Prévia do material em texto
Juliana de Albuquerque (/colunas/juliana-de-albuquerque/) CORONAVÍRUS (HTTPS://WWW1.FOLHA.UOL.COM.BR/COTIDIANO/CORONAVIRUS) Primo Levi reproduz com clareza complexidade da vida em situações- limite Obra do autor inspira crítica à situação de pobres durante pandemia de coronavírus 7.abr.2020 às 8h00 Das tentativas de distanciamento social (https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/em-ritmos-distintos-paises-da- europa-adotam-acoes-parecidas-contra-o-virus.shtml) ao recente anúncio pelo governo irlandês de medidas de confinamento, passaram-se 23 dias. No começo, imaginávamos que a quarentena poderia chegar a 29 de março, data em que https://www1.folha.uol.com.br/colunas/juliana-de-albuquerque/ https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/coronavirus https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/em-ritmos-distintos-paises-da-europa-adotam-acoes-parecidas-contra-o-virus.shtml estava previsto o retorno das atividades escolares. Hoje, no entanto, sabemos que devemos permanecer em casa até o dia 12 de abril. Isto é, se nada de novo acontecer. Muita coisa mudou em nossa rotina desde o início do confinamento. Até a última sexta-feira de março, era possível pedalarmos a esmo, desde que tomássemos cuidado para evitarmos o contato uns com os outros. Agora, além das precauções a que já nos habituamos, precisamos ficar atentos para não ultrapassarmos um raio de dois quilômetros das nossas casas. Mais que qualquer outra coisa, as restrições de movimento fazem-nos perceber que a quarentena impõe um desafio a muitas das pretensões do homem sobre si mesmo, ao exemplo do que a filósofa Hannah Arendt (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2016/05/1775143-leia-trecho-de- manuscrito-inedito-de-hannah-arendt-sobre-antissemitismo.shtml) ressaltou em seu discurso de aceitação do Prêmio Lessing de 1959, de evidente atualidade. https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2016/05/1775143-leia-trecho-de-manuscrito-inedito-de-hannah-arendt-sobre-antissemitismo.shtml Pois a possibilidade cada vez mais reduzida de decidirmos algo tão simples e fundamental como os limites do nosso deslocamento cotidiano denuncia, entre outras coisas, o risco que a liberdade de O escritor italiano Primo Levi (1919-1987) - Basso Cannarsa/AFP pensamento também corre nesta crise, já que a nossa atenção tende a se concentrar em um único tema, sempre a nos fazer reprisar os infindáveis cálculos de como precisamos agir se quisermos permanecer minimamente sadios, seguros e bem-providos. Foi pensando nisso que resolvi enveredar pela leitura de Primo Levi (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/07/primo-levi- transformou-em-arte-relato-sobre-horror-de-auschwitz.shtml), em busca, quem sabe, de algum conselho, tanto para nos tornarmos cientes dos desafios do confinamento para pessoas vivendo em situações extremas quanto para nos alertarmos da maneira que esta crise é administrada pela sociedade e por alguns dos seus líderes, cujos discursos e atitudes se traduzem em uma falta de compromisso com a vida (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/03/veja-o-que-bolsonaro-ja-disse-sobre- coronavirus-de-certa-histeria-a-fantasia-e-nerouse.shtml) e a dignidade humana. Apesar de incômodo, o nosso confinamento não se assemelha à experiência de Levi. No entanto, como sugere a cientista social Heloisa Pait, professora da Unesp, basta intuirmos a possibilidade de chegada do vírus às favelas brasileiras, a produzir sofrimento generalizado, desorganização social e ausência ou impossibilidade de luto individualizado para que o testemunho do autor se faça presente em nosso pensamento. https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/07/primo-levi-transformou-em-arte-relato-sobre-horror-de-auschwitz.shtml https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/03/veja-o-que-bolsonaro-ja-disse-sobre-coronavirus-de-certa-histeria-a-fantasia-e-nerouse.shtml Sobrevivente do Holocausto (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/10/com-ideia-de-holofraude-apoiador- de-bolsonaro-faz-nazismo-virar-piada.shtml), Primo Levi é autor de vasta obra memorialística, que descreve as suas experiências no Campo de Auschwitz (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/01/1578434-70-anos-depois-da- evacuacao-papel-dos-guardas-de-auschwitz-sera-exposto.shtml)-III durante 11 meses de cativeiro. Italiano nascido em 1919, Levi foi transportado em 1944, permanecendo no campo de extermínio até a sua libertação em 27 de janeiro de 1945 —período em que testemunhou as consequências do que foi o mais sistemático projeto de genocídio da história. Dos outros judeus italianos que chegaram com ele em Auschwitz, apenas 20 sobreviveram ao encarceramento, à rotina de trabalhos forçados, aos espancamentos e às seleções para as câmaras de gás e conseguiram, também, resistir à fome e à tuberculose, difteria, escarlatina e febre tifoide. Em seu primeiro livro, “É Isto Um Homem” (1947), Primo Levi comenta que, diante dos horrores do campo, os prisioneiros questionavam-se frequentemente como poderiam relatar aqueles acontecimentos para quem estava do lado de fora, dando-se conta, finalmente, que não possuíam um vocabulário em comum aos homens livres para delatar habilmente todo o processo de aniquilação a enfrentar. https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/10/com-ideia-de-holofraude-apoiador-de-bolsonaro-faz-nazismo-virar-piada.shtml https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/01/1578434-70-anos-depois-da-evacuacao-papel-dos-guardas-de-auschwitz-sera-exposto.shtml Eden Carli "É isto um homem" primeiro livro de Primo Levi. Neste sentido, os textos de Primo Levi cumprem a função de reproduzir, com excepcional clareza, a complexidade da vida em uma situação-limite, a fim de nos oferecer o que ele mesmo chamou de um sereno estudo sobre aspectos da alma humana, permitindo ao seu testemunho de sobrevivente nos inspirar a uma renovada crítica às expressões da lógica de exceção que, em maior ou menor grau, persiste na sociedade contemporânea. Para o pesquisador Lucas Amaral de Oliveira da Universidade Federal da Bahia, a atualidade do pensamento do autor pode ser caracterizada como uma espécie de aviso de incêndio: “No núcleo da narrativa de Primo Levi está [...] a compreensão da fragilidade dos valores e dos princípios erigidos na modernidade, a fragilidade, inclusive, da vida social perante a violência e a brutalidade da política e do poder.” Neste momento —em que além de precisarmos lidar com uma ameaça à nossa saúde (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/03/coronavirus-anuncia-revolucao-no- modo-de-vida-que-conhecemos.shtml) temos de aprender a navegar por um terreno político excessivamente polarizado (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/03/coronavirus-e-fascismo-de- bolsonaro-nos-fazem-esperar-por-nova-era-diz-sidarta.shtml)— talvez a principal lição de Primo Levi seja a de que devemos continuar atentos, apesar de vivermos em sociedades democráticas. https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/03/coronavirus-anuncia-revolucao-no-modo-de-vida-que-conhecemos.shtml https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/03/coronavirus-e-fascismo-de-bolsonaro-nos-fazem-esperar-por-nova-era-diz-sidarta.shtml É o o que alerta o autor em “Os Afogados e os Sobreviventes” (1986): “Poucos países podem dizer-se imunes em relação a uma futura onda de violência, gerada pela intolerância, pela vontade de poder, razões econômicas, fanatismos religiosos e atritos raciais. É preciso, pois, despertar nossos sentidos, desconfiar dos profetas, das personalidades carismáticas, daqueles que dizem e escrevem ‘belas palavras’ não apoiadas por boas razões”. Em um texto da última sexta-feira (https://www.ft.com/content/7eff769a-74dd-11ea-95fe-fcd274e920ca), os editores do jornal Financial Times chamam a nossa atenção para o fato de que a Covid-19 (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/04/como-na-italia-falta-de-uti-nos-fara- escolher-entre-quem-vive-e-quem-morre.shtml)e o necessário confinamento para controlarmos a pandemia tanto forçam-nos a enxergar as desigualdades já existentes em nossas comunidades quanto a refletir sobre os problemas políticos e sociais (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/03/renda-basica-antes-folclorica-vira- medida-essencial-para-enfrentar-crise-do-coronavirus.shtml) que deverão surgir assim que a nossa batalha contra o vírus chegar ao fim. Ora, se nas principais democracias do mundo ocidental o impacto social da crise econômica de 2008 gerou sérias consequências políticas, das quais ainda precisamos nos desvencilhar, quais serão os novos https://www.ft.com/content/7eff769a-74dd-11ea-95fe-fcd274e920ca https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/04/como-na-italia-falta-de-uti-nos-fara-escolher-entre-quem-vive-e-quem-morre.shtml https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/03/renda-basica-antes-folclorica-vira-medida-essencial-para-enfrentar-crise-do-coronavirus.shtml fatores de tensão e conflito ao final desta longa quarentena? Para os editores do Financial Times, o modo como estamos combatendo o vírus beneficia alguns à custa de outros (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/04/coronavirus-evidencia- que-cartilha-de-bolsonaro-e-delirio-de-loucos.shtml). Lembro-me mais uma vez de Primo Levi ao comentar as estratégias de sobrevivência no campo de extermínio: "Na história e na vida parece-nos, às vezes, vislumbrar uma lei feroz que soa assim: a quem já tem, será dado; de quem não tem, será tirado”. Nesse sentido, os editores do jornal também nos advertem que, embora sacrifícios sejam inevitáveis, as sociedades ocidentais precisariam esclarecer como será a compensação àqueles que carregam o fardo mais pesado pelos esforços nacionais de contenção da crise, como por exemplo os jovens em idade escolar e início de carreira, os trabalhadores informais e os prestadores de serviços. Assim, o artigo enfatiza que, para sermos capazes de demandar um sacrifício coletivo, devemos estar aptos a oferecer um contrato social que beneficie todos (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/angela-alonso/2020/04/nenhum-governo-pode- se-dar-ao-luxo-de-ser-liberal-na-pandemia-de-coronavirus.shtml). Ora, já nos advertia Primo Levi em seu primeiro livro: “Considera-se tanto mais civilizado um país, quanto https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/04/coronavirus-evidencia-que-cartilha-de-bolsonaro-e-delirio-de-loucos.shtml https://www1.folha.uol.com.br/colunas/angela-alonso/2020/04/nenhum-governo-pode-se-dar-ao-luxo-de-ser-liberal-na-pandemia-de-coronavirus.shtml Eden Carli Eden Carli "Na história e na vida parece-nos, às vezes, vislumbrar uma lei feroz que soa assim: a quem já tem, será dado; de quem não tem, será tirado”. Eden Carli mais sábias e eficientes são suas leis que impedem ao miserável ser miserável demais, e ao poderoso ser poderoso demais”. No caso do Brasil, eu penso que qualquer espécie de compensação também deverá incluir aquelas pessoas em situação de pobreza extrema (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/03/renda-basica-antes-folclorica-vira- medida-essencial-para-enfrentar-crise-do-coronavirus.shtml), cuja humanidade é frequentemente questionada por todos aqueles que, de alguma maneira, se beneficiam dos seus desesperados esforços individuais para escapar da mais completa miséria. Em artigo de capa sobre o impacto da atual pandemia nos países mais pobres e subdesenvolvidos (https://www.economist.com/leaders/2020/03/26/the-coronavirus-could-devastate-poor- countries), publicado na edição de março da revista britânica The Economist, somos intimados a refletir sobre o grau de devastação que poderá acometer sociedades em que a maioria da população não tem condições de aplicar as regras básicas de higiene e de distanciamento social (https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/nas-palafitas-do-recife-com-calor-e- sem-agua-se-isolar-contra-coronavirus-e-inviavel.shtml), como a população das nossas favelas. Outro ponto do artigo refere-se à jovem população dos países em desenvolvimento e corrobora a recente declaração do pesquisador Marcelo Gomes (Fiocruz) à https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/03/renda-basica-antes-folclorica-vira-medida-essencial-para-enfrentar-crise-do-coronavirus.shtml https://www.economist.com/leaders/2020/03/26/the-coronavirus-could-devastate-poor-countries https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/nas-palafitas-do-recife-com-calor-e-sem-agua-se-isolar-contra-coronavirus-e-inviavel.shtml Eden Carli "Impedir o miserável de ser miserável demais re os poderosos de serem poderosos demais" jornalista Monica Bergamo. Para ele, o fator idade pode não representar uma vantagem diante das condições de vida dos mais pobres (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2020/04/populacao-mais- jovem-na-periferia-pode-gerar-onda-epidemica-diferente-de-coronavirus.shtml). A partir da leitura de Primo Levi, eu não posso deixar passar em branco que muitos desses homens e mulheres de comunidades carentes (https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/quarentena-em-sao-paulo-reduz-dieta- de-criancas-na-periferia-a-arroz.shtml) estariam em risco de compartilhar uma sina análoga a do anônimo enxame humano descrito pelo autor: “Englobados e arrastados sem descanso pela multidão inumerável de seus semelhantes, eles sofrem e se arrastam numa opaca solidão íntima, e nessa solidão morrem ou desaparecem sem deixar lembrança alguma na memória de ninguém”. Embora estivesse ciente dos defeitos e prováveis injustiças cometidas em nossa tentativa de compararmos as situações extremas presentes ou pretéritas, ainda naquele seu primeiro livro Levi diz estar convencido de que "nenhuma experiência humana é vazia de conteúdo, de que todas merecem ser analisadas; de que se podem extrair valores fundamentais (ainda que nem sempre positivos) desse mundo particular que estamos descrevendo”. https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2020/04/populacao-mais-jovem-na-periferia-pode-gerar-onda-epidemica-diferente-de-coronavirus.shtml https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/quarentena-em-sao-paulo-reduz-dieta-de-criancas-na-periferia-a-arroz.shtml Eden Carli Levi destacando a importância da experiência. Muito sabiamente, Levi jamais considerou a sua sobrevivência um feito heroico. No entanto, em ensaio de 1999 para a New York Review of Books (https://www.nybooks.com/articles/1999/05/20/the-courage-of-the-elementary/), o historiador Tony Judt comenta a coragem do autor em defender um humanismo sempre atento a preservação da memória individual e capaz de nos fazer confrontar os mais elementares aspectos do comportamento do humano que, se não forem investigados e compreendidos, podem levar o homem à própria ruína. Juliana de Albuquerque Escritora, doutoranda em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv. tter.com/the_stardust) ENDEREÇO DA PÁGINA https://www1.folha.uol.com.br/colunas/juliana-de- albuquerque/2020/04/primo-levi-reproduz-com- clareza-complexidade-da-vida-em-situacoes-limite.shtml https://www.nybooks.com/articles/1999/05/20/the-courage-of-the-elementary/ http://twitter.com/the_stardust