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Considerações iniciais Na sociedade em que vivemos, somos bombardeados a todo momento por indagações e mesmo cobranças que buscam conferir ao historiador um papel na sociedade, seja como um leitor mais apurado dos fatos e acontecimentos atuais, seja como alguém que, em um futuro próximo, deverá levar às novas gerações informações, interpretações e explicações acerca de acontecimentos que movimentam, incomodam ou assustam a sociedade de forma geral ou específica. Para além de conhecer datas, fatos, feitos, nomes etc., o papel de historiador e da própria História no mundo atual é uma discussão presente em nossa sociedade. No mundo acadêmico, estabelecer esse papel – ou esses papéis se tomarmos a História como algo multifacetado –, é algo que gerou, e gera ainda hoje, intensas discussões. Surgindo como disciplina e campo teórico específico no século XIX, a História já inicia o seu percurso cercada de intensos debates, como aquele estabelecido entre Émile Durkheim – em sua busca por situar o próprio campo da Sociologia como uma ciência – e a Escola Metódica – que buscava conferir à História um lugar entre as Ciências a partir da construção de um método científico de análise do passado a partir dos documentos. Assim, a História caminha por críticas que a apontam e estabelecem inicialmente como uma auxiliar para o trabalho do sociólogo para depois se constituir em um campo com seus próprios saberes e técnicas (DOSSE, 1992, p. 26). No processo de sua constituição, historiadores buscam afastar sua disciplina das Ciências Sociais, tentando estruturar e constituir seu saber de forma independente, reafirmado como ciência e disciplina. No decorrer de mais de um século, muitas foram as correntes e discussões que surgiram, muitos embates foram gerados. Hoje, com a disciplina já muito estabelecida – mas não acabada ou engessada –, os historiadores retomam seus diálogos com as Ciências Sociais e com outros campos do conhecimento visando sua interlocução e seus entrelaçamentos. Não se pode dizer que esse retorno seja direto, simples e tranquilo. Assim como no início dos embates pela constituição do campo da História independente da Sociologia e de seus afluentes, críticas e descontinuidades são sempre recorrentes. No passado, o apego às fontes, aos fatos, à história política estatal, aos grandes feitos e aos homens (uma História factual que, de certa forma, estava focada na construção biográfica de “indivíduos especiais” que se constituíam em exemplos daquilo que se desejava como símbolos para as nações) foi criticada por construir leituras factuais, sem se aproximarem de análises que trouxessem para o palco os agentes sociais. Hoje, porém, temos − após quase um século do advento dos Annales e sua história-problema, sua análise do cotidiano e de uma interpretação da história como o estudo dos homens no tempo −, o desenvolvimento de uma Nova História, que redescobre o sujeito, ressignifica o evento, retoma a história política a partir de outras premissas e outros olhares que não aquele do Estado, avança para o direito como meio de compreender o passado, retorna à escrita de biografias tendo como foco personagens encontrados entre os homens e mulheres comuns, lida com a questão do discurso e da narrativa a partir de aproximações com outras áreas do conhecimento, incorporando noções de incerteza, de estratégia, de negociação e de consciência. A História e seu estabelecimento no século XIX Você poderá verificar, no decorrer desta disciplina, que a História amplia seu espaço, conversa e lida com a interdisciplinaridade, trazendo para suas análises não apenas as contribuições e discussões de outros campos, mas também retomando, a partir de novas bases, temas e questões, além de rediscutir pontos nevrálgicos de seu próprio desenvolvimento, como a biografia, para se recompor e se refazer a cada dia. Nos princípios da organização do campo da História, a própria discussão sobre ser ela uma ciência ou não demandava que se pensasse a prática daqueles que por ela se aventuravam: como se organizaria seu método para o conhecimento do passado? A chamada Escola Metódica estabelecia a procura e seleção do maior número de documentos, a verificação de sua veracidade e sua compilação como descritores da verdade, na pretensão de chegar de forma mais próxima do que realmente aconteceu, numa ânsia por estabelecer as origens de determinados fatos e acontecimentos históricos. Também no século XIX, vemos nascer o materialismo histórico, originado nas leituras das obras de Karl Marx (1818-1883) e que se desdobraria em uma História Marxista calcada na análise econômica, a partir de conceitos que serviriam para descrever toda a História, não apenas de determinada sociedade, mas da própria humanidade. Ao historiador marxista caberia, a partir da análise de séries documentais, estabelecer as relações entre infraestrutura econômica e superestrutura ideológica, compreender as organizações sociais e estabelecer como essas se inserem no movimento da história. Reflita Você já pensou que o termo “Feudalismo” carrega uma série de interpretações e pré- conceitos construídos por representantes desta escola teórica sem que nós, em nossa prática diária, paremos para discuti-lo e problematizá-lo? Assim, tomamos o conceito como descritivo de determinadas características que servem para compreender certa sociedade e as ampliamos para todo um período e lugares diversos, com lógicas e práticas próprias que não podem ser encaixadas dentro de tal conceito estruturante. Outros exemplos disso, para o caso brasileiro e recorrentes em nosso material didático, são os conceitos de “Pacto Colonial”, de “Colônias de Povoamento X Colônias de Exploração” e de “Ciclos Econômicos: cana-de-açúcar, ouro e café”. O rompimento com a História factual Seria com a publicação da Revista dos Annales, em 1929, pelos historiadores franceses Marc Bloch (1886-1944) e Lucien Febvre (1878-1956), que o que se entendia como o ofício do historiador se modificaria e se expandiria para algo mais abrangente que o simples trato das fontes em uma análise do documento pelo documento. O historiador passa a ser o disparador daquilo que se busca no passado. Em sua proposta para responder o que é a História, essa primeira geração dos Annales estabelece que a História é a ciência do homem no tempo e que, para realizar esse ofício, se faz necessária a construção de uma história-problema, em que as indagações do presente direcionam para aquilo que se deseja saber do passado. Assim, são as perguntas elaboradas pelo historiador na leitura dos documentos que passam a ser meios para a apreensão de uma parcela do passado e para a construção de uma interpretação do passado − mas não a única ou verdadeira explicação. Outros marxismos Herdeiro da teoria marxista de História, o filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940) terá como elemento-chave de sua análise a luta de classes. Sua proposta é a de uma História aberta a novas e diversas possibilidades, com objetivo de resgatar um passado que interessa ao presente, e não um passado qualquer. Nesse sentido, sua proposta alinha-se àquela de Bloch ao entender que são as aspirações e interesses do presente que determinam aquilo que se deseja saber do passado, que foi esquecido e se quer resgatar. Observe: • Bloch propõe uma História cotidiana, comum, que traga para o palco os homens em seus mais variados aspectos e relações sociais e culturais; • Benjamin, por sua vez, lança seu olhar para o oprimido, em uma proposta de História revolucionária, que visa resgatar aquilo que, por não ser contemplado pelas fontes e bens culturais produzidos e que reproduzem as vitórias dos opressores, foi esquecido e que precisa ser lembrado. A proposta de Benjamin é uma crítica às interpretações lineares, em um único sentido, que operam de forma mecânica, com base na ideia de progresso. Embora calcada em uma análise marxista do passado, suaproposta de História é construída a partir do afastamento dos modelos materialistas clássicos do início do século XX, opondo-se à ideia central dessas teorias, a saber: o progresso evolucionista, econômico e histórico. Para o filósofo alemão, ao contrário do que propõe o materialismo histórico, a revolução não é um resultado natural do progresso econômico e tecnológico, e sim a interrupção de um processo que só pode conduzir à catástrofe. ______ ⚠️ Atenção Aqui temos um elemento importante para a compreensão da proposta de história de Benjamin: o “pessimismo”. Benjamin lida com a ideia de que o progresso econômico e tecnológico só poderá resultar em uma catástrofe. Dessa forma, o capitalismo se constitui em uma ameaça para a humanidade. ______ Benjamin defende que a História seja escrita a contrapelo, ou seja, do ponto de vista dos vencidos, em uma oposição clara ao Historicismo e seu foco na história dos vencedores. A história marxista também seria rediscutida e remodelada por outros autores, sendo um dos principais articuladores dessa mudança o historiador inglês Edward Palmer Thompson (1924- 1993). Suas análises trazem para as discussões da História marxista a crítica à lógica marcadamente estruturalista, tendo como objetivo reconstruir o campo a partir de uma História “vista de baixo”. Por meio de documentos oficiais ou não, essa corrente procura resgatar a agência dos operários do século XVIII e valorizar a cultura como espaço de luta, trazendo com isso toda uma reformulação do campo dos estudos da sociedade, das relações de trabalho e de poder. O lugar social e a narrativa histórica A busca por estabelecer esse lugar da História trouxe para o campo discussões sobre a importância da narrativa, da aproximação com a literatura e com outras áreas do conhecimento, além de repensar nosso ofício a partir de outros lugares. Nessas novas vertentes da Historiografia destaca-se o historiador, psicanalista e jesuíta francês Michel de Certeau (1925-1986). Pode-se estabelecer que os dois pontos mais importantes da proposta de Certeau para nossa discussão sejam: Ao tratar do primeiro ponto, Certeau parte da ideia de que o historiador, ao estar inserido em um lugar social, tem sua produção condicionada por ele. Dessa forma, sua proposta é a de que a História só poderá se constituir no nível da prática – de pesquisa e de escrita – se estiver submetida às relações de força de um campo que lhe é anterior e exterior: um lugar social. Mas o que isso quer dizer? Isso significa que a escrita da História é sempre realizada em função de uma instituição, que foi modelada a partir do próprio estabelecimento da História enquanto campo científico. O historiador pratica sua profissão a partir das universidades, arquivos, bibliotecas, escolas, institutos históricos etc., que recebem a chancela do Estado e que são regulados por ele impondo ao historiador limites e regras para a sua atuação. Desse modo, a relação entre o historiador e sua fonte não é isenta de elementos externos ao poder. Ou seja, o historiador não é livre ou neutro; são os desejos institucionais que organizam a prática tanto de pesquisa quanto de teoria. Além disso, o fazer-se da História está condicionado às regras e exigências do discurso acadêmico. Nessa operação, fica clara a necessidade do historiador em construir a sua escrita da História − dentro de sua função de dar voz ao não dito. Para isso, deve estar respaldado pela utilização de uma teoria da História, a fim de evitar o perigo da construção de dogmas, de sair rumo à busca de verdades. Para Certeau, a validação do discurso acadêmico está sujeita à aprovação de outros historiadores. Dessa forma, a pesquisa e a escrita históricas estão inseridas em um lugar social, em que, de acordo com seus interesses, define o que pode ser feito e o que não é permitido ser feito com e a partir das fontes. É esse lugar social que define os métodos científicos aceitáveis para a pesquisa, assim como os recursos linguísticos, os encaminhamentos de análise, os arcabouços teóricos e historiográficos para a História que se pretende realizar em determinado tempo e espaço. ______ 🔁 Assimile • pesquisa histórica – modos de fazer e encaminhamentos analíticos; • escrita histórica – a narrativa, as formas de fazer conhecer o que não foi dito nos documentos, as formas de fazer conhecer o outro. ______ A prática do historiador se centra em transformar um objeto em algo histórico – historicizar. Ou seja, reconstruir esse objeto e dar-lhe um lugar no “dito”. Ao historiador cabe trabalhar sobre um material, o produto do campo da cultura, a partir de regras estabelecidas pelo método para transportá-lo do silêncio para a narrativa histórica. Nesse processo, o objeto do historiador deve ser decifrado, e a produção histórica será constituída em um discurso que tem como proposta “traduzir” o “outro” para o presente – trabalho sempre incompleto, pois o passado é sempre o “outro” e toda tradução implica perda de sentidos originais. Flertando com a linguística e a abordagem de Michel Foucault, Certeau conclui que a escrita da História está mais próxima de outras formas de narrativa (como a literatura) do que os historiadores da escola metódica e marxistas gostariam. A História hoje: algumas considerações Para o trabalho em sala de aula, é primordial que tenhamos bastante clareza da importância da proposição de uma História que se apresente aos estudantes como um campo em que eles mesmos possam buscar interpretações e apropriações do passado. Dessa forma, o uso de documentos primários como suportes didáticos complementares ao material didático é fundamental. Conforme você pôde verificar nesta unidade, a História se modificou e ainda está em transformação, mas, desde o rompimento com a história factual da Escola Metódica, o conceito de “história-problema” vem sendo ressignificado e remodelado pelas mais diversas correntes históricas. Nesse sentido, também tem se tornado fator comum, a essa História múltipla, a busca por responder às indagações do presente (em que o “problema” se coloca para o historiador). ______ 💭 Reflita Você já pensou que ao ler uma fonte, seja ela qual for, essas premissas e discussões são todas acionadas pelo historiador, que estabelece com esse documento um vínculo com o passado, podendo lançar sobre ele os mais diversos questionamentos, ligando-o a outros documentos, e construindo a partir dele uma interpretação do passado, sempre calcada em suas escolhas, tanto pessoais quanto teóricas? _____ Faz parte do ofício do historiador a investigação constante e a análise das fontes, mas o desenvolvimento de tal estudo está intimamente ligado às escolhas teóricas e metodológicas que você fará no decorrer de sua formação e trabalho. Assim, compreender a História como um campo aberto para a exploração, que permite que caminhemos de formas diversas, é algo de extrema importância para o historiador e professor. Ter sempre em mente as mudanças, extensões, apropriações, permanências e rupturas nos campos da teoria só é possível por meio do estudo daqueles que já escreveram sobre o tema. _____ 🔁 Assimile Podemos observar como a história da escravidão no País foi tratada no final do século XIX e início do século XX, para compreender o apagamento e a necessidade de se reconstruir a experiência cativa como parte constituidora do processo histórico. Essa percepção exige que você articule seus conhecimentos da História metódica, dos desdobramentos dos estudos sociológicos de meados do século XX e da influência de Thompson nas pesquisas produzidas a partir da década de 1980, que buscam reconstruir a história daqueles que estão no ponto mais baixo das relações de poder, a ressignificando e trazendo novas dimensões para o estudo não apenas da escravidão, mas das relações sociais e de poder no Brasil. ______ Você já pensou que estudar História pode ser também um caminhopara a construção de suas próprias interpretações do passado? Que um indivíduo em nossa sociedade, com um mínimo de curiosidade e inquietação com uma situação real − seja atual ou no passado − ao ter contato com um documento primário, pode acionar seus conhecimentos, estabelecer relações e construir uma interpretação própria do passado? E você também percebe como isso pode ser ao mesmo tempo muito construtivo e perigoso, uma vez que sem um mínimo de conhecimento de metodologias, teorias e limites apresentados pela Historiografia podem-se produzir não inverdades, mas visões deturpadas e condicionadas às opiniões pessoais? Assim, o estudo da Historiografia e das formas como as fontes foram e são acionadas como indícios do passado é fundamental para nosso trabalho como historiadores e professores. Podemos concluir que é o incômodo com modelos preestabelecidos que leva à necessidade de transformação e redefinição do campo. Dessa forma, os historiadores aqui apresentados são apenas uma pequena introdução sobre a multiplicidade da historiografia, suas reflexões e de outros grandes historiadores que serão apresentados no decorrer desta disciplina com a proposta de nos ajudar a dar encaminhamentos a nossas próprias escolhas ao tratar nossas inquietações acerca do passado. Como você pôde verificar, a História é composta por debates diversos, constituindo-se em um campo multifacetado, em que o próprio papel do historiador vem se moldando a partir das demandas que a sociedade e seus interesses vão impondo. É a inquietação de Bloch com os acontecimentos na França no entre guerras e no decorrer da Segunda Guerra Mundial que o levam a lançar perguntas ao passado e construir suas análises a partir de documentos. É sua experiência na academia, atrelada às experiências pessoais de resistência e prisão, que influenciam sua visão de História e propostas para mudanças daquilo que já está constituído em campo teórico. São também as inquietações de Benjamin, aliadas à sua formação marxista e interesses filosóficos, que estimulam suas críticas e proposta de reformulação do trabalho do historiador. Assim como é a formação e militância marxista de Thompson, aliada ao seu interesse pela sociedade inglesa, operária e pós-revolução industrial, que o levam a criticar aquilo que até ali vinha sendo produzido por outros historiadores, e a estabelecer novas formas de lidar e abordar os documentos. É também a formação e a prática de pesquisa, centrada em estudos das multiplicidades culturais, de práticas sociais e da Igreja, que levam Michel de Certeau a refletir sobre o campo e tecer considerações sobre a teoria da história, que acabam por colocar em discussão os limites muitas vezes não percebidos da pesquisa e da escrita do historiador. ______ ➕ Pesquise mais Para o aprofundamento de seus estudos na discussão sobre o papel da História e suas ligações, contraposições e alinhamentos com as Ciências Sociais sugerimos a leitura dos seguintes textos: • História e Ciências Sociais: zonas de fronteira, de Fernando Teixeira da Silva; • A filosofia da história de Walter Benjamin, de Michael Löwy; • A história como heterologia: do conceito de história em Michel de Certeau, de João Rodolfo Munhoz Ohara. Considerações iniciais No universo do conhecimento científico, seja ele acadêmico ou escolar, estamos sempre ancorados por produções anteriores que nos permitem refletir, questionar, problematizar, criticar e até nos opor ao conhecimento e às teorias construídas pelas gerações passadas e atuais. No campo do conhecimento histórico, essa lógica não é diferente. O historiador lida basicamente com dois tipos gerais de produções que lhe servem para a apreensão do passado: https://www.scielo.br/j/his/a/rhKxZ5tswqRjFY4xNnkbNNd/?lang=pt https://www.scielo.br/j/ea/a/c7TdKSGxkSysjMds45cqs8v/?lang=pt http://www.uel.br/pos/mesthis/JoaoRMOhara.pdf http://www.uel.br/pos/mesthis/JoaoRMOhara.pdf No que se refere ao segundo grupo, entre toda a produção da sociedade, o que nos permite reconstruir historicamente o passado? Esse é um questionamento sobre o qual muitos pensadores se debruçaram. A busca por registrar e manter a memória daquilo que constituiu a experiência humana e da sociedade é algo que ocorre desde os primórdios das sociedades humanas – na forma escrita ou em outras formas de preservação do passado e do conhecimento –, assim como documentos produzidos para fins diversos foram ganhando o status de fontes para a apreensão do passado. No mundo ocidental, o registro escrito foi ganhando grande espaço, e contar aquilo que se viu e vivenciou passou a ser uma forma de transmitir conhecimentos. Outros registros, como os produzidos por máquinas administrativas, pela burocracia, pela justiça, assim como pela literatura, criaram uma massa documental à espera do trabalho do historiador. Entretanto, seria no século XVIII que os filósofos do Iluminismo construiriam arcabouços teóricos que visassem especificamente discutir como a escrita da História deveria ser organizada e a partir de quais ideias e objetos deveria ser elaborada. E é a partir dessas formulações que a História se constituiria como campo e como disciplina escolar. É no decorrer do século XIX que diversos intelectuais se preocuparam em demarcar o campo das Ciências Sociais, em um momento em que o pensamento científico era aclamado entre a intelectualidade. Nesse processo, a História também busca encontrar seu espaço dentro do universo científico, por meio do estabelecimento de teorias e metodologias que lhe conferem o estatuto de ser uma Ciência. De uma forma geral, o produto dessas discussões é reconhecido como Historicismo, que tem como postulados primordiais a centralidade dos documentos escritos como meio para se chegar ao conhecimento da verdade dos fatos, o foco em grandes personagens e grandes feitos, a crítica à especulação interpretativa e a construção de uma história nacional. A Escola Alemã: Leopold von Ranke e o método Provavelmente, você já leu o nome de Ranke antes, certo? O historiador alemão Leopold von Ranke (1759-1886) é um dos principais expoentes do Historicismo e um dos mais importantes teóricos do período: sua obra serviu de base para a construção e o embasamento de outras correntes historicistas como a francesa e a inglesa. A sua busca por estabelecer a História como uma ciência, com teoria e método, dá-se em contraposição às produções e aos debates do século XVIII, mais especificamente às Filosofias da História produzidas pelo Iluminismo e pelo Hegelianismo. A crítica de Ranke está posta, principalmente, àquilo que se refere à construção de uma História por meio de abstrações. ______ 🔁 Assimile Filosofias da História: no conjunto de temas sobre os quais se debruçaram os filósofos dos setecentos, encontramos a preocupação com as origens do homem, seu papel no mundo e o futuro que o espera. Nesse sentido, a História se torna um ponto de discussão privilegiado. Teorias iluministas: em linhas gerais, essas teorias históricas estavam pautadas em ideais de progresso da humanidade rumo a um ideal ou a um destino preestabelecido (teleologia); operando com ideias da existência de um ser, ou uma força natural ou superior, mas sempre metafísica, que estabelecia um projeto para o homem desde a sua origem. Projeto esse que seria possível verificar pelo estudo de como as sociedades se desenvolveram ao longo da História. Teoria hegeliana: assim como os iluministas, a teoria hegeliana era teleológica, prevendo que o mundo não estaria entregue ao acaso, existindo um fim, a saber, o progresso humano. Para que se chegue ao conhecimento histórico, Hegel propunha o uso da dialética, cujo objetivo seria guiar o Espírito à razão – que sempre existiu, mas que perdeu a consciência de si, de sua perfeição e só alcançará o progresso no desenrolar do tempo. Na dialética hegeliana para o conhecimento histórico, o “ser” se constituiria na tese, aantítese seria o “não ser” e o “devir” a síntese. Assim, o tempo é que dá ao Espírito a possibilidade de se conhecer, é por meio das ações humanas que ele realiza seus fins racionais. ______ Ranke não renega ou recusa totalmente a Filosofia da História, mas tece críticas à História escrita por intelectuais que não se dedicam especificamente ao campo da História – ou seja, ela só pode ser feita por especialistas que se dedicam exclusivamente ao ofício de historiador. Também critica o pressuposto de que se pode conceber a História de uma sociedade a partir de conceitos preestabelecidos, os quais seriam os norteadores das escolhas dos dados utilizados como fontes para alcançar o conhecimento do que realmente aconteceu no passado, mas que na verdade operavam apenas com o objetivo de confirmar as teorias anteriormente elaboradas pelos filósofos. Para o historicista alemão, além de ser feita por um profissional especializado, a História exigia um firme e sistemático trabalho de organizar, selecionar e analisar documentos que, em seu conjunto, permitissem situar as leis que possibilitassem fazer conhecer aquilo que realmente aconteceu no passado. Assim, em sua busca por estabelecer o campo teórico-metodológico do ofício do historiador, Ranke acaba por construir a base de um método científico-analítico que, em certa medida, de forma remodelada, permanece até os dias atuais no que se refere ao trato das fontes. Segundo Guy Bourdé e Hervé Martin (1983, p. 114), ao construir sua teoria da História, Ranke estabelece a existência de cinco regras ou postulados que devem ser seguidos por aqueles que pretendem se especializar no estudo da História: 1. o objetivo do historiador é o de dar conta do que realmente se passou, assim não compete a ele julgar o passado ou levar o conhecimento passado aos seus contemporâneos. Dessa forma, o afastamento do historiador deve ser total, ele deve buscar a neutralidade, uma vez que a principal preocupação do historiador é com a verdade contida no passado e não com o seu tempo presente; 2. não há nenhuma interdependência entre o sujeito (o historiador) e o objeto do conhecimento (o fato histórico). Não são as perguntas ou demandas do historiador que devem organizar a análise das fontes. O fato histórico deve ser analisado por si mesmo, por meio dos documentos, com o estabelecimento de hipóteses sobre o que realmente aconteceu, garantindo a imparcialidade na percepção dos acontecimentos; 3. a História existe em si de forma objetiva e possui uma estrutura definida que é diretamente acessível ao conhecimento. Ao historiador, cabe reunir os vestígios necessários para que ela fique visível e possa ser acessada; 4. a relação entre o historiador e o fato histórico deve seguir um modelo mecanicista: o historiador registra o fato histórico de maneira passiva, como um espelho que reflete a imagem de um objeto; 5. a tarefa do historiador consiste em reunir um número suficiente de dados, encontrados em documentos seguros. A partir desses fatos, por si só, o registro histórico organiza-se e deixa-se interpretar. Qualquer reflexão metafísica e filosófica é inútil, mesmo prejudicial, porque introduz um elemento de especulação. Portanto, para Ranke a ciência positiva pode atingir objetivamente e fazer conhecer a verdadeira História. 🔁 Assimile Para efetuar sua tarefa, o historiador deve abandonar as especulações subjetivas e as tentativas de análises filosóficas, uma vez que os documentos falam por si mesmos. Nesse processo, deve ser aplicada a Teoria do Reflexo, em que o historiador ao ler e tratar um documento deve simplesmente registar aquilo que está nos documentos, de maneira passiva, como um espelho que reflete um objeto. Deve-se, assim, desprezar o papel dos questionamentos colocados pelos historiadores às suas fontes e louvar o apagamento do historiador por trás dos textos. O Historicismo francês: A Revista Histórica e a Escola Metódica Inspiradas nas propostas de Leopold von Ranke, pelo menos duas gerações de historiadores franceses implementaram, ampliaram e consolidaram o Historicismo na França. Esses historiadores fundam a Revista Histórica (1876), uma publicação que tinha como pressuposto a oposição à aristocracia, à monarquia e à Igreja Católica. Entre os membros da Revista Histórica, merecem destaque: • Langlois e Seignobos – A obra mais difundida de Charles-Vitor Langlois (1863- 1929) e Charles Seignobos (1854-1942), “Introdução aos estudos históricos”, publicada em 1898, pode ser considerada um manual para o ofício do historiador, contendo um discurso do método histórico científico, em que encontramos a máxima: “a História não passa de aplicação de documentos” (SILVA, 2005, p. 130). • Lavisse – Ernest Lavisse (1842-1922) empreendeu a monumental tarefa de produzir para a França uma ampla reprodução do passado nacional, contando com a colaboração de muitos de seus colegas da Escola Metódica, contabilizando 9 tomos de 17 volumes (BOURDÉ; MARTIN, 1983, p. 107). É considerado o principal responsável pela criação de uma História nacional francesa com fins didáticos, foi um profícuo autor de manuais de ensino, sendo uma figura fundamental não apenas para a constituição da História enquanto ciência, mas principalmente como disciplina escolar. Entre os posicionamentos da Revista Histórica e de seus membros, destacam-se a indiferença e o desprezo à teologia da história e à filosofia da História. Assim, procuram-se afastar do providencialismo cristão, do progressismo racionalista e do finalismo marxista. Em Ranke, encontram o embasamento para a construção de sua metodologia, apropriando-se de seus preceitos e modo de fazer a História − a Teoria do Reflexo é o ponto central de sua proposta de análise dos documentos −, proclamam a neutralidade e o afastamento de qualquer especulação. Como você pode verificar, caro estudante, essa última característica consolida uma das principais prerrogativas da Escola Metódica: colocar-se a serviço da construção de uma História nacional. Essa História se constituía com a demarcação de um fato histórico que lhe desse um ponto de origem, uma origem que também seria a do nascimento do sentimento de pátria, de pertencimento à nação e que se estenderia até culminar na Terceira República Francesa, que sintetizaria e centralizaria todas as características da grande nação. Dentro dessa proposta, os manuais didáticos ganham grande destaque, uma vez que serão eles os responsáveis por construir ainda na infância o amor à pátria. Eles serão também o espaço para a divulgação do conhecimento histórico, um conhecimento que celebrava o culto aos heróis, que justificava – revestido de um discurso civilizador – a expansão francesa, que exaltava a República em contraposição à derrota da monarquia. Desta feita, a ciência histórica, que se pretendia imparcial, objetiva, acabava por se constituir em um discurso ideológico que servia aos interesses de um regime político. A noção de crítica documental A seguir, veremos que, para a Escola Metódica ou Historicismo, a História se constitui em um intenso trabalho de narrar fatos, com destaque aos grandes homens e feitos, com atenção apenas nos aspectos políticos. Veremos ainda que, para os historicistas, independentemente de sua nacionalidade, só se pode realizar o ofício do historiador por meio do acesso às fontes documentais. Neste momento, você deve se perguntar: o que seria um documento para essa corrente historiográfica? O Historicismo parte do pressuposto que dentre todos os pensamentos e atos humanos, apenas alguns poucos vestígios são preservados − mesmo esses são escassos e muitos não são duráveis e se perdem com o passar do tempo. Assim, para essa corrente historiográfica, é correto afirmar que não há registro de todo pensamento humano, não deixando vestígios diretos ou indiretos. Essa característica apontada pelos historicistas implica que toda sociedade, grupo ou indivíduoque não deixou registrado e documentado algum vestígio está totalmente perdido para a História. Os poucos vestígios que foram deixados só podem ser reconhecidos nos documentos escritos, que são de duas categorias distintas: Não se pode negar certo lugar de centralidade dos documentos escritos no trabalho de grande número de historiadores. Embora não sejam testemunhos daquilo que realmente aconteceu, representações expressas e inegáveis da verdade, os documentos escritos são vestígios e indícios do passado que permitem aos historiadores construir suas análises. No entanto, esse foco nos documentos escritos é algo que pode ser bastante perigoso para a observação que fazemos das mais diversas sociedades ao redor do mundo e suas formas de ser, estar e fazer História. A Escola Metódica postula que, ao não deixar registros documentais escritos, um grupo ou sociedade também está impossibilitado de possuir História. ______ 💭 Reflita Quais as consequências dessa perspectiva de se entender o fazer-se do conhecimento histórico na leitura lançada sobre muitas sociedades indígenas e do continente africano? Esse princípio historiográfico não operou como um dos elementos justificadores do domínio imperialista? Não colaborou para o apagamento da historicidade de muitas sociedades que têm formas de manutenção da memória do passado diversas daquelas que têm a escrita como a tradição oral? Como abordar, nessa perspectiva, os griots (indivíduos responsáveis por preservar e transmitir as práticas, tradições e fatos históricos) em diversos lugares do continente africano? _____ Em uma concepção restrita de documento, para o Historicismo, tanto os testemunhos involuntários quantos os registros materiais, arqueológicos, culturais são rejeitados como fontes históricas. Trata-se também de uma concepção estreita, uma vez que ao desprezar grande número de possibilidades documentais também limita as ambições do próprio campo científico. Nessa proposta, a História possuiria um número limitado de documentos e, ao historiador, caberia elaborar o inventário desses materiais disponíveis, a partir dos seguintes passos: 1. encontrar e reunir esses documentos; 2. salvá-los, registrá-los e classificá-los; 3. submeter esses documentos a uma série de operações analíticas. Nesse terceiro passo, se coloca o aspecto fundamental do ofício do historiador para o Historicismo: a crítica documental. Depois de identificados, salvos e catalogados, os documentos devem passar por dois tratamentos: a crítica externa e a crítica interna. Vejamos: Na crítica externa, o historiador tem como objetivo estabelecer o documento como algo passível de ser tomado como uma fonte histórica, ou seja, nesse tratamento, deve ser examinada a originalidade do documento (se é original, se trata-se de uma cópia de um documento original ou se é uma mera falsificação). Em seguida, é necessário que se identifique qual o elemento, evento ou personagem principal a que ele se refere e estabelecer os pontos de referência em relação a esse elemento central para que possa construir a relação desse documento com outros que juntos permitam apreender o passado como ele realmente aconteceu. Como técnica para realizar essa primeira parte do trabalho, a Escola Metódica Francesa sugere que seja produzida uma “ficha” sobre cada página do documento. Esse sistema de fichamento da fonte dá ao historiador o meio para seu trabalho, permitindo que atue com profundidade e que possa manipular facilmente suas anotações e seus materiais. É interessante destacar que esse sistema de fichas leva à prática de registrar em notas de rodapé as indicações de leituras realizadas pelo historiador. Realizada a crítica externa, verificada a adequação do documento e em posse de suas anotações, o historiador deve dar início à segunda operação analítica do documento, a crítica interna. O primeiro passo é o de retornar às fichas e completá-las com um resumo dos dados essenciais inscritos no documento, o que deve ser feito a partir de uma análise do conteúdo pautada na crítica positiva de interpretação para se certificar sobre o que o autor quis dizer. Nesta etapa, o historiador deve exercer a prática da hermenêutica – em sentido original hermenêutica é conceituada como “a arte de interpretar o sentido das palavras alheias” (AULETE, 1925, [s.p.]) –, que geralmente impõe o recurso a um estudo linguístico para determinar o valor das palavras, uma vez que uma mesma expressão ou palavra pode mudar de sentido em lugares e épocas diversos. ______ 📝 Exemplificando Atualmente, é bastante recorrente o debate sobre como se referir aos descendentes dos africanos escravizados e trazidos para o Brasil no período em que a escravidão vigorou como sistema compulsório de trabalho. Termos como “preto”, “negro”, “afrodescendente” e “pardos” apresentam-se como os principais focos na discussão, enquanto, “de cor”, “crioulo”, “escurinho”, “moreno” “mulato” etc., em variados níveis, são tomados como pejorativos por suas relações com o racismo. Em sua relação com as fontes, um historiador da escravidão, ao se deparar com uma carta de alforria produzida em 1874 com os termos “preto” e “crioulo”, necessita, antes de tudo, buscar compreender que significados os termos possuíam no momento de produção de sua fonte. Nesse processo, tomaria conhecimento, por exemplo, de que o termo “preto” era empregado especificamente para se referir aos africanos escravizados ainda vivendo em cativeiro e o termo “crioulo” para filhos de africanos, que nasceram no Brasil, fossem ainda cativos ou libertos. Tanto para o historiador historicista quanto para um historiador nos dias atuais, compreender aquilo que o documento diz por meio do conhecimento dos significados e usos das palavras é essencial para a análise das fontes e para aquilo que deseja apreender do passado. ______ Outro aspecto importante da crítica interna aos documentos é interrogar-se sobre as intenções das pessoas que produziram os documentos, assim como acerca das condições em que o documento foi produzido. Deve-se, ainda, proceder uma operação sintética de análise do documento. Para isso, é necessário comparar vários documentos, relacionar e comparar aspectos diversos, reagrupando-os para criar quadros gerais que permitam conhecer verdadeiramente o acontecimento que se estuda. Por exemplo: Feito isso, o passo seguinte é manejar o raciocínio – quer pela dedução quer pela analogia – para proceder a relação dos fatos entre si e a partir disso preencher as lacunas da documentação. Todo esse processo exige que se realizem escolhas na massa de documentação e que se estabeleçam algumas generalizações, arriscando interpretar os fatos, mas sempre atento à (pretensa) manutenção da obrigatoriedade da neutralidade do historiador, do comprometimento com o rigor científico, o apego aos acontecimentos. ______ 🔁 Assimile Ao desempenhar essas duas tarefas – crítica externa e crítica interna –, o historiador deve ter um método lógico, funcional e científico. ______ Esse método foi diversas vezes modificado e ordenado sob novas perspectivas, sendo discutido intensamente por historiadores dos séculos XX e XXI, mas, em sua essência, manterá a centralidade da fonte no ofício do historiador e a necessidade de se organizar e selecionar os documentos. As mudanças se darão pela forma em que as análises serão efetuadas, na ampliação do que se entende como documento histórico, nas perguntas que se fazem aos documentos e, principalmente, naquilo que se pretende como resultado do trabalho do historiador: abandona-se a busca pela objetividade e por uma verdade absoluta. Amplia-se o campo, retorna-se ao contato com outras ciências, o historiador muda sua relação com as fontes e com o passado a ser apreendido. As críticas ao Historicismo Talvez a principal crítica ao Historicismo seja a de ser ele historicizante, ou seja, focado apenas na contextualização, desconsiderandoaspectos culturais, sociais e políticos do fato histórico. Os historiadores franceses fundadores da Revista dos Annales, Marc Bloch e Lucien Febvre, constroem sua leitura da História e do ofício do historiador em contraponto àquela da Escola Metódica. Segundo esses historiadores, entre outras coisas, a História historicizante, ao focar sua atenção apenas em documentos escritos, desprezando os testemunhos involuntários, registros arqueológicos etc., perde um grande número de fontes que informam igualmente sobre a atividade humana. Ao tomar o documento como testemunho direto do passado, o Historicismo desconsidera que eles não foram produzidos para os historiadores, operando a partir de lógicas diversas que não estão relacionadas à intenção de se registrar o pensamento humano para uso da História. Ao acentuar o acontecimento, o fato singular, verificado em um tempo muito curto, não lhe é permitido apreender a vida das sociedades e desvendar por meio de fatos regulares, repetidos que se desenvolvem ao longo de um recorte temporal mais extenso. Outra crítica está posta no mito das origens, na busca por se estabelecer o marco inicial para determinado acontecimento histórico. Além disso, outra dura crítica por eles elaborada é apontar a Escola Metódica como positivista, o que, segundo Bourdé e Martin, é um erro, uma vez que, ao contrário do que buscava o Positivismo, o Historicismo não tinha por objetivo a busca pela universalidade dos fatos, mas sim o estudo de fatos específicos. Intensamente marcado pela ideia de progresso, é uma filosofia da história firmemente determinista, que pretende ao mesmo tempo reconstruir o passado e prever o futuro (BOURDÉ; MARTIN, 1983, p. 112-116). Movimentos historiográficos posteriores reforçaram as críticas à Escola Metódica, retomando e ampliando aquelas dos Annales, indicando também a ambiguidade de suas propostas e registrando, por exemplo, que a pretensão científica do Historicismo traduz uma opção ideológica e, ao contrário do que pregava e acreditava, pode também ser estabelecida como uma filosofia, na medida em que imaginava ser capaz de conhecer a História como realmente ocorreu. Outra crítica é lançada diretamente à Teoria do Reflexo, uma vez que a passividade e neutralidade são condições impossíveis ao historiador no contato e na análise com as suas fontes. O historiador metódico opera uma seleção deliberada na massa de dados para chegar àquilo que acredita ser a verdade dos fatos, ou seja, é obrigado a necessariamente descrever o passado a partir do presente, de suas escolhas. Apesar de todas as críticas altamente fundamentadas, a Escola Metódica é de extrema importância para o entendimento e a constituição do ofício do historiador. Ao organizar o campo, criar o método, elaborar teorias para a construção do conhecimento histórico, inscreveu no campo das Ciências Humanas a História como disciplina autônoma e independente. Também estabeleceu formas de se fazer história que até os dias de hoje auxiliam o historiador no trato com suas fontes. ______ ➕ Pesquise mais Para o aprofundamento de seus estudos na discussão sobre o papel da História e suas ligações, contraposições e alinhamentos com as Ciências Sociais sugerimos a leitura dos seguintes textos: • Ranke: considerações sobre sua obra e modelo historiográfico, de José Costa D’ Assunção Barros. • Em busca de resultados sólidos: Leopold von Ranke e os raciocínios por indução em História, de Viviane Venancio Moreira; • A escola metódica e o conhecimento como problema, de Cristiano Alencar Arrais. Infraestrutura e superestrutura: Materialismo Histórico como ponto de partida para uma História Econômica O estudo da História por meio de dados seriais, de uma História quantitativa e econômica, não pode ser compreendido sem se conhecer minimamente as principais premissas do Materialismo Histórico, herdeiro das conclusões de Karl Marx (1818-1883) sobre o papel das mudanças no campo econômico no desenrolar da História. Influenciado pela obra de Georg Hegel (1770-1831), o filósofo alemão assume que o direito protege a propriedade, na medida em que as relações jurídicas não estão pautadas no espírito humano ou em ideias, mas sim nas condições de existência material. Em linhas gerais, para Marx, as forças produtivas é que regem aquilo que se funda como sociedade, definindo suas regras e elaborando o Estado. Essas forças produtivas não são simplesmente materiais, mas também humanas, envolvendo relações de produção, que remetem às relações sociais que os homens estabelecem entre si a fim de produzir e dividir os bens produzidos. Segundo Karl Marx, em seu prefácio à “Contribuição à Crítica da Economia Política” (1859), não é possível se entender as relações jurídicas ou as formas do Estado por si mesmas, nem por uma pretensa evolução geral do espírito humano. Na leitura marxista, elas estão baseadas nas condições materiais de vida. Partindo dessa premissa, Marx estabelece que, em sua produção social, os homens acabam por construir relações necessárias e independentes da sua vontade, pois estas correspondem a relações de produção alinhadas à determinada fase de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. É o conjunto dessas relações que forma a estrutura econômica da sociedade, a infraestrutura, a base real sobre a qual a superestrutura política e jurídica será construída, correspondendo às específicas formas de consciência social. Assim, o modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e espiritual dentro de uma organização social. https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/Dialogos/article/view/35976/ http://www.13snhct.sbhc.org.br/resources/anais/10/1345037330_ARQUIVO_MOREIRA,Viviane-Embuscaderesultadossolidos.pdf http://www.13snhct.sbhc.org.br/resources/anais/10/1345037330_ARQUIVO_MOREIRA,Viviane-Embuscaderesultadossolidos.pdf https://www.revistas.ufg.br/emblemas/article/view/11389/7489 ______ 📝 Exemplificando Pensemos, em termos marxistas, na sociedade francesa feudal: o que temos é um sistema em que as relações estão pautadas em ideais de direitos e deveres, proteção e obediência entre senhores, vassalos e servos, com certo isolamento dos feudos e com grande força dos poderes locais. Pela construção marxista se chega a essa descrição da sociedade observando-a a partir dos dois elementos: • infraestrutura: as forças produtivas, por exemplo, a agricultura praticada nos feudos, em que senhores se apropriam de parte da produção de seus servos, a partir de determinadas relações de produção como as obrigações: banalidade, corveia, mão morta etc. • superestrutura: são as instituições jurídicas, políticas e formas em que a estrutura de governo se dá a partir dessa infraestrutura, ou seja, o fortalecimento dos senhores em detrimento do poder dos reis, a organização de exércitos e de burocracias internas nos feudos e a forma como essas instituições se relacionam com os outros locais e senhores. ______ Observe, a seguir, a relação entre infraestrutura e superestrutura: Fonte: o autor. Assim, o modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e espiritual dentro de uma organização social. Não é a consciência do ser humano que o determina, mas seu ser social que determina sua consciência. Dessa forma, mudanças dadas pelo desenvolvimento das forças produtivas materiais podem abrir uma época de revolução social, na medida que com a alteração da base econômica, modifica-se toda a imensa superestrutura construída sobre ela. A dita consciência social é o que nos permite, enquanto historiadores, compreender como as sociedades mantêm as relações de poder e, embora difícil de ser precisada de forma sistematizada, pode ser verificada em expressões literárias e filosóficas, doutrinas religiosas e criações artísticas. Para Marx, essas manifestações da consciência social são as formas ideológicas que garantem a manutenção da sociedadedentro de determinado sistema econômico. Em linhas gerais o Materialismo Histórico compreende a organização das sociedades a partir de duas formas de se observar as relações estabelecidas entre infraestrutura e superestrutura, a saber: Cria-se, portanto, uma teoria da História marcadamente voltada para pensar a sociedade a partir de seus elementos econômicos, sempre postos em estruturas que permitem a compreensão do passado. Como se deu com diversas correntes de pensamento, o Materialismo Histórico possui várias vertentes que propõem visões mais ou menos mecânicas dessas relações estabelecidas dentro da estrutura. Louis Althusser (1918-1990), por exemplo, estabelece uma análise menos mecânica, mostrando que cada um dos níveis é estruturado, sendo, portanto, relativamente autônomo. Além disso, compreende que há uma relação de duplo sentido da infraestrutura para a superestrutura e da superestrutura para a infraestrutura, mas, em última instância, é sempre a economia que determina como se dá esse sentido. É importante ressaltar que Karl Marx não inventou o conceito de classe, uma vez que desde o século XVIII, no calor da Revolução Francesa, já se falava em eliminar as várias classes existentes naquela sociedade. Da mesma forma, no início dos anos oitocentos, pensadores como Saint-Simon (1760-1825) estabeleciam que a classe industrial deveria estar acima das classes trabalhadoras, assim como, nas décadas seguintes, podemos encontrar nas obras de Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), entre outros, as sociedades observadas a partir de conceitos como “classes possuidoras”, “classes médias” “classes laboriosas”. No entanto, embora não tenha inventado o conceito, Karl Marx faz uma utilização própria e coloca-o no centro do seu sistema de pensamento e no centro da compreensão do que é História. História Quantitativa e a apropriação dos dados seriais A História Quantitativa e o dado serial estão ligados de forma bastante profunda à criação de formas de pensar e fazer História no decorrer do século XIX. As modificações econômicas, sociais e políticas, ocorridas como desdobramentos da industrialização, colocam a necessidade de se compreender a nova sociedade que se constitui. Assim, sociólogos, filósofos, literatos, historiadores e outros intelectuais buscam produzir teorias que expliquem essa nova realidade. Um campo bastante importante para a compreensão deste tema é o da Economia, que por meio de análises estatísticas, especialmente aquelas voltadas para as modificações de preço e de padrão de vida, criam aquilo que se convencionou a chamar de uma Economia da História. É esse campo que vai construir a base para o desenvolvimento posterior de uma História que teria como objetivo principal realizar uma análise quantitativa do passado. Dessa forma, o dado quantitativo seria colocado no centro de análises de diversas Ciências, especialmente por seu estatuto de comprovação empírica e exata. A História Quantitativa nasce em momento específico no interior da Escola dos Annales, sendo motivada pelo contexto em que seus principais expoentes estiveram envolvidos. No campo econômico, partindo da História dos preços, que a revolução quantitativa e sua apropriação do uso de dados seriais foi sentida com maior expressividade, encaminhando-se da Economia para a História Social, com foco nas análises populacionais, chegando à História Cultural, especialmente no campo da religião e das mentalidades. A seguir, trataremos especificamente da História Quantitativa e de suas formas de lidar com os problemas postos pelos historiadores, principalmente aqueles da chamada Segunda Geração dos Annales. Desde as últimas décadas do século XIX, economistas e outros pensadores sociais procuraram entender a sociedade por meio de pesquisas baseadas em análises quantitativas, principalmente no campo conhecido como a História dos preços. No entanto, somente após a década de 1930, motivadas pela quebra da bolsa de Nova Iorque, pela hiperinflação alemã e pela grande depressão norte-americana, que essas análises se ampliariam e ganhariam força entre os historiadores. A Primeira Geração dos Annales (Marc Bloch e Lucien Febvre), embora tivesse grande interesse no campo econômico, não deu a mesma importância às fundamentações de Karl Marx. Seria na geração seguinte, mais marcadamente com Ernest Labrousse (1895- 1988), que o marxismo penetraria no grupo dos Annales. É, sobretudo, a partir desse historiador que a conexão entre os estudos econômicos e históricos passa a ser sentida de forma efetiva e que se cria um novo modelo de História Econômica, que acabaria por abrir campo para desdobramentos em outras áreas como a da História Demográfica, da História dos Livros e da História Social. É importante ressaltar a grande contribuição da operação de disponibilizar o maior número de documentos possíveis catalogados, realizada pelos historicistas do século XIX. Com esse trabalho, os documentos estavam acessíveis em arquivos e outras instituições, organizados e prontos para o uso de historiadores, estatísticos, economistas e outros profissionais. Desta feita, grandes massas de documentos permitiram a construção de análises aos historiadores da primeira metade do século XX, que desenvolveram trabalhos a partir da quantificação dos mais variados temas. Durante décadas (de 1930 a, pelo menos, 1970), centenas de trabalhos foram produzidos tendo como base compreender como a sociedade se estruturava a partir de seus aspectos econômicos, utilizando para isso séries de documentos como censos, documentos comerciais, inventários post mortem, testamentos etc. Outro elemento a ser inserido no campo da História Quantitativa foi a abordagem comparativa, na qual se destaca o historiador francês Pierre Chaunu (1923-2009), que construiu uma análise comparativa entre França, América e China, com foco em registros de tonelagem, mercadorias e trocas comerciais. Todas essas pesquisas produziram um vasto conhecimento sobre os aspectos econômicos das sociedades, mas também sobre outros como a conjuntura social e a demografia populacional. A História da população é a abordagem mais importante e recorrente da História Quantitativa após a História dos preços. ______ 💭 Reflita Quando observamos nossos livros didáticos vemos, em sua maioria, uma divisão da História do Brasil a partir de ciclos econômicos. Por mais que, nos livros, as mudanças na forma de organização política também apareçam, a narrativa costuma criar: • uma História Colonial dividida em dois grandes ciclos (cana-de-açúcar e ouro); • uma História Imperial cafeeira – mesmo quando o café ainda não era o principal produto – e, todo o restante, da escravidão à queda do sistema de governo, aparece diretamente ligado aos problemas do café; e • um Brasil republicano e industrializado ou pelo menos em busca dessa marca da modernidade. Você já pensou o quanto dessas divisões dizem respeito a estudos inspirados no Materialismo Histórico e na História Econômica embasada na análise de séries de documentos que estabelecem a permanência de padrões nas relações comerciais, políticas e sociais? Você já refletiu que, ao se estabelecer uma História Quantitativa, com base em dados econômicos, é possível construir esse tipo de padrão e estabelecer ciclos que parecem estruturados de tal forma que não se permite a observação de aspectos específicos para além dos dados utilizados na demarcação desses ciclos? Os dados seriais: a História Serial e outras possibilidades de análises Em sua longa trajetória, a História Quantitativa, ao realizar a junção ou justaposição entre os movimentos de preço e da população, mostra as consequências humanas de uma modificação econômica. Como resultado, muitos historiadores buscaram compreender mais que o dado econômico, partindo para análises com foco em aspectos jurídicos, sociais etc. Pode-se demarcar a década de 1960 como momento em que oficialmente a HistóriaQuantitativa se liga à História Social, sendo o primeiro campo dessa junção a Demografia Social. Busca-se, nesse momento, compreender os ciclos dos acontecimentos, as adaptabilidades das populações e as mudanças nos padrões de casamentos. E, para isso, o estudo regional a partir de dados seriais se torna fundamental. Por pelo menos mais uma década, essa História ainda se manteria entre a estrutura econômica e a conjuntura social, e, somente a partir da década de 1970, a História Quantitativa perderia campo e seria substituída por vertentes que manteriam a busca por séries documentais, mas agora por meio de novas propostas criando uma História Serial. Em resumo, essa nova forma de se utilizar dados seriados pode ser o ponto de partida para a problematização de ideias como as propostas por: • materialismo Histórico – de uma sociedade compreendida pelas relações entre a infraestrutura e a superestrutura; • história Quantitativa – que lê a sociedade a partir daquilo que pode ser contado, mensurado; • história Econômica – com seu foco nas mudanças dos ciclos econômicos ou dos modos de produção. ______ 🔁 Assimile A História Quantitativa tem como proposta observar a sociedade por meio de construções quantitativas e numéricas, de valores que podem ser medidos, contados, por isso serve tão bem à História Econômica. Assim, suas conclusões são desdobramentos de estudos estatísticos, sínteses de dados por meio de tabelas e gráficos, que muitas vezes são bastante complexos trazendo curvas de dados, logaritmos e outros recursos matemáticos. A História Serial pode ser entendida como aquela realizada a partir de determinados tipos de fontes que, por terem sido produzidas de forma seriada (fontes do mesmo tipo, como testamentos, inventários, processos cíveis e criminais etc.), permitem mapear padrões, ou a inexistência deles, em um recorte espacial e temporal. Muitos são os campos historiográficos que fazem uso desses tipos de documento para construir interpretações qualitativas das sociedades, grupos ou regiões que analisam. ______ Como você pôde concluir, o dado serial é um elemento comum em várias correntes historiográficas do século XX, permanecendo ainda hoje como um espaço privilegiado para o trabalho do historiador. O uso de fontes em séries, seja para uma análise econômica, quantitativa ou qualitativa é uma possibilidade constituída a partir da mudança da ideia que se tinha sobre o que era o documento e a relação entre o historiador e esse documento. Ao se propor o abandono da ideia de um documento como testemunho do passado que por ele só poderia levar-nos àquilo que realmente aconteceu, abriu-se o precedente para que se observassem documentos diversos para construir interpretações do passado, documentos que muitas vezes são produzidos a partir de padrões e em série. São esses documentos que permitem, por exemplo, que historiadores da escravidão verifiquem a incidência de casamentos entre escravos e estabeleçam análises que demonstram padrões de constituição de famílias, permanência em localidades rompendo com ideias preconcebidas como a da promiscuidade negra, da inexistência de famílias escravas ou, ainda, da separação constante de pais e filhos. Estudos como esses se inserem no campo da História Social, que é um dos campos historiográficos que se servem da História Serial, outro campo é a História da Alfabetização que, por exemplo, por meio de assinaturas ou declaração de ter mandado escrever o testamento, o registro de casamento ou outros documentos cartoriais consegue mapear em determinadas localidades padrões de instrução e alfabetização. A História do Livro e da Leitura também se servirá desse campo da História e, por meio da análise de séries de documentos como fluxo de produção, distribuição, relatórios de editores, correspondências, busca estabelecer as tendências e hábitos de leitura e consumo de livros em diferentes grupos sociais. ➕ Pesquise mais Para que você possa ampliar suas leituras e conhecimentos sobre o tema, sugerimos a leitura dos seguintes textos: • História serial e história quantitativa no movimento dos Annales, de José Costa D’ Assunção Barros; • História Econômica: algumas questões metodológicas, de Luciana Lambert Pereira Introdução da unidade O estudo da Historiografia é algo que não apenas nos possibilita conhecer o que já foi dito, escrito e produzido por e sobre outros historiadores, mas, principalmente, que nos ajuda a definir os encaminhamentos que pretendemos dar às nossas próprias aspirações enquanto historiadores. Agora que você já teve contato com as primeiras discussões que analisam nosso campo de atuação e nosso ofício, convidamos você a ampliar ainda mais seus conhecimentos e habilidades. Sem deixar de lado as discussões sobre a prática de nosso ofício, a proposta para esta unidade é a de trazer para o palco novos atores que as correntes históricas estudadas até o momento não privilegiaram. Trata-se de afastar-se de uma História focada na elite, baseada em análises de documentos oficiais, produzidos pela e para a elite e verificar como os estudos dos subalternos, dos excluídos e marginalizados adentrou o campo historiográfico identificando esses novos personagens como agentes históricos. Considerações iniciais O incômodo com uma História construída a partir de documentos produzidos com foco na elite, em seus discursos e interpretações sobre o que era e como se organizava o https://www.revistas.ufg.br/historia/article/%20view/21693 https://anpuh.org.br/uploads/anais-simposios/pdf/2019-01/1548206369_3be6a0a0bbcc555958194da64a18d92c.pdf mundo, é uma inquietação que não atingiu apenas os historiadores franceses da primeira metade do século XX. Essa também seria a motivação para outra grande mudança no campo historiográfico, especialmente aquele voltado para os estudos dos mundos do trabalho, em que se destaca a figura do historiador inglês Edward Palmer Thompson (1924-1993), um dos mais conhecidos e aclamados historiadores do século XX. O jovem Thompson fundaria uma revista, a New Reasoner, e mais tarde, em 1958, a chamada New Left Review, que agregaria nomes como Christopher Hill (1912- 2003), Stuart Hall (1932-2014), Eric Hobsbawm (1917-2012), entre outros. O historiador inglês colocou em discussão a necessidade de renovação do marxismo criticando duramente o viés autoritário e positivista apresentado em vários trabalhos, sempre tendo a democracia e o humanismo como premissas. Sua obra é fruto de uma geração que entendia o marxismo como abertura crítica, formada por historiadores sociais, que produziram algumas das mais importantes obras de análise sobre as sociedades humanas. Em 1966, Thompson publicou um breve artigo sobre aquilo que passaria a ser chamado de a História “vista de baixo”. Nesse artigo, o historiador registrava os problemas das análises realizadas sobre as classes operárias, identificando como, em sua maioria, estavam focadas em entidades de elite e patronais, que eram quem produzia os documentos sobre o tema, ou naquelas produzidas pelo radicalismo dos líderes dos movimentos operários como o cartismo. Para ele, com a Revolução Francesa e a Revolução Industrial, a movimentação e organização de operários e outros agentes do povo produziram uma nova massa documental, que finalmente permitiu uma nova forma de observar o passado, não pelos silêncios na documentação, mas pela enorme massa produzida por esses indivíduos, que viram seu universo ser totalmente modificado por novas formas econômicas e de trabalho. 🔁 Assimile Nesse sentido, o simples estudo quantitativo − de mudanças de preço, no padrão de vida, de deslocamentos −, não seria suficiente para demonstrar as alterações no modo de vida dos milhões de indivíduos que foram transportados de um mundo agrário para o industrial. A proposta de Thompson é a de, a partir dessa nova massa documental, demonstrar não apenas a vida cotidiana do homem notempo, mas que estes, mesmo em condição de subalternos − operários, vendedores e outras categorias – apropriaram-se de ideias e ideais e construíram para si mesmos a História. Colocando, portanto, aqueles que vêm de baixo como centrais nas mudanças ocorridas em seu tempo, instituindo-os como agentes históricos. Classe como fenômeno histórico Em seu clássico “A formação da classe operária inglesa” (1963), Thompson constrói um quadro, no qual retrata as experiências de um grande número de trabalhadores na Inglaterra do final do século XVIII e início do século XIX. Sua proposta é a de demonstrar que o processo histórico da Revolução Industrial e a implantação do sistema fabril não são, por si só, geradores externos da classe operária inglesa, destacando como as alterações nas relações de trabalho, oriundas da nova realidade econômica, influenciam o fazer-se de tal classe. Uma das críticas que Thompson tece é à visão de que os instrumentos físicos de produção seriam os responsáveis pelo surgimento das novas relações sociais, hábitos culturais e instituições gerando a equação: energia do vapor + indústria algodoeira = nova classe operária. O autor descarta a ideia de uma independência entre a dinâmica de crescimento econômico e a dinâmica da vida social e cultural, de que uma mudança nos meios de produção cria autonomamente uma nova classe social. Para o historiador inglês, a instauração de uma nova forma de produção não rompe ou impede a continuidade de tradições políticas e culturais. Estas acabam sendo reordenadas no universo operário a partir das novas realidades de seus articuladores, ou seja, não são apagadas ou substituídas por outras – o que caracterizaria uma nova e independente classe social. Thompson também rompe com a ideia de classe como um conceito ou categoria de análise pronto, fechado, que poderia ser aplicado a qualquer realidade ou sociedade que estivesse inserida no processo industrial fabril. ______ 🔁 Assimile Mesmo para casos muito aproximados, como França e Inglaterra, em que as classes se apresentam sob as mesmas bases – burguesia e camponeses/operários –, há seres humanos que possuem vivências, tradições e ideias de direito diversas que acabam por construir classes também diversas. É exatamente a dinâmica dada pelas experiências dessas pessoas, dentro do momento de intensas mudanças sociais, políticas e econômicas que será o foco da análise de Thompson, para compreender como a classe operária inglesa se constituiu. ______ Levando em conta que grupos variados de profissionais ingleses se organizavam de formas múltiplas muito antes do surgimento da indústria algodoeira, Thompson propõe que é dessa união, dessa multiplicidade de experiências, que surge a classe operária inglesa, na medida em que crescia a consciência de uma identidade de interesses desses trabalhadores em oposição a outros grupos. A classe operária inglesa, portanto, não surgiu como fruto da Revolução Industrial ou do sistema fabril, mas fez-se a partir da experiência dos indivíduos que a constituíram, experiência que se deu para além do aspecto econômico. Por se tratar de um fenômeno histórico, agrega também fatores sociais, culturais e políticos. Além disso, diz respeito às relações humanas e, como tal, não pode ser gerada por aspectos exteriores – uma vez que, mesmo sendo a experiência de uma classe determinada pelas relações de produção, essas são mutáveis e impostas a agentes históricos diferenciados: ingleses livres, portadores de noções de igualdade e de direito e de tradições políticas, e não uma massa amorfa a ser modelada pelo Sistema Fabril. A classe operária forma-se a si própria enquanto é formada em um período de duras mudanças nas relações de trabalho, em um momento de intensa agitação e de circulação de ideias de “liberdade” e de “direito” na Europa, de crescimento da população e de desmascaramento das relações de exploração. ______ 📝 Exemplificando Em períodos anteriores ao da Revolução Francesa e Industrial, grupos sociais dominantes e dominados mantiveram acordos que garantiam a manutenção dos sistemas sociais existentes. As tradições, especialmente aquelas constituídas em relações aproximadas entre senhores e servos, patrões e empregados, estavam calcadas em um sistema de dominação e dependência conhecido como paternalismo, em que o senhor tinha como obrigação proteger, prover e muitas vezes interceder por seus subordinados, que em contrapartida tinham como dever retribuir não apenas monetariamente, mas em lealdade e respeito. Mesmo que não registradas em leis, as obrigações senhoriais eram compreendidas como direito pelos camponeses, que cobravam aquilo que entendiam ter sido estabelecido pela tradição. Com as mudanças nas relações de trabalho, dadas pela Revolução Industrial, essas relações protetorais foram reordenadas. O afastamento entre patrão e empregado, o abandono das obrigações e direitos tradicionais, rompem o paternalismo, conferindo liberdade ao trabalhador, mas também o deixa desprotegido e à mercê de um novo sistema ao qual ele precisa se adaptar. É no processo de inserção nessa nova realidade que os trabalhadores se unem e se reconhecem como iguais, criando outras práticas culturais e formas de estar no mundo. ______ A classe para Thompson acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus (THOMPSON, 1987a). Essa inovação rompe a forma binária de entender a classe: meios de produção – trabalhadores, e introduz um novo elemento: a experiência. Nessa nova realidade, as relações sociais colocam os trabalhadores em uma condição real de exploração e essa exploração faz com que os trabalhadores compartilhem uma experiência de oposição de interesses aos de seus exploradores. Assim, a soma dessas experiências compartilhadas em um ambiente de exploração gera a consciência de classe. A exploração e a experiência na formação da classe Para o historiador inglês, as relações entre patrões e empregados tornaram-se mais duras e menos pessoais na medida em que o povo foi submetido ao mesmo tempo à intensificação da exploração econômica e da opressão política. Assim, apesar de um aumento na liberdade dos trabalhadores, sem um trato direto e protetoral com o patrão, há um abandono de práticas tradicionais de proteção e lealdade que matizavam as relações entre dominantes e dominados. É exatamente esse afastamento que levava o trabalhador a ligar-se e buscar apoio entre aqueles que passavam pela mesma experiência de opressão e exploração. Essa experiência gera, para Thompson, uma nova necessidade de organização do operariado. ______ 🔁 Assimile Esse ponto aparece como central em sua análise, afinal, são as relações de trabalho modificadas – as velhas tradições deixadas ou ressignificadas – e as novas criadas no interior desse conturbado período histórico que permitem perceber como a nova classe social se faz. ______ Para Thompson, é exatamente a experiência de viver o período de mudança nas bases das relações entre dominantes e dominados, de criar novas formas de associação, de organizar-se e de estabelecer laços identitários que geram uma consciência de classe. Assim, classe é um fenômeno histórico e como tal traz uma noção de relação histórica: trata-se de algo que só pode ser compreendido em uma relação entre as mudanças no campo econômico e político e da tomada de consciência de uma experiência comum que constrói a própria classe. Para o caso da classe operária inglesa, o seu fazer-se enquanto classe se dá na experiência de opressão e exploração causada pela mudança das formas de trabalho, que obrigam os indivíduos a reinventarem suas formas de ser e estar no mundo. 💭 Reflita De acordo com Thompson, classe não é um conceito fechado, dado, pronto,mas uma relação que só pode ser compreendida a partir de análises que abarquem o campo econômico e político e da tomada de consciência de uma experiência comum. Essa argumentação criaria a impossibilidade de se pensar em termos de classes as sociedades, como a brasileira, do período escravista? A discussão sobre o padrão de vida e a consciência de classe Outra grande contribuição de Thompson para os estudos dos subalternos é a busca por uma análise qualitativa das fontes. O historiador britânico criticou o trabalho produzido pela nova ortodoxia empirista − fruto do sucesso da História Quantitativa −, muito mais preocupada com os dados do que com as mudanças sociais e culturais. Esse tipo de abordagem centrada na ideia das fontes como meio para criar grandes panoramas e verificar mudanças, preocupada com dados “quantitativos”, é, para o historiador inglês, fragmentada, pois deixa de lado o processo como um todo, relegando à margem as informações qualitativas. ______ 🔁 Assimile É, exatamente, esse tipo de informação qualitativa que permite vislumbrar como a experiência da Revolução Industrial foi sentida pelos trabalhadores, como a classe pode perceber-se como classe. ______ A crítica de Thompson se estabelece especialmente sobre uma constante busca por verificar mudanças no padrão de vida dos operários. Por meio da utilização de uma massa de fontes sobre trabalhadores com objetivo de simplesmente aferir modificações nas condições materiais de vida dos trabalhadores, especialmente para melhor, deixando de lado fontes que poderiam oferecer informações sobre os aspectos subjetivos – obtidas, por exemplo, em panfletos, anotações, produções literárias – que permitem uma leitura de outros aspectos da vida desses operários. A relação dessas duas experiências no período da formação da classe operária inglesa – uma ligeira melhoria no padrão material médio, entre 1790 e 1840, e ao mesmo tempo da exploração, da miséria humana e da insegurança, e principalmente a maneira como ela é sentida pelos indivíduos – é para Thompson a chave para o entendimento da expressão cultural e política da consciência de classe operária. E aqui está a chave para o fazer-se da classe operária de Thompson: não basta existir uma infraestrutura econômica que dita ordinariamente a superestrutura política e social, é a existência de indivíduos inseridos em lugares sociais diferentes dentro desse sistema que produz, por meio da experiência de grupo, formas culturais e históricas próprias – esses indivíduos constroem a si mesmos enquanto classe, por meio da consciência dessa experiência comum. Costumes em comum: a cultura dos trabalhadores Outro ponto crucial para o entendimento da proposta de uma História “vista de baixo” é compreender o papel da cultura. Para Thompson, o costume e a cultura só serão passíveis de serem observados se forem contextualizados, sempre levando em consideração as transformações históricas, por meio de uma análise pautada em uma vasta documentação e dentro de um espaço de tempo determinado – recorte temporal. Nessa perspectiva, a ação das camadas populares observadas por meio da documentação evidencia o seu protagonismo, estabelecendo-os enquanto sujeitos históricos, com motivações racionais, autônomas e coerentes. Em sua análise, a cultura é dinâmica, construída e em construção pela inter-relação dos fatores sociais, políticos e econômicos. Talvez o mais importante para apreender aquilo que Thompson propõe seja compreender como, por meio dos enfrentamentos entre dominantes e dominados, registrados em processos, cartas, discussões paroquiais, jornais etc., práticas tradicionais são acionadas com estatuto de direitos adquiridos para exigir a permanência de determinados espaços de proteção ante mudanças tão drásticas nas relações políticas e econômicas, assim como as novas leis e liberdades são acionadas para garantir novos direitos e impedir novas formas de opressão. 🔁 Assimile É na construção desses lugares e papéis sociais que os homens e mulheres comuns exercem seu protagonismo como agentes históricos, capazes de influenciar, criar e modificar não apenas suas histórias pessoais, mas principalmente a história do momento e local em que vivem. A História “vista de baixo”, a questão das fontes É importante ressaltar que Edward Thompson não é o primeiro e nem o único historiador a lidar com a História “vista de baixo”, mas ele articula de tal maneira os problemas e a importância do estudo da história a partir de uma documentação produzida por aqueles que compõem as classes subalternas, que o próprio termo passa a se popularizar e a ser diretamente ligado à sua produção. As fontes são cruciais para Thompson: a construção de sua História do fazer-se da classe operária inglesa e dos costumes dos trabalhadores é sempre embasada em uma vasta documentação. Dessa forma, o diálogo empírico − o modo (ou técnicas) empírico(as) de investigação − é uma marca fundamental dessa forma de se fazer e entender a análise do passado. ______ 🔁 Assimile Apenas verificar por meio de documentos oficiais, padrões de preço, deslocamento, mudanças na forma de viver não é suficiente para compreender as modificações das relações que compõem a tomada da consciência de classe. ______ O historiador precisa, portanto, recorrer aos registros fornecidos pelos próprios agentes históricos que pretende analisar. A literatura, a música, os registros escritos e imagéticos produzidos aos milhares no decorrer do processo de modificação das relações de trabalho, sociais e pessoais na Revolução Industrial permitiu ao historiador construir a sua análise. Segundo Jim Sharpe, essa profusão de documentação, produzida pelos operários ingleses, é ao mesmo tempo um grande ganho para a História “vista de baixo” e um de seus principais problemas, na medida em que acabaria por restringir o estudo dos subalternos ao recorte dado a partir de 1789, com a Revolução Francesa e com a proliferação dos movimentos operários (SHARPE apud BURKE, 1992). O aumento dos movimentos de massa produz registros múltiplos que permitem ao historiador um estudo profícuo das relações estabelecidas entre patrões e empregados, mas como processar esse tipo de análise para outros locais e outros grupos? Esse problema foi resolvido com direcionamentos múltiplos com destaque para a busca por novas formas de abordar documentações tradicionais como processos da inquisição, documentos cartoriais, processos cíveis e crimes, registros paroquiais. Nessa nova forma de se fazer a História dos subalternos, os registros oficiais, observados seja de forma isolada ou serial, são tomados tendo como princípio a ideia de que o principal é fazer uso deles para algo que seu compilador jamais imaginaria que seria usado. ______ 📝 Exemplificando Pense que, durante um processo inquisitorial no período do Santo Ofício no Brasil, uma vasta documentação, agregando denúncias, testemunhos, inquirições e sentenças tenha sido produzida a partir da delação de um indivíduo acusado de ser um “feiticeiro”. Ao realizar esses registros, todos os envolvidos eram movidos pelas mais diversas intenções e obrigações. Um historiador no século XXI, no decorrer de seu estudo sobre as práticas religiosas africanas que atravessaram o Atlântico, busca compreender como essas práticas passam a operar aqui de forma diversa daquela de seu local de origem. Ao se deparar com essa documentação do Santo Ofício, encontra descrições minuciosas e recorrentes de “feitiços”, “mandingas”, instrumentos utilizados pelo acusado e, a partir disso, consegue estabelecer relações com práticas comuns na região de seu estudo, mas também com locais da África de que tais práticas podem ter migrado. Os produtores desses documentos tinham, sim, intenções. Esses documentos seguiam regras de produção e tinham uma finalidade, mas a utilização que o historiador social faz dele é totalmente diversa, buscando
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