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1 FACULDADE ÚNICA DE IPATINGA 2 José Tadeu de Almeida Doutor em História Econômica (2015) pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Desenvolvimento Econômico (2010) e graduado em Ciências Econômicas (2008) pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente (2022), cursa o pós-doutorado em Ciências da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), pós-graduação lato sensu em Liturgia pelo Centro Universitário Católico de Santa Catarina, e graduação em Teologia pela Universidade São Francisco (USF). É autor e revisor técnico de diversos livros didáticos para as áreas de Ciências Humanas, Ciências Exatas e Ciências Sociais Aplicadas, no Ensino Básico e no Ensino Superior. ELEMENTOS RELIGIOSOS: OS RITOS, OS SÍMBOLOS, OS DOGMAS E AS CRENÇAS 1ª edição Ipatinga – MG 2022 3 FACULDADE ÚNICA EDITORIAL Diretor Geral: Valdir Henrique Valério Diretor Executivo: William José Ferreira Ger. do Núcleo de Educação a Distância: Cristiane Lelis dos Santos Coord. Pedag. da Equipe Multidisciplinar: Gilvânia Barcelos Dias Teixeira Revisão Gramatical e Ortográfica: Izabel Cristina da Costa Revisão/Diagramação/Estruturação: Bárbara Carla Amorim O. Silva Bruna Luiza Mendes Leite Carla Jordânia G. de Souza Guilherme Prado Salles Rubens Henrique L. de Oliveira Design: Brayan Lazarino Santos Élen Cristina Teixeira Oliveira Maria Eliza Perboyre Campos Taisser Gustavo de Soares Duarte © 2021, Faculdade Única. Este livro ou parte dele não podem ser reproduzidos por qualquer meio sem Autorização escrita do Editor. Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Melina Lacerda Vaz CRB – 6/2920. NEaD – Núcleo de Educação a Distância FACULDADE ÚNICA Rua Salermo, 299 Anexo 03 – Bairro Bethânia – CEP: 35164-779 – Ipatinga/MG Tel (31) 2109 -2300 – 0800 724 2300 www.faculdadeunica.com.br http://www.faculdadeunica.com.br/ 4 Menu de Ícones Com o intuito de facilitar o seu estudo e uma melhor compreensão do conteúdo aplicado ao longo do livro didático, você irá encontrar ícones ao lado dos textos. Eles são para chamar a sua atenção para determinado trecho do conteúdo, cada um com uma função específica, mostradas a seguir: São sugestões de links para vídeos, documentos científicos (artigos, monografias, dissertações e teses), sites ou links das Bibliotecas Virtuais (Minha Biblioteca e Biblioteca Pearson) relacionados com o conteúdo abordado. Trata-se dos conceitos, definições ou afirmações importantes nas quais você deve ter um maior grau de atenção! São exercícios de fixação do conteúdo abordado em cada unidade do livro. São para o esclarecimento do significado de determinados termos/palavras mostradas ao longo do livro. Este espaço é destinado para a reflexão sobre questões citadas em cada unidade, associando-o a suas ações, seja no ambiente profissional ou em seu cotidiano. 5 SUMÁRIO PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES ................................................................... 9 1.1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 9 1.2 DEFINIÇÃO DO ELEMENTO RELIGIOSO: SAGRADO E PROFANO ...................... 10 1.2.1 Em Busca de um Conceito ..................................................................... 12 1.3 SAGRADO E PROFANO EM DIFERENTES MANIFESTAÇÕES RELIGIOSAS ........... 17 1.3.1 A temática do sagrado nas culturas orientais ..................................... 18 1.3.2 A temática do sagrado na cultura ocidental ...................................... 23 1.4 ETNOGRAFIA E PERCURSOS RELIGIOSOS ........................................................... 25 1.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 28 FIXANDO O CONTEÚDO ...................................................................................... 30 A FUNÇÃO SIMBÓLICA DOS RITUAIS RELIGIOSOS ............................ 36 2.1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 36 2.2 O SÍMBOLO NA PERSPECTIVA DA RELIGIÃO ...................................................... 36 2.3 TOTEMISMO E RELIGIÕES ANÍMICAS: A EXPERIÊNCIA DO SAGRADO COM O AUXÍLIO DOS SÍMBOLOS ...................................................................................... 38 2.4 MAGIA, MÍSTICA E FENÔMENO RELIGIOSO ....................................................... 41 2.4.1 A mística e a experiência religiosa ........................................................ 46 2.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 49 FIXANDO O CONTEÚDO ...................................................................................... 51 RITOS E LITURGIAS ................................................................................... 57 3.1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 57 3.2 RITOS E RITUAIS ..................................................................................................... 58 3.2.1 Freud e o sagrado nos rituais .................................................................. 62 3.2.2 Religiosidade e ritual em Jacques Lacan ............................................. 66 3.3 LITURGIA, CULTURA E TRADIÇÃO ........................................................................ 67 3.4 A LITURGIA NA PERSPECTIVA DAS RELIGIÕES .................................................... 70 3.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 73 FIXANDO O CONTEÚDO ...................................................................................... 75 O SIMBOLISMO RELIGIOSO NAS SOCIEDADES: CONCEITOS DE PSICOLOGIA DA RELIGIÃO .................................................................... 80 4.1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 80 4.2 O SIMBOLISMO RELIGIOSO E OS RITUAIS SAGRADOS NA PSICANÁLISE ......... 80 4.3 JUNG E A VIVÊNCIA DA RELIGIOSIDADE ........................................................... 85 4.4 ESPIRITUALIDADE COMO SENTIDO DE VIDA ....................................................... 87 4.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 90 FIXANDO O CONTEÚDO ...................................................................................... 92 AS CRENÇAS E ESPAÇOS DE MANIFESTAÇÃO DO SAGRADO ............. 98 5.1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 98 5.2 AS FUNÇÕES SOCIAIS DA RELIGIÃO .................................................................. 99 5.3 CRENÇAS E NARRATIVAS SIMBÓLICAS: A RELIGIOSIDADE POPULAR ............ 102 5.4 O ESPAÇO RELIGIOSO – CONCEITOS DE ARQUITETURA RELIGIOSA .............. 110 5.4.1 Estilos de arte sacra e arquitetura religiosa ........................................ 115 5.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 121 FIXANDO O CONTEÚDO .................................................................................... 123 UNIDADE 01 UNIDADE 02 UNIDADE 03 UNIDADE 04 UNIDADE 05 6 PERSPECTIVAS ATUAIS PARA A VIVÊNCIA DA RELIGIÃO ....................129 6.1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 129 6.2 OS DOGMAS E TABUS RELIGIOSOS ................................................................... 129 6.2.1 Os dogmas: O Depósito da Fé Perante o Conhecimento Científico .................................................................................................................. 132 6.3 ORTODOXIA E HERESIAS: AS CONTROVÉRSIAS TEOLÓGICAS NO MEIO SOCIAL ............................................................................................................................. 135 6.4 OS DESAFIOS DAS RELIGIÕES PERANTE A MODERNIDADE .............................. 137 6.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 142 FIXANDO O CONTEÚDO .................................................................................... 144 RESPOSTAS DO FIXANDO O CONTEÚDO ............................................. 150 REFERÊNCIAS ......................................................................................... 151 UNIDADE 06 7 8 CONFIRA NO LIVRO Nesta unidade, você irá conhecer um pouco mais a respeito dos conceitos de ‘sagrado’ e ‘profano’ e sua aplicação no estudo das religiões. Deste modo, você poderá obter uma visão abrangente sobre as contribuições de diferentes campos do conhecimento humano para a análise do fenômeno religioso. O propósito desta unidade é situar-lhe na discussão relacionada aos símbolos e sua importância para a formação das cosmovisões religiosas. Assim, será possível avaliar de que modo os símbolos competem para a formação de uma relação entre o humano e o sagrado. Esta unidade irá apresentar ritos e conceitos relativos às expressões litúrgicas de diferentes expressões religiosas. A partir destas expressões, você irá avaliar os modos pelos quais as pessoas constroem serviços religiosos que realizam a conexão entre a realidade material e o sagrado. A proposta relativa a esta unidade diz respeito a uma elaboração teórica e objetiva a respeito de alguns temas da Psicologia da Religião. A partir das contribuições de autores como Sigmund Freud e C.G. Jung, você irá compreender os enlaces entre as escolas de pensamento na Psicologia e o fenômeno religioso. Nesta unidade, vamos transpor uma discussão sobre a expressão religiosa a partir de espaços de culto e ambientes orientados para a contemplação do sobrenatural. Assim, será possível avaliar de que modo a arquitetura também pode contribuir para a formação das cosmovisões religiosas. O objetivo desta unidade é o de realizar uma avaliação crítica a respeito das perspectivas contemporâneas para a vivência da espiritualidade. Assim, você poderá compreender os desafios mais importantes para as instituições religiosas frente à realidade do século XXI. 9 AS RELAÇÕES DO SAGRADO PARA O SER HUMANO: PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES 1.1 INTRODUÇÃO Prezado estudante, seja bem-vindo ao estudo desta disciplina. Ao longo das unidades que irão compor este livro-texto, você poderá observar um conjunto de conceitos que reflete a relevância das experiências religiosas e dos rituais para o ser humano. Estas experiências, revestidas de objetividade em gestos e palavras, também apresentam um aspecto fundamentalmente subjetivo, remetendo a dimensões do inconsciente individual. Em conjunto, estas ações e experiências podem constituir-se, consequentemente, como um processo capaz de oferecer um novo significado à existência humana em diferentes esferas, ou seja, na relação da pessoa consigo mesma e com os seus semelhantes, na reprodução da vida social. Desta forma, estas experiências são capazes de mobilizar a racionalidade da pessoa, visando construir um discurso religioso que permita ligar ou religar (religare) o ser humano aos outros membros de seu grupo, constituindo assim uma comunidade de fé (MAGALHÃES; PORTELLA, 2008). Ao realizar esta primeira aproximação, é possível que você reflita que estes conteúdos estão vazios de substância ou materialidade, uma vez que estão ligados à espiritualidade e aos aspectos emocionais, que são específicos e intrínsecos a cada indivíduo. Assim, como poderá ser possível refletir sobre os elementos religiosos e experiências religiosas, se estas experiências são individuais e apresentam diferentes graus de profundidade a depender da vivência pessoal, do histórico de vida e da relevância que as pessoas estabelecem e conferem aos aspectos da própria espiritualidade? Na verdade, será possível avaliar que a subjetividade do culto e da experiência religiosa está normalmente associada a rituais, ações, gestos e formas de culto que são orientadas por normas, e que são capazes, por sua vez, de ordenar e definir a existência de doutrinas e instituições religiosas, cuja relevância social será destacada ao longo deste livro-texto. Assim, torna-se possível desenvolver uma UNIDADE 01 10 reflexão plural, focada em evidências históricas e reflexões que irão ajudar-lhe a compreender a temática da espiritualidade no mundo contemporâneo, estabelecendo reflexões sobre a influência social das religiões (MOSES, 2009). Vale dizer, este conteúdo poderá ser aproveitado também para a compreensão das subjetividades inerentes aos indivíduos que, eventualmente, não professem nenhuma crença ou tenham algum tipo de sentimento de pertença a uma religião: mesmo nestes casos, será possível compreender os elementos da espiritualidade e da subjetividade que condicionam modos de vida particulares e influenciam o comportamento da sociedade. Enfim, está pronto para começar? Então, bons estudos! 1.2 DEFINIÇÃO DO ELEMENTO RELIGIOSO: SAGRADO E PROFANO De acordo com a proposição inicial desta unidade (e da disciplina) em oferecer um conteúdo plural e uma abordagem aplicável a diferentes contextos religiosos e aplicações sociais, é necessário integrar vertentes do conhecimento humano para entender a aparente ‘dualidade’ entre os conceitos de ‘sagrado’ e ‘profano’. Desta forma, torna-se necessário estabelecer um olhar mais abrangente sobre a temática teológica, a fim de compreender adequadamente as relações existentes entre a experiência religiosa e os processos neurais e cognitivos que dinamizam a mente humana e dão meios para a expressão do indivíduo em seu meio. Em outras palavras, será necessário estabelecer um olhar integrado e interdisciplinar, enfocando a Teologia, a Psicologia e as Ciências da Religião, de modo a compreender diferentes cosmovisões que viabilizam a orientação das pessoas para a vivência do fenômeno religioso, isto é, para a experiência religiosa (VILHENA, 2012). Assim sendo, nesta seção você irá observar a importância de um sentido e uma lógica que sejam capazes de justificar a existência da pessoa perante o mundo: este sentido vai muito além de um conjunto de necessidades objetivas que definem a sobrevivência ao indivíduo – como o beber, o comer, o vestir-se e se proteger das intempéries e eventos climáticos comuns à natureza, além da proteção contra os inimigos naturais e predadores que ameaçam a vida humana desde o alvorecer da espécie (FONTANA, 2001). 11 Na verdade, há um desejo intrínseco no ser humano em transcender sua própria realidade física, contemplando assim elementos considerados como sagrados, e que por sua vez estão aptos a contextualizar a vida humana dentro de preceitos e normas religiosas, orientando ações – que podem ser conscientes ou inconscientes – em uma busca constantepela própria espiritualidade. Figura 1: Oferenda em Tenda De Umbanda Fonte: Disponível em: https://bit.ly/3HVdaaD. Acesso em: 12 jun. 2021. Neste sentido, o chamado ‘fenômeno religioso’ poderá ser estruturado com base na contemplação do sagrado a partir de vertentes distintas. Tais vertentes podem, deste modo, ser compreendidas como um conjunto de relações entre a pessoa e a(s) divindade(s) por ele concebida(s); deste modo, estes relacionamentos poderão definir desejos, anseios e objetivos individuais em processo de conexão espiritual (RODRIGUES, 2007). Para contextualizar sua aprendizagem, podemos assumir uma discussão sobre ‘o sagrado’ a partir de um conjunto de questões: quais são os desejos e pensamentos de uma pessoa ligada à religião católica, ao orar para um santo? O que buscará, por sua vez, o espiritualista no momento em que realiza uma ação focada na caridade? Quais os anseios do islâmico que contribui com o zakat, a esmola voltada para a manutenção da comunidade? Estas perguntas, tomadas em conjunto, permitem observar as formas pelas quais a abordagem teológica pode auxiliar em uma compreensão efetiva das https://bit.ly/3HVdaaD 12 relações (subjetivas) que dizem respeito à experiência religiosa. Assim, com estas reflexões iniciais, você pode avaliar a atualidade desta temática, podendo compreender de que modo a sociedade contemporânea contempla a sua própria identidade espiritual – e também a perde em um contexto de questionamento das instituições religiosas. 1.2.1 Em Busca de um Conceito Como foi possível observar até o momento, a expressão ‘sagrado’ na cultura religiosa pode oferecer diferentes conotações e significados a partir de um conjunto de interpretações individuais acerca dos elementos da espiritualidade. Assim, um caminho possível, e simples, partiria de uma interpretação lexical, a qual refere o conceito de ‘sagrado’ como algo inerente ou relativo a uma religião ou uma divindade; ou ainda, como algo que recebeu uma bênção especial, uma sagração, como ocorre com o óleo reservado ao sacramento da confirmação na Igreja Católica (MICHAELIS, s.d.). No entanto, torna-se necessário aprofundar esta contextualização, para conceber adequadamente uma interpretação plausível sobre o sagrado na cultura contemporânea, particularmente no Ocidente. Assim, é preciso entender melhor o sentido da expressão ‘sagrado’ a partir da perspectiva teórica das Ciências da Religião, da Teologia e da Psicologia, articulando vertentes do conhecimento ao redor da discussão da espiritualidade humana. Esta reflexão pode iniciar com uma pergunta objetiva: para você, o que seria uma coisa ‘sagrada’? Talvez seja possível conceituar o sagrado a partir de diferentes elementos, como a sua família, sua instituição religiosa, a pátria em que 13 vive ou mesmo o seu time de futebol predileto (não à toa, muitos torcedores consideram as camisas de seus times como um ‘manto sagrado’). Seria coerente, ainda, apontar alguns outros objetos que têm uma relevância particular, como imagens religiosas a serem guardadas em casa ou em locais de culto; fotografias, gravuras, água, alimentos ou quaisquer outros itens que remetam a algo ou alguém especial, e ainda, à sua experiência religiosa. Pode-se deste modo observar que estes elementos – materiais ou imateriais – apresentam uma particular relevância para a vida humana, sendo assim caracterizados como elementos ‘separados’, isto é, que não compõem uma parte da vida comum, isto é, dos processos elementares de reprodução da vida material das pessoas (MAGALHÃES; PORTELLA, 2008). Este recorte temático é proposto pelo sociólogo francês Émile Durkheim (1858 – 1917), o qual enfatiza que as coisas denominadas ‘sagradas’ diferem objetivamente das demais coisas ligadas ao cotidiano. Assim, objetos comuns como colheres, pendrives, cartões de crédito e chicletes têm uma natureza imanente – ou seja, são elementos concretos, reais e se destinam objetivamente a satisfazer diferentes tipos de necessidades diretas do ser humano. Por outro lado, os itens e objetos considerados sagrados têm em si uma relação de transcendência – isto é, são transcendentes – uma vez que remetem diretamente a sentimentos de elevação espiritual e contemplação da(s) divindade(s). Assim sendo, é viável observar que a reflexão e o pensamento religioso – que reflete a vivência subjetiva da espiritualidade e um conjunto de emoções íntimas, individuais, dentro ou fora de uma instituição religiosa formal – acaba dividindo todas as coisas em duas categorias: há elementos e coisas (reais ou imaginárias) que são intrinsecamente sagradas, e em uma posição diametralmente oposta, haveria coisas que são profanas, isto é, diferentes e não-pertencentes diretamente ao domínio da religião ou da experiência espiritual. Estas dimensões – sagrado e profano – não seriam a princípio capazes de coabitar o mesmo espaço; ou seja, é concebível que elas coexistam em um certo ambiente, embora não possam ser compreendidos sob a mesma perspectiva, como elementos sagrados e profanos ao mesmo tempo (DURKHEIM, 1996). 14 Verifique, desta forma, que há diferentes objetos e itens que são capazes de materializar plenamente o sagrado na existência cotidiana, a partir de objetos de devoção ou instrumentos dedicados ao culto; da mesma forma, pode-se destacar o sagrado a partir de indivíduos (sacerdotes, pastores, xamãs e outros líderes religiosos), ambientes (casas de oração, igrejas, centros espíritas, etc), momentos da vida civil (datas festivas, dias santificados), bem como a partir de gestos e ações comuns à pessoa religiosa, em momentos de oração, participação em um culto ou o simples ato de deslocar-se para uma igreja. Figura 2: Cálice para o Culto Eucarístico na Igreja Católica Fonte: Disponível em: https://bit.ly/3CDV6AV. Acesso em: 12 jun. 2021. Nestas ações e objetos, portanto, está intrinsecamente contido um aspecto de separação, de reserva, comum às coisas santificadas, onde o sagrado é capaz de se manifestar de alguma forma. Esta manifestação caracteriza uma hierofania, ou seja, uma espécie de presença do divino entre os seres humanos, e que somente https://bit.ly/3CDV6AV 15 será captada a partir do sentimento religioso, que é individual, embora possa ser mediado pelas instituições religiosas (MAGALHÃES; PORTELLA, 2008). Com base nesta abordagem preliminar, é possível adotar uma personificação, isto é, uma figura de linguagem capaz de atualizar a expressão ‘sagrado’ como uma exemplificação, que irá denotar os elementos apresentados anteriormente (objetos, ações, espaços de culto, etc). Assim, o sagrado pode ser definido a partir de algumas categorias, a saber (RODRIGUES, 2007): Experiência não-quotidiana: esta categoria demonstra que o sagrado faz parte da realidade humana, porém, não se integra absolutamente a esta realidade. Assim, é preciso que sejam reservados alguns momentos e possibilidades para vivenciar o sagrado nos seus aspectos mais plenos (a visita a uma igreja para um momento de oração, por exemplo); mesmo os líderes religiosos, que estão cotidianamente ligados ao espaço sagrado, também irão vivenciar mais diretamente o sagrado durante a ação ritual, como ocorre com o padre católico que consagra as espécies do pão e do vinho durante a missa, por exemplo. Força suprema: este conceito enfatiza que o sagrado tem a capacidade de conectar, ou gerar uma conexão (como mediador) entre a pessoa e um poder supremo (superior), ou uma divindade, como a pessoa é capaz de conceber a partir de sua matriz de culto. Esta(s) divindade(s) apresenta(m), aliás, o poder e a condição de controlar objetivamente o Universo e tudo que nele existe. Realidade ambígua:esta expressão destaca que os elementos ligados ao sagrado têm a capacidade de promover sentimentos ambivalentes no ser humano. Ou seja, há uma relação pautada em sensações que podem, em alguns momentos, divergir e mesmo gerar oposição, como a certeza e a dúvida, a atração e o temor, a proteção e o medo. Todas estas emoções dependem, evidentemente, dos momentos e conjunturas ligadas à existência individual, as quais podem aproximar ou afastar a pessoa em relação ao sagrado e à experiência religiosa. Não-utilitarismo: esta abordagem em relação ao sagrado diz respeito à ideia de que o mesmo não se presta a ser acessado apenas para a intervenção e resolução dos problemas que são inerentes ao cotidiano e à realidade humana: o sagrado não é buscado para auxiliar a pessoa na localização de canetas perdidas, mas sim, para a intervenção em circunstâncias de grande complexidade e/ou perigo, as quais demandam uma ação que extrapola os limites e habilidades comuns ao ser humano e aos recursos naturais. 16 Meta-empirismo: esta expressão apresenta uma interpretação que define que o sagrado é algo que está além da realidade comum, material e palpável; consequentemente, o sagrado é uma dimensão igualmente divergente da racionalidade individual, assumindo desta forma uma conotação intrinsecamente subjetiva e ligada a dimensões da espiritualidade. Afirmação da crença: esta categoria analítica enfatiza que a experiência religiosa implica na necessidade de uma atitude de respeito e reverência que devem ser prestadas ao sagrado; esta atitude de reverência afirma continuamente que aquele item ou objeto apresenta uma dimensão especial e separada em relação a todas as outras coisas. Dimensão imperativa-ética: este conceito apresenta a ideia de que a experiência e a vivência do sagrado implicam em uma obediência ampla e irrestrita; desta forma, o sagrado organiza a conduta e as ações do indivíduo, sujeitando a pessoa a distintas ações e obrigações que interferem objetivamente em seus costumes, sua moral e sua vivência na sociedade. Figura 3: Síntese dos Conceitos Relativos ao Sagrado na Cultura Religiosa Fonte: Adaptado de Rodrigues (2007) A partir destas dimensões explicativas do sagrado, pode-se ter em conta que a sua experiência não é necessariamente intrínseca e exclusiva apenas às pessoas que aderem a algum credo ou conjunto de crenças, ainda que seja mais comum a estas pessoas. Efetivamente, o indivíduo que não professa alguma religião ou mesmo se declara ateu poderá desenvolver, a seu modo, noções e concepções sobre o sagrado em relação a outros aspectos, coisas e elementos de sua vida, atribuindo este status à própria família ou, por exemplo, a instituições como a sua equipe de futebol, como destacamos anteriormente. 17 Por exemplo, um neurocirurgião que se declara ateu pode, sem maiores dificuldades, desenvolver um senso de sagrado em relação aos seus instrumentos de trabalho e seu ambiente de atuação, pois estes itens são separados e dedicados exclusivamente a uma função de grande nobreza material e objetiva, que é a de salvar vidas. O habitat deste profissional – o centro cirúrgico – constitui-se desta forma como uma espécie de templo, um local exclusivo, reservado a poucas pessoas que oficiam um ato especial, como os profissionais de enfermagem, anestesistas, instrumentadores, etc. Ali, será realizado um ritual que se destina a aliviar o sofrimento de um ser humano, um semelhante, com o uso da razão, o qual se configura como uma força suprema que é capaz de compreender, abranger e manipular as leis naturais (MAGALHÃES; PORTELLA, 2008). 1.3 SAGRADO E PROFANO EM DIFERENTES MANIFESTAÇÕES RELIGIOSAS A partir da delimitação teórica da seção anterior, que apresentou os conceitos e características do sagrado em relação à cultura histórica e às expressões subjetivas e emocionais comuns à experiência religiosa, é necessário realizar um aprofundamento desta reflexão, a fim de referenciar as expressões do sagrado nas instituições religiosas e, em particular, nos referenciais da cultura ocidental e oriental. Assim, será possível avaliar de que modo estas concepções vêm passando por uma série de importantes questionamentos frente à secularização contemporânea das sociedades (PORTELLA, 2006). 18 Desta forma, é igualmente relevante a análise relativa ao processo de perda de identidade religiosa a partir do século XX. Este processo se estabelece, vale dizer, a partir de um cenário de progressiva indiferença e frustração em relação aos conteúdos doutrinários e ao caráter institucional das religiões, que oferecem interpretações sobre a realidade que, em muitos casos, conflitam com a racionalidade e as referências culturais predominantes nas relações cotidianas. 1.3.1 A temática do sagrado nas culturas orientais No momento em que você, enquanto estudante dedicado ao tema das religiões, procura analisar e compreender a cultura oriental a partir das referências históricas e culturais do Ocidente, seria possível que você compreendesse esta cultura oriental como sendo algo fabulosa ou mítica, uma vez que estas formas de culto são baseadas em credos e expressões de fé que, em geral, assumem o politeísmo como vertente espiritual, gerando matrizes religiosas tão antigas quanto a própria matriz abraâmica das religiões ocidentais (HELLERN; NOTAKER; GAARDER, 2000). Efetivamente, as formas de culto das religiões orientais são fortemente ligadas ao processo de purificação espiritual por meio da ascese mística, da contemplação da(s) divindade(s) e da meditação: esta abordagem, aliás, apresenta uma diferença importante, e cada vez mais objetiva, em relação a diferentes expressões modernas do culto (monoteísta) cristão, no qual o êxtase e a catarse espiritual são induzidas objetivamente por meio de músicas, gestos e clamores. https://bit.ly/3HUzvVR 19 Figura 4: Monges budistas em Meditação Fonte: Disponível em: https://bit.ly/37e3b3v. Acesso em: 23 ago. 2021. Assim sendo, é possível verificar, em uma primeira observação, que as expressões da religiosidade oriental – das quais se pode destacar o xintoísmo japonês, o hinduísmo na Índia e as expressões do budismo (chinês, indiano, tibetano, etc), entre outros exemplos – são interligadas entre si por meio de uma chave interpretativa, que é o conceito de iluminação, ou libertação. Ou seja, as práticas de ascese espiritual têm por objetivo gerar a emancipação do indivíduo em relação às paixões mundanas, a partir de um esforço individual que seja capaz de contemplar o sagrado e levar a pessoa à imortalidade de sua alma (RAVERI, 2005). A temática das religiões de libertação, que são comuns ao Oriente, envolvem também um conjunto de práticas, ambientes e rituais comuns à experiência subjetiva da espiritualidade associada à vivência material do culto e da religião. Entretanto, as expressões da espiritualidade oriental têm por objetivo maior se colocar como caminhos, ou vias, cujo percurso permite que o indivíduo https://bit.ly/37e3b3v 20 possa consequentemente libertar o seu espírito de uma série de más inclinações e sofrimentos comuns à realidade temporal e à imanência da vida física (RAVERI, 2005). Desta forma, este senso de elevação deve ser buscado a fim de que o sujeito possa, inclusive, ser capaz de atingir este status de imortalidade ainda em vida, tornando-se um ente deificado, isto é, com uma natureza divinizada em relação às outras pessoas, como ocorre, por exemplo, com os grandes lamas do budismo tibetano ou, ao longo da história, com os imperadores japoneses, os quais descendem diretamente dos deuses xintoístas segundo sua crença, e portanto, também possuemuma dimensão divina em si próprios. A crença na linhagem divina dos imperadores japoneses é um dos elementos mais importantes do xintoísmo: estes governantes seriam descendentes milenares de Amaterasu, a deusa do sol. Desta forma, ao morrer, o imperador era automaticamente glorificado, como um semideus que esteve encarnado entre seus súditos: o status divino dos imperadores, inclusive, tornava-os praticamente inacessíveis aos japoneses. Em 1946, na sequência do fim da Segunda Guerra Mundial e a derrota do Japão, o imperador Hirohito abriu mão de sua dimensão divina, em um pronunciamento público (tendo sido a primeira vez em que os japoneses ouviram a voz do imperador), encerrando assim o culto oficial à sua pessoa, mas preservando o status de governante e líder maior na cultura xintoísta (FELLET, 2019) A partir das características apresentadas sobre as religiões orientais, é pertinente destacar que a proposta de Durkheim de uma divisão objetiva entre ‘sagrado’ e ‘profano’ teria um apelo menor, podendo mesmo ser diretamente questionada: nestas expressões religiosas, as divindades e os espíritos dos ancestrais ocupam os espaços e se integram ao cotidiano das pessoas, inclusive https://bit.ly/3hNvqrB 21 materialmente, por exemplo, por meio das cinzas dos antepassados que são conservadas nos santuários domésticos. Figura 5: Yasukuni, o Santuário Xintoísta dos Guerreiros Japoneses Fonte: Disponível em: https://bit.ly/3tClruZ. Acesso em: 23 ago. 2021. Na verdade, as religiões orientais, enquanto se caracterizam como vias ou ‘caminhos’ de libertação, acabam efetivando uma introjeção do sagrado na vida material dos seus seguidores, inexistindo, portanto, o recorte não-quotidiano da experiência religiosa, destacada na matriz de elementos sobre o sagrado enfatizada por Donizete Rodrigues (2007), haja visto que esta experiência está contida em todos os momentos e espaços relativos à existência. Pode-se tomar a cultura hindu como referência e exemplo desta relação íntima entre sagrado e profano nas religiões orientais: no Hinduísmo, é particularmente relevante conceito de Dharma. O Dharma constitui-se como uma força impessoal, a qual é apropriada pelos deuses para ampliarem o seu poder no mundo. Esta força é um elemento motor, um princípio que rege o funcionamento do mundo e da natureza, e cuja inclinação positiva ordena a civilização de modo a conduzir os indivíduos à prática da caridade e do bem, orientando-se pela verdade. Assim sendo, a onipresença do Dharma faz com que a vida humana seja orientada, nos aspectos e costumes comuns à organização social, pelos princípios filosóficos que são comuns a esta força (RODRIGUES, 2007). Por decorrência, a predominância do hinduísmo entre a população indiana faz com que a vida social e material desta civilização seja organizada de acordo com os preceitos religiosos. Pode-se mencionar, inicialmente, a tradicional separação entre castas (classes de indivíduos de acordo com o seu nascimento): https://bit.ly/3tClruZ 22 esta separação é um reflexo do preceito do Dharma, que impõe resignação aos desígnios desta forma motriz do universo; assim, a pessoa deve aceitar a sua condição social, não procurando buscar alguma forma de superar ou renegar este estado, por mais desprivilegiado que seja. A prática de despejar as cinzas dos falecidos no Rio Ganges (Índia) é também muito comum na cultura hindu: este rio é considerado sagrado, de modo que, ao depositar os restos mortais das pessoas neste curso de água, a transcendência do indivíduo (a sua busca pela imortalidade da alma) é facilitada. O efeito decorrente desta prática milenar é a poluição do rio com cinzas, e mesmo com cadáveres em decomposição, que são sepultados às margens ou diretamente jogados no rio (PANDEY, 2021). Um terceiro preceito de relevância é o respeito aos animais, e em particular, à vaca, a qual é considerada como um sinal de fertilidade e vida no Hinduísmo. Assim sendo, todas as coisas que remetem a este bovino são consideradas como sagradas e, assim, tomadas de um poder que vai além das leis naturais. Um ocidental, por exemplo, pode apresentar uma certa surpresa ou questionamento ao ler uma notícia em portais de informação com o título ‘Médicos da Índia pedem para que pessoas do país não usem esterco bovino contra a Covid- 19’: seria um hábito altamente questionável do ponto de vista da saúde pública e da transmissão de outras doenças que tenham a vaca como hospedeiro preferencial. Contudo, esta prática embute uma cosmovisão milenarmente estabelecida na cultura hindu, e que torna sagrado este animal e tudo que a ele possa remeter (G1, 2020). 23 Figura 6: Banho ritual no Rio Ganges (Índia) Fonte: Disponível em: https://bit.ly/3CraO23. Acesso em: 23 ago. 2021. Estas referências, portanto, são úteis no sentido de observar que as expressões da religiosidade oriental realizam uma sacralização do profano, ou seja, transformam o sagrado ao inseri-lo nos espaços e contextos da vida cotidiana. 1.3.2 A temática do sagrado na cultura ocidental Ao refletir sobre as ‘religiões ocidentais’ e seus efeitos sobre a cultura de povos e sociedades, procura-se compreender a experiência religiosa a partir das instituições ligadas à chamada ‘matriz abraâmica’, que compreende as doutrinas criadas a partir da expressão religiosa dos hebreus, nos primórdios da civilização. A partir deste conjunto de crenças em um Deus único (Iahweh), deriva a religião judaica contemporânea, além do Cristianismo (e suas derivações) e do Islamismo (MOSES, 2009). Estas expressões de espiritualidade, as quais são aqui denominadas como ‘religiões ocidentais’, apresentam um enfoque relevante na salvação, ao invés da libertação (comum às religiões orientais): nas instituições da matriz abraâmica, apresenta-se a fé como o elemento-chave para que o indivíduo possa conquistar uma condição única, especial, em um mundo e um espaço que estão além da vida humana/terrena, onde este indivíduo irá usufruir, pela eternidade, da presença da divindade (Iahweh, Allah ou o Deus cristão), ou estará condenado de forma definitiva e irrevogável (VILHENA, 2012). As religiões de salvação, portanto, se conceituam a partir de práticas, rituais e expressões que também direcionam o indivíduo para a contemplação do https://bit.ly/3CraO23 24 sobrenatural; no entanto, o enfoque da salvação coloca a pessoa diante da oportunidade de conceber individualmente a sua relação com a divindade. Ou seja, no momento em que busca praticar a fé e realizar obras compatíveis com a moral religiosa, a pessoa está ‘pavimentando’ seu caminho para a salvação, a qual será desfrutada de acordo com as concepções e cosmovisões inerentes a cada doutrina: a ideia de um Paraíso celestial perpassa estas matrizes de culto, e com algumas diferenças pontuais, trata-se de um lugar onde a pessoa irá vivenciar a convivência com o seu criador e com as outras pessoas que foram igualmente salvas (HELLERN; NOTAKER; GAARDER, 2000). Figura 7: Caridade como Prática de Elevação Espiritual Fonte: Disponível em: https://bit.ly/3I0BGqY. Acesso em: 23 ago. 2021. Há milhares de linhagens e expressões que se constituem como derivações das religiões abraâmicas, formando doutrinas e instituições com carismas específicos de acordo com as necessidades e anseios de seus adeptos e líderes: o Cristianismo, em particular, é bastante sensível a este processo de construção de novas doutrinas e concepções religiosas, desde o primeiro grande Cisma (divisão) entre a Igreja do Ocidente (Romana) e a Igreja do Oriente (Ortodoxa) na Idade Média, mais precisamente em 1054 d.C (SUFFERT, 2001). https://bit.ly/3I0BGqY 25De todo modo, é importante destacar que a dimensão do sagrado é comum a todas estas expressões religiosas: no momento em que realiza um conjunto de voltas ao redor da Caaba (a rocha sagrada em Meca), ou realiza orações no Muro das Lamentações (Jerusalém), ou ainda, diante da Scala Sancta (a Escada Santa, em Roma), a pessoa permeada pelo senso de espiritualidade procura, com efeito, buscar uma conexão espiritual com o sagrado, com o sobrenatural, retomando e ressignificando práticas de fé que conduzem esta pessoa ao sentimento de contemplação da divindade (MOSES, 2009). 1.4 ETNOGRAFIA E PERCURSOS RELIGIOSOS A observância de conceitos ligados à religião permite observar convergências importantes em relação à experiência individual e à busca pela espiritualidade. Assim, é preciso analisar e conceber estas semelhanças e padrões para viabilizar uma abordagem comparativa que observe não apenas as diferentes formas de ritual e os elementos religiosos presentes nas culturas e nas religiões. É preciso, na verdade, compreender de que modo estes elementos viabilizam a conexão entre a imanência humana e a transcendência manifesta na(s) divindade(s) (RODRIGUES, 2007). Portanto, a mobilização de saberes comuns às Ciências Humanas permite avaliar aspectos relativos às construções e conceitos culturais das diferentes sociedades e civilizações. Esta mobilização é efetivada, em particular, a partir da Antropologia, destacando a investigação de temáticas focadas no comportamento individual e coletivo, e também na experiência religiosa, articulando conceitos para a discussão proposta nesta unidade e nesta disciplina. A etnografia consiste, portanto, em um conjunto de procedimentos https://bit.ly/3tDxp7z 26 metodológicos que se destina a compreender e analisar a sociedade a partir do saber antropológico. Deste modo, é possível observar os impactos decorrentes das relações sociais em relação ao comportamento humano, a partir de diferentes fontes de pesquisa e suportes bibliográficos, tais como relatos, contos e narrativas, objetos e outros itens que destacam as formas de ação de um povo, os seus modos de vida, hábitos e características. Neste campo, incluem-se também as características religiosas, a partir das cosmovisões e interpretações criadas por estes povos acerca da vida natural e da relação com o sagrado, por meio de diferentes linguagens e rituais (SOUZA NETO; AMARAL, 2011) Portanto, o estudo relacionado aos elementos religiosos e expressões rituais das sociedades passa, necessariamente, pela delimitação de um método analítico; o método etnográfico é particularmente adequado para esta realidade, pois permite desenvolver, por meio de pesquisas de campo, uma abordagem personalizada, que contemple os elementos religiosos não a partir de um enfoque generalista (tentando compará-los a outras crenças), mas a partir de uma aproximação íntima e dialógica, na qual o objeto e o pesquisador interagem para gerar um relato completo e abrangente sobre um tema de estudo (RODRIGUES, 2007). Como exemplo deste método, podemos conceber o estudo sobre as formas de culto aos mortos e as expressões da espiritualidade por ocasião da morte: assim como você observou anteriormente os costumes relativos ao depósito de cinzas e corpos dos hindus no Rio Ganges, os ocidentais também desenvolveram o hábito de sepultar seus mortos em espaços separados. Esta prática refere a crença na ressurreição do corpo e no respeito aos defuntos, como fonte de salvação – a proximidade das igrejas e capelas implicava em uma chance mais efetiva da alma obter a redenção no contexto do Juízo Final (VILHENA, 2012). 27 Figura 8: Cemitério em Belo Horizonte (MG) Fonte: Disponível em: https://bit.ly/3ITw96t. Acesso em: 30 ago. 2021. Neste mesmo contexto, a apropriação do método etnográfico presta-se a avaliar a cultura religiosa das sociedades, analisando relações sociais que são essencialmente permeadas pelo sentimento religioso. Em relação à formação histórica da sociedade brasileira, esta relação entre sagrado e profano é particularmente relevante, uma vez que os atores sociais neste processo – líderes espirituais e povo – interagem não apenas em um ambiente de culto, mas em diferentes momentos e contextos da vida material e do cotidiano de uma determinada população. Para exemplificar este ponto de vista, pode-se tomar como referência o caso do Padre Antônio Ribeiro Pinto (1879 – 1963). Este sacerdote católico atuou durante toda a sua vida pastoral na região da Zona da Mata mineira, em particular, nas atuais cidades de Santo Antonio do Grama e Urucânia (a pouco mais de 100 quilômetros de Ipatinga e Belo Horizonte). Pe. Antonio ficou bastante conhecido, dentro e fora do país, por uma série de relatos de curas obtidas por sua intercessão e orações na década de 1940. Estes relatos foram bastante difundidos pelos meios de imprensa da época – pelos jornais, rádios e mesmo pelo cinema – de modo que, em 1947, o pequeno distrito de Urucânia foi tomado por milhares de peregrinos em busca das bênçãos deste sacerdote (COSTA, 2018). O caso de Pe. Antonio – que será retomado em outros momentos nesta disciplina – é útil para compreender alguns aspectos do campo religioso brasileiro, no qual a busca pelo milagre e a cura são fatores de extrema relevância. O https://bit.ly/3ITw96t 28 surgimento de beatos, taumaturgos e milagreiros deve ser percebido como referencial desta relação que as pessoas estabelecem, com o sagrado: uma relação de subserviência e adoração, com uma motivação eventualmente objetiva, visando a libertação de um sofrimento ou a solução de algum problema complexo e temporal. O método etnográfico, portanto, é relevante para o estudo de caso mencionado: ao entender a trajetória histórica de Pe. Antonio nas cidades da Zona da Mata, será possível verificar que este presbítero exercia uma influência social e política relevante nas comunidades por ele pastoreadas: com efeito, Pe. Antonio desenvolvia atividades culturais que procuravam gerar esforços relevantes de valorização humana e integração social, como a criação de bandas de música, times de futebol, grupos de congada, além da criação de escolas, asilos e igrejas, e da reforma de cemitérios, como parte de uma valorização religiosa destes ambientes de culto (ASSIS, 2004). Verifique, desta forma, que a etnografia permite desenvolver uma reflexão embasada na Sociologia e na Antropologia para a compreensão do fenômeno religioso. Este método, que diz respeito a uma aproximação intensa entre o sujeito da pesquisa e o seu objeto temático, será particularmente necessário para desenvolver diferentes sínteses interpretativas acerca dos elementos religiosos que configuram as crenças e rituais, em particular, nas religiões ocidentais e na realidade brasileira (OLIVA, 2020). 1.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Na conclusão das reflexões relativas a esta unidade, você pôde realizar um primeiro percurso analítico em relação à temática dos elementos religiosos, a fim de compreender de que modo eles conceituam a existência do sagrado na existência humana. Ou seja, as religiões ocidentais e orientais apresentam princípios e lógicas importantes que são semelhantes e/ou convergentes entre si, em relação a um conjunto de regras morais e imperativos éticos que condicionam as formas de pensar, ser e agir da pessoa religiosa na sociedade. Esta dimensão social – isto é, a experiência religiosa do indivíduo tomada a partir de si ou de uma comunidade de fé – é uma parte fundamental dos estudos das Ciências da Religião e da Teologia: os trabalhos das comissões de ecumenismo e diálogo inter-religioso, por exemplo, buscam realizar esta ação de convivência 29 entre crenças, a fim deviabilizar a superação dos fundamentalismos e disputas historicamente observadas no campo religioso com importante recorrência. 30 FIXANDO O CONTEÚDO 1. Para compreender a relevância dos elementos religiosos para a formação e consolidação das sociedades, em uma perspectiva histórica, é preciso analisar as relações entre sagrado e profano que constituem os aspectos gerais da vida humana. Assim, para uma discussão mais profunda a respeito deste tema, analise o texto com lacunas que se segue: ‘É importante destacar que, no contexto da experiência religiosa, busca-se realizar um contato ou uma relação mais profunda entre a realidade humana, cuja dimensão é pontuada pela __________ e pela realidade material, vivendo em ambientes __________, com a dimensão sobrenatural, representada por divindade(s) que expressam uma relação de __________ que caracteriza o sagrado’. Agora, assinale a opção que contempla adequadamente as lacunas do texto apresentado: a) Transcendência – profanos – materialidade. b) Subjetividade – sagrados – materialidade. c) Imanência – profanos – transcendência. d) Materialidade – profanos – imanência. e) Divindade – sagrados – imanência. 2. O estudo da experiência religiosa foi realizado sistematicamente por diferentes autores e pesquisadores que se debruçaram sobre uma análise estratégica do campo religiosos em diferentes civilizações. Neste sentido, é importante destacar uma abordagem que ressalta o sagrado como um elemento separado, isto é, com uma dimensão específica que o torna simbolicamente especial para a pessoa religiosa. Assim sendo, mediante o conteúdo apontado pelo texto-base, é correto mencionar que esta abordagem sobre o sagrado é particularmente associada: 31 a) Ao conceito de experiência não-cotidiana. b) Ao conceito de não-utilitarismo. c) À noção de força suprema. d) À noção de empirismo e imanência. e) Ao conceito de meta-empirismo. 3. Os aspectos do sagrado precisam ser avaliados a partir de um conjunto de características que conceitua os elementos religiosos e a sua contribuição efetiva para o desenvolvimento da espiritualidade individual e suas fontes de culto nos diferentes espaços sociais. Dentre estes aspectos, cabe ressaltar um que destaca a importância do sagrado como elemento de busca, pelo ser humano, para a superação de crises e problemas que podem fugir ao domínio das leis naturais. Neste sentido, é correto apontar que o ‘aspecto do sagrado’ que melhor se enquadra na abordagem destacada é: a) A noção de meta-empirismo. b) O conceito de experiência ambivalente. c) A noção de força suprema. d) O conceito de realidade ambígua. e) O conceito de não-utilitarismo. 4. As características dos elementos religiosos permitem desenvolver uma reflexão crítica a respeito da relevância destes elementos para a consolidação da espiritualidade individual. Neste sentido, é importante ressaltar que diferentes autores destacaram a importância da experiência religiosa para o ser humano. Desta forma, diante dos apontamentos do texto-base, é correto destacar que o autor que aponta a relevância do sagrado como um elemento especial no cotidiano das pessoas é: a) Léon Walras (1834 – 1910). b) Émile Durkheim (1858 – 1917). c) David Ricardo (1772 – 1823). 32 d) Alfred Marshall (1842 – 1924). e) John Stuart Mill (1806 – 1873). 5. A elaboração do método etnográfico permite compreender aspectos da religiosidade e do campo religioso, a fim de constituir reflexões mais profundas sobre o processo de reprodução social das civilizações. Neste sentido, a partir das colocações apresentadas, analise as afirmativas a seguir: I. Este método pressupõe que a pesquisa deve ter como referencial metodológico a investigação em fontes bibliográficas secundárias, isto é, a pesquisa de obras que descrevem diferentes realidades históricas. II. O método etnográfico está associado a um processo de aproximação do pesquisador com seu objeto de estudo, permitindo vivências e experiências relevantes que auxiliam na construção do conhecimento. III. Para a elaboração de uma pesquisa ligada ao método etnográfico, é preciso que o pesquisador interessado considere apenas os elementos materiais de uma sociedade, cuja dimensão concreta gera fontes apropriadas de estudo. É correto o que se afirma em: a) I, apenas. b) II, apenas. c) III, apenas. d) I e II, apenas. e) II e III, apenas. 6. Dentro das discussões relacionadas à experiência religiosa, é importante apontar o conceito de hierofania como elemento-chave desta experiência e para a constituição da identidade espiritual do indivíduo no âmbito de uma comunidade de fé. Desta forma, mediante os conceitos apresentados, analise as afirmativas a seguir: 33 I. Este conceito menciona a possibilidade de uma manifestação objetiva do sagrado em relação a uma pessoa, de acordo com suas cosmovisões e concepções sobre a(s) divindade(s). II. A interpretação deste conceito permite destacar a hipótese de uma vivência de dimensões da espiritualidade baseados em um conceito de sobrenaturalidade perante uma força superior. III. O conceito de hierofania destaca o caráter imanente da(s) divindade(s), que se materializam na existência cotidiana e assumem, portanto, uma dimensão meta-empírica. É correto o que se afirma em: a) I, apenas. b) II, apenas. c) III, apenas. d) I e II, apenas. e) II e III, apenas. 7. Os aspectos básicos das religiões devem ser compreendidos pelo pesquisador como parte de uma discussão a respeito da formação histórica das civilizações; esta formação permite, aliás, observar as características da experiência religiosa na realidade contemporânea. Deste modo, para realizar uma síntese a respeito da temática proposta na Unidade, analise as afirmações a seguir e assinale a correta: a) As ‘religiões ocidentais’ que descendem da matriz abraâmica pregam a salvação como chave interpretativa da experiência religiosa. b) O Cristianismo desenvolveu-se historicamente como uma ‘religião de libertação’, pois enfoca o exorcismo e a cura espiritual para a promoção do bem-estar físico. c) O enfoque das religiões ocidentais, como o judaísmo, considera a libertação e a emancipação da alma como elementos cruciais na construção das formas 34 de culto. d) As expressões da religiosidade oriental e suas instituições de culto observam a hipótese da salvação e da vida eterna como elementos-chave da espiritualidade. e) A origem das ‘religiões orientais’, como o xintoísmo, remete objetivamente às formas de fé dos antigos hebreus, em um processo de sincretismo religioso. 8. (ENADE 2018). “O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que salva da loucura. No geral. Isso é que é a salvação da alma… Muita religião, seu moço! Eu cá não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio… Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardeque. Mas quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca. Mas é só muito provisório. Eu queria rezar o tempo todo”. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Círculo do Livro, 1984. Considerando o texto, assinale a opção correta. a) Percebe-se, no personagem narrador, tensão entre a dimensão existenciale institucional da religião, manifestada em sua busca por um resultado imanente de proteção e salvação da alma. b) O texto evidencia que a religião é a pulsão que mais se afasta do desejo humano de liberdade à medida que impõe um caminho único para se alcançar felicidade e se evitar o sofrimento, reduzindo a vida a um único valor – Deus. c) A perspectiva presente no trecho “Reza é que salva da loucura” está associada ao aconselhamento pastoral, que interpreta a prática religiosa como a organizadora da psique. d) O segmento “Muita religião, seu moço! Eu cá não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio…” faz referência ao diálogo entre as 35 igrejas cristãs. e) A integração sistêmica e constante entre psicologia e religião é representada, no texto, pelo desejo do personagem narrador, quando profere: “Eu queria rezar o tempo todo.” 36 A FUNÇÃO SIMBÓLICA DOS RITUAIS RELIGIOSOS 2.1 INTRODUÇÃO Ao longo desta unidade, você poderá aprofundar o seu conhecimento a respeito da relevância dos elementos religiosos – objetos de culto, instrumentos e objetos materiais, além das experiências subjetivas de convívio em sociedade para a observância da religião – para a construção de referências de identidade cultural em diferentes civilizações e crenças. Deste modo, será possível compreender que estes elementos assumem uma conotação mais expressiva do que a sua realidade imanente e material; ou seja, tratam-se de elementos materiais e imateriais, como destacado no parágrafo anterior, e que são voltados à prática do culto, os quais conjugam relações importantes entre o sagrado e a vida comum em uma comunidade de fé (RODRIGUES, 2007). Como ponto de partida nesta discussão, é necessário recorrer a um questionamento inicial: de que modo os símbolos se constituem como elementos religiosos relevantes para a experiência da espiritualidade? Além disso, os símbolos são comuns aos ambientes religiosos ou podem ser observados em outros contextos e situações, refletindo aspectos culturais da sociedade? Nesta unidade, você poderá discutir os modos pelos quais os rituais religiosos utilizam elementos simbólicos, que se articulam a expressões de linguagem e referenciais doutrinários para construir uma cosmovisão religiosa, isto é, um conjunto de conhecimentos que utiliza o sagrado e a (s) divindade (s) como chave interpretativa da existência humana e da ordem natural. 2.2 O SÍMBOLO NA PERSPECTIVA DA RELIGIÃO Para compreender a relevância dos símbolos na cultura religiosa, é pertinente partir de uma conceituação: a expressão ‘símbolo’ é convencionalmente tratada na língua portuguesa como um sinal, ou seja, um UNIDADE 02 37 elemento representativo de algo ou de alguma ideia. Deste modo, o símbolo se coloca analogamente a um outro elemento, estabelecendo uma relação de sugestão, convencendo o agente de que este símbolo tem o mesmo efeito ou potencial do representado, ou ao menos media esta força; e, da mesma forma, o símbolo tem uma função substitutiva, pois materializa o representado em um determinado ambiente, para atender a finalidades específicas dos seus agentes (MICHAELIS, s.d.) A definição de ‘símbolo’ para a cultura religiosa apropria-se destes conceitos de sugestão, mediação e representação, aprofundando-o, porém, para a dinâmica do relacionamento entre a imanência humana e a transcendência que é manifesta na(s) divindade(s). Assim, na perspectiva das religiões, o símbolo é um elemento visível, concreto ou figurativo, que seja capaz de dar significado, ou seja, um sentido, a uma realidade considerada invisível (SCHWIKART, 2001). Os conceitos de ‘símbolo’ e ‘diabo’ remetem especificamente a expressões da língua grega. A expressão ‘símbolo’ etimologicamente diz respeito à palavra synbállein, isto é, a junção entre as sílabas ‘syn’ (junto de) e ‘bállein’ (arremessar, jogar). Consequentemente, o símbolo é denominado como ‘jogar para junto de’, ou ‘trazer para si’. Em uma dimensão oposta ao símbolo, podemos observar o conceito de ‘diabo’. Esta expressão remete à palavra diabállein, ou seja, a junção entre ‘dia’ (para longe, à distância) e ‘bállein’ (arremessar, jogar), demonstrando o conceito de ‘atirar longe, afastar’ (RESENDE, 2019). Há, portanto, uma divisão objetiva, e uma oposição diametral, entre os conceitos de símbolo e diabo. Tratam-se de interpretações que permitem aproximar o sagrado à luz de um determinado elemento ou ação estrategicamente concebida, ou a afastá-lo mediante uma influência perniciosa que também resulta em um distanciamento da divindade. Consequentemente, é possível observar a relevância dos símbolos como chave interpretativa da experiência religiosa. Neste sentido, a linguagem simbólica remete a um conjunto de expressões e atos de comunicação que viabiliza a presença do sagrado em um determinado ambiente; assim, a dimensão transcendente do sagrado se manifesta na existência humana, a qual é imanente e perecível, e, portanto, é igualmente sujeita aos acidentes e circunstâncias temporais (SCHWIKART, 2001). 38 Os rituais religiosos observam diretamente a importância dos símbolos para a construção de um serviço litúrgico, o qual será discutido com detalhe na próxima Unidade. A linguagem litúrgica é parte de um espírito litúrgico (na expressão de Romano Guardini) que utiliza a linguagem simbólica para abrigar e refletir o sagrado na realidade humana. Pode-se, assim, destacar a existência de uma comunicação litúrgica que vai além de meras palavras, expressões linguísticas ou rubricas: trata-se de uma forma de comunicar entre dimensões, entre os sentidos humanos e aquilo que se considera como divino e/ou inefável (GUARDINI, 2018). A presença da imagem religiosa em uma igreja, por exemplo, consiste em um elemento mediador da divindade. Porém, quando esta imagem é agregada a outras e levada em procissão pelas ruas, há uma crença coletiva na proteção divina por meio destes símbolos. Da mesma forma, o Urim e o Tumim, as pedras rituais do sumo sacerdote de Israel pelas quais Deus expressava sua vontade, somente apresentavam sentido quando colocadas em conjunto, permitindo assim que a Palavra divina fosse interpretada. Os símbolos (e expressões da linguagem), portanto, se inserem em um contexto mediador entre as dimensões supracitadas, o humano e o divino: o símbolo permite a apropriação do sagrado, e sua função litúrgica remete a esse papel mediador. Pelo uso do símbolo, enquanto elemento sacramental, se anula a ação anti-salvífica de um elemento gerador de afastamento da divindade (diabállein), o qual pode conspurcar a esperança humana de redenção e salvação (SCHWIKART, 2001). 2.3 TOTEMISMO E RELIGIÕES ANÍMICAS: A EXPERIÊNCIA DO SAGRADO COM O AUXÍLIO DOS SÍMBOLOS 39 De acordo com a discussão apresentada no tópico anterior, a existência de um símbolo remete a um sinal, um elemento distintivo que remete à divindade, como ao Deus único das religiões abraâmicas, por exemplo. Um símbolo, portanto, evoca significados múltiplos, que devem passar por uma interpretação teológica e antropológica – utilizando, inclusive, o método etnográfico: o símbolo religioso não tem a mesma conotação de outros símbolos e sinais comuns à sociedade, como as placas de trânsito ou indicativos de salas. Estes símbolos, na verdade, agregam conceitos e cosmovisões religiosas que evocam um senso de devoção e piedade, a qual tem o poder de mobilizar as pessoas em sentimentos coletivos. Figura 9: Procissão em Fátima (Portugal) Fonte: Disponível em: https://bit.ly/3HVXbZP. Acesso em: 30 ago. 2021. Para conceber a relevância dos símbolos religiosos, é preciso sair da órbita dasreligiões ocidentais, e refletir a partir de correntes religiosas que agregam o sagrado em todas as entidades ou elementos inumanos. Estas crenças, ligadas ao animismo (cuja matriz semântica remete à expressão latina animus, isto é, vida), conferem uma simbologia especial a todos os elementos, atribuindo-lhes uma essência espiritual que confere uma expressão divina aos objetos, seres vivos e fenômenos naturais. Dentro de cada ser, portanto, há uma força sobrenatural e criadora, que associa este ser a uma dimensão de criatura divina, e não apenas como algo criado como parte da ordem natural (RODRIGUES, 2007). As expressões do animismo foram particularmente estudadas pelo psicanalista Sigmund Freud (1856 – 1939). Freud considerava que os rituais religiosos https://bit.ly/3HVXbZP 40 são expressões relevantes da psique humana, e portanto, estão ligados a fontes do subconsciente. Estes rituais retomam o conceito do parricídio primitivo, isto é, o sacrifício da figura paterna em nome da sobrevivência do grupo (como na mitologia greco-romana, onde os filhos de Cronos (Saturno) derrotam o pai que os devorava ao nascer. Esta renovação ritual do sacrifício, ainda que unifique o grupo em uma comunidade de fé, também gera um sentimento coletivo de culpa pela morte do antigo líder. Assim, para evitar uma nova consumação deste drama, as civilizações (orientadas pela religião) criaram dois mecanismos. O primeiro deles é o tabu, ou seja, um conjunto de regras não-escritas e com uma moral rígida, que inibem os atos primitivos, como o parricídio (a morte dos pais), a união consanguínea, o incesto entre pais e filhos, o homicídio voluntário, etc (FREUD, 1976). O segundo mecanismo, e muito particular às religiões anímicas, é a criação do totem, isto é, um objeto ou ser ao qual a tribo conferia uma dimensão sagrada, evocando as divindades que protegiam este grupo e seus ancestrais. O totem assume, portanto, uma importância simbólica, pois gera um senso de proteção contra o sentimento de culpa e a necessidade de repetição da violência primitiva. Figura 10: Moai (figura religiosa da Ilha de Páscoa, Chile) Fonte: Disponível em: https://bit.ly/3hRwNpf. Acesso em: 30 ago. 2021. Observe, portanto, que os estudos psicológicos e antropológicos sobre os símbolos religiosos referem, desde o seu início, a relevância destes elementos simbólicos como fragmentos de algo sagrado, os quais formam um todo ao serem https://bit.ly/3hRwNpf 41 juntados. Isto é, estes símbolos têm a sua relevância quando observados conjuntamente a partir da realidade da comunidade e dos cultos estabelecidos a partir destes símbolos (MACIEL; ROCHA, 2008). 2.4 MAGIA, MÍSTICA E FENÔMENO RELIGIOSO Quando se discute o conceito de ‘magia’ no campo da espiritualidade e do fenômeno religioso, é razoavelmente natural realizar uma primeira associação com rituais ocultos e a evocação de elementos naturais para a conjugação de determinados interesses: o cinema do século XX, em particular, favoreceu o desenvolvimento de arquétipos que associam a magia com encantamentos, evocação de espíritos e elaboração de poções e outros compostos destinados a promover algum mal ou gerar algum outro tipo de efeito. Este recorte metodológico, que enquadra o conceito de ‘magia’ em uma abordagem sobrenatural, de evocação de forças ocultas, foi inclusive utilizada sistematicamente pela Igreja Católica ao longo de séculos para perseguir e executar pessoas acusadas de bruxaria e feitiçaria. A ausência de um conhecimento mais amplo e uma postura de convivência com crenças e cosmovisões baseadas em conceitos que fugissem à doutrina e à ortodoxia da Igreja acabavam fomentando uma ação de expurgo dos adeptos de tais doutrinas (SUFFERT, 2001). 42 No entanto, é possível realizar uma atualização do conceito mencionado em um contexto apropriado ao estudo dos elementos religiosos e seu simbolismo, nas religiões ocidentais e orientais. Há elementos importantes de magia, aliás, dentro da cosmovisão das religiões abraâmicas, e em particular, no Cristianismo contemporâneo. Esta concepção se justifica a partir do momento em que você observe que o conceito de ‘magia’ pode evocar a existência – e o usufruto – de um poder que é conferido a um líder ou a uma pessoa religiosa exatamente pelo status religioso atribuído a esta pessoa. Em outras palavras, no momento em que a pessoa religiosa procura estabelecer uma relação com o sagrado, e é reconhecido por uma comunidade de fé como um agente, isto é, como alguém que age dentro da comunidade e em favor da comunidade em nome de sua fé. Neste momento, observa-se que esta pessoa vai além de seu status como membro de um grupo: esta pessoa agrega em si um reconhecimento de uma graça, um dom, carisma ou capacidade de acompanhar os fieis e ajudá-los a buscar o sobrenatural. Este carisma pode ser compreendido como uma espécie de magia, apropriada à realidade das expressões religiosas contemporâneas (ALMEIDA, 2017). Verifique, desta forma, que o conhecimento relativo às expressões da magia pode ser comparado com as formas de conhecimento religioso que viabilizam a construção de expressões da espiritualidade: ao realizar uma bênção de cura, uma unção ou entregar um doce de Ibeji a uma criança, há uma certa expressão da magia que é inerente às formas de culto, pois neste momento é expressa a relação entre o sagrado e a pessoa, articulando uma presença do sobrenatural na https://bit.ly/3vLR0oR 43 existência da pessoa. Para observar a prevalência de expressões ligadas à magia no fenômeno religioso, é preciso verificar a existência de três fatores constitutivos destas expressões, quais sejam (ALMEIDA, 2017): a) O mago, que é a pessoa cujas condições de exercício do carisma o conduzem a uma condição de agente e representante desta ação sobrenatural; b) Os ritos mágicos, que podem ser verificados por meio de ações, rituais e preceitos que materializam a ação da magia em um determinado ambiente e sobre a pessoa que busca contemplar esta ação; c) As representações mágicas, que são elementos que se vinculam ao rito mágico e, desta forma, integram-se a este ato e são diretamente vinculados ao carisma exercido pelo mago; como por exemplo, a roupa de um doente que o representa, e que é aspergida com marafo (a cachaça ritual utilizada nos ritos da Umbanda). Figura 11: Missa Católica na Forma Extraordinária (Tradicional) do Rito Romano Fonte: Disponível em: https://bit.ly/3CpMiOF. Acesso em: 30 ago. 2021. https://bit.ly/3CpMiOF https://bit.ly/3Myalj4 44 Como exemplo desta matriz interpretativa, observe o relato de um pequeno estudo de campo que o autor deste livro realizou em 2008, ao analisar as características de uma reunião religiosa de uma conhecida denominação pentecostal em São Paulo (SP). O líder da igreja, que conduzia a reunião e possui o título de Apóstolo, desenvolve uma ação ritual focada na busca por milagres e libertação de doenças, vícios e problemas diversos ligados aos fieis. Durante um momento de oração, o líder clama da seguinte forma: Coloque a mão sobre seu coração e faça silêncio. (...) A presença de Deus é forte em nosso meio, e as doenças e demônios estão sendo sufocados pelo poder de Deus. Onde tiver [sic] um espírito mau, você vai ouvir o seu grito de derrota e dor. Em nome de Jesus, dê seu grito de derrota, demônio, e abandone essa pessoa. Espírito de morte, de câncer, suicídio, depressão, espírito de miséria, separação, destruição, dê seu grito de derrota, demônio! [alguns gritos são ouvidos em meio à assembleia]. (...) Em nome de Jesus, o câncer desaparece, os nódulos da tireoide, o cisto, o mioma, o inchaço no coração,a paralisia, a cegueira. Meu Deus, toca, Senhor, e os demônios não resistem. Prestem atenção, obreiros! [para reagirem logo às convulsões e gritos de alguns fiéis]. Abandone essa vida agora, maldito! (...) Dê seu grito de derrota, mentiroso, agora! Isto! É Jesus Cristo que deu a vida por essa pessoa! Meu povo é liberto e restaurado agora pela mão do meu Deus. Pela mão de Deus, receba a prosperidade, Igreja. O livramento na família, no casamento. Receba vida agora, em nome de Jesus. (...) Nossas mãos representarão as mãos do nosso Deus. Então receba a unção de cura e libertação, de prosperidade. Coloque as mãos sobre sua cabeça e pense no Senhor. Ore comigo [a assembleia repete a cada pausa]: Meu Deus / eu não aceito / derrota / miséria / doença / perturbação / todo mal / todos os demônios / toda a inveja / toda a maldição / miséria / dívidas / da minha família / da minha vida / do meu corpo / para sempre. / Eu ordeno / em nome de Jesus, / de Jesus, / em nome de Jesus! / Sai, sai, sai! / [as pessoas jogam as mãos para a cima, gritando] / Sai, sai, sai! / Em nome de Jesus! Abra os olhos, respire fundo agora. Deus tocou na sua vida, Igreja, agora. Tenha certeza. Receba, Igreja, o milagre; receba a libertação do seu marido, da sua esposa, dos filhos.... Digam: eu recebo / em nome de Jesus. (...) Abaixem as mãos. Quantos entraram aqui com dores e não estão sentindo mais? [algumas dezenas levantam as mãos]. Glória a Deus. Olhem quantos milagres! (ALMEIDA, 2008, p.10) Perceba, neste trecho, que o pastor se associa à função do mago, pois ele canaliza a influência e o poder da divindade para os fieis; por sua vez os gestos de imposição das mãos sobre a cabeça, a respiração após a oração, consistem em representações mágicas que permitem que o rito se desenvolva; o rito mágico se insere no contexto da oração de cura, da bênção e do exorcismo 45 dos males que estão afetando as pessoas. Vale dizer, esta estrutura de associação entre a magia e o sentimento religioso pode ser observado em praticamente todas as formas de culto: podemos ainda tomar, como referência, mais alguns casos. O primeiro deles recupera o exemplo de Pe. Antonio Ribeiro Pinto, que discutimos na primeira unidade. No caso deste sacerdote, havia uma intensa mobilização em torno da devoção que ele havia estabelecido à Medalha Milagrosa, que teria sido revelada em 1830 pela Virgem Maria à freira Catarina Labouré, posteriormente canonizada pela Igreja Católica. Padre Antonio recomendava aos fieis que utilizassem a Medalha Milagrosa para realizar uma novena (um ciclo de nove dias de orações) pedindo a graça de que os mesmos necessitavam (ASSIS, 2004). Neste caso, observa-se claramente a figura do mago, que associa ritos mágicos (as ações de bênção) aos processos de representação, com o uso da referida medalha e a bênção a objetos de devoção, roupas, fotografias e outros objetos que remetem à pessoa que busca o carisma do mago para acessar o sagrado. Um outro exemplo foi relatado ao autor deste livro pelo Prof. Sandro Silva Araujo, um eminente teólogo que acompanhou a trajetória pastoral do padre José Carlos Brilha (também conhecido como Padre Carlão) na Diocese de Bragança Paulista. Este padre foi assistente espiritual da Renovação Carismática Católica (RCC) na referida diocese, e mantinha um trabalho importante de orientação espiritual, recuperação de dependentes químicos e promoção de missas de cura e libertação, nas quais ele modificava o rito penitencial, pedindo aos fieis que escrevessem seus pecados e os colocassem em uma panela para serem queimados sobre o altar. (Vale dizer, o autor deste livro presenciou uma destas celebrações aos três anos de idade, a qual se consolidou em sua memória como uma importante experiência religiosa.) O Prof. Sandro destaca que a vocação religiosa de José Carlos Brilha foi despertada mediante uma revelação que o mesmo recebeu durante uma frustrada viagem ao Rio de Janeiro para o Carnaval de 1973. Próximo à cidade de Queluz (SP) o carro de José Carlos quebrou; ao procurar ajuda em uma casa próxima à Via Dutra, encontrou a Sra. Laura Mendes da Silva, a Tia Laura, uma senhora católica muito conhecida no Vale do Paraíba pelo seu dom de Ciência, 46 um carisma do Espírito Santo que, de acordo com a teologia cristã, gera o conhecimento prévio e o discernimento profundo sobre as pessoas (SANTOS, 2017). Tia Laura, que estava organizando um retiro de oração e jamais havia ouvido falar do jovem José Carlos, o recebeu (antes que ele falasse qualquer coisa) com estas palavras: ‘Brilha, que bom que você está aqui. Jesus me disse que você estava a caminho, e eu estava lhe esperando. Vou lhe mostrar a sua cama’. Dez anos depois desta experiência, José Carlos era ordenado sacerdote. Perceba que esta convergência de elementos relativos à magia (mago, rito e representação) pode ser diretamente observada no campo religioso brasileiro, sob inúmeras circunstâncias. O pesquisador que se dedica a uma trajetória etnográfica poderá verificar, com objetividade, diferentes momentos e ações rituais que evocam a categoria analítica da magia em relação à espiritualidade contemporânea. 2.4.1 A mística e a experiência religiosa Partindo do conceito de magia como algo de extraordinário ou de preternatural (além do natural), é possível refletir sobre a experiência religiosa a partir da suibjetividade, isto é, de uma situação individual e relativa ao domínio das emoções, na qual o sagrado se manifesta interiormente e estabelece uma relação intrínseca com a pessoa. Nesta circunstância, a pessoa desfruta de uma profunda intimidade com o divino, deixando-se moldar por ele e despojando-se da própria identidade emocional e psicológica. https://bit.ly/3pNUF1H 47 O conceito de mística, portanto, envolve as emoções e sensações decorrentes desta experiência interior, a qual não deve, aliás, ser confundida com a incorporação, o transe, a possessão ou outras formas de bloqueio da personalidade: trata-se de um estado emocional na qual a pessoa religiosa sente, a seu modo, a presença da divindade como elemento a moldar a sua espiritualidade humana, conhecendo o sagrado de uma forma objetiva, direta e quase sensível ou experimental (no sentido de experimentar o sagrado e vivê-lo concretamente) (MARIANI, 2009). Entre os cristãos, o sentimento místico é normalmente construído por meio de uma postura ascética, isto é, um senso de busca pelo sobrenatural que leva à moderação dos instintos para preparar o corpo para a profundidade da experiência religiosa e para o acesso ao mistério representado pela divindade e a sua revelação direta à pessoa. Neste sentido, a pessoa religiosa assume para si o desprendimento de sua identidade humana, de sua imagem, para revestir-se da imagem do sagrado. Observe, como referência desta discussão, a imagem a seguir: Figura 12: O Êxtase de Santa Teresa, de Bernini Fonte: Disponível em: https://bit.ly/3ITmRHR. Acesso em: 30 ago. 2021. A imagem destaca a obra Êxtase de Santa Teresa, de Lorenzo Bernini (1598 – https://bit.ly/3ITmRHR 48 1680). Neste conjunto, o artista procura representar, com profundidade, o senso de contemplação do sobrenatural e elevação emocional que é propiciado pelo sentimento místico. A representação de um anjo, varando o peito de Teresa de Ávila (1515 – 1582), enfatiza o despojamento absoluto da consciência natural e o ‘abandono’ desta religiosa na direção da divindade. A sensibilidade da obra reflete o gênero barroco de seu tempo, com traços suaves que revelam a emoção do representado e estimulam o pensamento religioso. Bernini inova, porém, ao apresentar este momento místico de Santa Teresa não como um fato simples,
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