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Vídeo Jusnaturalismo Segundo Cleyson de Moraes Mello (2008), a palavra direito é polissêmica, ou seja, pode ter mais de um sentido. Trata-se de um vocábulo com origem latina, formado pelo termo directus (guiar, conduzir, dirigir), trazendo a ideia de que o Direito não é curvo, mas íntegro, justo, honrado. Também representa o conjunto de normas escritas e vigentes em um determinado Estado, chamadas de normas positivas. Os vários sentidos da palavra direito nos conduzem para alguns questionamentos. Será que a ideia de Direito estaria restrita às normas editadas pelo Poder Legislativo? Qual é o parâmetro uti- lizado para se criar as leis? Seriam todas as leis escritas pelos parlamentares justas e adequadas para regular as relações humanas? Essas questões assolaram diversos pensadores ao longo da história do Direito. Vamos concentrar nossa análise no estudo de duas correntes que buscaram respostas a essas perguntas: o jusnaturalismo e o juspositivismo. De acordo com Dimitri Dimoulis (2013), o jusnaturalismo compreende que existe uma per- feição de regras que são necessárias, adequadas e estáveis – advindas da natureza – para regular o comportamento de todos os seres vivos. Essa perspectiva remonta ao Direito natural1, o qual invo- ca uma norma superior (natural) para questionar a validade de uma norma positiva, a chamada lei natural decorrente de uma ordem cósmica (céus e universo), após seu descobrimento pela razão, estando ligada a uma força superior aos homens. O Direito natural invoca uma norma superior para questionar a validade de uma norma positiva. Adrian Sgarbi (2007) preconiza alguns importantes postulados do jusnaturalismo: duali- dade, derivação, caráter universal, cognoscibilidade e limite à atividade do legislador. Seria um fenômeno dualístico, pois haveria, na visão do citado jurista, dois diferentes direitos, um natural e imutável e outro derivado da obra humana, positivado pelo legislador, em um dualismo natureza x autoridade humana (SGARBI, 2007). Trata- se de fenômeno derivado, verdadeira maneira de se atribuir ou não reconhecimento jurídico, de caráter universal, pois suas disposições afetariam 1 Para Adrian Sgarbi (2007), o Direito natural é uma forma de entender o fenômeno jurídico, uma construção, isto é, um conjunto de princípios ético-sociais. Ou seja, o sentido primeiro de Direito natural é de uma postura epistemológica, portanto ele não se encontra no mesmo patamar que o Direito elaborado pelo legislador. a todos, sem distinção. Sua cognoscibilidade se verifica pelo fato de que podem ser conhecidos por todos pela razão. E por fim, impõe limite à atividade do legislador em razão de estar acima de eventual atividade legislativa2 que poderia vir a violá-lo. Desde a Antiguidade, os gregos já encaravam a discussão do Direito natural. A tragédia grega Antígona (SÓFOCLES, 2005) foi um marco na explicação do fenômeno do Direito natural. Na obra, Antígona vai contra um decreto do rei Tebas que impedia de enterrar o seu irmão. Por entender que tal norma afrontava a lei dos deuses, deixa de cumpri-lo, realizando ela mesma o enterro do irmão. Depreende-se que, na obra de Sófocles, a lei natural seria imutável, imortal, não escrita e eterna e, portanto, superior à norma positiva. Da obra Antígona extraem-se importantes concepções, dentre as quais a da supremacia da ordem divina diante das leis dos homens e, por conseguinte, verdadeiro conflito entre ambas; tudo isso em razão da reflexão interior da personagem Antígona, ao não querer se submeter ao decreto do rei, que ela considerava injusto3. Já nas obras de Aristóteles, o Direito natural é compreendido como uma força natural, mais estritamente ligada à ideia de justo, enquanto em Sófocles o Direito estaria mais relacionado à ideia de divindade. Aristóteles defende a justiça política em (i) natural, que estaria em todos os lugares, independentemente da aceitação do indivíduo, e (ii) legal, que dependeria da determinação de uma norma externa ao sujeito. O estoicismo – doutrina desenvolvida por Zenão de Cítio (332-265 a.C.) e aperfeiçoada pelo romano Marco Túlio Cícero (104-43 a.C.) – compreendia que havia um legislador supremo que estabeleceria regras que os homens não teriam condições de mudar, apesar do seu livre- -arbítrio. Assim, caberia ao ser humano ser indiferente às coisas que não poderia mudar, como a dor e a pobreza, sujeitando-se à vontade do legislador universal. O justo estaria em sintonia com o legislador supremo, e não com as leis convencionadas pelos homens. O jusnaturalismo recebeu forte influência do cristianismo. Toda a concepção ocidental do Direito está ligada à concepção cristã. Nos Evangelhos (textos que contam a vida de Jesus: ensina- mentos, julgamento e morte), existe uma distinção forte entre a justiça humana e a justiça divina. Como a justiça humana é transitória e ligada ao poder, não estaria nela a verdade, mas, sim, na lei de Deus, que é absoluta, eterna e imutável. A morte de Jesus foi um acontecimento de grande porte que provocou a expansão de sua pregação, e a mensagem passada pelos apóstolos anunciava a justiça divina que viria com o retorno de Jesus. Um dos propagadores mais relevantes no anúncio do evangelho foi Paulo de Tarso, que, por meio de suas cartas, levou a mensagem para a Península Romana. 2 A expressão doutrina do Direito natural (ou com o vocábulo jusnaturalismo) tem denominado as teorias, qualquer que seja a ideia que se faça de natural e de natureza, que sustentam a procedência ou superioridade de certos direitos, quando são confrontados com os direitos produzidos pelo legislador (SGARBI, 2007). 3 Segundo Coulanges (2006), é possível perceber nos escritores antigos o quanto o homem era atormentado pelo receio de que, depois da morte, os ritos não lhe fossem tributados. Essa era uma fonte de angustiantes inquietações. Temia-se menos a morte do que a privação da sepultura, pois nela residia o repouso e a felicidade eterna. Paulo, em seus textos, trata sobre a dualidade das condutas boas e aprovadas por Deus em oposição às ações destrutivas e contrárias à vontade divina, agindo com justiça aquele que está de acordo com os preceitos de Deus. Paulo foi responsável pela expansão do pensamento cristão, que foi implantado no Império Romano e, posteriormente, serviu de base para a concepção de ética do Período Medieval na Europa. Surge, desse modo, o jusnaturalismo teológico, que compreende o Direito natural como algo decorrente da vontade divina. Essa segunda compreensão do jusnaturalismo parte da influência do cristianismo, que aumentou muito após a queda do Império Romano, momento em que toda a Europa ficou dividida. A Igreja católica foi uma das poucas instituições que sobreviveram a esse momento de fragmentação, conferindo à região identidade e posterior unificação política, com os reis. Entre os pensadores católicos, dois autores fortaleceram a ideia de que a lei humana deveria corresponder à lei divina: Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Para Santo Agostinho, a justiça consistia na essência do Direito e, sem ela, o Direito seria uma instituição transitória e humana, iníqua e desprovida de sentido. São Tomás de Aquino compreende que, embora Deus tenha criado o mundo, este é autôno- mo. Ele entendia que existiam as causas primeiras e as causas segundas. As causas primeiras eram as leis de origem divina que ordenavam o universo. Já as causas segundas eram os princípios dados por Deus para o mundo e para os homens. Desse modo, podemos identificar categorias de lei: a lei eterna, a lei natural e a lei humana. Bittar e Almeida (2016) afirmam que a lei eterna é a vontade de Deus que rege todas as coisas; a lei natural pode ser alcançada pelo ser humano por meio de sua razão ao analisar a natureza e suas regras, e se estende aos homens e aos animais; a lei humana é convencional,relativa e deve procurar refletir o conteúdo das leis eterna e natural. Com o movimento de ascensão do Renascimento e do Iluminismo, os pensadores da época buscaram afastar a Igreja das questões políticas, jurídicas e econômicas. A concepção do Direito natural se modificou sobremaneira, a partir de meados do século XVI, procurando-se retirar o enfoque divino da teoria filosófica sobre a justiça, deixando-a com um caráter laico, e substituindo-a pela razão. Veremos, agora, os conceitos de Direito natural defendidos por alguns dos mais importantes pensadores do período. Hugo Grócio, considerado o fundador do Direito natural na Era Moderna, parte das premissas de que (i) o Direito é um princípio racional, cujo objetivo é exercer uma função pacificadora à sociedade, e de que (ii) o Direito, sendo um princípio racional, tem validade por si próprio, independentemente de qualquer outro fator. Verifica-se que, na doutrina de Grócio, há reflexão do desejo de autonomia, passado da ordem divina, anteriormente defendida como substrato do Direito, para a natureza humana como centro da teoria. Sua obra influenciou grandemente a construção do Direito internacional (SGARBI, 2007). Samuel Pufendorf, discípulo de Grócio, buscou, em suas obras, conciliar correntes diver- gentes por meio de métodos matemáticos, com o fito de construir um princípio imutável. Em sua tese, a formação da ideia sobre o que é adequado ou não deve ser elaborada com base em al- guns elementos: (i) à luz da natureza; (ii) à luz das leis; (iii) à luz da revelação divina. Nesse senti- do, o Direito natural seria elemento fundamental para consolidar a paz social e legitimar a atua- ção dos Estados, mediante a ação humana. Pufendorf, embora compreendesse Deus como autor do Direito natural, defendia a necessidade de se ter um Estado laico para uma convivência harmônica (apud BITTAR; ALMEIDA, 2016). John Locke defendeu, em suas obras, que as ideias são inatas ao homem, estando na natureza e podendo ser conhecidas pelo uso da razão. Seu conhecido estado de natureza, de absoluta paz, ne- cessitava obrigatoriamente de um estado civil que pudesse pacificar os conflitos e proteger os Direitos naturais. O estado civil não poderia, entretanto, desrespeitar os direitos naturais, sendo a resistência um direito altamente defensável por Locke, principalmente quando as autoridades civis desrespeitas- sem o Direito natural (BITTAR; ALMEIDA, 2016). Jean-Jacques Rousseau, considerado um dos últimos autores adeptos integralmente ao Direito natural e autor da famosa obra Do contrato social, defende que os homens nascem livres, construindo toda a sua teoria em torno de um modelo que permita que a associação dos indivíduos os proteja, garantindo que sejam ainda tão livres como quando não associados. Assim, em sua teoria, as leis que governam o Estado só podem ser oriundas da vontade geral, razão pela qual, para o autor, a democracia é a forma ideal de governo, embora afirme, em sua obra, que o que denomina democracia verdadeira jamais existiu e jamais existirá (SGARBI, 2007). Thomas Hobbes, filiado à linha do chamado jusnaturalismo racional, considerado um dos pri- meiros autores a conduzir o Direito natural para o Direito positivo, desenvolveu, em sua obra Leviatã, uma verdadeira teoria sobre o poder soberano. Com a formação do Estado moderno, a coação passou a ser necessária para a pretensão da estabilização social. Assim, a existência do Estado era tida, em sua obra, como um verdadeiro artifício humano, com o fito de aperfeiçoar a natureza (SGARBI, 2007). Dessa forma, o Direito natural se tornou uma doutrina de reação ao jusnaturalismo teológico, considerado por São Tomás de Aquino, e a razão passou a ser o norte para que se compreendessem os direitos com base na natureza. Deus não era mais o centro que fundamentava os preceitos e regras jurídicas, sendo o pensamento teocêntrico deixado de lado para que se assumisse um pensamento antropocêntrico. Esse modo de pensar sobre a fundamentação do Direito teve um imenso impacto na sociedade dos séculos XVII e XVIII, pois com base no Direito natural foram construídos os argumentos para as revoluções burguesas, como a Independência Americana e a Revolução Francesa: um direito natural de se rebelar contra o poder arbitrário. dos principais tratados políticos da história. Trata-se de uma excelente produção da Discovery Network sobre a vida e a obra do autor, com imagens e links com a O Príncipe, de Nicolau Maquiavel Vídeo Maquiavel é considerado o fundador do pensamento político mo- derno. Nascido em 1469, na Itália, alterou de maneira crucial o entendi- mento a respeito das funções e das formas da ciência política. Sua obra afetou de maneira tão profunda os dilemas morais da Antiguidade e da Idade Média, que autores críticos nos séculos que sucederam sua mor- te cunharam a expressão maquiavélico para designar ações orientadas pela maldade. Hoje, se vamos ao dicionário, a expressão no sentido figurado é tida como “aquilo que envolve perfídia, falsidade; doloso; pérfido” (HOUAISS, 2009). Os sentidos das palavras e dos conceitos são construídos no decorrer da história. Nenhuma palavra ou discurso adquire naturalmente senti- do e significado. É sempre uma elaboração que envolve os sujeitos his- tóricos e as disputas políticas e ideológicas de determinados períodos e sociedades (ORLANDI, 2008). Por isso, não tomaremos como verdade essa adjetivação dos princípios de Maquiavel, mas buscaremos com- preender como os valores tidos até então como inabaláveis sofreram um duro golpe com as reflexões desse filósofo que marcou a história, sobretudo com sua obra-prima, O Príncipe, escrita em 1532. O contexto do autor é a transição entre dois períodos históricos: a Idade Média e a Idade Moderna. Ele viveu na Itália durante o Renascimento Cultural, movimento intelectual e artístico que se desenvolveu na Península Itálica e, posteriormente, em diversos países da Europa, e protagonista da transição do teocentrismo medieval (Deus no centro das preocupações humanas) para o antropocentrismo (ser humano no centro). Ao mesmo tempo que esse mundo em transição afeta seu modo de pensar, também é duramente afetado por seus escritos, que marcam uma mudança profunda no modo de compreender o poder e a vida. Para Maquiavel, segundo Herb (2013, p. 268): na história não há a ação de Deus, guiando o destino dos homens segundo um plano oculto de sua pretensa sabedoria. E também a natureza não tem nada a ver com um reino claro de fins e pro- pósitos, que reserva para o indivíduo e a comunidade um lugar seguro e estável. No universo do príncipe de Maquiavel reinarão a fortuna, o destino e a necessidade. Estes determinarão agora os parâmetros da organização de toda política humana. Com essa concepção, Maquiavel enfrentou dois dos princípios fun- damentais da teoria política que havia prevalecido até então no mundo ocidental: 1. O princípio aristotélico, segundo o qual a política existia como elemento natural do ser humano na busca da felicidade, da justiça e do bem comum. 2. O princípio defendido pelos filósofos medievais Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, de que as autoridades sociais eram naturalmente consolidadas como expressão da vontade divina. Maquiavel representa um desencanto absoluto com a compreen- são das ideias sociais e políticas da Idade Média. Suas ideias, defendi- das principalmente em O Príncipe, não reservam lugar para a moral na política dos humanos. Para ele, interessava o que a política era, e não o que ela deveria ser. Interessava também a construção do poder e a manutenção deste para garantir a ordem e a estabilidade dos príncipes diante de uma humanidadeque detinha em si a falsidade, o egoísmo, a ingratidão, o medo e a ganância (MAQUIAVEL, 2009). A concepção política de Maquiavel passou em grande medida por alto grau de pessimismo em relação não somente aos seres humanos, mas também aos destinos traçados pelos céus que orientaram a vida social na Idade Média. Para Maquiavel, é a ambição que orienta a ação humana, de todos os seres humanos, e não apenas dos déspotas e tiranos. Com base nisso, ele organizou sua teoria política, par- tindo do princípio de que os seres humanos buscavam a todo momento satisfazer a seus desejos inesgotáveis por lucro, poder, riqueza e glória. O ponto central para o filósofo tratava-se, portanto, de “dominar para não ser domi- nado” (HERB, 2013, p. 270). Diante da maldade característica de todos os seres humanos, bem-sucedido é o soberano que melhor governa a maldade humana. É des- sa concepção que Maquiavel compreendia que “os fins justificam os meios” – sua mais famosa frase. Para esse pensador, a política deixou de ser o espaço da virtude e da religião, como foi na Idade Média e na Idade Antiga, respectiva- mente. Nessa perspectiva, uma ação política virtuosa é aquela que atinge seus objetivos. Ter virtude significa vencer. A religião, por sua vez, era descrita pelo autor como um instrumento para a con- quista e a manutenção do poder. Os valores e as normas servem, única e exclusivamente, se fizerem com que a ação política seja bem-sucedida. Maquiavel pensou a política para além do bem e do mal (HERB, 2013). Ele ainda reservava uma parte de sua teoria política para a refle- xão a respeito do uso da força para a conquista do poder e opunha- -se ao domínio exclusivamente por meio do uso da brutalidade e da violência. Para o pensador, a violência é efetiva para conquistar o poder, mas é a sabedoria que garante a continuidade do domínio político (SILVA; VIEIRA, 2015). Foram essas ideias e concepções de poder, política, virtude e métodos de conquista e manutenção da dominação que constituí- ram um marco na ciência política. A centralização do poder e a res- ponsabilidade terrena para manter a ordem entre seres humanos é, para Maquiavel, uma questão central. Não objeto da vontade na- tural ou divina, como pensavam os filósofos medievais, nem carac- terística dos humanos detentores da bondade e da justiça, como P al az o V ec ch io / W ik im ed ia C om m on s pensavam os antigos. A responsabilidade por manter a ordem e a estabilidade era do príncipe, do poder central, utilizando-se, para isso, dos meios que fossem necessários. Esse grande pensador escreveu diversos outros livros, como A arte da guerra e A história de Florença, além de dramaturgia – a peça Mandrágora, por exemplo, considerada uma obra-prima do Renascimento italiano. blicado na revista Projeção, Direito e Sociedade, em 2018, Mateus Passos Silva apresenta os princípios de Maquiavel a respeito do Estado e utiliza os conceitos do filósofo para analisar a obra contemporânea produzida pela Marvel. Uma ótima maneira de compreender na prática os complexos con- ceitos da teoria política de Maquiavel. http://revista.faculdadeprojecao.edu.br/index.php/Projecao2/article/view/1063/910
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