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História do Brasil Colonial: Consolidação e Tensões Sociais Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Profª. Dra. Celia Maira Estrella Revisão Textual: Profª. Ms. Luciene Oliveira da Costa Santos As Rebeldias contra a Metrópole: Rupturas 5 • Primórdios do nacionalismo brasileiro • Pensamento ilustrado e nacionalismo • Movimentos separatistas • Considerações finais · Analisar o surgimento e os fundamentos do sentimento nacional no Brasil.- · Conhecer, apontando suas semelhanças e diferenças, os movimentos separatistas que antecedem a independência. Leia atentamente o conteúdo desta unidade. Ela trata dos movimentos separatistas do Brasil colonial e dos primórdios do um projeto de “nação brasileira”, levado a cabo décadas mais tarde com a independência. Você encontrará nesta unidade uma atividade composta por questões de múltipla escolha e terá a oportunidade de trocar conhecimentos e debater em nosso fórum de discussão os assuntos abordados. É extremamente recomendável que você consulte também a bibliografia da unidade e os materiais complementares. São valiosas fontes de informação que podem ajudá-lo a aprofundar seus conhecimentos sobre os temas em questão. As Rebeldias contra a Metrópole: Rupturas 6 Unidade: As Rebeldias contra a Metrópole: Rupturas Contextualização Antes de partir para o texto do material teórico, leia este poema de 1798 atribuído a Francisco Muniz Barreto, professor envolvido na chamada Inconfidência Baiana, um dos movimentos que analisaremos nesta unidade. Atente para o vocabulário, para a escolha das palavras, e para as ideias políticas presentes no poema. Elas dão pistas das mudanças culturais e políticas que impactaram o mundo inteiro no século XVIII e também dos conflitos sociais que fizeram os colonos brasileiros se levantarem contra o domínio de Portugal. Trataremos desses dois assuntos ao longo da aula. Igualdade, e liberdade, No Sacrário da razão, Ao lado da sã justiça Preenchem o meu coração. I Se a causa mortis dos entes Tem as mesmas sensaçoens Mesmos organos, e precizoens Dados a todos os viventes, Se a qualquer suficientes Meios da necessidade, Remir deo com equidade; Logo são imprescritíveis E de Deus Leys infallíveis Igualdade, e liberdade. II Se este dogma for seguido E de todos respeitado, Fará bemaventurado, Ao povo rude, e polido. E assim que florecido Tem da América a Nação! Assim fluctue o Pendão Dos Francezes, que a imitarão Depois que affoutos entrarão No Sacrário da razão. III Estes povos venturozos Levantando soltos os braços, Desfeitos em mil pedaços Feres grilhoens vergonhosos, Jurarão viver ditozos, Izentos da vil cobiça. Da impostura, e da preguiça Respeitando os Seos Direitos, Alegres e satisfeitos Ao lado da sã Justiça IV Quando os olhos dos Baianos Estes quadros divizarem, E longe de si lançarem Mil despóticos tiranos, Nas suas Terras serão! Oh doce commoção Experimentão estas venturas, Se ellas, bem que futuras Preenchem o meo coração. 7 Primórdios do nacionalismo brasileiro Nas unidades anteriores do curso, vimos alguns dos traços mais marcantes da sociedade colonial: modelo econômico exploratório, com os principais centros geradores de riqueza voltados para fora do país, isto é, para o mercado europeu; baixa densidade demográfica e distribuição desigual da população, com a formação de núcleos mais densos geralmente no litoral; pouca comunicação entre as várias regiões da colônia; mobilidade, busca incessante por novas chances de enriquecimento, o que dificultou a formação de laços duradouros de pertencimento ao território; e assim por diante. O Brasil foi durante muitas décadas um apêndice de Portugal nas Américas, uma zona dedicada ao abastecimento da metrópole e na qual se podia buscar oportunidades de negócios. Ademais, não existia a consciência de que as várias partes do território conformavam uma unidade. Habitantes de São Paulo, Rio Grande do Sul, Pernambuco, ou Pará não tinham motivos para imaginar que partilhavam uma identidade cultural. A experiência colonial foi fundamentalmente uma experiência regional. Nessas condições, entender a separação entre Portugal e Brasil passa necessariamente por entender quando e como a população da colônia – ou, pelo menos, parte dessa população – começou a se enxergar como dona de uma nacionalidade própria, isto é, como brasileiros. Esse processo histórico não pode ser datado com precisão. Genericamente, ele começa com setores da colônia formando interesses distintos dos de Portugal. Começa, portanto, de forma regional, baseado na diferença entre “nós” (os pernambucanos, os mineiros, os cariocas etc.) e “eles” (os reinóis), e não na semelhança entre brasileiros. No contexto da crise do sistema colonial, que examinamos na aula anterior, esse sentimento evoluiu de um simples antagonismo para a identificação dos lusitanos e da própria situação de dominação como fontes dos problemas da colônia. Além disso, essa tomada de consciência não foi concluída em 1822 com a independência. Veremos na próxima unidade que a emancipação política do Brasil foi conduzida por alguns grupos sociais específicos, de modo que a conformação de uma identidade nacional, com todas as suas características, só foi possível muito mais tarde – a depender do ponto de vista, apenas na época do segundo reinado, nos primórdios da república, ou na década de 1930. O fato é que setores e regiões periféricas do país só foram apresentados à ideia de “ser brasileiro” com décadas de atraso. Uma das evidências disso é a própria heterogeneidade das respostas que diferentes grupos sociais ofereceram à crise da colonização. A conformação dos projetos de independência, apesar de suas pretensões nacionais, foi sempre regional, calcada em diferentes identidades, valores, bagagens intelectuais – ou seja, em diferentes leituras da realidade histórica. Basta olhar para os processos de sedição elencados no fim desta unidade: mineiro, carioca, baiano, pernambucano, nunca verdadeiramente brasileiro. A respeito disso, o historiador Istvan Jancsó diz o seguinte: 8 Unidade: As Rebeldias contra a Metrópole: Rupturas Diálogo com o Autor “Para os homens que a viveram [a crise], independentemente das abrangências consideradas, a percepção do que representavam as mudanças em curso não se deu de modo uniforme, e dos diferentes entendimentos que delas tinham resultaram outros tantos projetos políticos, cada qual expondo, com maior ou menor nitidez, os contornos da comunidade humana cujo futuro político esboçavam.” (JANCSÓ, 2003, p.20). Portanto, a setorização tanto da tomada de consciência nacionalista quanto da luta por independência ajuda a explicar o descompasso na integração das várias regiões do Brasil ao projeto de nação surgido no século XVIII. De todo modo, o aparecimento de algum tipo de nacionalismo, mesmo que restrito e heterogêneo, foi com certeza uma das novidades do período colonial tardio. É preciso, portanto, compreender as raízes desse sentimento. O terreno para o seu surgimento foi preparado ao longo do próprio período colonial por movimentos históricos que traziam consigo o embrião de uma identidade nacional. O bandeirismo é um desses movimentos. As expedições paulistas alcançaram praticamente todos os cantos da América Portuguesa, um empreendimento extraordinário de expansão que naturalmente despertou certo orgulho regional e uma maior intimidade com o território. A posição de São Paulo na arquitetura do sistema colonial fornecia condições ideais para esse florescimento: região pouco integrada ao comércio mundial, desde cedo autônoma e interiorizada, cercada pela serra do mar e pela mata atlântica. Logo, é no caminho das bandeiras que vemos surgir uma das primeiras versões da consciência nativista. Outro desses movimentos é a expulsão dos holandeses do Nordeste no século XVII. Os pernambucanos uniram-se pela via da guerra: montaram uma frente de resistência na década de 1630, formaram espécies de guerrilhas após 1637nas chamadas “guerras brasílicas” e fizeram a grande Insurreição em 1645, que culminaria com a capitulação dos invasores dez anos depois. A noção de que seu território fora reconquistado a duras penas alimentou, nos moradores de Pernambuco, um forte orgulho regionalista. O nacionalismo nascente também foi alimentado por eventos do século XVIII que, acima de tudo, acirraram a oposição entre colonos e lusitanos, de modo que o fortalecimento da identificação nacional ou regional apareceu como efeito colateral. Vimos alguns desses eventos na unidade anterior. A Guerra dos Mascates, por exemplo, em que senhores de engenho de Olinda, fortemente marcados pela memória da expulsão dos holandeses, sentiram-se contrariados pelos comerciantes reinóis do Recife. A Guerra dos Emboabas também: a injustiça sentida pelos paulistas foi resultado das determinações da Coroa, que tentou sanar o conflito distribuindo o direito à exploração das minas também aos estrangeiros. Outro exemplo é a revolta de Filipe dos Santos, que opôs a população de Minas Gerais à instituição das Casas de Fundição pelo governo português. 9 Todos esses eventos ajudaram a formar, no plano das mentalidades, uma oposição entre habitantes da colônia e agentes colonizadores, embora, nessas primeiras formulações, o antagonista dos portugueses não seja ainda o “brasileiro”, mas sim o mineiro, o pernambucano, o paulista etc. Quando somado à consciência de que Portugal era cada vez mais um reino dependente das riquezas produzidas na colônia, ou seja, quando encaixado na conjuntura de crise do sistema colonial que examinamos na aula anterior, esse conjunto de fatores revela os antecedentes do desejo de autonomia em nosso país – em outras palavras, as pré-condições históricas responsáveis por fertilizar o terreno em que o sentimento nacional pôde florescer no século XVIII. Falta agora examinarmos a substância ideológica desse nacionalismo, isto é, as ideias e os valores que animaram o projeto de nação independente. Pensamento ilustrado e nacionalismo Já tratamos na última unidade do movimento iluminista e da sua penetração nos meios intelectuais brasileiros, contribuindo para o processo de desintegração das relações coloniais. Mas ainda não analisamos o ideário ligado especificamente ao tema da soberania nacional, tampouco a forma como esse ideário inspirou movimentos que, diferentemente daqueles que vimos até agora, lutavam, sim, pela emancipação do país. Falaremos disso agora. Em primeiro lugar, precisamos destacar o significado que o termo “nação” passou a carregar naquele período. A palavra é antiga, e sempre se referiu à ideia de origem, isto é, a um grupo de indivíduos nascidos numa mesma época ou lugar, ou que partilham a mesma “raça”, a mesma língua ou qualquer outro traço cultural. Desde a Idade Média, uma colônia de comerciantes estrangeiros, por exemplo, poderia ser chamada de nação: a “nação espanhola” da Antuérpia, a “nação francesa” em Cádis, e assim por diante. O termo também carregava um sentido geográfico, associado à ideia de pátria, a terra onde se nasceu, mas esse significado ainda englobava a “pequena pátria”, ou seja, uma cidade ou região. Na maior parte das vezes, os homens daquele tempo cultivavam laços de pertencimento muito mais profundos com suas pequenas comunidades de origem do que com um território abstrato e desconhecido como o reino inteiro. No mundo colonial brasileiro, pelos vários motivos já mencionados, isso era ainda mais marcante. No século XVIII, na esteira do pensamento ilustrado, o conceito ganha seu sentido moderno. Essa nova nação, aquela de que falam as lideranças dos movimentos independentistas brasileiros, é marcada basicamente por três características: identificação entre o povo e a sua “grande pátria” de origem (a França, a Espanha, o Brasil etc.), uma identificação que deveria sobrepor quaisquer regionalismos – a nação moderna ideal é o Estado-nação. Em segundo lugar, a importância da unidade linguística e cultural de seus membros. Não por um acaso, o processo de conformação das nações modernas, incluindo o Brasil, englobou sempre a construção de um repertório cultural comum – pela invenção de mitos e heróis nacionais, por exemplo – e de implementação de uma língua oficial, sobreposta aos vários dialetos regionais. 10 Unidade: As Rebeldias contra a Metrópole: Rupturas Por fim, a terceira e principal característica do conceito moderno de nação é o de ser eminentemente político. A nação não se forma apenas porque seus membros compartilham um território, uma língua e uma cultura, mas também porque estão unidos socialmente por meio de uma espécie de contrato. A coesão da nação não se daria mais em torno do direito hereditário do rei sobre seu território e da submissão dos súditos – bases do Estado Absolutista – mas em torno de um conjunto de leis socialmente pactuadas e vigentes em qualquer região do território nacional. Isso em parte pode ser explicado porque, na virada do século XVIII para o XIX, várias nações da Europa assistem ao surgimento de movimentos republicanos vitoriosos ou, como foi o caso, por exemplo, em Portugal, Espanha e Brasil, da exigência de que os reis jurem obediência a uma Constituição. Essa nova forma de organização política nacional, fortemente inspirada nos ideais do Iluminismo, teve vários desdobramentos. A desigualdade natural entre os homens e grupos sociais, presente na sociedade do Antigo Regime, deu lugar à igualdade jurídica, em concordância com preceitos racionais de organização da vida social. Caem, portanto, os estamentos privilegiados e os direitos políticos exclusivos da nobreza, em detrimento da ideia de que todos os indivíduos são cidadãos. A soberania nesse novo tipo de nação também é profundamente alterada. No Antigo Regime, ela repousava sobre o rei, e sua legitimidade vem do berço, do direito herdado. No Estado-nação moderno, a soberania e a legitimidade de um governante emanam da própria nação, isto é, do conjunto dos cidadãos. Cabe à classe política, portanto, equacionar os problemas do país com base na Razão, de modo a gerar o máximo de bem-estar geral. Não cumprindo com esse dever, é legítimo ao povo tirá-la do cargo. A noção de que o poder de um governante pode ser revogado pela vontade popular é, portanto, outra invenção política moderna. Esse novo conceito de soberania, agora com inspiração iluminista, serviu de combustível teórico ao questionamento da situação colonial e da própria legitimidade do controle português sobre o território brasileiro. É claro que o Estado-nação não nasceu pronto no século XVIII. Esse tipo de organização social, cujo primeiro modelo (de vários possíveis) veio da Revolução Francesa, foi construído ao longo de pelo menos um século e meio, atingindo seu apogeu por volta de 1870. Além disso, foi um processo de diferentes temporalidades, de modo que países como a Itália e a Alemanha modernas só nasceriam no fim do século XIX. Mas é exatamente nesse ambiente cultural de elaboração do nacionalismo moderno que está encaixada a crise do sistema colonial e a conformação do desejo por independência. Todos os principais traços do nacionalismo moderno – unificação da pátria e destruição do regionalismo, uniformização da língua, constitucionalismo, direito à autodeterminação, soberania nacional – estão presentes no sonho independentista brasileiro. É esse conceito de nação que têm em mente as lideranças dos movimentos separatistas que começam a eclodir no fim do século XVIII, os quais passaremos a analisar agora. 11 Movimentos separatistas Comecemos com o caso da Inconfidência Mineira. Duas das suas principais causas foram a importação das ideias políticas do Iluminismo e a notícia da Revolução Americana de 1776. Como os envolvidos no movimento foram levados a julgamento e sentenciados, temos acesso aos autos do processo aberto pela justiça portuguesa, nos quais aprendemos que os inconfidentes estavam familiarizados com os escritos de JohnLocke, Jean-Jacques Rousseau, Voltaire e demais pensadores subversivos, além de terem adotado a emancipação norte-americana como principal modelo de luta política anticolonial. Sabemos também que um dos conspiradores, José Joaquim da Maia, manteve contato em 1786 com o então embaixador Thomas Jefferson, principal autor da declaração de independência dos Estados Unidos e futuro presidente do país. Essas ideias encontraram terreno fértil em Minas Gerais por uma série de motivos internos. No plano político, pesou a má administração do governador Luís da Cunha Meneses (1783- 1788). No plano econômico, Minas Gerais estava há décadas em franco declínio, e a crise do ouro só fez apertar o controle português. Em meio a esse quadro, chegou a notícia da derrama, isto é, da execução à força, inclusive por meio do saque, dos impostos atrasados. A Coroa havia determinado que a província pagasse cem arroubas de ouro como imposto anual, mas, com o esgotamento das jazidas, esse valor não era atingido há duas décadas. Na época da Inconfidência, a dívida acumulada chegava a quase 600 arroubas. Outro elemento decisivo para explicar a Inconfidência tem a ver com a formação social particular da região. A renda da elite local vinha da mineração, mas também de engenhos produtores de açúcar e aguardente (este último principalmente para o mercado interno), da pecuária, do cultivo de milho e feijão. Diferentemente do que o ocorria, por exemplo, no nordeste do país, sua riqueza não dependia tão fortemente das exportações. Em fins do século XVIII, boa parte da economia mineira estava, portanto, fora da alçada do pacto colonial, o que explica a relativa autonomia da sua elite em relação a Portugal e também o porquê de o antagonismo entre colonos e portugueses tornar-se mais expressivo naquela província. Por último, é preciso lembrar que a Inconfidência foi protagonizada por membros das classes mais abastadas. Com algumas poucas exceções, incluindo o próprio Tiradentes (um militar da patente mais baixa – alferes – e dentista nas horas vagas), eram todos fazendeiros, mineradores, oficiais de alta patente, advogados, magistrados. Figuras de prestígio, invariavelmente prejudicadas pelo desastre das políticas coloniais. Portanto, na formação da conspiração concorreram também interesses pessoais. Na prática, a Inconfidência se resumiu a alguns poucos encontros, nos quais se discutiram falhas e injustiças da administração colonial e os planos para separar Brasil e Portugal. Os conspiradores dividiam-se basicamente em três grupos: homens de ação, como Tiradentes, responsáveis pela costura de alianças políticas e pela conquista de apoio; intelectuais, ideólogos do movimento; e homens de recursos, responsáveis por financiar o levante e que naturalmente teriam muito a ganhar com a sua vitória. 12 Unidade: As Rebeldias contra a Metrópole: Rupturas Não sabemos ao certo qual era o projeto de país dos inconfidentes, mas algumas medidas foram cogitadas, conseguindo maior ou menor adesão: fundação de uma universidade em Minas, extinção do exército regular e armamento da população civil (que deveria servir na milícia nacional quando convocada), incentivo à manufatura, perdão das dívidas contraídas por Minas Gerais junto à Coroa e até a libertação dos escravos. Discutia-se também se o Estado brasileiro após a independência deveria ser uma monarquia ou uma república. A conspiração foi traída por três de seus membros. A Inconfidência acabou com a prisão dos envolvidos, exílios temporários ou permanentes na África e a morte espetaculosa de Tiradentes, que após o terceiro interrogatório (de onze) assumiu todas as culpas. O aparente fracasso do movimento deve ser relativizado por dois motivos. Em primeiro lugar, ele causou temor na administração colonial, o que aumentaria ainda mais com a vitória da Revolução Francesa em 1789 e sua radicalização pós-1792, culminando com a decapitação do rei Luís XVI e de Maria Antonieta. Por esse ponto de vista, a Inconfidência de certo modo vingou sua derrota prematura despertando a paranoia da Coroa portuguesa, o que seria mais um dos muitos sintomas da desintegração do sistema colonial. O segundo motivo é assinalado pelo brasilianista Kenneth Maxwell, autor de um dos mais importantes estudos sobre a história da Inconfidência Mineira: Diálogo com o Autor “Pelo meio da década de 1790, tornou-se claro para muitos que, dentro e fora do governo português, as relações entre colônia e metrópole haviam chegado a um impasse. A Inconfidência Mineira fora um miserável e ignominioso desastre, mas também o tinha sido a política de Portugal para as colônias. Ambas tinham sido tentativas de racionalizar as relações alteradas entre colônia e metrópole. E na formulação tinham sido, ambas, profundamente influenciadas pelas coações econômica e social locais. E ambas resultaram abortivas: a revolta nacionalista e o neomercantilismo [isto é, as reformas pombalinas] tinham provado sua ineficiência, passando a ser considerados como fracassos”. (MAXWELL, 2005, p.310). Em outras palavras, a Inconfidência fracassou, mas com isso ajudou a desmascarar um fracasso ainda maior, que é o da própria política colonial. O clima de paranoia despertado pelos eventos em Minas Gerais levou à revelação de mais uma conjura: a Carioca. Seguindo as várias recomendações da Coroa para que se investigassem, no pós-Inconfidência Mineira, a penetração das temidas “ideias francesas” no país, o conde de Resende, então Vice-Rei do Brasil (1790-1801), investiu contra a Sociedade Literária do Rio de Janeiro, onde, segundo ele, estava o embrião de uma nova conspiração. Uma denúncia, não se sabe se fabricada, serviu de pretexto para o fechamento da instituição em 1794 e a prisão de seus membros mais proeminentes. 13 As suspeitas do Vice-Rei revelaram-se em parte verdadeiras. Os encontros da Sociedade Literária expressavam um descontentamento profundo com a situação colonial (assim como ocorria, aliás, em muitos outros círculos sociais) e, à revelia do seu estatuto, que só permitia discussões de cunho literário ou científico, lá se debatiam as novas ideias políticas europeias. Mas diferentemente do caso mineiro, não havia quaquer articulação política revolucionária ou plano concreto de insurreição. A reação do governo também foi diferente no caso da Conjuração Carioca. Os réus ficaram presos durante todo o processo, só finalizado em 1797, mas não houve condenações e o episódio foi mantido sob relativo sigilo. Portugal agiu com cautela por dois motivos: em primeiro lugar, porque o caso era de fato muito menos grave que o de Minas Gerais; em segundo, para não alimentar a imagem perigosa de que o Brasil estava tomado de norte a sul por conspirações e levantes anticoloniais. Em 1798, ocorreu outra Inconfidência, dessa vez em Salvador. Diferentemente das anteriores, ela envolveu as camadas mais pobres da população, incluindo alguns escravos, a ponto de o escritor Affonso Ruy nomear seu livro de 1942 como “A primeira revolução social brasileira”. Esse rótulo, apesar de exagerado, aponta para o traço distintivo da Conjuração Baiana: pela primeira vez um movimento independentista incorporava bandeiras de cunho social. O historiador Istvan Jancsó, autor do maior clássico da nossa historiografia sobre o episódio, também assinala essa peculiaridade: Diálogo com o Autor “Não se tratou mais, aí, de buscar o reordenamento das condições operativas da gestão da coisa pública visando a restauração de uma ordem perdida (referência geral dos eventos de Minas Gerais no final da década anterior), mas do ensaio consciente de instaurar uma nova ordem”. (JANCSÓ, 1996, p.204). Participaram do movimento negros livres, mulatos, escravos, soldados, artesãos e alfaiates – cujo protagonismo, aliás, renderia à conjura o apelido de “Revolta dos Alfaiates”. Suas reivindicações incluíam a proclamação da República, o fim da escravidão, aumento do salário dos militares e o livre-comércio.Suas ideias políticas derivavam mais da corrente democrática – filha do jacobinismo e, portanto, mais radical – do que do liberalismo burguês, estritamente econômico. Em outras palavras, enquanto todos os movimentos predecessores se apoiaram sobre o ideal da liberdade, a Conjura Baiana foi pioneira em introduzir o problema da igualdade no debate público. A conspiração ocorreu num quadro de crise econômica e escassez de alimentos. Salvador assistiu a uma série de rebeliões em fins do século XVIII, especialmente entre os anos de 1797 e 1798, quando a fome levou a população a organizar motins e saques. Podemos dividir o episódio em dois momentos. De 1793 até 1797, um grupo de bacharéis, militares, sacerdotes e outros notáveis reuniu-se possivelmente em uma loja maçônica para discutir temas de interesse político, dentre eles a Revolução Francesa. Avertidos pelo governador, eles encerraram suas atividades, temendo represálias e perseguições. 14 Unidade: As Rebeldias contra a Metrópole: Rupturas Um segundo círculo, este sim de origem popular, entrou em cena. Influenciados pelos ideólogos do primeiro grupo, eles continuaram com as reuniões e passaram a discutir medidas concretas para derrubar o governo colonial, a ponto de marcarem uma data para o primeiro levante: 28 de agosto de 1798. A conclamação foi feita em panfletos colados pelas ruas da capital baiana no dia 12 daquele mês. Assim como as inconfidências mineira e carioca, a conjura em Salvador foi desmantelada antes de conseguir qualquer vitória política concreta. Algumas das punições foram duras, o que se explica pela origem social dos conspiradores. A elite colonial era assombrada pela revolução escrava no Haiti, que só terminaria no começo do século XIX, e pelo aumento no número de motins negros em Salvador. Nessas circunstâncias, e tratando-se de uma província cuja população era 80% negra ou mestiça, uma tentativa de levante popular não poderia ser tolerada. Por fim, é preciso avançar alguns anos para tratar da Revolução Pernambucana de 1817. Ela eclodiu cercada por circunstâncias bem diferentes. Em primeiro lugar, porque várias colônias da América Espanhola já haviam conseguido sua independência, fornecendo novos modelos de lutas separatistas bem-sucedidas. Em segundo lugar, porque a Corte portuguesa desde 1808 estava instalada no Rio de Janeiro. Veremos isso com mais atenção na próxima unidade, mas é importante assinalar aqui duas consequências imediatas dessa situação: o aumento do gasto público necessário para sustentar as despezas da nobreza lusitana, o que se traduziu em aumento de impostos; e o problema da desigualdade regional, com o nordeste sentindo-se privado de qualquer investimento público em detrimento do Rio de Janeiro. Além disso, Pernambuco tem uma história bastante particular, e não se pode refletir sobre a Revolução sem levar em conta a herança da expulsão dos holandeses no século XVII. O historiador Evaldo Cabral de Mello, autor de um dos principais livros sobre o levante de 1817, explica essa questão: Diálogo com o Autor “[...] tampouco se pode entender a Independência da província [de Pernambuco] sem referência à tradição colonial, que, graças à experiência da guerra holandesa, gerara uma noção contratualista das relações entre a capitania e a Coroa portuguesa. Enquanto entre El Rei e os demais colonos prevaleceria uma sujeição natural, os pernambucanos manteriam com a monarquia um vínculo consensual, ao se haverem libertado dos Países Baixos mercê de uma guerra travada por seus próprios meios, havendo assim retornado à suserania lusitana de livre e espontânea vontade quando poderiam ter instituído governo próprio ou recorrido à proteção de uma potência europeia”. (MELLO, 2004, p.20-21). 15 Por isso, os pernambucanos esperavam contar com certas restrições à influência de Portugal na sua província, como, por exemplo, a proibição de novos impostos e a prerrogativa de nomear ocupantes de cargos públicos locais. No contexto da falência das relações coloniais, a Coroa violou todos esses acordos. A conspiração envolveu várias camadas da população: proprietários rurais, artesãos e comerciantes, militares, juízes e muitos membros do clero. O governador de Pernambuco, ciente dos planos para a revolução, mandou prender seus líderes. Um deles, o capitão José de Barros Lima, matou o oficial português que tentou capturá-lo e antecipou, assim, o início da revolta. Ela se espalhou rapidamente, culminando com a fuga do governador e a instauração de um novo governo na província. Diferentemente dos seus antecessores em Minas, Rio de Janeiro e Bahia, o levante em Pernambuco foi bem sucedido. A Revolução proclamou a república e se espalhou para Alagoas, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, transformando-se numa espécie de levante geral nordestino. A nova administração estabeleceu tolerância religiosa e igualdade perante a lei, embora não tenha tocado no tema da escravidão. Como sempre, os interesses dos vários grupos envolvidos no movimento não eram homogêneos. Os mais pobres estavam preocupados especialmente com o problema da igualdade – no que foram, aliás, combatidos. Os grandes proprietários rurais, que sofriam com a queda do preço do açúcar e com as dificuldades crescentes para a compra de escravos, queriam acabar com o controle da Coroa sobre seus negócios, sem qualquer preocupação de cunho social. O governo revolucionário durou dois meses. O Recife ficou cercado por mar e por terra e a revolta acabou em maio de 1817 com doze de seus líderes executados. Considerações finais Nesta unidade, terminamos de esmiuçar o quadro-geral de crise do modelo colonial de dominação. Procuramos, na unidade anterior, expor os aspectos nacionais e internacionais, estruturais e episódicos, da crise, incluindo aí os movimentos sociais dos séculos XVII e XVIII que enfraqueceram o domínio português. Nesta, procuramos, por um lado, recuperar os antecedentes históricos (concretos) e teóricos do projeto nacional brasileiro e, por outro, enumerar os levantes separatistas que prepararam caminho para a independência. Portanto, temos agora subsídios suficientes para compreender, na próxima unidade, o processo de independência do Brasil. 16 Unidade: As Rebeldias contra a Metrópole: Rupturas Material Complementar Livros: A respeito do surgimento do nacionalismo no Brasil, recomendamos a leitura deste ensaio do Prof. Carlos Lessa. O texto engloba toda a história brasileira, permitindo observar continuidades e, mais importante ainda, perceber as limitações e lacunas no jovem projeto nacional brasileiro do século XVIII: LESSA, Carlos. Nação e nacionalismo a partir da experiência brasileira. Revista Estudos Avançados. Instituto de Estudos Avançados da USP, São Paulo, v.22, n.62, 2008, p.237-256. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/eav/article/viewFile/10331/12005 Com relação aos movimentos separatistas, algumas das melhores referências já estão citadas na bibliografia desta unidade. Mas recomendamos também a leitura destes dois artigos sobre casos específicos – a Inconfidência Mineira e a Revolução Pernambucana de 1817. Os textos atualizam algumas das análises clássicas sobre os levantes e permitem o comparativo. MAXWELL, Kenneth. Conjuração mineira: novos aspectos. Revista Estudos Avançados. Instituto de Estudos Avançados da USP, São Paulo, v.03, n.06, mai/ago 1989, p.04-24. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141989000200002 VILLALTA, Luiz Carlos. Pernambuco, 1817, ‘encruzilhada de desencontros’ do Império luso-brasileiro: notas sobre as ideias de pátria, país e nação. Revista USP. São Paulo, n.58, jun/ago 2003, p. 58-91. Disponível em: http://www.usp.br/revistausp/58/04-luizcarlos.pdf 17 Referências FAUSTO, Boris. História do Brasil. 13ª ed. São Paulo: Edusp, 2009. JANCSÓ, István (org.). Brasil: formação do Estado e da nação. São Paulo: Hucitec; Ed. Unijuí; Fapesp, 2003. (Estudos Históricos, 50). __________________.Na Bahia contra o Império: História do Ensaio de Sedição de 1798. São Paulo: Hucitec/ Salvador: EDUFBA, 1996. MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa. A Inconfidência Mineira, Brasil e Portugal, 1750-1808. São Paulo: Paz e Terra, 2005. MELLO, Evaldo Cabral de. A outra Independência. O federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: Editora 34, 2004. 18 Unidade: As Rebeldias contra a Metrópole: Rupturas Anotações
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