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ESTUDOS DE LITERATURA – DRAMA Caroline Costa Nunes Lima O drama romântico em língua portuguesa Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Identificar a estética romântica na literatura dramática. Analisar elementos de destaque na obra de Almeida Garrett. Interpretar textos dramáticos de Martins Pena e Qorpo Santo. Introdução O teatro faz parte da história brasileira desde que, na colonização, foi utilizado como meio educativo e de catequização dos índios. Por meio de peças que relacionavam o contexto local dos considerados “gentios” com fundamentos do cristianismo, a dramaturgia já era inserida no País. Ao longo do tempo, a produção de dramas em língua portuguesa se vinculou a diversos movimentos artísticos, tanto no Brasil quanto em Portugal e outros países. Neste capítulo, você vai estudar a estética romântica na literatura dramática e conhecer alguns dos principais autores de peças românticas escritas em língua portuguesa. A estética romântica na literatura dramática Em diferentes momentos da história, é possível identifi car, na análise de obras literárias, especifi cidades relacionadas com contextos históricos, sociais e culturais. Como você sabe, os diferentes movimentos artísticos e intelectuais de abrangência mundial compreendem características comuns, compartilhadas por escritores e outros artistas de cada período. Aqui, você vai estudar o período romântico, que se originou a partir de uma tendência de oposição ao pensamento neoclássico. É importante você notar que não há como precisar em qual local surgiu a primeira manifestação do romantismo, tendo em vista que os movimentos artísticos vão se construindo de forma gradual em diferentes lugares, como uma forma natural de evolução dos estilos. Para conhecer melhor as características que constituem as obras do estilo romântico e que estão presentes em diferentes manifestações artísticas desse período, observe o Quadro 1, a seguir. Característica Descrição Individualismo e subjetivismo A atitude romântica é pessoal e íntima. É o mundo visto por meio da personalidade do artista. O que se revela é a atitude pessoal, do mundo interior, ou seja, o estado de alma provocado pela realidade exterior. Ilogismo Não há “lógica” na atitude romântica: a regra é a oscilação entre os polos opostos de alegria e melancolia, entusiasmo e tristeza. Senso de mistério O espírito romântico é atraído pelo mistério da existência. Escapismo O romântico deseja fugir da realidade para o mundo idealizado, criado à imagem de suas emoções e anseios mediante a imaginação. Reformismo A busca por um mundo novo é responsável pelo sentimento revolucionário do romântico. Sonho A procura por um mundo ideal também é responsável pelo aspecto sonhador do temperamento romântico. Em lugar do mundo conhecido, deseja-se a terra incógnita do sonho, muitas vezes representada por símbolos e mitos. Fé Em vez da razão, é a fé que comanda o espírito romântico. O romântico valoriza a faculdade mística e a intuição. Culto à natureza Supervalorizada pelo romantismo, a natureza é encarada como um lugar de refúgio, puro, não contaminado pela sociedade. É um lugar de cura física e espiritual. Retorno ao passado O escapismo romântico se traduz em fuga para a natureza, em retorno ao passado, idealizando uma civilização diferente daquela do presente. Quadro 1. Características do romantismo (Continua) O drama romântico em língua portuguesa2 Característica Descrição Pitoresco Além de desejar a remotidão no tempo, o romântico também é atraído pela vastidão do espaço. Entra em cena o gosto pelas florestas selvagens, orientais, ricas de pitoresco ou simplesmente com diferentes fisionomias e costumes. Exagero Na sua busca pela perfeição, o romântico foge para um mundo em que coloca tudo o que imagina de bom, bravo, belo, amoroso, puro. Tal mundo se situa no passado e no futuro, ou em um lugar distante, um universo de perfeição e sonho. Quadro 1. Características do romantismo A partir das características mostradas no Quadro 1, você pode identificar elementos da estética romântica em diferentes manifestações artísticas, in- clusive no gênero dramático, objeto de seus estudos aqui. A revolução teatral no romantismo se desenvolveu em oposição às regras presentes no período neoclássico. Nesse período, os artistas desejavam um “[...] retorno ao equilí- brio e à simplicidade da arte clássica, à naturalidade e clareza dos modelos primitivos greco-romanos [...]” (COUTINHO, 1972, p. 130). O romantismo assume tendências que se voltam ora para o passado nacional, ora para a história moderna. Ele busca formas que traduzem costumes e conexões entre nobre e grotesco, belo e feio, “[...] no pressuposto de que o contraste é que chama a atenção, além de assim mostrar-se mais fiel à realidade. Por último, o drama romântico misturou o verso e a prosa [...]” (COUTINHO, 1972, p. 150). Outros aspectos apontados por Moisés (2001) consideram que o teatro romântico se apoiou nos elementos tradicionais clássicos das obras de Shakespe- are e no cotidiano burguês, porém rompendo com o modo como tempo, espaço e ação tradicionalmente se apresentavam no teatro clássico. Naquele período, “[...] as unidades de ação — particularmente as observadas por Aristóteles, de espaço e de tempo — são também por Shakespeare preservadas, evidenciando a importância do encadeamento dos fatos e da ação livre dos personagens para a trama [...]” (FREITAS, 2011, p. 8). A partir de um novo modo de construção literária, há nos dramas românticos o foco em temas que perpassam questões existenciais humanas, sociais e morais. (Continuação) 3O drama romântico em língua portuguesa Outro ponto a ser destacado é que esse movimento romântico ocidental, que se manifestou como um estilo de vida, de cultura e de arte em diferentes partes da Europa e da América, contou com gerações de indivíduos cujas obras apresentaram características distintas. Há uma fase conhecida como pré-romantismo presente na Alemanha e Inglaterra no século XVIII. Nessa fase, destacam-se nomes tais como James Macpherson, Johann Wolfgang von Goethe e Edward Young (COUTINHO, 1972). Já a primeira geração, identificada com personalidades nascidas aproximada- mente na década de 1770, é representada por nomes como William Blake, Ludwig Van Beethoven e Samuel Taylor Coleridge. Nessa geração, há algumas marcas do estilo clássico e um esforço para alcançar a sensibilidade. A segunda geração, por sua vez, tem como representantes escritores nascidos entre 1788 e 1802, tais como George Gordon Byron (Lord Byron), Almeida Garrett e Heinrich Heine, que já se encontram em um universo romântico mais consolidado. Por fim, a terceira geração inclui personalidades nascidas entre 1810 e 1820, tais como Edgar Allan Poe, Alexandre Herculano e Vissarion Belinsky (COUTINHO, 1972). Como você pode notar, no decorrer desse período, as manifestações da estética romântica literária consolidaram esse movimento repleto de criações individualistas e livres da rigidez do período anterior. Quando se fala especifi- camente da produção dramática, destaca-se um gosto pelos marcos históricos com inclinações para o trágico. Autores dramáticos românticos — tais como Almeida Garrett e Júlio Dinis em Portugal e Martins Pena e Qorpo Santo no Brasil — tinham predileção por essas temáticas, acreditando que o teatro era um eficiente meio de se difundir a história e valorizar os feitos nacionais. Assim, a partir da contribuição de per- sonalidades que deixaram a sua marca por meio de suas obras revolucionárias, emergiu o romantismo, um movimento que contrapôs a estética neoclássica racional e rígida e que colocou o indivíduo como centro da criação. A obra de Almeida Garrett João Batista Leitão de Almeida Garrett nasceu na cidade do Porto, em Portugal, em 4 de fevereiro de 1799. Durante sua vida, ocorreram situações históricas trágicas importantes,como a invasão napoleônica. Além disso, Garrett pas- sou por períodos de exílio na Inglaterra devido às suas ideias liberalistas e a missões diplomáticas. O contexto histórico em que o autor viveu foi marcado pelo progresso do libera- lismo, trazendo transformações nas esferas políticas, culturais, artísticas e sociais. O drama romântico em língua portuguesa4 Assim, elementos nacionais identitários advindos dessas mudanças podem ser encontrados em suas construções literárias. O romantismo de Garrett não é predominantemente subjetivista e escapista, como o romantismo de outros autores da Europa. Em suas obras, encontram-se bases filosóficas e sociológicas advindas do Iluminismo, sem um esforço de afastar-se de fontes da literatura clássica (MACHADO, 2011). A respeito das relações entre o gênero dramático e a obra do autor, você pode considerar que o teatro foi um instrumento educativo pelo qual Garrett lutou, participando de uma campanha em prol do teatro nacional em 1838 e fundando o Teatro de D. Maria II e o Conservatório Dramático (MOISÉS, 2002). Quanto às suas produções, em linhas gerais, há na obra dramática de Garrett: [...] um contraponto positivo, de educação, de forma que o romantismo garret- tiano foi construtivista e muito mais iluminista, com um empenho e consciência de que a literatura deveria ser propedêutica. Ele retoma na História o espírito educativo do teatro, predispondo sua produção a continuar o princípio de que o texto literário tem lições válidas a todos. A valorização do passado através do teatro traz a percepção de que em algum momento, sobretudo de formação nacional, no passado é possível empreender um resgate ficcional que contraste com o mundo contemporâneo (MACHADO, 2011, p. 6). Entre as contribuições de Garrett para a arte dramática, encontra-se a peça Um auto de Gil Vicente, de 1838, considerada um marco em sua trajetória na dramaturgia nacional romântica. No título, figura o nome de Gil Vicente, um dramaturgo e poeta português considerado pelos críticos como pioneiro do teatro em seu país. Garrett foi se afastando gradativamente das influências neoclássicas para aproximar-se de um drama nacionalista histórico escrito em três atos, em ações que se passavam na corte do Rei D. Manuel I. Veja o que afirma o próprio Garrett (1966, p. 1.326): O drama de Gil Vicente que tomei para título deste não é um episódio, é o assunto mesmo do meu drama; é o ponto em que se enlaça e do qual se de- senlaça depois a acção; por consequência a minha fábula, o meu enredo ficou até certo ponto obrigado. Mas eu não quis só fazer um drama, mas sim um drama de outro drama e ressuscitar Gil Vicente a ver se ressuscitava o teatro. 5O drama romântico em língua portuguesa Entre os elementos de destaque dessa obra, encontram-se as marcas da pureza de estilo e de linguagem, as ações bem desenvolvidas e de transições harmônicas. Em um viés nacionalista, há a indicação de grandes feitos heroicos de antepassados, “[...] apurando o gosto da nação, deleitando e instruindo, servindo para propagar os princípios e máximas salutares da moral, e alimen- tando nos corações a sagrada chama do patriotismo, sem o qual não existe liberdade civil [...]” (ATALAIA, 1838, p. 57). Outra produção literária tida como referência é o drama Frei Luís de Sousa. A tragédia é composta em três atos e teve sua primeira apresentação em 1843, sendo publicada em 1844. O drama gira em torno de Manuel de Sousa Coutinho, que se tornaria mais tarde Frei Luís. Os personagens Madalena de Vilhena e Manuel contraíram núpcias acreditando que D. João de Portugal, até então esposo de Madalena, desaparecido na Batalha de Alcácer-Quibir juntamente a D. Sebastião, havia morrido. No entanto, ele estava vivo e é em seu retorno ao lar que a trama se desenrola. De acordo com Machado (2011, p. 8): Há um elemento interessante no olhar de Almeida Garrett, pois ele elegeu uma matéria histórica para reescrevê-la numa perspectiva contemporânea a ele e a seus leitores. A História foi utilizada como mestra da vida. Em Frei Luís de Souza se faz presente a releitura da matéria histórica. Nela se imbrica a representação do destino trágico com os desdobramentos históricos. Esta obra é pautada na óptica da intertextualidade, pois utiliza fontes literárias e históricas em sua confecção. No decorrer do drama, é possível notar o quanto Garrett está voltado para um sentimento de nacionalismo, trazendo elementos históricos do passado de Portugal. Em Frei Luís de Sousa, o próprio título da obra remete a um personagem histórico, um fidalgo cavaleiro da Ordem Militar de Malta que tornou-se frade. Além disso, toda a trama se relaciona ao período sebastianista, durante o qual, na batalha de Alcácer-Quibir, D. Sebastião desapareceu. Em diferentes atos, o possível reaparecimento do rei é mencionado pelos personagens. Tal reaparecimento serviria para que o país tivesse a sua independência restaurada (NOBLE, 2012). Você ainda pode considerar que os dramas históricos românticos, tais como as obras de Garrett, tratam de questões sociopolíticas, conflitos passionais e crises. Além disso, no caso de Garrett, os “[...] contornos de personalidade e atitudes [estão] em conformidade com o testemunho histórico e com a projeção ficcional que o autor lhe imprimiu [...]” (VASCONCELOS, 2003, p. 442). Tanto em Um auto de Gil Vicente, que restaurou o teatro português, como em Frei Luís de Sousa, aparece, nos elementos textuais, o pensamento romântico nacionalista. Assim, Garrett deixou para Portugal obras de referência no acervo histórico e literário nacional. O drama romântico em língua portuguesa6 Textos dramáticos de Martins Pena e Qorpo Santo Dois autores brasileiros trouxeram signifi cativas contribuições para o drama romântico em língua portuguesa. São eles: Martins Pena e Qorpo Santo. Você já ouviu falar sobre as obras desses escritores? Luís Carlos Martins Pena nasceu no Rio de Janeiro em 1815. Ele ficou órfão ainda criança, sendo cuidado pelos seus tutores. Martins Pena faleceu jovem, aos 33 anos de idade, em 7 de dezembro de 1848, depois de complicações de saúde ocorridas em uma viagem para Portugal. Segundo Paula (2016, p. 27): Apesar do curto espaço de tempo em que escrevera seus textos dramáticos, tendo iniciado sua elaboração teatral logo após o término do curso de Co- mércio, no ano de 1835, e sendo datada ao ano de 1838 a primeira encenação de O juiz de paz na roça (totalizando dez anos de produção dramática), o dramaturgo, como todo grande nome do campo das artes, despertou interesse por parte da crítica, seja pelo incrível sucesso que suas peças obtiveram com relação ao público, seja pela proposta inovadora em trazer certa brasilidade ao texto teatral, não apenas fazendo com que as produções cênicas tivessem como cenário as terras brasileiras, mas abordando temáticas, personagens e modos intimamente ligados à configuração sociopolítica e econômica de nossa nação recém-independente. Os textos dramáticos de Pena, com destaque para a peça O juiz de paz na roça, provocavam diferentes reações devido ao seu caráter cômico e ridículo, trabalhado por meio de uma linguagem coloquial bem explorada (BOSI, 2000). Críticos literários afirmam que Pena está para a literatura brasileira como Gil Vicente para a literatura portuguesa, no sentido da espontaneidade de seus textos, que não se apoiam em outras tradições do gênero dramático, como aponta Moisés (2001, p. 404): [...] Martins Pena parece não dever nada aos predecessores, não só porque escassos mas também irrelevantes. Tão insólita quanto a de Gil Vicente é, consequentemente, sua aparição no cenário das nossas letras, sobretudo por termos herdado de Portugal a débil inclinação para os negócios teatrais. Por ter se dedicado exclusivamente à dramaturgia, Martins Pena foi reco- nhecido por sua contribuição às comédias de costume. Veja um fragmento de O juiz de paz na roça, considerada sua obra-prima (PENA,1838, p. 31): 7Odrama romântico em língua portuguesa Juiz — Assim meu povo! Esquenta, esquenta! Manuel João — Aferventa!... Tocador — Em cima daquele morro Há um pé de ananás; Não há homem neste mundo Como o nosso juiz de paz. Todos — Se me dás que comê, Se me dás que bebê, Se me pagas as casas, Vou morá com você. Juiz — Aferventa, aferventa! Estudada por muitos críticos, como Bosi (2000), essa peça tem um final que chama a atenção, pois nele se destacam as ações do juiz de paz. Convocado para apaziguar alguns ânimos alterados, o juiz promove a confraternização em sua sala de despacho, com um fado ao fundo. De maneira geral, os textos de Martins Pena não só apresentavam cenários que reproduziam o País, mas neles estavam presentes questões sociais, políticas e econômicas de um Brasil independente há pouco tempo. Pena trazia para o teatro os maus cidadãos e costumes que iam de encontro aos valores das classes que se apropriavam de sua arte. A comédia de Martins Pena, de acordo com Moisés (2001, p. 406), [...] exige apenas a participação antes sensorial que intelectual do auditório, e manipula recursos de efeito certo, apesar de óbvios e constantes. Cômico à brasileira, puxado à farsa, à chalaça, ao carnavalesco, ao desabrimento come- dido de uma sociedade que, posto se imagina europeia, é agitada por acessos de tropicalidade sem freio. Humor da piada de salão, que estruge em riso desopilante, malicioso e, durante um instante fugaz, morre sem consequências. A partir desses aspectos, é possível identificar as marcas deixadas por um autor que, em seus 33 anos de vida, contribuiu para o acervo do drama nacional retratando os costumes brasileiros. Suas peças têm como temática “[...] relações envolvendo sexo e amor entre diferentes níveis da sociedade, entre jovens da mesma condição econômica, outros mais pobres, entre velhos casados e ricos [...] com empregadas, entre um moço rico e vários tipos de mulher [...]” (ARÊAS, 2006, p. 4). O drama romântico em língua portuguesa8 A comédia de costume foi um gênero que caiu no gosto popular e se adaptou ao teatro formal. Fazendo uma crítica social por meio “[...] da utilização da troça e da ironia, esse gênero teve ampla aceitação no Brasil [...]” (GARCIA, 2013, p. 16). Outro autor de destaque chama-se Qorpo Santo, pseudônimo de Joaquim de Campos Leão. O pseudônimo foi escolhido pelo autor com base na crença de que tinha um corpo santo, já que, diante de tantas adversidades, como problemas mentais e injustiças sociais, conseguira realizar criações literárias no campo da dramaturgia. Qorpo Santo nasceu no Rio Grande do Sul, em 1829, e trabalhou como professor, comerciante, vereador e delegado antes de produzir seus dramas. Ele faleceu em 1883, no mesmo estado em que nasceu. Acesse o link a seguir para conhecer as obras de Qorpo Santo no site Domínio Público, que reúne suas peças e romances. https://qrgo.page.link/2rFP De acordo com críticos de seus textos dramáticos, como Moisés (2001), Qorpo Santo alcança uma visão projetada para o futuro. Ele criou peças que não se moldavam ao teatro de seu tempo, apresentando uma linguagem com- plexa, se aproximando de um caos nos mais minuciosos detalhes e oscilando entre realidade e fantasia. Assim, foi considerado por alguns críticos como um precursor do “[...] teatro do absurdo, em nosso país, uma tendência teatral originada na França na década de 1960 [...]” (HOLLAND, 2010, p. 15). Qorpo Santo estava ciente de que suas peças não obedeciam aos padrões da dramaturgia tradicional. As peças que começam por comédia e terminam por tragédia ou romance são constantes e, possivelmente, o autor ainda não havia visto obras em que as personagens conversassem com o público e o levassem à reflexão. Mesmo sendo possível encontrar elementos que aproximem as suas 17 peças, aparentemente inclassificáveis, ao teatro do absurdo, ao surrealista, 9O drama romântico em língua portuguesa ao brechtiniano, ou qualquer corrente teatral moderna, não existe referência anterior à escrita qorpo-santense que indique uma “inspiração” para a sua dramaturgia. Assim, Qorpo Santo apresentava temáticas cotidianas permeadas pelas relações interpessoais, com predileção pelas temáticas sexuais nos casamen- tos. Veja, por exemplo, a cena a seguir, da peça Duas Páginas em Branco (SANTO, 1866, p. 364): Ato segundo, cena primeira — Personagens: Mancília, Espertalínio, Pedro, Paulo e soldados, um chamado Lagartixa. Cenário: sala da casa de Mancília. Há dois bilhares no cenário. Pedro e Paulo jogam e conversam. Mancília e Espertalínio saem do quarto espantados porque a sala de visitas se transformou em sala de jogos. Tentam expulsar os dois jogadores que disseram ter entrado ao ver os bilhares. Neste instante, ouve-se alguém gritar várias vezes “Às armas!”. Espertalínio se prepara para sair e ajudar, mas é impedido por Mancília, que tem medo que ele morra. Abraçam- -se e beijam-se e vão jogar bilhar. Assim que pegam nos tacos, soldados entram para prender Espertalínio, que foi acusado de roubar os bilhares e uma moça. Mesmo gritando que é inocente, os soldados o levam. Cena segunda — Personagens: Mancília e Tenente. Cenário: sala da casa de Mancília. Mancília aparece descabelada e chorosa, lamentando o que aconteceu. Cai de joelhos pedindo misericórdia de Deus. Sente fortes dores de ca- beça. Diz não acreditar mais em Deus por não ver fim em seu sofrimento. Soldados entram para prendê-la, ela cai como morta. Os soldados fogem. Passados alguns minutos, entra um tenente, por achar que a casa é um hotel. Acode Mancília, que havia tomado por bêbada. Ela pergunta de seu marido, esclarece ao tenente que ali não é hotel, mas que pode matar-lhe a fome com seus seios. Empolgado com a proposta, o tenente informa que ficará também para dormir. Ao analisar o fragmento anterior, note as relações sociais e sexuais entre os personagens, em trechos como “matar-lhe a fome com seus seios”. Esses são elementos de um “profano” que entra em relação com o sagrado quando, por exemplo, a personagem pede a misericórdia de Deus (HOLLAND, 2010). Qorpo Santo, com todas as suas produções, deixou um legado de peças que desenvolvem situações absurdas, organizadas de modo estruturalmente fragmentado e com ações realizadas por meio de personagens caracterizados O drama romântico em língua portuguesa10 como estranhos, causando impacto no público que consumia os dramas no século XIX. Com essas criações, Qorpo Santo coloca sua marca na história literária, retratando o cotidiano e os costumes de personagens em situações diferenciadas. Até hoje, seus textos são estudados e analisados devido às suas inovações, inusitadas para a época vivida pelo autor. ARÊAS, V. A comédia no romantismo brasileiro: Martins Pena e Joaquim Manuel de Macedo. Novos Estudos, São Paulo, n. 76, p. 197-217, nov. 2006. Disponível em: http:// www.scielo.br/pdf/nec/n76/10.pdf. Acesso em: 4 abr. 2019. ATALAIA NACIONAL DOS THEATROS, [s. l.], n. 15, p. 57-58, 16 ago. 1838. BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. 36. ed. São Paulo: Cultrix, 2000. COUTINHO, A. Introdução à literatura no Brasil. 7. ed. Rio de Janeiro: Distribuidora de Livros Escolares, 1972. FREITAS, J. G. S. Sobre a teoria dos gêneros dramáticos, segundo Diderot, e sua apro- ximação da Poética de Aristóteles. In: ENCONTRO D EPESQUISA NA GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA DA UNESP, 6., 2011, Marília. Anais [...]. Marília: Unesp, 2011. 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