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Para atuar no campo da gestão da educação é essencial conhecer a perspectiva histórica, os ideais, os acontecimentos, as leis, as políticas e os programas educacionais mais relevantes do passado. Esse importante exercício de resgatar o histórico da Educação Básica pública, seja no âmbito federal, estadual ou municipal, em todas as suas etapas e modalidades, pode resultar em aprendizagens para melhorias da gestão no futuro. Uma adequada compreensão dos impasses e desafios existentes na educação brasileira requer, ainda que de forma sintética, o conhecimento de fatos e episódios marcantes que contribuíram, ao longo da história do País, para o delineamento do panorama atual. O agora se construiu ao longo da história, e o futuro dependerá do aproveitamento de lições que podem ser extraídas da experiência secularmente acumulada. Nesse sentido, não podemos deixar de considerar que o Brasil foi colonizado por mais de três séculos e que, durante todo esse período, sofreu os efeitos inevitáveis da política empreendia por essa colonização. Sabemos, também, que os colonizadores não tinham como objetivo construir uma nação, mas, ao contrário, pretendiam extrair o que fosse possível da riqueza da nova terra, visando ao enriquecimento do país colonizador. A expulsão dos jesuítas, em 1759, foi decidida não somente devido a interesses econômicos mas também sob a influência das novas ideias modernizantes oriundas dos pensadores mais proeminentes do Iluminismo, que ressaltavam a importância do uso da razão como guia norteador das ações humanas em todos os setores da vida social e econômica. Todavia, as ideias iluministas que sustentaram o ato do Marquês de Pombal no campo da educação não surtiram o efeito estruturante esperado nem Portugal, nem em suas colônias. No Brasil, portanto, a educação continuou a ser destinada apenas a uma pequena elite, constituída por crianças e jovens filhos de famílias privilegiadas, mesmo após a independência em 1822 e a Proclamação da República em 1889. Diferentemente do que ocorreu em outros países da América do Sul, como Argentina, Chile e Uruguai, a educação, no Brasil, permaneceu omissa às ideias renovadoras da época, que foram aproveitadas pelos países mencionados e por inúmeros outros no âmbito das Américas e da Europa. INTRODUÇÃO Somente após a Primeira Guerra Mundial, com a proximidade do I Centenário da Independência, e sob a influência de reflexões advindas do conflito mundial e das novas ideias que chegavam ao País no campo da educação – sobretudo as oriundas dos pensadores da Escola Nova –, o Brasil começou a pensar o futuro educacional. Como observou Elias Thomé Saliba (2012), a guerra de 1914, acentuando a percepção do crônico atraso e da permanência dos contrastes sociais e políticos, representou um divisor de águas na cultura brasileira, que teria, na Semana de Arte Moderna de 1922, um de seus episódios emblemáticos. Tais impactos culturais também atingiram a área educacional, levando a um movimento de renovação cujo ápice foi atingido com a publicação do Manifesto dos Pioneiros da Educação. O movimento de renovação educacional contribuiu para o surgimento de grandes educadores, como Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Lourenço Filho, Paschoal Lemme e Cecília Meirelles. A partir de então, o Manifesto, pelo vigor e atualidade de suas ideias e propostas, foi, aos poucos, convertendo-se em um “Manifesto Educador”, para usar a expressão de Jorge Nagle. Do Manifesto até a Constituição de 1988, percorreu-se uma longa trajetória de luta, marcada por duas ditaduras que silenciaram vozes e interromperam iniciativas promissoras. Com a promulgação da Constituição de 1988, no entanto, uma nova fase na política educacional do País foi inaugurada. Devido ao clima democrático que se instaurou, e ao crescimento e fortalecimento dos movimentos sociais pela educação, a política educacional –no âmbito da União, dos Estados, Distrito Federal e dos Municípios – passa a ter como objetivo inserir a educação brasileira em um circuito de ideias e realizações à altura das necessidades do País. Essa mudança ocorreu, sobretudo, por conta do cenário de intensa globalização reestruturante da economia mundial, que passou a demandar de todos os países uma nova postura diante de seus sistemas educacionais. Nesse sentido, na apostila Contexto da Educação Básica e Desafios Contemporâneos, apresentaremos uma retrospectiva histórica da educação nacional, dando destaque não só aos episódios marcantes e estruturadores do passado, mas também aos desafios atuais a serem enfrentados por gestores de todas as instâncias da Educação Básica pública do País. Desse modo, examinaremos e discutiremos os fundamentos históricos da educação brasileira, dando ênfase à omissão secular e ao isolamento do País em relação aos centros mais avançados de cultura e educação. Sob esse foco, esta apostila foi estruturada em quatro módulos. No módulo I, caracterizaremos o período de predominância da pedagogia jesuítica, suas marcas e o legado histórico. Além disso, descrevemos as várias tentativas de colocar a educação brasileira no circuito das ideias e realizações de cada época. Discutiremos, também, as implicações históricas do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova, analisando-as com vistas aos desafios contemporâneos da educação nacional. Por fim, examinaremos as consequências dos regimes de exceção (1937 e 1964) no desenvolvimento da educação nacional. No módulo II, discutiremos os avanços e limites da política educacional brasileira após a promulgação da Constituição de 1988. Para tanto, traçaremos o perfil das diferentes gestões que passaram por nosso país até a atualidade. No módulo III, identificaremos os principais desafios e pendências da política educacional em todos os graus e modalidades de ensino. No módulo IV, analisaremos as metas do II PNE, aprovadas para enfrentar os desafios existentes. Além disso, discutiremos o papel dos gestores da educação frente a tais desafios. Por fim, apresentaremos as perspectivas atuais diante da necessidade de enfrentamento das pendências apontadas. SUMÁRIO MÓDULO I – CONSTRUÇÃO E RECONSTRUÇÃO ..................................................................................... 11 PANORAMA DOS PRIMEIROS TEMPOS .......................................................................................... 11 Impactos da Reforma e da Contrarreforma na educação .................................................... 11 Características pedagógicas do plano de ensino da Companhia de Jesus ................... 12 Transferência de responsabilidade para o Estado ........................................................... 13 ABERTURA DE UM PARÊNTESE PROMISSOR ................................................................................ 14 INDEPENDÊNCIA E IMPÉRIO: CHANCES E OMISSÕES ................................................................. 15 Dissolução da Assembleia Constituinte .................................................................................. 15 Ato Adicional de 1834 ................................................................................................................ 16 Omissão com respeito à Educação Básica......................................................................... 17 Influências das novas ideias na educação e no papel do Estado ........................................ 17 Impactos do formalismo na estrutura e organização da educação brasileira .................. 18 DO IDEAL REPUBLICANO AO MANIFESTO DOS PIONEIROS ....................................................... 19 Educação na Primeira República .............................................................................................. 19 Educação pós-Primeira Guerra Mundial ................................................................................. 20 EDUCAÇÃO NA ERAVARGAS........................................................................................................... 21 Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova .......................................................................... 23 Estado Novo: consequências do regime ditatorial para a educação .................................. 24 A RETOMADA .................................................................................................................................... 25 Constituição de 1946: criação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional .......... 26 Manifesto dos Educadores .................................................................................................. 27 Características centrais da LDB ........................................................................................... 27 Plano Nacional de Educação ..................................................................................................... 28 DO REGIME MILITAR À CONSTITUIÇÃO DE 1988 ......................................................................... 29 Reformas empreendidas durante o regime militar ............................................................... 29 Diretas Já ...................................................................................................................................... 30 Constituição de 1988 ................................................................................................................. 30 MÓDULO II – EDUCAÇÃO APÓS A CONSTITUIÇÃO DE 1988 ............................................................ 33 IMPACTO DA CONSTITUIÇÃO NA POLÍTICA EDUCACIONAL ....................................................... 33 GOVERNO COLLOR DE MELLO ....................................................................................................... 34 GESTÃO GOLDEMBERG ................................................................................................................... 36 Desafios da gestão Goldemberg .............................................................................................. 36 GESTÃO MURÍLIO HINGEL .............................................................................................................. 37 GESTÃO PAULO RENATO SOUZA ................................................................................................... 38 Fundef .......................................................................................................................................... 39 Lei Darcy Ribeiro ......................................................................................................................... 39 Plano Nacional de Educação e outras realizações ................................................................. 40 GESTÃO CRISTOVAM BUARQUE ..................................................................................................... 41 GESTÃO TARSO GENRO ................................................................................................................... 42 GESTÃO FERNANDO HADDAD ....................................................................................................... 43 Plano de Desenvolvimento da Educação ................................................................................ 44 GESTÃO ALOIZIO MERCADANTE .................................................................................................... 46 GESTÃO HENRIQUE PAIM ............................................................................................................... 47 GESTÃO A PARTIR DE 2015 ............................................................................................................. 49 MÓDULO III – DESAFIOS E PENDÊNCIAS ........................................................................................... 51 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 51 EDUCAÇÃO INFANTIL ....................................................................................................................... 55 EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL ........................................................................................................... 56 Aprovação, reprovação e abandono ....................................................................................... 58 FLUXO E QUALIDADE ....................................................................................................................... 59 Infraestrutura escolar ................................................................................................................ 61 ENSINO MÉDIO ................................................................................................................................. 63 Mudanças no Enem ................................................................................................................... 64 Qualidade, repetência e abandono ......................................................................................... 64 Reforma do Ensino Médio ......................................................................................................... 67 EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E TÉCNICA ......................................................................................... 68 EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS ............................................................................................... 71 Índices de evasão e abandono ............................................................................................ 75 MAGISTÉRIO: FORMAÇÃO E CARREIRA ......................................................................................... 76 Formação superior compatível................................................................................................. 79 Desafios relativos à formação docente ................................................................................... 81 Carreira e remuneração ............................................................................................................ 82 ALFABETIZAÇÃO – 15 ANOS E MAIS ............................................................................................... 83 Distribuição regional e social .................................................................................................... 84 Índices de analfabetismo funcional ......................................................................................... 86 GESTÃO E FINANCIAMENTO ........................................................................................................... 87 Gestão democrática ................................................................................................................... 87 Formulação e execução de políticas de educação ........................................................... 88 Financiamento ............................................................................................................................ 90 MÓDULO IV – PERSPECTIVAS DE ENFRENTAMENTO ....................................................................... 95 METAS E ESTRATÉGIAS .................................................................................................................... 95 II Plano Nacional de Educação .................................................................................................. 96 Meta 1 ..................................................................................................................................... 96 Meta 2 ..................................................................................................................................... 97 Meta 3 ..................................................................................................................................... 98 Meta 4 ..................................................................................................................................100 Meta 5 .................................................................................................................................. 101 Meta 6 .................................................................................................................................. 102 Meta 7 .................................................................................................................................. 103 Meta 8 .................................................................................................................................. 105 Meta 9 .................................................................................................................................. 106 Meta 10 ................................................................................................................................ 107 Meta 11 ................................................................................................................................ 108 Meta 12 ................................................................................................................................ 109 Meta 13 ................................................................................................................................ 110 Meta 14 ................................................................................................................................ 111 Meta 15 ................................................................................................................................ 112 Meta 16 ................................................................................................................................ 114 Meta 17 ................................................................................................................................ 115 Meta 18 ................................................................................................................................ 116 Meta 19 ................................................................................................................................ 117 Meta 20 ................................................................................................................................ 118 PERSPECTIVAS ............................................................................................................................... 119 Necessidade de um enfoque dedutivo ................................................................................ 120 Fases administrativas do País ................................................................................................ 121 Enfoque multidimensional ................................................................................................ 122 Outros desafios para os gestores da educação ............................................................. 122 BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................................................... 124 PROFESSORES-AUTORES ......................................................................................................................... 127 Neste módulo, caracterizaremos o período de predominância da pedagogia jesuítica, suas marcas e o legado histórico. Além disso, descrevemos as várias tentativas de colocar a educação brasileira no circuito das ideias e realizações de cada época. Discutiremos, também, as implicações históricas do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova, analisando-as com vistas aos desafios contemporâneos da educação nacional. Por fim, examinaremos as consequências dos regimes de exceção (1937 e 1964) no desenvolvimento da educação nacional. Panorama dos primeiros tempos Impactos da Reforma e da Contrarreforma na educação No Brasil, a história da educação se inicia com a vinda dos primeiros jesuítas para o país em 1549, 15 anos após a criação da Companhia de Jesus. Fundada por Inácio de Loyola, a Companhia de Jesus tinha um objetivo bastante claro: conter os avanços da Reforma Protestante, deflagrada por Martinho Lutero em 1517. Alguns anos depois da publicação de suas 95 teses, em 1524, Lutero escreveu uma carta que ficou para a história. Dirigido aos Conselheiros de todas as cidades da Alemanha, o texto conclamava-os a instituir e manter escolas cristãs, defendendo também a expansão da educação geral e profissional. Lutero argumentava que a prosperidade e a saúde dependiam da educação, e, por isso, os pais deviam mandar seus filhos à escola, sendo necessário educá-los desde a infância. MÓDULO I – CONSTRUÇÃO E RECONSTRUÇÃO 12 A rápida aceitação das ideias de Lutero, assim como das de outros reformadores religiosos como Calvino e Melanchton, exigiram da Igreja Católica uma reação à altura. Em uma das fases mais críticas de sua história, além de aprovar a criação da Ordem dos Jesuítas, a Igreja organizou o Concílio de Trento (1545-1563), na Itália, com o objetivo de estabelecer os fundamentos e as orientações da chamada Contrarreforma. Por conta de seus objetivos, o Concílio de Trento chegou a ser designado como Concílio da Contrarreforma. O apoio dos Reis de Portugal ao Concílio e sua expressiva participação contribuíram para a forte influência de suas orientações na vida cultural, social e econômica do país. Assim sendo, a Ordem dos Jesuítas, como bem observou Durkheim (1995), surgiu pela necessidade que o catolicismo sentia de deter os progressos cada vez mais ameaçadores do protestantismo, cuja expansão incluía, a esse tempo, a Inglaterra, a quase totalidade da Alemanha, a Suíça, os Países Baixos, a Suécia e parte considerável da França. A Igreja sentia-se impotente para enfrentar a ruptura e temia pelo seu futuro. Uma Contrarreforma tornou-se, portanto, imperativa, e a corporação dos jesuítas foi rigorosamente pensada e organizada para cumprir essa missão. Devemos assinalar que, no momento histórico em que se contrapunham a Reforma e a Contrarreforma religiosas, estava em seu apogeu a Renascença. Representando o início da Idade Moderna, as novas ideias de pensadores como Rabelais e Montaigne não poupavam críticas aos métodos medievais de educação. Não obstante o trabalho realizado pelos jesuítas de propagar a fé cristã conforme os dogmas da Igreja, é necessário reconhecermos, conforme assevera Manacorda (1989), que os caminhos do futuro já se mostravam bem diferentes, e as tendências já eram outras. Nessa direção, o decreto de Carlos V, Imperador da Alemanha, em 1549, estabelecendo que as escolas deveriam ser viveiros não somente de prelados e ministros da Igreja, mas também de magistrados e de todos os que governavam as cidades, antecipava as iniciativas de soberanos iluminados do século XVIII, o Século das Luzes, para tornar a educação uma responsabilidade de Estado. Características pedagógicas do plano de ensino da Companhia de Jesus A obra realizada pelos jesuítas no Brasil, por mais de 200 anos, criando e mantendo colégios e escolas de primeiras letras em várias regiões do Brasil-colônia, distanciava-se dos ideais pedagógicos da Renascença. A pedagogia adotada segundo os preceitos do plano de ensino da Companhia de Jesus (Ratio Studiorum) tinha como bases as tradições da Igreja e as orientações do Concílio de Trento, com forte predominância do ensino da gramática, das humanidades e da Teologia. 13 O Concílio de Trento proibiu o uso de inúmeras obras, muitas das quais poderiam ser consideradas relevantes em face das novas e modernizadoras tendências culturais e socioeconômicas que estavam surgindo. Por outro lado, apesar de seu caráter conservador, não podemos perder de vista o legado deixado pelos jesuítas no Brasil. Quando foram expulsos do País, em 1759, mantinham 17 colégios e seminários, 25 residências, 36 missões, vários semináriosmenores, e as chamadas escolas de ler e escrever, instaladas em quase todas as aldeias e povoações onde existiam casas da Companhia de Jesus. Em termos de desempenho, o sistema jesuítico de educação no Brasil primava pela qualidade do ensino e da organização. Os padres docentes eram muito bem formados, o que assegurava sólido exercício docente. Como eles não criaram uma universidade no Brasil, alguns dos colégios ministravam cursos que poderiam ser considerados de nível superior. O historiador inglês Robert Southey (2010) chegou mesmo a afirmar que, com a expulsão dos jesuítas, o Brasil perdeu um valioso patrimônio intelectual representado por mais de 600 padres com padrão superior de formação e que atuavam nas escolas existentes. Na opinião do sociólogo e humanista Fernando de Azevedo (1964), no entanto, ainda que a expulsão tenha sido um golpe profundo, a uniformidade intelectual, abstrata e dogmática que presidia a pedagogia dos jesuítas não apresentava plasticidade para se ajustar às novas necessidades que estavam surgindo. Desse modo, mesmo considerando seus inegáveis méritos, os jesuítas deixaram marcas estruturantes na educação nacional que devem ser discutidas. Nesse sentido, Azevedo afirma que o livre exame, o espírito de análise e de crítica, a paixão pela pesquisa e o gosto pela aventura intelectual, que apenas amanheciam na Europa nessa época, teriam, sem dúvida, alargado nosso horizonte mental e enriquecido, no campo filosófico, nossa cultura, que ficou sem pensamento e sem substância, quase que exclusivamente limitada às letras. Essa linha de interpretação explica, em parte, os desafios existentes hoje com relação à precariedade do ensino de Ciências e a preponderância da formação acadêmica no Ensino Médio. Transferência de responsabilidade para o Estado É certo que, ao expulsar os jesuítas de Portugal e de suas colônias, o Marquês de Pombal seguia uma das tendências da época, a de atribuir ao Estado a responsabilidade pela educação. Sob esse aspecto, muitos estudiosos e historiadores reconhecem o pioneirismo de Pombal. No entanto, fragilizado economicamente, por conta da necessidade de reconstruir Lisboa após o terremoto que atingiu a cidade em 1755, Portugal optou por não modernizar o sistema escolar. 14 O país, ainda assim, empreendeu várias tentativas de renovação na metrópole e nas colônias, sendo a reforma da Universidade de Coimbra talvez a única a obter êxito, ao menos parcialmente. No Brasil-colônia, foram criadas aulas régias e instituído o Subsídio Literário, uma espécie de salário-educação da época, cujos resultados ficaram longe dos imaginados pelo Marquês de Pombal. Conforme postulado por Maria Luíza Marcílio (2008), quando se deu a expulsão dos jesuítas, em 1759, a soma dos alunos de todas as instituições jesuíticas não atingia 0,1% da população brasileira, pois delas estavam excluídos os escravos (40%), os negros livres, os pardos, as mulheres (50% da população), os filhos ilegítimos e as crianças abandonadas. Apesar desse elitismo, a autora nos chama a atenção para o fato de que, no lugar do bem organizado sistema jesuítico de educação, nada foi posto. Quanto ao Ensino Superior, à época, vários países da América Latina já possuíam universidades. O Brasil, apesar de várias tentativas – inclusive a dos Inconfidentes de Minas, que sonharam com uma universidade em Vila Rica –, só conseguiu criar sua primeira universidade em 1920. Abertura de um parêntese promissor A educação brasileira começou a ser objeto de atenção política somente com a chegada de D. João VI, em 1808. Sendo o Brasil uma sede provisória do Reino e devido ao enorme contingente de pessoas da Família Real que acompanhou D. João VI ao País, surge a necessidade de dotá-lo de uma infraestrutura mínima em vários setores, inclusive o da educação. Desse modo, foram criadas várias escolas de Educação Básica e superior, além de escolas profissionalizantes. Os dois primeiros cursos superiores de medicina do País foram fundados, respectivamente, na Bahia e no Rio de Janeiro. Além disso, o Colégio das Fábricas, cursos técnicos de comércio e artilharia, química industrial e mineralogia foram também criados. D. João VI patrocinou, ainda, a vinda de missões científicas e culturais da Europa. Data dessa época a proposta de um plano de educação que pode ser considerado o primeiro do Brasil e que teve como idealizador o general Francisco B. S. Stoker, em 1812. Segundo Azevedo (1964), o período de D. João VI pode ser considerado uma das fases mais importantes da evolução cultural do País, lançando germes de numerosas instituições no campo da educação e cultura. 15 Independência e Império: chances e omissões A vinda da família real, proporcionando ao Brasil o status de sede do Reino, contribuiu para a Proclamação da Independência do País. Pouco depois, países vizinhos, como a Argentina (1816), o Chile (1810), a Venezuela (1811), o Paraguai (1811) e a Colômbia (1810), já tinham se libertado da colonização espanhola e alcançado a independência política. Dissolução da Assembleia Constituinte Via de regra, a independência de um país constitui oportunidade emblemática para a construção de um projeto de desenvolvimento à altura das aspirações dos que lutaram por ela. No caso brasileiro, durante a Assembleia Constituinte de 1823, ocorreram vários debates educacionais, inclusive com propostas para a criação de universidades. No entanto, com a dissolução da Assembleia, outorgou-se uma Constituição que, no campo da educação, estabelecia dois itens em suas disposições gerais: a instrução primária seria gratuita a todos os cidadãos e, nos colégios e universidades, poderiam ser ensinados os elementos de Ciências, Letras e Belas Artes. A dissolução da Assembleia Constituinte foi, na opinião de José Bonifácio, ousado pensador reformista, um erro – para usar a expressão de Mirian Dolhnikoff (1998), “Mais que um crime. Foi um erro palmar”. José Bonifácio tinha projetos para o Brasil. Defendia reformas de grande alcance que pudessem remover os obstáculos que vinham impedindo a conquista da civilização, entre eles a heterogeneidade racial e cultural, a escravidão, a equivocada política indigenista e a profunda ignorância que grassava entre brancos e negros, pobres e ricos (DOLHNIKOFF, 1998). O projeto de Constituição apresentado em setembro de 1823, assinado por José Bonifácio, Antônio Carlos, Araújo Lima e outros constituintes, previa a criação de escolas primárias e ginásios em todo o País, além de universidades nos locais mais indicados (AZEVEDO, 1964). Como esse projeto não avançou, devido não só à dissolução da Assembleia, mas também à prisão e deportação dos que resistiram, como José Bonifácio, o descaso generalizado com a educação haveria de continuar no Império e na República, chegando a nossos dias. A universidade pensada e discutida durante a Assembleia Constituinte de 1823 não foi criada. Em seu lugar, foram instituídas duas faculdades de Direito em Olinda e São Paulo. À época, muitos dos países da América Latina já tinham dado início ao processo de modernização de seus estudos. Até o final do século XVIII, já existiam 17 universidades, sendo as mais importantes as de Córdoba (1613), La Plata (1623), Guatemala (1675), Caracas (1721), Santiago do Chile (1738), Havana (1782) e Quito (1791). 16 Além da implementação de universidades, ocorreu na América Latina a assimilação da Filosofia moderna. No próprio seio das instituições religiosas, buscou-se, em tom conciliador, o entendimento entre Descartes e a Escolástica. No campo das Ciências, foram inseridas as novas ideias oriundas de Copérnico, Kepler, Galileu e Newton. O ensino técnico também não ficou para trás, começando a ser reestruturado para atender necessidades sociais e econômicas. Boa parte das iniciativas dessa época já não pertencemmais ao clero, mas ao Estado e à iniciativa privada (LARROYO, 1970). Ato Adicional de 1834 Em 1827, houve uma nova oportunidade de avanço no Brasil, mediante a aprovação de uma lei pela Assembleia Geral Legislativa que determinava a criação de escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos do Império. Se implantada, tal lei teria, na interpretação de Lauro de Oliveira Lima (1974)1, desempenhado o papel histórico de Lei Áurea da educação brasileira. Lamentavelmente, poucos anos depois, foi promulgado o Ato Adicional, em 1834, passando para os estados e municípios a responsabilidade de criar e manter escolas. Se, ainda hoje, diversos entes federados encontram dificuldades financeiras para assegurar educação a todos, não é difícil imaginarmos que o referido ato comprometeu por mais de 150 anos o futuro da educação fundamental. Somente após a Constituição de 1988, o Governo Federal começou a perceber que o atraso educacional do País não poderia ser vencido sem uma política de estado liderada pela União. O Ato de 1834, segundo Fernando de Azevedo (1964), não permitiu, por um século, edificar sobre a base sólida da educação comum a superestrutura do Ensino Superior, geral ou profissional, tampouco reduzir a distância entre as camadas sociais inferiores e as elites do País, impedindo, daí por diante, qualquer perspectiva de política educacional de grande envergadura. Desse modo, durante o Império, com a descentralização da responsabilidade educacional aos entes federados, o papel do Governo Federal restringiu-se ao Ensino Superior e ao Município da Corte, especialmente com relação ao Colégio Pedro II, instituição que, criada em 1837, servia como referência nacional. Além das Faculdades de Direito de Pernambuco e São Paulo, foram criadas ainda a Escola de Minas de Ouro Preto e a Escola de Engenharia da Praia Vermelha. Inúmeras tentativas de reformas da Educação Básica foram feitas, mas sem desdobramentos estruturantes. Na última Fala do Trono, o Imperador Pedro II ressaltou a importância de criação de duas universidades, sendo uma localizada na Região Norte do País e outra na Região Sul. 1 LIMA, Lauro de Oliveira. Estorias da educação no Brasil: de Pombal a Passarinho. Rio de Janeiro: Brasilia, 1974. 17 Omissão com respeito à Educação Básica O Império se omitia com relação ao futuro da Educação Básica, enquanto diversos países da Europa e das Américas davam passos largos em direção à estruturação de sistemas públicos de educação. Vejamos alguns exemplos: � Estados Unidos – com as reformas da educação pública empreendidas por Horace Mann, em Massachussetts, no ano de 1837; � Argentina – com Domingos Faustino Sarmiento, educador iluminista que, chegando à Presidência da República em 1868, promoveu avanços importantes no campo da educação e das ciências; � Uruguai – com a reforma de 1877, concebida e planejada com o apoio de Joaquim Varela. No Brasil, no entanto, os governos e as elites só começaram a emitir sinais de preocupação a partir da entrada no Brasil, sobretudo a partir de 1870, de um “bando de ideias novas” oriundas da Europa, para usar a expressão de Silvio Romero2. Obras de intelectuais e pensadores como Augusto Comte, Spencer, Darwin e Freud acabariam influenciando a cultura nacional, ainda em estágio de pensamento reflexo, pois a ausência de universidades impedia o desenvolvimento de posturas mais críticas e autônomas. O novo cenário de ideias e debates foi fundamental para, finalmente, promover a abolição da escravatura em 1888 e também a Proclamação da República em 1889. Influências das novas ideias na educação e no papel do Estado A área da educação também começou a receber os influxos do clima de debates que se instalou nos anos que antecederam a Abolição e a República. Rui Barbosa, em seus pareceres históricos sobre a reforma do ensino secundário e superior (1882) e sobre a reforma do ensino primário (1883), depois de examinar e comparar os sistemas de educação de vários países que haviam alcançado avanços significativos, concluiu que, se o Brasil continuasse a manter o mesmo ritmo de pífios progressos, demoraria 799 anos para atingir o nível dos países mais desenvolvidos. Nesses pareceres, Rui Barbosa defendeu, com veemência, a importância do Estado em oposição às correntes adeptas do positivismo, que condenavam a interferência do poder público. Argumentava o autor que “aos devaneios dos que querem amolgar a realidade às exigências de uma doutrina preconcebida opõem-se necessidades inflexíveis, direitos imperiosos, conveniências vitais entre todas as agregações de homens civilizados” (BARBOSA, 1985, p. 482). Como entendia que tais necessidades inflexíveis e direitos imperiosos só poderiam ser atendidos por via do Estado, Barbosa defendia a criação de um Ministério da Educação no Brasil, a exemplo de inúmeros países, como a Inglaterra, com a criação, em 1839, do Committee of Council on Education e o Japão, com a Restauração Meiji (1871). Além desses, muitos outros países 2 ROMERO, Silvio. Apud COSTA, João Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: CIV Brasileira, 1967. 18 já estavam à frente do Brasil nesse sentido, como França, Bélgica, Dinamarca, Suécia, Noruega, Rússia, Alemanha, Áustria, Itália e Grécia. Em defesa da intervenção do Estado, Rui Barbosa chegou a usar o argumento do filósofo inglês Stuart Mill de que era necessário admitir que o governo deveria assegurar educação ao povo, pois ela “constitui um dos casos a que não se aplicam necessariamente os motivos da regra da não intervenção (STUART, apud BARBOSA, 1985, p. 489). Devemos atentar para o caráter atual da preocupação de Rui Barbosa com o papel do Estado, pois essa questão ainda é ponto de discussão e envolve a ideia de um Sistema Nacional de Educação, de modo a regular e estabelecer as regras de cooperação entre os entes federados. Impactos do formalismo na estrutura e organização da educação brasileira Em termos de gestão pública, no período colonial, predominava o enfoque jurídico. De acordo com Benno Sander (2007), a tradição do Direito romano – de natureza antecipatória, dedutiva, normativa, prescritiva e regulatória – contribuiu para retardar a adoção de princípios e técnicas de administração educacional fundamentados em outras tradições filosóficas e jurídicas, como as do direito anglo-americano, de natureza experimental, empírica e indutiva, que somente se consolidaram no Brasil em fins do século XIX. A partir de então, argumenta Sander (2007), a dialética entre o legalismo de origem eurolatina e o experimentalismo anglo-americano caracterizou toda a trajetória educacional e administrativa no Brasil. O legalismo eurolatino, ao contrário do experimentalismo do Direito anglo-americano, destaca a importância da ordem na regulamentação e na codificação, a qual implica um sistema fechado de conhecimento integral da administração. O legalismo predica a legislação antecipatória em oposição à legislação baseada na experimentação. Por conseguinte, a lei é um ideal a ser alcançado, e não um parâmetro a ser aplicado em circunstâncias concretas, o que resulta no formalismo (SANDER, 2007). Nesse sentido, a presença do formalismo na estrutura e organização da educação brasileira constitui um sério obstáculo para a gestão nos diferentes contextos locais. Além disso, ainda hoje, a tradição formalista continua a impedir a adoção de mecanismos de governabilidade mais ágeis e compatíveis com o ritmo acelerado de transformações e mudanças. Em tempos de crise, que requerem dos poderes públicos uma nova lógica de gestão, a reforma administrativa empreendida pelo FNDE nos últimos anos foi uma medida oportuna no sentido de agilizar o processo deassistência financeira e técnica aos entes federados. 19 Do ideal republicano ao Manifesto dos Pioneiros Educação na Primeira República A libertação dos escravos e a Proclamação da República configuram-se como marcos fundamentais na história do País. Se, por um lado, a instauração do regime republicano não foi fruto de reivindicações sociais marcantes, por outro, a Lei Áurea foi o coroamento de intensas batalhas no campo das ideias e de fatos sociais emblemáticos, como o ocorrido na cidade de Redenção, no Ceará: alguns anos antes da promulgação da Lei Áurea, a cidade teve a coragem de emancipar seus escravos. Proclamada a República, não faltaram vozes para sugerir rumos republicanos para a organização e gestão do País. Intelectuais e pensadores como Rui Barbosa, Euclides da Cunha e Manoel Bomfim tinham em mente uma República bem diferente daquela que estava sendo delineada, marcada por conflitos e interesses distantes das necessidades do Brasil. Em sequência à Proclamação da República, tivemos a criação do Ministério da Educação e a designação de Benjamin Constant, um positivista prestigiado, como ministro da Instrução Pública, o que ampliava a crença no sentido de que a educação brasileira poderia tomar rumos promissores. Constant propôs uma reforma que possibilitava alguns avanços – até um Pedagogium (centro de estudos para pensar e impulsionar a educação) foi fundado em 1890. Entretanto, questões políticas menores conduziram à extinção do Ministério, fazendo com que os assuntos relativos à educação retornassem à administração do Ministério da Justiça, seguindo a tradição de status periférico. Enquanto a Primeira República oscilava e hesitava, a educação seguia seu curso histórico de omissões. Omissões de uma elite destituída de horizontes e que não conseguia enxergar além de um círculo estreito de interesses. A Lei Áurea, por exemplo, não teve um desdobramento ético e econômico, com vistas à promoção de uma sólida política de integração, mínimo que se poderia fazer depois de séculos de vitimização dos negros. Ao contrário, estavam ainda em voga, nessa época, ideias compatíveis com a superioridade e o determinismo racial. Euclides da Cunha, em Os Sertões, além de denunciar o esquecimento secular do sertanejo, chamou-nos também atenção para a importância de oferecer escolas aos libertos. Tais considerações históricas são necessárias para o estudo da gestão educacional devido ao peso da herança de omissões que chegam às gerações presentes e que se mostram por intermédio dos diversos e desiguais brasis. Como ponderou Robinson (2011, p. 533-34), refletindo sobre a nova história, “o presente tem sido, até agora, a vítima voluntária do passado; chegou o momento de se voltar para o passado e explorá-lo no interesse do progresso.” Nessa 20 linha de argumentação, o entendimento de como chegamos aos desafios educacionais do presente constitui uma condição que pode contribuir para o desenho de estratégias inovadoras de gestão da educação. Talvez o fato mais expressivo para educação brasileira, ocorrido durante a Primeira República, tenha sido a criação, em 1909, por Decreto de Nilo Peçanha, da rede de 19 Escolas de Aprendizes Artífices (uma em cada estado do País). Tal ação pode ser entendida como um embrião da expressiva rede de Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia sediados em várias regiões do País, inclusive naquelas tradicionalmente deixadas à margem da atenção pública. Durante a Primeira República ou República Velha, ocorreram muitas tentativas de reforma, como a de Rivadávia Correa, em 1911, que procurou substituir o papel do Estado na educação e só colheu resultados negativos, e a reforma pouca inovadora de Carlos Maximiliano em 1915. Nesse período, registram-se ainda as tentativas pioneiras de criação de duas universidades, a de Manaus (1908) e a do Paraná (1912), que tiveram duração efêmera. Sobre a Universidade do Paraná, também chamada de Universidade do Mate, há um dado histórico que merece registro. Sua extinção, em 1915, decorreu de um dos critérios estabelecidos pela Reforma Carlos Maximiliano para a criação de universidades: a obrigatoriedade de a cidade-sede ter mais de 100 mil habitantes, condição que Curitiba não preenchia (WACHOWICZ, 2006). É provável que esse critério tenha sido uma cópia de um parâmetro semelhante existente nos Estados Unidos, o que representa um bom indicador da situação reflexa em que vivia a cultura brasileira. Educação pós-Primeira Guerra Mundial O contexto de indecisões, hesitações e práticas patrimonialistas da Primeira República começou a mudar por diversos fatores, entre eles, a presença crescente de imigrantes europeus e asiáticos, que chegavam ao Brasil com uma mentalidade construída e sedimentada por civilizações milenares, e o advento da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que suscitou reflexões profundas sobre o futuro. Como nos lembra Fernando de Azevedo (1964), em sua obra clássica sobre a cultura nacional, a guerra de 1914 contribuiu para elevar a um primeiro plano as preocupações sociais e políticas. Nesse sentido, as reformas educacionais auxiliaram, por meio da escola, na restauração da paz e na formação de um novo espírito requerido por um novo tipo de civilização. Ademais, devemos sublinhar o impulso reestruturador de ideias pedagógicas que chegavam, com maior rapidez, sobretudo oriundas do movimento da Escola Nova, que estava servindo de fundamento para a reforma educacional de vários países. 21 A paisagem cultural e educacional do País começava então a mudar. Após a Primeira Guerra, ocorreram algumas reformas por iniciativa dos Estados, entre as quais destacamos as seguintes: a de Sampaio Dória em São Paulo (1920), a de Lourenço Filho no Ceará (1922), de Francisco Campos e Mário Casassanta em Minas Gerais (1927) e a de Fernando de Azevedo no Rio de Janeiro (1928). Além disso, como um dos mecanismos impulsionadores do movimento, foi fundada por Heitor Lira, em 1924, a Associação Brasileira de Educação, que logo se converteu em centro de debates sobre a política educacional. Também Anísio Teixeira, na Bahia, procurou renovar a escola, o que o motivou a seguir para os Estados Unidos e estudar com Dewey, considerado um dos maiores expoentes da pedagogia nova. A década de 1920 assinala a entrada em cena de uma das melhores gerações de educadores brasileiros, entre eles Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira, Lourenço Filho, Paschoal Lemme, Cecília Meirelles e Frota Pessoa. Em 1922, é realizada a Semana de Arte Moderna, em São Paulo, liderada por Mário de Andrade, Oswald de Andrade, e vários outros poetas e escritores. O evento, tido como um divisor de águas na história da cultura brasileira, foi, sem dúvida, um acontecimento de afirmação nacional que, ao coincidir com o primeiro centenário da independência do Brasil e valer-se de contribuições externas, colocou em evidência a necessidade de pensar o País a partir de suas raízes. 1922 foi também o ano de fundação do partido comunista, de realização da I Conferência sobre o Ensino Primário e da Revolta dos Tenentes no Forte Copacabana. A partir daí, diversos outros acontecimentos políticos, econômicos, culturais e educacionais convergiram para instaurar um clima de mudanças, com perspectivas que se tornariam mais promissoras com a chegada de Getúlio Vargas ao poder em 1930. Educação na era Vargas Como vimos, o movimento educacional seguia um clima de inquietação e de mudanças. Reformas educacionais como as que foram citadas, sobretudo as de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, indicavam a esperança de que a política educacional brasileira poderia adentrar por caminhos mais prospectivos. A revolução de 1930, com a ascensão de Vargas, ampliou a expectativa dos educadores liberais, também chamados de “escolanovistas”. Suas ideias, no entanto, eram radicalmentecombatidas por educadores católicos, que viam na pedagogia da Escola Nova orientações conflitantes com as posições da Igreja. O conflito que então se estabeleceu prejudicou as tendências reformadoras da educação. Apesar dos efeitos desse conflito entre liberais e católicos, que poderiam ter sido superados pelo diálogo conciliador, a criação, em 1930, do Ministério da Educação e Saúde por Getúlio Vargas e a designação de Francisco Campos para ser o titular dessa pasta fortaleceram as crenças de muitos educadores. Francisco Campos tinha a credencial de ter feito, juntamente com Mário 22 Casassanta, a reforma educacional de Minas Gerais em 1927. Em seu discurso de posse, afirmou que sanear e educar o Brasil constituía o primeiro dever de uma revolução que se fez para libertar os brasileiros (CAMPOS, 1940)3. Como Ministro da nova pasta, empreendeu a reforma do ensino secundário e superior, muito embora fossem o ensino primário e o analfabetismo os problemas mais prioritários da educação nacional nesse momento. A reforma do ensino secundário merece um rápido destaque em função das discussões que ocorrem atualmente. Campos concebeu essa reforma com a finalidade de não dar exclusividade à função preparatória do ensino secundário. Elevou a duração do ensino para sete anos, dos quais cinco foram destinados ao curso fundamental e dois à fase complementar. Vejamos como eram subdivididos esses anos de formação: � o primeiro ciclo, de cinco anos, era comum a todos os alunos, de modo a fazer frente à tradição preparatória; � o ciclo complementar, dividia-se em três itinerários: � humanidades para os candidatos aos cursos jurídicos; � biológico para os candidatos aos cursos de medicina, farmácia e odontologia; � técnico, para os candidatos aos cursos superiores de engenharia e arquitetura. Já nessa época, estava prevista uma maior diversificação do Ensino Médio. Se, por um lado, a criação do Ministério da Educação – somada às reformas do ensino secundário e superior – alimentava as expectativas dos principais líderes do movimento liberal educacional, por outro, na esfera política, cresciam as desconfianças com relação à crescente concentração do poder de Vargas, acirrando a luta entre as tendências divergentes da coalizão revolucionária. Vargas via-se então pressionado tanto pelos constitucionalistas, que reivindicavam eleições diretas, quanto pelo movimento tenentista, que defendia a continuidade do governo revolucionário, sem eleições diretas. Apesar do esforço conciliador do Presidente, o inevitável aconteceu: após a nomeação de um tenente para governar São Paulo, os paulistas organizaram a Frente Única Paulista em oposição a Vargas, e movimentos idênticos se repetiram no Rio Grande do Sul e em Minas Gerais. O resultado foi a Revolução Paulista de 1932, uma revolução cheia de nobres ideais democráticos, mas defasada da conjuntura política, e que, por isso, fracassou (CUNHA, 1981). 3 CAMPOS, Francisco. Educação e cultura. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940. 23 Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova Vargas manteve o compromisso da Assembleia Constituinte e, em 1934, é promulgada uma nova Constituição. Um pouco antes, no final de 1931, em Niterói, foi realizada a IV Conferência Nacional de Educação. Nesse momento, as divergências entre educadores católicos e liberais se acentuaram, e o prestígio dos católicos era crescente no âmbito do governo. Estiveram presentes no evento o Presidente Getúlio Vargas e o Ministro Francisco Campos, que solicitaram aos participantes examinarem o problema da educação nacional e apresentarem sugestões. Um dos participantes, Nóbrega da Cunha, aproveitando essa oportunidade, fez a proposta de se confiar a Fernando de Azevedo a incumbência de sistematizar, em um documento, o que pensavam e propunham os educadores para a renovação da política educacional no País. Fernando de Azevedo, com audiência prévia de vários expoentes do movimento de renovação – entre eles Anísio Teixeira e Lourenço Filho –, redigiu o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, assinado por 25 educadores e diversos líderes da sociedade civil. Divulgado pela imprensa em março de 1932, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova teve boa repercussão e, por seu alcance e profundidade, converteu-se em um dos mais importantes documentos com princípios e diretrizes para política educacional do País. O documento defendia uma política educacional de Estado, com financiamento à altura da importância da educação para o desenvolvimento do País, com estabilidade, ou seja, sem sofrer oscilações provenientes das áreas política e econômica. Além disso, acentuava fortemente que, na hierarquia dos problemas da educação de um país, nenhum outro, nem mesmo os de ordem econômica, sobreleva o lugar estratégico da educação. O Manifesto influenciou a Constituição de 1934, que, pela primeira vez, vinculava recursos para a educação, devendo a União e os Municípios investirem, no mínimo, 10% do que recebiam, e os Estados e o Distrito Federal nunca menos de 20%. Influenciou, também, a criação da Universidade de São Paulo e da Universidade do Distrito Federal, ambas fora da esfera federal. A Universidade de São Paulo, vinculada ao Estado, pelo alcance científico e cultural de seu projeto e pela oportunidade que teve de buscar vários professores e pesquisadores na Europa, teve continuidade e converteu-se em uma das realizações educacionais, culturais e científicas mais proeminentes da época. Já a Universidade do Distrito Federal, fundada por Anísio Teixeira em 1935, e também pensada com ousadia e inovação, não teve a mesma sorte. Teixeira, tido como subversivo e, por vezes, chamado de comunista, foi perseguido e afastado de suas funções, processo que culminou com a extinção da universidade em 1939. 24 Data também desse período (1934) a fundação da Universidade de Porto Alegre (atual UFRGS), vinculada ao estado do Rio Grande do Sul e organizada mediante a incorporação de instituições superiores existentes no Estado. A Universidade foi federalizada em 1950, seguindo uma trajetória de progressivos avanços, até atingir seu status atual como uma das melhores instituições de ensino e pesquisa do País. Estado Novo: consequências do regime ditatorial para a educação Com a instauração do regime ditatorial do Estado Novo, em 1937, o sonho dos signatários do Manifesto foi interrompido. O País passou a viver em regime de exceção, com perseguições políticas, prisões e exílios. Uma nova Constituição foi imposta, e os recursos vinculados à educação foram suprimidos. Gustavo Capanema, que ocupava o cargo de Ministro da Educação e Saúde desde 1934, apesar de liberal, identificava-se com o regime ditatorial de Vargas profundamente. Possuidor de grande habilidade política, conseguiu algumas realizações que são reconhecidas até hoje, como a reforma do ensino secundário e as reformas das escolas técnicas industrial, comercial e agronômica, elevando-as ao nível de 2º grau (atual Ensino Médio). Quanto à evolução das ideias sobre administração e gestão, durante o Estado Novo, conforme afirmou Benno Sander, instalou-se o reinado da tecnoburocracia como sistema de organização, com forte predomínio dos quadros técnicos, o que deixava os valores políticos e éticos, por vezes, em segundo plano. Na administração da educação, esse enfoque se manifestou na combinação da pedagogia com o pragmatismo. No entanto, precisamos destacar que o pragmatismo pedagógico, conforme as doutrinas de William James e John Dewey, teve de enfrentar a força da tradição do Direito Administrativo romano, tradição essa que chega até nossos dias. Na realidade, a ênfase nos quadros técnicos não conseguiu apagar as preocupações com as teorias abstratas do enfoque jurídico, que marcaram o nascimento e o desenvolvimentode nossas instituições políticas e administrativas. Os defensores do enfoque organizacional foram buscar subsídios teóricos na Europa e na América do Norte, sobretudo nos princípios da escola clássica de administração, que incluem três grandes enfoques teóricos: � a administração científica de Taylor (1911); � a administração geral e industrial de Fayol (1916); � a administração burocrática concebida por Max Weber (1947). A adoção dos princípios da escola clássica prejudicou o desenvolvimento de enfoques interdisciplinares que poderiam ser mais adequados à cultura e à sociedade brasileira (SANDER, 2007). 25 Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a vitória das forças democráticas, a ditadura Vargas não resistiu, seguindo-se uma nova etapa da vida nacional: a Terceira República. Em 1940, o percentual de analfabetos com 15 anos ou mais chegou a 56,2% no Brasil. A retomada “O Brasil marcado por altas doses de incerteza política, dos quais oito sob uma ditadura, voltava a constituir-se como um Estado de direito, afinado com o concerto das nações liberal- democráticas do pós-guerra” (GOMES, 2013, p. 26). Após a Segunda Guerra Mundial, o panorama internacional caracterizava-se por enorme vontade de construção de sociedades comprometidas com a paz e o desenvolvimento humano. A criação da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), em 1945, dava o tom do espírito da época. No Brasil, como vimos, iniciava-se a Terceira República, com aspirações de tempos mais modernos e democráticos. No entanto, apesar do entusiasmo com as possibilidades existentes, Ângela Gomes nos chama atenção para uma característica que marca a evolução do País nessa época. Nas palavras da autora: “[...] os anos que vão de 1930 a 1964 devem ser vistos através de linhas de continuidade e de descontinuidade, desnaturalizando os eventos revolucionários que foram proclamados – não por acaso por quem os promoveu – como consequências inevitáveis de um processo político anterior, assinalado por experiências equivocadas e fracassadas de exercício do liberalismo” (2013, p. 27). A afirmação de Gomes é de grande importância para o campo das políticas educacionais. As experiências históricas de reformas liberais equivocadas, como a do Ato Adicional de 1834 e a reforma de Leôncio de Carvalho, em 1878, configuravam-se como medidas distantes da realidade do País e, por isso, fracassaram. Com essas marcas de “idas e vindas”, o Brasil inaugura, após a Segunda Guerra e o fim da ditadura, uma nova etapa de sua evolução, com a perspectiva de construir um país democrático, mas sem romper com a herança corporativista do Estado Novo. No âmbito da educação, muitos dos que assinaram o Manifesto de 1932 retornam ao cenário imbuídos de novas esperanças. 26 Constituição de 1946: criação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional A nova Constituição, que foi promulgada em 1946, estabeleceu o retorno do estatuto da vinculação de recursos que havia sido suprimido pela Constituição de 1937, determinando à União a aplicação mínima de 10% de seus recursos na área da educação, e aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios nunca menos de 20% da renda adquirida por meio da arrecadação de impostos. A Constituição também definiu a competência da União para elaborar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Para tanto, o então Ministro da Educação Clemente Mariani criou uma comissão de especialistas, presidida por Lourenço Filho, que teve como relator Antônio Ferreira de Almeida Júnior, educador paulista signatário do Manifesto. A comissão concluiu os trabalhos em 1948, e o projeto foi enviado à Câmara Federal em seguida. A nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional tinha como característica a conciliação entre duas tendências: centralizadora, com fundamentos na unidade nacional, e descentralizadora, de modo a proporcionar às unidades federadas a oportunidade de realizar suas próprias experiências. No entanto, como salientou Villalobos (1969), o projeto foi objeto de parecer restritivo emitido por Gustavo Capanema em 1949, que, a essa altura, exercia as funções de Deputado Federal. A partir dessa restrição, vários movimentos se seguiram, até a aprovação final da Lei, em dezembro de 1960. Há um dispositivo na Constituição de 1946 que nos cabe registrar. O parágrafo único do art. 170 prescrevia que o sistema federal de ensino teria caráter supletivo, estendendo-se a todo o País, nos estritos limites das deficiências locais. Como podemos notar, o uso do vocábulo “estrito”, que significa algo restrito, levava à falta de clareza sobre a situação de financiamento da educação de boa parte das unidades federadas, cujos recursos disponíveis estavam muito aquém das necessidades mínimas de atendimento educacional. Além disso, significava a continuidade da ausência da União em uma das questões mais fundamentais para o País: o financiamento público federal. Deixava, ainda, de lado duas conquistas importantes da Constituição de 1934 que eram as seguintes: a aplicação de, no mínimo 20%, dos recursos anuais no ensino rural, e a reserva de uma parte dos patrimônios territoriais da União, dos Estados e do Distrito Federal para a constituição de um fundo para a educação. Medida semelhante havia sido tomada pelos Estados Unidos em 1785, estabelecendo que a sexta parte das terras de cada cidade deveria ser explorada para a manutenção das escolas públicas (LARROYO, 1970). A aprovação final da LDB não foi pacífica. Acirrados debates ocorreram entre os defensores da escola pública e as correntes que lutavam em prol do ensino particular, sobretudo o segmento católico. A polêmica entre educadores liberais e católicos, ocorrida nas décadas de 1920 e 1930, retornava então ao cenário de debates. Novamente, Anísio Teixeira, que ocupava a Presidência do Inep e coordenava a Comissão Nacional de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior (Capes), 27 devido a sua contundente defesa do ideal de escola pública destinada ao povo, foi perseguido sob acusações infundadas, como a de ser adepto de ideias oriundas do materialismo dialético. Sua demissão foi requisitada, mas não foi aceita pelo Governo brasileiro. Manifesto dos Educadores No auge dos debates que antecederam a aprovação da primeira LDB, Fernando de Azevedo foi, novamente, convocado para redigir o segundo Manifesto dos Pioneiros, sob o título de Manifesto dos Educadores. Assinado por quase 200 educadores, intelectuais e líderes diversos do País, o documento insistia na urgência de uma política de estado para a educação. Uma das características mais marcantes do movimento em defesa da escola pública à época, e ainda presente atualmente, residia no pluralismo de tendências e pensamentos. Educadores ideologicamente à esquerda, ao centro ou mais à direita se uniram em defesa de um ideal comum. Desse modo, entre os principais líderes do movimento, destacavam-se educadores de diferentes tendências, como Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Florestan Fernandes, Roque Spencer Maciel de Barros, João Eduardo Rodrigues Villalobos e Laerte Ramos de Carvalho. Esse fato é extremamente importante em termos de gestão educacional na atual conjuntura nacional e mundial, pois, para que um projeto de educação avance, devem ser construídos consensos, sem os quais poderão surgir obstáculos políticos e pedagógicos de difícil superação. Características centrais da LDB Entre as características centrais da LDB de 1961, temos as seguintes: � recriação do Conselho Nacional de Educação, com o nome de Conselho Federal de Educação, e dos conselhos estaduais do setor; � ampliação para 12% dos recursos da União oriundos de impostos; � criação de três fundos para os Ensinos Primário, Médio e Superior; � elaboração do Plano Nacional de Educação. Villalobos,que estudou profundamente a trajetória da primeira LDB, questionava-se se, no caso brasileiro, a melhor solução para os problemas do ensino seria mesmo procurar a média de opiniões, no lugar de definir uma política ancorada em uma ideia clara e coerente a respeito do que deva ser a educação. Em suas conclusões, Villalobos perguntava ainda: 28 “O que poderia significar para o país uma política de descentralização? Adotá-la, seria, certamente, manifestar excessiva confiança no tirocínio dos governos estaduais e municipais, e na fecundidade das iniciativas livres de instituições sociais ou grupos humanos, confiança que a história do país parece não permitir alimentar” (VILLALOBOS, 1969, p. 177). Essas reflexões, feitas há quase meio século, continuam a desafiar a gestão educacional do País. Talvez a ideia de um Sistema Nacional de Educação que tenha suas raízes no Manifesto de 1932, definindo responsabilidades e estabelecendo mecanismos de articulação entre os entes federados possa ser um caminho promissor. Plano Nacional de Educação Após a promulgação da Lei nº 4.024/1961, nossa primeira LDB, no âmbito do Conselho Federal de Educação e sob a presidência de Anísio Teixeira, foi elaborado o Plano Nacional de Educação, ideia que vinha sendo defendida desde o Manifesto de 1932. No entanto, os anos iniciais da década de 1960 foram marcados por episódios reestruturantes na vida nacional. Houve a renúncia do Presidente Jânio Quadros, em 1961, seguida da posse de seu Vice-Presidente, João Goulart, que só se tornou possível pela aprovação do regime parlamentarista, já que os setores militares temiam um Presidente aliado à esquerda. Com Jango no poder, a esquerda, de fato, passou a ter um enorme espaço, período em que, na área da educação, foi elaborado o Plano Trienal de Educação. Em mensagem enviada ao Congresso Nacional para propor o Plano Trienal de Educação, Goulart lembrava a existência de sete milhões de crianças em idade escolar (7-14 anos) que não frequentavam a escola. Desse modo, o referido plano defendeu a ampliação de investimentos no setor, devendo que fossem aplicados pela União recursos equivalentes a 10% em 1963, 15% em 1964 e 20% em 1965 (CUNHA; MACHADO, 2016). Nesse mesmo período, foi criando o Plano de Alfabetização Nacional, elaborado por Paulo Freire e inspirado na experiência pioneira de Angicos, no Rio Grande do Norte. No entanto, com o acirramento das lutas sociais por várias reformas de base, e a crescente desconfiança dos militares e de vários segmentos das elites conservadoras, a derrubada de Goulart foi preparada e executada com impressionante rapidez, dando início ao segundo período ditatorial no Brasil. 29 Do regime militar à Constituição de 1988 Nenhuma ditadura supera o pluralismo de uma democracia, sobretudo no campo da educação, em que são imperativos o livre intercâmbio de ideias e a liberdade de expressão. Historicamente, sabemos que um regime de exceção abre feridas que demoram a cicatrizar – quando cicatrizam – e, no Brasil, a narrativa não foi diferente: perseguições, exílios, torturas, mortes, cassações de direitos políticos e diferentes violações aos direitos humanos marcaram o período ditatorial no País. Tais ações só puderam ser mapeadas, posteriormente, pela Comissão Nacional da Verdade, que, instituída em 2011, mostrou a extensão dos efeitos do regime militar instaurado em 1964. Reformas empreendidas durante o regime militar Nesse cenário de exceção, algumas reformas foram empreendidas, destacando-se as seguintes leis: � Lei 5.379/1967, que instituiu o Mobral; � Lei 5.540/1968, destinada à reforma das universidades e da Educação Superior; � Lei 5.692/1971, com vistas à reforma da Educação Básica. Nesse período da história educacional, foi instituído o salário-educação (Lei 4.440/1964), uma importante fonte de recursos oriundos de um percentual do salário de contribuição recolhido pelas empresas. Para operar esses recursos, alguns anos depois, por intermédio da Lei nº 5.537/1968, foi criado o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), autarquia subordinada ao MEC e que se converteu em um mecanismo valioso para o financiamento da educação. Com referência a Lei 5.540/1968, há uma particularidade interessante que vale registrarmos em decorrência do atual problema de autonomia das Universidades Federais. Em um de seus artigos, ficou estabelecido que as universidades deveriam ser organizadas como autarquias especiais, com o propósito de diferenciá-las de outras instituições públicas. Como esse artigo nunca foi regulamentado e, posteriormente, foi superado pela Constituição de 1988, perdeu-se uma excelente oportunidade de formalizar a gestão das universidades em regime jurídico especial, compatível com as características de uma instituição de ensino e pesquisa. Em que pesem muitas aberturas e realizações proporcionadas pelos dispositivos legais referidos, o clima de delação e de autocensura que se instaurou com o regime militar de 1964, mais uma vez, adiou o sonho republicano imaginado por pensadores como Euclides da Cunha, Caio Prado Júnior, Gilberto Freyre, Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Paulo Freire, Darcy Ribeiro, que, em diversas épocas da formação histórica do País, lutaram pela democracia e pelos direitos humanos. 30 Como salientou Rodrigo Patto Sá Motta (2014), em sua pesquisa sobre as universidades e o regime militar, a face violenta do aparato repressivo que se instalou nessa época deixou marcas profundas nas instituições universitárias, provocando grandes prejuízos e sofrimento às pessoas atingidas. Todos, mesmo os não militantes, sofreram nas mãos de agentes da repressão. Em todas as instâncias de gestão da educação nacional, havia agentes prontos para receber e encaminhar uma denúncia. Diretas Já É certo que, quando examinamos a educação e a ciência durante o regime militar, devemos reconhecer realizações relevantes, como o Plano Nacional de Pós-graduação, a criação da Embrapa, o tempo integral nas universidades federais, a construção dos campi universitários, a criação do salário-educação e a extensão da obrigatoriedade do Ensino Fundamental para oito anos. Todavia, o desejo de liberdade era superior ao das realizações empreendidas no período. Dessa forma, aos poucos, percebendo o destino incerto que o esperava – agravado pela hegemonia do liberalismo, mundialmente liderado pelo Presidente estadunidense Ronald Reagan e pela Primeira-Ministra inglesa Margareth Tatcher –, o País começou a reagir. Em 1983, inicia-se a Campanha das Diretas Já, que, a partir da Emenda Dante de Oliveira, abre caminho para a convocação de uma Assembleia Constituinte. Durante esse período, educadores empregaram todos os seus esforços para que, com o apoio de diversos parlamentares, a Constituição contemplasse reivindicações históricas que haviam sido consubstanciadas nos dois manifestos já mencionados (1932 e 1959) do setor educacional. Favorecidos pelo contexto político de fim do regime militar, tais esforços obtiveram êxito. Na volta à democracia, seguimos por um caminho de transição com conciliação. O nome escolhido pelo Colégio Eleitoral, via eleições indiretas, foi Tancredo Neves, que apresentava uma tendência moderada, derrotando o ex-prefeito de São Paulo, Paulo Maluf, em 1985. O surgimento de uma doença, entretanto, na véspera da sua posse, teve como consequência a liderança de José Sarney no processo de redemocratização. As circunstâncias, seu temperamento e sua formação conduziram Sarney ao caminho de aceleração da abertura política. Constituição de 1988 Durante a Nova República – período da história do País que se inicia em 1985, com o Presidente José Sarney, e assinala o fim da ditadura –, foi promulgada a Constituição de 1988. No campo da educação, ao tempo da gestão de Marco Maciel, que assumiuo MEC em março de 1985, parece-nos oportuno registrar, em primeiro lugar a iniciativa de dotar o País de mais 200 escolas técnicas de Nível Médio. Apesar dos muitos obstáculos enfrentados no processo de implementação, tal ação foi importante no sentido de chamar a atenção para a necessidade de formação de quadros técnicos intermediários demandados pelos setores produtivos. É importante, ainda, lembrarmos que, nesse período, ocorreu o chamado “Dia D” da educação, permitindo a educadores de todo o País manifestarem suas ideias livremente. 31 Desse modo, a Constituição de 1988 incorporou princípios, diretrizes e compromissos que fizeram do capítulo referente à educação o mais importante de toda a história educacional do Brasil. Entre seus pontos mais marcantes, destacam-se: � a ampliação dos recursos vinculados que haviam sido determinados pela Emenda Calmon, passando a União a investir com, no mínimo, 13% de seus recursos e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios com nunca menos de 25% da receita resultante de impostos; � a universalização do Ensino Fundamental e a progressiva universalização do Ensino Médio; � o piso nacional de salários para o magistério; � a erradicação do analfabetismo; � a melhoria da qualidade do ensino; � a gestão democrática; � a formação para o trabalho; � o atendimento, em creches e pré-escolas, a crianças de 0 a 6 anos de idade. Devemos acrescentar, ainda, uma importante decisão da Constituição, que foi a divisão de responsabilidade entre os níveis do ensino, devendo os municípios atuarem, prioritariamente, no Ensino Fundamental e na Educação Infantil, e os estados, no Ensino Médio. No que tange à gestão da educação, além do princípio e da diretriz da gestão democrática, a Constituição estabeleceu que a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios deveriam organizar seus sistemas de ensino em regime de colaboração. Como coroamento dessa diretriz, a Constituição determinou a elaboração do Plano Nacional de Educação, de duração plurianual, com vistas à articulação e ao desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, e à integração das ações do poder público que pudessem contribuir para a consecução das metas estabelecidas. Um dos desafios mais expressivos da educação brasileira é o regime de colaboração. Como vimos, desde o Ato Adicional de 1834, a Educação Básica ficou sob a responsabilidade dos estados e municípios – com exceção do Ensino Superior, do Colégio Pedro II e de outras instituições do Município da Corte ou do Distrito Federal. A maioria das unidades federadas, no entanto, não reunia condições financeiras e técnicas para cumprir com a missão de criar ou ampliar uma rede educação. A omissão histórica da União em matéria de Educação Básica explica, em boa parte, a magnitude dos desafios atuais. A Constituição de 1988 demonstrou dar atenção, mesmo que parcialmente, a esse problema ao estabelecer a necessidade do regime de colaboração. Além disso, por intermédio de seu artigo 23, definiu as responsabilidades das unidades federadas em vários setores. No entanto, esse artigo foi remetido para regulamentação posterior, por intermédio de lei complementar, o que ainda não ocorreu. Dessa forma, a falta de clareza na definição de papéis continuou a dificultar a cobrança de resultados aos entes federados. Neste módulo, discutiremos os avanços e limites da política educacional brasileira após a promulgação da Constituição de 1988. Para tanto, traçaremos o perfil das diferentes gestões que passaram por nosso país até a atualidade. Impacto da Constituição na política educacional Aprovada, como vimos, em 1988, a Constituição brasileira nasceu em um momento de grandes mudanças no panorama internacional, como a queda do Muro de Berlim, ocorrida no ano seguinte, e o acirramento das políticas neoliberais. O novo quadro mundial da economia, intensificando a competitividade entre os países por mais e mais inovação, aumentou a demanda pela melhoria da qualidade do ensino substancialmente. Percebendo o impacto dos desdobramentos da reestruturação produtiva em escala mundial, favorecida por extraordinários avanços no campo da ciência, tecnologia e inovação – principalmente, das tecnologias da comunicação –, a Unesco convocou, em 1990, uma conferência mundial, realizada na Tailândia, onde foi aprovada a Declaração Mundial de Educação para Todos. O conhecimento, especialmente aquele gerador de inovações, passou a ser moeda de troca. Em decorrência disso, a política educacional começou a ser mundialmente debatida. MÓDULO II – EDUCAÇÃO APÓS A CONSTITUIÇÃO DE 1988 34 Para impulsionar esse debate, organismos internacionais como a Unesco, a OCDE e o Banco Mundial aprofundaram estudos, projetaram cenários e instigaram mudanças com o argumento central de que os países que não melhorassem seus sistemas de ensino teriam poucas chances de acompanhar o ritmo acelerado de mudanças sem precedentes. Simultaneamente, começaram a ganhar espaço as avaliações de desempenho da educação em larga escala, com ampla divulgação pública e consequente comparação de resultados entre os países. Ademais, como a Constituição de 1988 foi o coroamento de uma luta de vários anos contra a ditadura, seu conteúdo se pautou, fortemente, no avanço de questões relativas aos direitos humanos. O capítulo atribuído à educação foi construído com intensa participação dos educadores, por intermédio de entidades representativas como as seguintes: � Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública; � União Nacional de Estudantes (UNE); � Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC); � Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE); � Comissões de Educação da Câmara e do Senado Federal; � Associação Nacional de Política e Administração da Educação (Anpae); � Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped); � Centro de Estudos Educação e Sociedade (Cedes); � Associação Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes). Várias outras entidades surgiram, congregando dirigentes, especialistas e líderes da sociedade civil, com o objetivo de contribuir e também zelar pelos compromissos assumidos pela Constituição. Entre as novas entidades, merecem destaque a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed). Essas duas entidades, compostas de dirigentes municipais e estaduais de educação, converteram-se em fóruns privilegiados para o debate de temas relevantes da política educacional e tornaram-se atores centrais dos rumos da política educacional, mantendo permanente diálogo com o MEC e com vários outros setores dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Governo Collor de Mello Um ano após a promulgação da Constituição de 1988, é eleito para Presidente do Brasil, por meio de voto popular, Fernando Collor de Mello. Durante a sua campanha, Collor defendeu a necessidade de modernização do País em função das transformações mundiais ocorridas na economia, de modo a torná-lo mais competitivo e inovador. A situação econômica era crítica, com um elevado índice de inflação, que chegou a atingir 1.430,2% em 1990, e o consequente agravamento da situação social no País. As várias tentativas de 35 eliminar a inflação não surtiram os efeitos desejados pelo Presidente. Cada vez que os preços voltavam a subir, observa Singer (2014), Collor aplicava medidas mais violentas, que conduziam a economia à perda de sentidos. Sem credibilidade, acossado por denúncias de corrupção e tendo de enfrentar um processo de impeachment apoiado por diversos movimentos sociais, Collor acabou renunciando para não ser derrubado. Além do desafio da inflação, o governo enfrentava o problema do ajuste fiscal, com vistas ao equilíbrio das contas públicas.
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