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I Seminário de História: Caminhos da Historiografia Brasileira Contemporânea Universidade Federal de Ouro Preto http://www.ichs.ufop.br/seminariodehistoria O lugar da história entre o passado e o futuro. Renata Torres Schittino A tentativa de transformar a história numa ciência através da qual se poderia apreender a totalidade do passado revela aquilo que se tornaria uma das principais angústias da disciplina historiográfica: a tensão entre o tempo da ação e o tempo da narração. A ambição de conhecer objetivamente o passado expõe a fragilidade do projeto científico de conciliação entre o acontecer e o acontecido. A contingência dos negócios humanos e a não repetição dos eventos por si só já se constituem como razões suficientes para inviabilizar qualquer observação rigorosa que pretenda alcançar a comprovação de hipóteses pela análise experimental. A intenção de adotar o paradigma científico na observação histórica não pode recorrer, comum nas ciências naturais, de demonstrar a existência de leis pela reprodução em laboratório de uma determinada situação. Por isso, imagina-se resguardar a objetividade através do desenvolvimento de uma metodologia específica, que garanta a erradicação da subjetividade do historiador e permita o exame imparcial dos eventos passados. O anseio pela objetividade sempre foi o sonho metafísico de alcançar a verdade das coisas e levou grandes filósofos da Antigüidade a afirmarem a existência de um mundo apartado da contingência dos assuntos humanos. Na modernidade, a aspiração à objetividade, embora ainda esteja relacionada ao supra-sensível, recai sobre os instrumentos e métodos de trabalho. O que Descartes põe em questão ao duvidar do que é sonho e realidade é a própria tradição da verdade contemplativa, pois a desconfiança direciona-se ao aparato sensorial humano. Assim, a ciência desenvolve implementos técnicos, pelos quais é possível enxergar a verdade do real para além do engano dos sentidos. Pode-se dizer que na teoria hegeliana essa desconfiança atinge seu ápice, e o lugar da objetividade é ele mesmo um fim da história. Tentando resolver a separação entre dois mundos, Hegel busca apreender o sentido da existência no desenvolvimento da história. Não obstante o intento de encontrar a verdade, não em outro mundo, mas no próprio desenrolar temporal dos acontecimentos humanos, o filósofo só consegue descobrir o sentido da ação quando ela já não existe mais. Em Hegel, permanece a 1 I Seminário de História: Caminhos da Historiografia Brasileira Contemporânea Universidade Federal de Ouro Preto http://www.ichs.ufop.br/seminariodehistoria separação entre ação e pensamento até o momento em que é atingida a auto-consciência. No final da história, é possível a reconciliação com o real, embora tudo ainda se refira ao plano da consciência e do pensamento. A filosofia da história de Hegel reafirma a separação entre o acontecer e o acontecido, e indica a supremacia do pensamento sobre a ação, sedimentando o caminho para a cientificização da história. Conforme se pode entrever a partir da crítica de Nietzsche, Hegel concede ao historiador o objeto morto a espera de ser examinado; o acontecido pronto para ser dissecado.1 O ataque de Nietzsche ao hegelianismo direciona-se sobretudo contra essa cisão entre vida e conhecimento que a filosofia epigonal motiva. O autor detecta a “doença histórica” que seria um excesso de consciência histórica responsável por privar o homem da sua capacidade de viver, tornando-o um depósito de conhecimento inútil que perde contato com a realidade. Nesse sentido, também o passado ao se tornar objeto histórico não perderia sua realidade? A própria consciência histórica que permite o distanciamento científico do passado não limitaria a pretensão de alcançar a realidade do que aconteceu? Deve-se notar que é, ao ser erigida como problema filosófico, na modernidade, quando deixa de ser uma multiplicidade de histórias, para constituir-se como singular universal, que a História vê o caminho aberto para tornar-se ciência. A possibilidade de encontrar a verdade é transmitida às mãos do historiador. Entretanto, quando isso ocorre, o objeto do historiador não é mais o mesmo. De eventos particulares sobre os quais se poderia contar uma multiplicidade de histórias, passa-se a analisar toda situação singular em termos de um processo universal dotado de sentido próprio. Para explicar esse desenvolvimento da história e alcançar a verdade, o historiador precisa negar o caráter histórico da própria história. Suprime a contingência e a singularidade específica dos assuntos humanos, vislumbrando um processo causal, onde os acontecimentos manifestam-se de acordo com o sentido para o qual a história se direciona.2 1 NIETZSCHE, F. Da vantagem e desvantagem da história para a vida. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 284. “[Hegel] implantou nas gerações fermentadas por ele aquela admiração diante da ‘potência da história’que praticamente converte todos os instantes em admiração do sucedido e conduz `idolatria do factual.” 2 A relação entre a filosofia hegeliana e a cientifização da história não é tão simples. Os próprios historiadores, inclusive Ranke, o principal expoente do período, quiseram desvencilhar-se das concepções hegelianas, renegando a possibilidade de encontrar um sentido último para a história. O que se deve notar é que o modo retrospectivo de observação do passado parece estar ligado em ambos os casos à separação entre acontecer e acontecido, entre pensamento e ação, posto que se sustentam na emergência de uma consciência histórica. Ainda é possível observar que a valorização dos fatos por si mesmos só tem sentido porque sustenta-se na compreensão de que o “próprio conjunto das res gestae existe em si 2 I Seminário de História: Caminhos da Historiografia Brasileira Contemporânea Universidade Federal de Ouro Preto http://www.ichs.ufop.br/seminariodehistoria Muitos historiadores almejaram resolver o problema da consciência histórica. No início do século XX, com a influência das teorias sociológicas, pensou-se ser possível alcançar o tempo vivido através de uma mudança de objetos e de metodologia. Buscou-se investigar as mentalidades dos antepassados – crenças, festas, rituais, etc. – supondo que por intermédio da “longa duração” seriam contactados os sentimentos e, por conseguinte, a própria vida do passado. Chamou-se atenção para o caráter narrativo da escrita da história. Como se o reconhecimento da historicidade do historiador pudesse conceder a continuidade da vida entre passado e futuro. Essa foi a incisiva tentativa de Gadamer, que imaginou encontrar no círculo hermenêutico e na observação de que a história é história da linguagem a solução para a separação entre teoria e prática. No entanto, quando querem resguardar um lugar fora dos negócios humanos para que seja possível alcançar a verdade ou quando se entende que a teoria é mais uma força no eterno conflito de forças acaba sendo privilegiado ora o pensamento, ora a ação.3 A obra de Hannah Arendt é também atravessada pela distinção entre pensamento e ação. A própria divisão temática entre seus livros, onde observa ora as formas da condição humana (labor, fabricação e ação), ora as atividades do espírito (pensar, querer e julgar), indica a existência de uma separação. No entanto, não seria possível supor que a autora elabora uma teoria de dois mundos. Como se houvesse um mundo das aparências em que se desenrola a política, e um outro, referente às idéias mesmas. Pelo contrário, Arendt se insurge contra a tradição metafísica que pretende, com o enclausuramento da teoria, propor a orientação para as atividadespráticas. Seu empenho volta-se para mostrar os impedimentos gerados por esse tipo de encerramento do pensamento em sua torre de marfim da qual pode contemplar a verdade e dirigir os caminhos do mundo. A crítica recai sobre todos aqueles que tentaram encontrar uma direção para a ação a partir de justificativas exteriores a ela, como a idéia de Bem, de Verdade, ou de processo histórico. As objeções arendtianas incidem sobretudo contra o platonismo e a modernidade instrumental, esta última representada categoricamente pelo pensamento de Marx. Se no primeiro caso, a autora rejeita a concepção do rei- filósofo, que baseado no conhecimento tem o poder de reger a política, no segundo, não objetivamente(..) tem uma forma dada e uma estrutura definida que é diretamente acessível ao conhecimento(...)”. Cf. BOURDÉ, G. e MARTIN, H. As Escolas Históricas. Mira-Sintra: Europa- América.1983. 3 I Seminário de História: Caminhos da Historiografia Brasileira Contemporânea Universidade Federal de Ouro Preto http://www.ichs.ufop.br/seminariodehistoria aceita a possibilidade da história ser guiada por um fim previsível, como se fosse possível fabricá-la.4 A partir da quebra do fio autoritário que encadeia passado e futuro, que não é outra coisa senão uma ruptura com a tradição, a autora vislumbra a possibilidade de reencontrar e re-pensar “as falácias metafísicas” que sustentam a suposta desconexão. Essa oportunidade de percorrer livremente a infinitude de passado e futuro concede-lhe espaço para compreender a distância entre as atividades do espírito e a condição humana menos como um divórcio definitivo e mais como um afastamento provisório. Nesse sentido, o pensamento deixa de estar em um outro lugar além da terra, mantendo uma conexão inseparável com as coisas do mundo, apesar de seu afastamento momentâneo da realidade. Nota-se que a faculdade de julgar, conforme a autora a compreende em analogia ao juízo estético de Kant, é o que permite vislumbrar um delicado vínculo entre pensamento e ação, através do qual pretende, ao mesmo tempo, livrar o pensamento de qualquer função de comando sobre a ação, e garantir a dignidade de ambas as esferas. A delicadeza desse vínculo está no fato de que, diferentemente do fio autoritário que ligava passado e futuro, precisa ser infinitamente refeito. É interessante destacar que além de compreender a história fora da idéia tradicional de uma continuidade progressiva, Arendt lega ao historiador a tarefa profissional de refazer, através de suas narrativas, o enlace interminável entre o passado e o futuro. O juízo, dada sua capacidade de relacionar o universal e o particular, sem instaurar uma relação de submissão aparece como aquilo que preserva a incompletude do nexo entre pensamento e ação. Nesse sentido, a atividade de julgar não restaura qualquer subordinação entre essas esferas. Em lugar de um elo fixo entre passado e futuro, o juízo desponta como exercício contínuo, ao qual se deve recorrer em cada nova situação. Através da reflexividade infinita, o juízo encontra-se perto do pensamento, e é necessariamente precedido por ele, mas também se refere ao mundo das aparências no qual figura como espectador entre pares. A história aparece como aquela que faz o caminho entre o pensamento e a realidade, permitindo uma infindável reconciliação.5 3 GADAMER, H. Verdade e Método. Petrópolis; Vozes, 2002. 4 ARENDT, H. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1983.; e ARENDT, H. A Vida do Espírito. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000. 5 ARENDT, H. Lições de Filosofia Política em Kant. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993. 4 I Seminário de História: Caminhos da Historiografia Brasileira Contemporânea Universidade Federal de Ouro Preto http://www.ichs.ufop.br/seminariodehistoria A distinção elaborada por Arendt entre as experiências de isolamento, solidão e estar só revela a importância reivindicada para o senso comum, que em última instância é o que fundamenta a possibilidade do juízo. Essa concepção de senso comum remete a noção tomista de sexto sentido, segundo a qual há um sentido extra que propicia a unidade de todos os demais sentidos e assegura um senso de realidade. Para a autora, esse sexto sentido permite que a vida seja experimentada não apenas como um conjunto de sensações privadas, mas como um mundo compartilhado entre os homens. Sua tarefa é adequar sensações incomunicáveis à condição humana da pluralidade. Dessa forma, a perda do senso comum significa um afastamento do mundo das aparências – único mundo que existe conforme a perspectiva de Arendt. O isolamento caracteriza-se por um afastamento dos indivíduos da esfera pública na qual se relacionam como pares e é próprio das tiranias e dos regimes autoritários. Nessa condição, os homens vêem arruinada sua cidadania política, com a qual perdem sua capacidade de agir, embora conservem a dignidade da vida privada, onde ainda podem tomar decisões morais. A novidade implementada pelos totalitarismos é a experiência da solidão. Nessa situação, o isolamento não se refere apenas à vida pública dos indivíduos, mas subtrai também o espaço da esfera íntima, limitando a “capacidade humana de sentir e pensar tão seguramente como destrói a capacidade de agir.” Diferentemente do isolamento, a solidão abarca a totalidade da vida humana. O que ocorre no totalitarismo segundo a autora é o seguinte: os indivíduos encontram-se desprovidos das relações humanas que deviam garantir a permanência do mundo comum, e na completa solidão deixam de pensar e refletir sobre a realidade contentando-se em aplicar uma premissa ideológica para explicação da vida. A experiência da solidão, induzida pela devassa da vida pública e privada das pessoas, significa a própria perda do senso de realidade que só pode ser obtido quando há um espaço de comunicação entre os homens. Assim, a autora relaciona a perda do senso de realidade, que surge do desaparecimento da potencial comunicabilidade à incapacidade de pensar, cuja generalização propicia o sucesso do sistema totalitário. Solidão não é o mesmo que estar a sós. A opção por estar a sós não implica em solidão, pois revela a constituição dual do pensamento – o diálogo interno do eu consigo mesmo. Se, por um lado, é próprio da atividade do pensamento a retirada do mundo das aparências, a perda do senso comum e a improdutividade, por outro, nota-se que esse descolamento do mundo nunca é definitivo. Essa é justamente a diferença entre a solidão e o estar a sós. 5 I Seminário de História: Caminhos da Historiografia Brasileira Contemporânea Universidade Federal de Ouro Preto http://www.ichs.ufop.br/seminariodehistoria O pensamento retira-se voluntariamente do mundo das aparências e retorna tão logo o dois-em-um torne-se novamente um pela solicitação da realidade e da presença dos outros. No totalitarismo, a solidão é incutida nos homens pela supressão da esfera pública e privada e não há possibilidade de retornar voluntariamente ao mundo plural, porque ele não existe mais – o que há é um uníssono Um totalitário que funciona burocraticamente pela execução de regras e pelo raciocínio instrumentalizado. Tanto no isolamento, quanto na experiência da solidão e do estar a sós há uma determinada perda do senso comum e um distanciamento da realidade, no entanto, ao ausentar-se do mundo das aparências o pensamento é dotado de caráter volitivo. A retirada específica do pensar indica a diferença fundamental com relação à perda do mundo que promove a solidão: a existência de um mundo comum ao qual retornar. A exigência do vínculo entre pensamento e ação passa então pela existência desse risco que persegue o pensamento – a possibilidade dele caducar quando se afastadefinitivamente da realidade. O pensamento não deve se sustentar no isolamento completo, sob o risco de precipitar-se em solidão. Vide a semelhança entre Heidegger e Eichmann. Na ruptura totalitária, a autora percebe a atualidade da constatação de Tocqueville, segundo a qual “o passado não orienta mais o futuro e o homem vagueia na escuridão”, e empenha-se em mostrar como se pode pensar sem o fio autoritário que liga passado e futuro. Instalando-se nessa própria lacuna temporal. O pensamento enquanto pura atividade sempre foi, para Arendt, essa quebra da temporalidade, através da qual é possível colocar em questão os valores e preconceitos potencialmente dados, e considerar ininterruptamente uma mutiplicidade de opiniões sem alcançar qualquer verdade sobre as coisas. Se a tradição obscureceu a tarefa do pensamento ao enfatizar sua função de produzir conhecimento, obter conclusões e iluminar conceitos, colocando-a fora da realidade dos assuntos humanos, num outro mundo das essências, o totalitarismo revelou de modo trágico a urgência de retomar a competência específica da atividade de pensar. De algum modo, ao romper com todos os parâmetros de julgamento, o rigor totalitário colocou todo o mundo nessa lacuna, onde não há mais qualquer referência e é imprescindível cunhar juízos próprios. Talvez mais do nunca, o ausentar-se do mundo pelo pensamento esteve ligado à necessidade de tornar presente determinados juízos. Com isso, Arendt não quer propor o preenchimento dessa lacuna com qualquer coisa que substitua o elo autoritário da tradição. É nesse sentido que o laço do juízo entre 6 I Seminário de História: Caminhos da Historiografia Brasileira Contemporânea Universidade Federal de Ouro Preto http://www.ichs.ufop.br/seminariodehistoria pensamento e mundo nunca pode determinar o que é o certo ou o errado, mas apenas re- pensar infinitamente tal discernimento a cada nova situação. “Nessa lacuna entre o passado e o futuro, encontramos nosso lugar no tempo quando pensamos, isto é, quando estamos distantes o suficiente do passado e do futuro. Estamos aí em posição de descobrir o seu significado, de assumir o lugar do ‘árbitro’ das múltiplas e incessantes preocupações da existência humana no mundo, do juiz que nunca encontra uma solução definitiva para esses enigmas, mas respostas sempre novas à pergunta que está realmente em questão.”6 Com a novidade absolutamente original do totalitarismo, a lacuna própria do pensamento se apresenta à história da humanidade, demonstrando a impossibilidade de seguir os passos pensados pela tradição. Talvez seja possível supor que autora concebe o totalitarismo como a realização inédita daquela tomada de consciência histórica que a filosofia descobriu no século XVIII. Tomada de consciência, que diferentemente, do que supunha Hegel não precisaria aguardar o fim da história para cumprir-se na consciência humana. Arendt traz a consciência ao mundo e lhe restitui seu caráter plural ao perceber que o espectador nunca está separado definitivamente da realidade porque sempre observa entre pares – esse é seu lugar de imparcialidade. 6 ARENDT, H. Op Cit. 2000. (VE), p. 158. 7