitavelmente atrelados a uma carga de valor (grosso modo, alta = a bom; popular = a degradado) ”. (HALL 2016, 19) Fazendo um adendo a esse assunto das culturas populares, é importante frisar que, objetos e práticas denominadas como popular estão presentes no cotidiano da sociedade capitalista, como por exemplo, artesanatos, festas religiosas, benzimentos, etc., porém ainda existe uma certa disparidade de reconhecimento de seu valor. Mas é interessante ressaltar que quando se trata de definir a identidade de uma nação, região ou grupo social, é nos elementos tidos como pertencentes à cultura popular que se definem. Nesse sentido, a citação de Antonio Arantes corrobora perfeitamente com esse ponto de vista: [...] Pois é justamente manipulando repertórios de fragmentos de “coisas populares” que, em muitas sociedades, inclusive a nossa, expressa-se e reafirma-se simbolicamente a identidade da nação como um todo ou, quando muito, das regiões, encobrindo a diversidade e as desigualdades sociais efetivamente existentes no seu interior. (ARANTES 1990, 14-15) Nesse contexto, os estudos antropológicos colaboraram para que o conceito de cultura fosse redefinido, passando então a ser compreendido como os modos de ser e viver de um determinado grupo, de uma nação, de uma comunidade ou de um povo. E ainda, o termo passou a ser utilizado para definir os valores que são compartilhados por seus membros. Esse fenômeno pode ser compreendido com a perspectiva de Hall (2016): Nos últimos anos, porém, em um contexto mais próximo das ciências sociais, a palavra “cultura” passou a ser utilizada para se referir a tudo o que seja característico sobre o “modo de vida” de um povo, de uma comunidade, de uma nação ou de um grupo social – o que veio a ser conhecido como a definição “antropológica”. Por outro lado, a palavra também passou a ser utilizada para descrever os “valores compartilhados” de um grupo ou de uma sociedade. (HALL 2016, 19) 18 “[...]. Quando pensadas como produções e criações do passado nacional, formando a tradição nacional, a cultura e a arte populares recebem o nome de folclore, constituído por mitos, lendas e ritos populares, danças e músicas regionais, artesanato e etc.” (CHAUÍ 2021, 15) 32 Segundo Laraia (2001), o termo cultura, aos moldes que é utilizado atualmente, foi primeiramente definido por Edward Taylor (1871). “Taylor definiu cultura como sendo todo o comportamento aprendido, tudo aquilo que independe de uma transmissão genética”. (LARAIA 2001). Em 1917, Alfred Louis Kroeber completou, definindo que o homem por sua vez, se diferencia de outros animais,sendo o único a ter cultura, pois, é capaz de se comunicar, através da oralidade e construir instrumentos, que otimizem seu fazer cotidiano. Nesse sentido, Giddens (2008), concorda com Laraia (2001), e afirma que quando sociólogos se referem ao conceito de cultura, estão se referindo ao que diz respeito a elementos que são aprendidos na interação com outros membros da sociedade pertencente e não a algo herdado biologicamente. Assim, todo esse processo de interação e aprendizagem, que o indivíduo passa durante sua vida, pode ser compreendido como o processo de socialização, que é definida por Giddens (2008), como: “o processo através do qual as crianças, ou outros membros da sociedade, aprendem o modo de vida da sociedade em que vivem”. (GIDDENS 2008, 27) Desse modo, o processo de socialização acontece em duas fases, sendo elas, a fase da socialização primária, que ocorre na infância, onde a família é o seu principal agente de socialização. E socialização secundária, que ocorre a partir de quando a criança passa a interagir com outros agentes socializadores, ou seja, é através das interações sociais que os indivíduos aprendem as normas, valores, crenças, as ideias, bem como conhecem e partilham os objetos e símbolos que representam a cultura, a qual eles pertencem. Diante das perspectivas vistas acima, percebe-se que a cultura, portanto, é algo que não se transmite de forma natural, todos os elementos são aprendidos, através da observação e oralidade, sendo esse o seu principal canal de transmissão, através do tempo e das gerações. E, sendo seres sociais, estamos em constante interação e aprendizado com a sociedade, território19 e com a cultura em que vivemos, esse processo que acontece desde o nascimento, primeiramente por intermédio da família e posteriormente através das escolas, instituições, meios de comunicação e local de trabalho, os quais fazemos parte. 19 O território pode ser definido como uma porção da natureza e espaço sobre o qual uma sociedade determinada reivindica e garante a todos, ou uma parte de seus membros, direitos estáveis de acesso, controle ou uso sobre a totalidade ou parte dos recursos naturais aí existentes que ela seja capaz de utilizar [...]. Essa porção de terra fornece, em primeiro lugar, a natureza do homem como espécie, mas também os meios de subsistência, os meios de trabalho e produção e os meios de produzir os aspectos materiais das relações sociais, aos que compõe a estrutura determinada de uma sociedade (relações de parentesco, etc.). GODELIER (1984), apud (DIEGUES 2004, 24). 33 Para tanto, mesmo que a transmissão da cultura obedeça a um certo padrão na maioria das culturas, elas não são homogêneas, pois apresentam diversas variações de uma para outra, por exemplo, normas e valores que são aceitáveis em uma, podem perfeitamente não ser aceitas em outra, isso se dá ao fato de que cada cultura possui suas próprias especificidades, as quais estão atreladas ao contexto que elas ocorrem. Mesmo dentro de uma mesma sociedade, podem ocorrer variações de padrões culturais. Tendo em vista que, a maior parte das sociedades industrializadas são formadas a partir da miscigenação dos povos e possuem uma multiplicidade de culturas e grupos em sua composição, ou seja, são culturalmente mistas. Sendo assim, as normas e valores podem se contrapor umas às outras. Diante disso, em culturas, povos e comunidades tradicionais20, os quais o passado e os seus símbolos são valorizados, também ocorrem mudanças, pois mesmo os elementos sendo considerados tradição, não é algo cristalizado no tempo. Nesse sentido, a cultura se reinventa, e se ressignifica a cada nova geração. Até mesmo os territórios tradicionais21 estão em constante mudanças, pois o território também está atrelado às relações sociais que existem nele, como Diegues aponta: “o território não depende somente do tipo de meio físico explorado, mas também das relações sociais existentes” (DIEGUES 2004, 24) Para Diegues (2004), as culturas tradicionais em estado puro não existem mais, pois todas passam por processos de transformação, seja ela de menor ou maior grau. E Hall (2015), reforça essa perspectiva, dizendo que não existem mais culturas em seu estado puro, elas são todas híbridas culturais, pois são resultado das múltiplas interações que seus membros realizam, assim, “As nações modernas são, todas, híbridas culturais”. (HALL 2015, 36) A partir dessas perspectivas, é possível evidenciar que a cultura caiçara22, o qual as artesãs cipozeiras, interlocutoras da presente pesquisa se identificam, já nasceu híbrida, pois foi 20 Art. 3° Povos e Comunidades tradicionais: “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”. (BRASIL 2007) 21 Art. 3° II-Territórios Tradicionais: “os espaços necessários à reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas [...]”. (BRASIL 2007) 22 “A cultura caiçara aqui definida como um conjunto de valores, visões de mundo, práticas cognitivas e símbolos compartidos, que orientam os indivíduos em suas relações com a natureza e com os outros membros da sociedade e que se expressam também em produtos matérias [...] e não materiais [...]”. (DIEGUES 2004, 22) 34 com a miscigenação de diferentes etnias que resultou no que hoje se compreende como sendo a comunidade caiçara23. Nesse sentido, as culturas, assim como os indivíduos, não é algo estático. A cultura é algo vivo, que está em constante transformação, mesmo que se tenha a intenção de preservar o que seria tradicional, esse fato se dá pela sua plasticidade, ou seja, facilidade de adaptar-se às condições do meio. A parte material, expressões, características e movimentos podem até estarem presentes, mas seus significados podem mudar com os processos históricos, por exemplo, um mesmo objeto cultural, pode possuir diferentes significados dependendo do contexto. Sendo assim, o significado cultural só pode ser compreendido se observado o universo do grupo social a que ele pertence, e não somente a observação do objeto em si. Como aponta Arantes: Cultura é um processo dinâmico; transformações (positivas) ocorrem, mesmo quando intencionalmente se visa congelar o tradicional para impedir a sua “deterioração”. É possível preservar os objetos, os gestos, as palavras, os movimentos, as características plásticas exteriores, mas não se consegue evitar a mudança de significado que ocorre no momento em que os eventos culturais são produzidos. (ARANTES 1990, 22) Hall (2016), ressalta que a cultura é construída a partir de signos e símbolos, ou seja, é um conjunto de práticas, produção, intercâmbio de sentidos e o compartilhamento de significados entre os membros de uma sociedade ou grupo. Diante disso, quando se fala que dois indivíduos são pertencentes à mesma cultura, é o mesmo que falar que eles compartilham do mesmo modo de vida, e veem o mundo e dão sentido às coisas de modo semelhante. Assim, com as cestarias de cipó, confeccionadas com práticas culturais e exercidas no território caiçara, as artesãs interlocutoras da presente pesquisa, criam sentidos de quem elas são e ao que pertencem, como apresentado no capítulo 1. O sentido é criado quando as artesãs expressam sua identidade através das cestarias de cipó, pois nelas elas colocam valores e significados, que foram construídos e reconstruídos comas múltiplas interações sociais e culturais que tiveram, os quais são compartilhados pelo grupo. Diante disso, a narrativa da artesã Fátima Rocha corrobora com essa afirmativa: O artesanato para mim representa um fluir de ideias e como se eu tivesse trazendo lá do fundo muita coisa que estava guardada, que eu quero colocar em cada peça que 23 “Entende-se por caiçara as comunidades formadas pela mescla da contribuição étnico-cultural dos indígenas, dos colonizadores portugueses e, em menor grau, dos escravos africanos. Os caiçaras apresentam uma forma de vida baseada em atividades de agricultura itinerante, da pequena pesca, do extrativismo vegetal e do artesanato”. (DIEGUES 2004, 9) 35 eu faço. Cada peça que eu faço, eu tenho uma ideia diferente, a outra peça já não sai igual, aí está o encanto do artesanato, você faz por exemplo: um cesto, o primeiro fica de um jeito, o segundo já fica de outro, no terceiro você já pensou no primeiro e no segundo e já faz de outro jeito, outra técnica porque foi mais fácil, esse terceiro vai sair totalmente diferente dos outros dois, podem sair parecidos, mas nunca sai igual, isso que é o bonito, são peças únicas. (Entrevista concedida à autora em 08/03/2022) Nesse sentido, a definição feita por Hall (2016), em sua obra Cultura e Representação, ressalta perfeitamente essa afirmativa, o qual utilizo a seguinte citação: [...] A ênfase nas práticas culturais é importante. São os participantes de uma cultura que dão sentido a indivíduos, objetos e acontecimentos. [...] O sentido é o que nos permite cultivar a noção da nossa própria identidade, de quem somos e a quem “pertencemos” – e, assim, ele se relaciona a questões sobre como a cultura é usada para restringir ou manter a identidade dentro do grupo e sobre a diferença entre grupos. [...] O sentido também é criado sempre que nos expressamos por meio de “objetos culturais”, os consumimos, deles fazemos uso ou nos apropriamos; isto é, quando nos integramos de diferentes maneiras nas práticas e rituais cotidianos e, assim, investimos tais objetos de valor e significado. Ou ainda, quando tecemos narrativas, enredos – fantasias – em torno deles. (HALL 2016, 20-22) A partir disso, portanto, a cultura o qual cada pessoa está inserida e as múltiplas interações sociais que ela experimenta, desde o nascimento até a sua morte, exerce influência direta no que ela considera certo ou errado, como se porta em diferentes situações, até mesmo os hábitos, postura corporal e expressões, no desenvolvimento de suas religiosidades, valores, ideais e visão de mundo, ou seja, os indivíduos se orientam em suas ações pela influência direta da cultura a qual pertencem. Todos os saberes compartilhados pelos membros da sociedade fazem com que eles se identifiquem e gere o sentimento de pertencimento a tal cultura, mas, ainda assim, o indivíduo possui uma individualidade e autonomia no desenvolvimento da própria identidade, ou seja, como apontado por Giddens: “não são simplesmente sujeitos passivos à espera de serem instruídos ou programados” (GIDDENS 2008, 29) Diante do que foi exposto até aqui, percebe-se o quanto a relação do povo com a sua história e cultura é importante, pois, aponta para uma caracterização de sua identidade e do seu sentimento de pertencimento. 36 2.2 IDENTIDADE Como apresentado na seção anterior, o conceito de cultura sofreu múltiplas variações em sua definição ao longo do seu processo histórico. E com conceito de identidade não é diferente. Diante disso, nessa seção objetiva-se descrever o caminho histórico percorrido desse importante conceito. Stuart Hall, em sua obra (A Identidade Cultural na pós-modernidade 2015), ressalta as mudanças sofridas no conceito de identidade ao longo do processo histórico. Para isso, o autor distingue três concepções de identidade, sendo elas: O sujeito do iluminismo, sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno. Primeiramente, a concepção que se tinha de identidade era que ela já nascia com o sujeito, e o acompanhava durante toda sua vida, orientava sua razão e suas ações. O autor aponta, que esse era o sujeito do iluminismo. O sujeito do iluminismo, era totalmente centrado, unificado, portador das capacidades de razão e consciente de suas ações, cujo centro consistia num núcleo interior, que o acompanhava desde o nascimento até o seu último dia de vida, esse centro do “eu” era o que se considerava a identidade de uma pessoa. Posteriormente, com as mudanças do mundo moderno, o conceito de identidade foi redefinido. Nessa nova concepção, tinha-se que a identidade do indivíduo é formada nas relações que o sujeito tinha com as pessoas que este considerava importante, e também na interação com a sociedade. O autor aponta, que esse era o sujeito sociológico, onde o sujeito tem um núcleo, ou seja, o seu “eu real”, mas era formado e modificado continuamente, através da interação com os mundos culturais exteriores e as múltiplas identidades que esses mundos oferecem. Nessa concepção sociológica, a identidade preenche o espaço entre o “interior” e o “exterior”, entre o mundo pessoal e o mundo público. Assim, a identidade costurava o sujeito à estrutura e estabilizava os sujeitos e os mundos culturais que eles faziam parte, os tornando “mais unificados e predizíveis”. Hall (2015). No entanto, o autor aponta, que na contemporaneidade estão acontecendo mudanças. O sujeito que até então possuía uma identidade unificada e estável, está se fragmentado, sendo agora composto de múltiplas identidades, e que algumas vezes, elas seriam contraditórias ou não resolvidas. E, até o processo de identificação, pelo qual construímos nossas identidades culturais, tornou-se “provisório, variável e problemático” (HALL 2015, 11). Diante disso, o autor afirma que, esse processo é responsável por produzir o sujeito pós-moderno, onde o sujeito não possui uma identidade permanente, mas, sim uma identidade que é construída e 37 reconstruída, diante das formas que somos representados nos sistemas culturais, se tornando assim uma “celebração móvel”. (HALL 2015, 11) O autor destaca que, uma identidade totalmente unificada é algo que não seria possível, pois, “somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com as quais poderíamos nos identificar a cada uma delas – ao menos temporariamente” Hall (2015, 12). Assim, o sujeito pode assumir diferentes identidades ao longo de sua vida, sendo que, essas não são unificadas em torno de um “eu” coerente, ou seja, o sujeito possui em seu interior diferentes identidades e essas, por sua vez, podem ser contraditórias, empurrando para diferentes direções, fazendo então com que essas identificações sejam “continuamente deslocadas”. (HALL 2015, 12). Nesse sentido, o processo de identificação passa a ser algo provisório e variável. Diante de tal fato, é importante destacar é que o sujeito possa se identificar com diferentes identidades ao longo de sua vida, no caso das interlocutoras da presente pesquisa, elas se identificam simultaneamente como sendo artesãs pertencente a cultura caiçara e cipozeiras24. Em síntese, embora a cultura em que o indivíduo nasce, seja uma das principais fontes de identidade, ela não é fator determinante para formar a identidade do indivíduo. A identidade do indivíduo, ou seja, como ele se identifica, se reconhece, dá sentido às suas ações, pratica suas religiosidades, tem suas ideais e visão de mundo, não é algo biológico, como se definia na definição do sujeito do iluminismo, nem tão pouco algo que já estava no interior do indivíduo, e com a interação com pessoas importantes para ele e com a sociedade se transformou, como definido como sendo o sujeito sociológico. Assim, a identidade se conceitua como na concepção
Compartilhar