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A Criada - Freida McFadden

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Prévia do material em texto

FREIDA McFADDEN
A CRIADA
Tradução de
Carla Ribeiro
info@almadoslivros.pt
www.almadoslivros.pt
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tiktok.com/@almadoslivros
twitter.com/almados_livros
linkedin.com/company/alma-dos-livros/
© 2023 Direitos desta edição reservados
para Alma dos Livros
Copyright © Freida McFadden, 2022
Primeiramente publicado na Grã-Bretanha em 2022 por Story�re Ltd, comercializado como Bookouture.
Título: A Criada
Título original: The Housemaid
Autora: Freida McFadden
Tradução: Carla Ribeiro
Revisão: André Carvalho
Paginação: Maria João Gomes
Design de capa: Lisa Horton
Arranjo de capa: Diana Jorge Trigo/Alma dos Livros
Imagens de capa: Shutterstock
Impressão e acabamento: Ca�lesa – Soluções Grá�cas
Depósito legal: 515054/23
1.ª edição: junho de 2023
Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada
ou reproduzida em qualquer forma sem permissão
por escrito do proprietário legal, salvo as exceções
devidamente previstas na lei.
Este livro é uma obra de �cção.
Nomes, personagens, empresas, organizações, lugares e acontecimentos
são produto da imaginação do autor ou usados �cticiamente.
Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas,
acontecimentos ou locais é mera coincidência.
S
Prólogo
e sair desta casa, será algemada.
Devia ter fugido enquanto podia. Agora, a minha oportunidade
desapareceu. Neste momento, os polícias estão na casa e descobriram o
que está no andar de cima, não há volta atrás.
Estão a cerca de cinco segundos de me ler os meus direitos. Não sei muito
bem por que não o �zeram ainda. Talvez esperem induzir-me a dizer-lhes algo
que não devia.
Boa sorte com isso.
O polícia com o cabelo preto raiado de grisalho está sentado ao meu lado no
sofá. Muda a posição do seu corpo entroncado sobre o cabedal italiano cor de
caramelo queimado. Pergunto-me que tipo de sofá terá em sua casa. Não um,
certamente, com um preço de cinco dígitos como este. Provavelmente será de
uma cor foleira como laranja, coberto de pelo de animais de estimação e com
mais do que um rasgão nas costuras. Pergunto-me se estará a pensar no sofá em
sua casa e a desejar ter um como este.
Ou, mais provavelmente, está a pensar no cadáver no sótão.
– Vamos recapitular isto mais uma vez, então – diz o polícia, no seu sotaque
de Nova Iorque. Disse-me há pouco o seu nome, mas voou-me da cabeça. Os
polícias deviam usar crachás vermelho-vivo. De que outra forma havemos,
possivelmente, de recordar os seus nomes numa situação de stress elevado? É um
detetive, acho eu. – Quando encontrou o cadáver?
Hesito, perguntando-me se esta seria a altura certa para exigir um advogado.
Não é suposto disponibilizarem-me um? Estou enferrujada quanto a este
protocolo.
– Há cerca de uma hora – respondo.
– Por que foi lá acima em primeiro lugar?
Aperto os lábios.
– Já lhe disse. Ouvi um som.
– E…?
O agente inclina-se para a frente, de olhos arregalados. A sombra áspera de
uma barba cobre-lhe o queixo, como se tivesse esquecido de se barbear esta
manhã. A sua língua projeta-se ligeiramente de entre os lábios. Não sou
estúpida – sei exatamente o que quer que eu diga.
Fui eu. Sou culpada. Levem-me.
Em vez disso, recosto-me no sofá.
– É tudo. É só isso que eu sei.
A desilusão inunda o rosto do detetive. Move o maxilar enquanto pensa nas
provas encontradas até ao momento nesta casa. Pergunta-se se já tem o
su�ciente para me pôr as algemas nos pulsos. Não tem a certeza. Se tivesse, já o
teria feito.
– Ei, Connors!
É a voz de outro agente. Quebramos o contacto visual e eu olho para o cimo
das escadas. O outro polícia, muito mais novo, está lá plantado, os longos dedos
agarrados ao topo do corrimão. O seu rosto liso está pálido.
– Connors – diz o agente mais novo. – Tem de vir cá acima. Já. Tem de ver o
que há aqui em cima – mesmo do fundo das escadas, consigo ver o oscilar da
sua maçã-de-adão. – Não vai acreditar.
PRIMEIRA PARTE
TRÊS MESES ANTES
F
1
MILLIE
–ale-me sobre si, Millie.
Nina Winchester inclina-se para a frente no seu sofá de cabedal cor de
caramelo, as pernas cruzadas para revelar apenas o mais ligeiro vislumbre
dos seus joelhos a espreitar da sua sedosa saia branca. Não percebo muito de
marcas, mas é óbvio que tudo o que Nina Winchester tem vestido é
dolorosamente caro. A sua blusa creme faz-me desejar estender a mão para
sentir o tecido, ainda que um ato desses signi�casse não ter qualquer hipótese
de ser contratada.
Para dizer a verdade, não tenho hipóteses de ser contratada seja como for.
– Bem… – começo, escolhendo cuidadosamente as palavras. Mesmo após
todas as rejeições, continuo a tentar. – Cresci em Brooklyn. Tive muitos
trabalhos a fazer tarefas domésticas para as pessoas, como pode ver pelo meu
currículo – o meu cuidadosamente adulterado currículo. – E adoro crianças. E
também… – olho em redor da sala, à procura de um brinquedo de roer de um
cão ou de uma caixa de areia de um gato. – Também adoro animais?
O anúncio online para o lugar de empregada doméstica não referia animais de
estimação. Mas mais vale jogar pelo seguro. Quem não aprecia uma amante de
animais?
– Brooklyn! – a Sra. Winchester sorri – Eu também cresci em Brooklyn.
Somos praticamente vizinhas!
– Sim! – con�rmo, ainda que nada pudesse andar mais longe da verdade. Há
muitos bairros cobiçados em Brooklyn onde uma vivenda minúscula custa um
braço e uma perna. Não foi aí que eu cresci. Nina Winchester e eu não
poderíamos ser mais diferentes, mas se ela quer acreditar que somos vizinhas,
então tenho todo o gosto em alinhar.
A Sra. Winchester en�a uma madeixa de brilhante cabelo louro-acastanhado
atrás da orelha. Os seus cabelos chegam-lhe à altura do maxilar, num corte
moderno que disfarça o seu duplo queixo. Tem trinta e muitos anos e, com um
penteado diferente e outras roupas, teria um aspeto muito banal. Mas utilizou a
sua considerável fortuna para tirar o máximo partido do que tem. Não posso
dizer que não respeite isso.
Eu segui o sentido exatamente oposto com a minha aparência. Posso ser mais
de dez anos mais nova do que a mulher sentada à minha frente, mas não quero
que se sinta de todo ameaçada por mim. Assim, para a minha entrevista, escolhi
uma longa e grossa saia de lã que comprei na loja de artigos em segunda mão e
uma blusa branca de poliéster com mangas em balão. O meu cabelo louro-
escuro está apanhado num coque severo atrás da cabeça. Comprei, até, um par
de desnecessários e demasiado grandes óculos de tartaruga, que tenho
empoleirados na ponta do nariz. Pareço pro�ssional e absolutamente nada
atraente.
– Quanto ao trabalho – diz –, será sobretudo limpar e cozinhar algumas
refeições ligeiras, se for capaz. É boa cozinheira, Millie?
– Sou, sim – o meu à-vontade na cozinha é a única coisa no meu currículo que
não é mentira. – Sou uma excelente cozinheira.
Os seus claros olhos azuis iluminam-se.
– Isso é maravilhoso! Sinceramente, quase nunca fazemos uma boa refeição
caseira – solta uma risadinha. – Quem tem tempo para isso?
Reprimo qualquer tipo de resposta crítica. Nina Winchester não trabalha, só
tem uma �lha, que está o dia inteiro na escola, e vai contratar alguém para fazer
todas as suas limpezas por ela. Até vi um homem no enorme pátio da frente a
fazer a sua jardinagem por ela. Como é possível que não tenha tempo para
preparar uma refeição à sua pequena família?
Não devia julgá-la. Não sei nada sobre a sua vida. Só porque é rica, não quer
dizer que seja mimada.
Mas se tivesse de apostar cem dólares numa das opções, apostaria que Nina
Winchester foi estragada com mimos.
– E vamos também precisar de ajuda ocasional com a Cecelia – diz a Sra.
Winchester. – Talvez levá-la às aulas da tarde ou aos seus encontros com as
amigas. Tem carro, não tem?
A pergunta quase me dá vontade de rir. Sim, tenho carro – é tudo o que tenho
neste momento. O meu Nissan de dez anos está a empestar a rua em frente à sua
casa e é onde atualmente vivo. Tudo o que possuo está na mala desse carro.
Passei o último mês a dormirno banco de trás.
Ao �m de um mês a viver num carro, damo-nos conta da importância de
algumas das pequenas coisas da vida. Uma sanita. Um lavatório. Poder esticar
as pernas enquanto dormimos. É dessa última que mais sinto a falta.
– Sim, tenho carro – con�rmo.
– Excelente! – a Sra. Winchester bate palmas. – Fornecer-lhe-ei uma cadeira
de automóvel para a Cecelia, claro. Só precisa de um assento. Ainda não tem
bem a altura e o peso certos para passar sem ele. A Academia de Pediatria
recomenda…
Enquanto Nina Winchester fala monotonamente sobre os requisitos exatos de
altura e peso para as cadeiras de automóveis, eu tiro um momento para observar
a sala de estar. A mobília é toda ultramoderna, com a maior televisão de ecrã
plano que eu já vi, certamente de alta de�nição e com colunas de som surround
incorporadas em todos os cantos da sala para uma experiência ideal de escuta.
Num dos cantos está o que parece ser uma lareira funcional, com a cornija
coberta de fotogra�as dos Winchester em viagens a todos os cantos do mundo.
Quando ergo o olhar, o teto absurdamente alto brilha sob a luz de um
resplandecente candelabro.
– Não lhe parece, Millie? – diz a Sra. Winchester.
Pisco-lhe os olhos. Tento puxar a memória atrás e perceber o que acabou de
me perguntar. Mas desapareceu.
– Sim? – respondo.
Seja o que for que acabei de concordar deixou-a muito feliz.
– Fico tão satisfeita por também pensar assim.
– Sem dúvida – digo, desta vez de forma mais �rme.
Ela descruza e volta a cruzar as suas pernas algo entroncadas.
– E, claro – acrescenta –, há a questão da sua remuneração. Viu a oferta no
meu anúncio, certo? É aceitável para si?
Engulo em seco. O número no anúncio é mais do que aceitável. Se eu fosse
uma personagem de desenhos animados, ter-me-iam aparecido cifrões em
ambos os globos oculares ao ler aquele anúncio. Mas o dinheiro quase me
impediu de me candidatar ao emprego. Ninguém a oferecer assim tanto
dinheiro, a viver numa casa destas, alguma vez pensaria em contratar-me.
– Sim – consigo responder. – Está ótimo.
Ela arqueia uma sobrancelha.
– E sabe que é um trabalho em regime interno, certo?
Estará a perguntar-me se não me importo de deixar o esplendor do banco de
trás do meu Nissan?
– Certo. Eu sei.
– Fabuloso! – puxando a bainha da saia, levanta-se. – Gostaria de fazer uma
visita guiada, então? Para ver no que se está a meter?
Levanto-me também. Com os seus saltos altos, a Sra. Winchester ultrapassa-
me nos meus sapatos rasos em apenas alguns centímetros, mas parece muito
mais alta.
– Parece-me ótimo!
Guia-me pela casa com meticuloso pormenor, ao ponto de me fazer recear ter
entendido mal o anúncio e que talvez ela seja uma agente imobiliária a pensar
que eu estou pronta para a comprar. É realmente uma bela casa. Se tivesse quatro
ou cinco milhões de dólares a abrir-me um buraco no bolso, agarrá-la-ia. Além
do piso térreo, com a gigantesca sala de estar e a recém-remodelada cozinha, o
primeiro andar da casa inclui o quarto principal dos Winchester, o quarto da
�lha de ambos, Cecelia, o escritório doméstico do Sr. Winchester e um quarto
de hóspedes que bem podia ter saído do melhor hotel de Manhattan. Ela para
dramaticamente diante da porta seguinte.
– E aqui… – anuncia, escancarando a porta. – É o nosso cinema em casa!
É um verdadeiro cinema mesmo dentro de casa – além da enorme televisão no
andar de baixo. Esta sala tem várias �las de cadeiras em an�teatro, voltadas para
um monitor do chão ao teto. Há, até, uma máquina para fazer pipocas a um
canto do espaço.
Ao �m de um momento, percebo que a Sra. Winchester está a olhar para
mim, à espera de uma reação.
– Uau! – digo, com o que espero tenha sido o entusiasmo adequado.
– Não é maravilhoso? – ela estremece de prazer. – E temos todo um acervo de
�lmes de onde escolher. Claro que também temos todos os canais habituais,
bem como serviços de streaming.
– Claro – respondo.
Depois de sairmos da sala, chegamos a uma última porta ao fundo do
corredor. Nina hesita, a mão a demorar-se no puxador.
– Seria este o meu quarto? – pergunto.
– Mais ou menos… – roda o puxador, que range ruidosamente. Não posso
deixar de reparar que a madeira desta porta é muito mais grossa do que a de
qualquer das outras. Atrás do umbral, está uma escadaria escura.
– O seu quarto é lá em cima. Também temos um sótão acabado.
Esta escadaria estreita e escura é um pouco menos glamorosa do que o resto da
casa – e matá-los-ia pôr uma lâmpada aqui em cima? Mas, claro, sou a criada.
Não esperaria que gastasse tanto dinheiro no meu quarto quanto no cinema em
casa.
Ao cimo das escadas está um pequeno corredor estreito. Ao contrário de no
primeiro andar, o teto aqui é perigosamente baixo. Não sou alta, mas quase
sinto que preciso de me curvar.
– Tem a sua própria casa de banho – diz ela, apontando para a porta da
esquerda. – E este aqui seria o seu quarto.
Abre a última porta. Está completamente escuro no interior até que ela puxa
um �o e o quarto se ilumina.
É um quarto minúsculo. Não há outra forma de o dizer. E não só isso, o teto
inclina-se com o telhado da casa. O lado mais afastado apenas chega
sensivelmente à minha cintura. Em vez da enorme cama de casal do quarto
principal dos Winchester, com o seu roupeiro e o seu toucador castanho, este
quarto contém uma cama de solteiro, uma estante de meia altura e uma
pequena cómoda, iluminadas por duas lâmpadas nuas suspensas.
É um quarto modesto, mas por mim tudo bem. Se fosse demasiado agradável,
seria uma certeza não ter qualquer hipótese em conseguir este emprego. O
quarto ser uma porcaria signi�ca que talvez os seus padrões sejam
su�cientemente baixos para eu ter uma pequena, muito pequena, hipótese.
Mas há algo mais neste quarto. Algo que me incomoda.
– Desculpe ser pequeno – diz a Sra. Winchester, franzindo o sobrolho. – Mas
terá muita privacidade aqui.
Dirijo-me à única janela. Tal como o quarto, é pequena. Pouco maior do que a
minha mão. E tem vista para o jardim das traseiras. Está um jardineiro lá em
baixo – o mesmo tipo que vi à entrada – a podar uma das sebes com uma
tesoura enorme.
– O que lhe parece, então, Millie? Gosta?
Viro costas à janela e encaro o rosto sorridente da Sra. Winchester. Ainda não
consigo perceber ao certo o que me incomoda. Há algo neste quarto que faz
com que uma pequena bola de temor se forme na boca do meu estômago.
Talvez seja a janela. Dá para as traseiras da casa. Se estivesse em apuros e a
tentar chamar a atenção de alguém, ninguém me conseguiria ver aqui atrás.
Podia berrar e gritar tanto quanto quisesse e ninguém me ouviria.
Mas quem estou eu a enganar? Seria uma sorte viver neste quarto. Com a
minha própria casa de banho e uma verdadeira cama onde poderia esticar as
pernas totalmente. Aquela pequena cama parece tão boa em comparação com o
meu carro que seria capaz de chorar.
– É perfeito – respondo.
A Sra. Winchester parece extática com a minha resposta. Guia-me novamente
pela escadaria escura até ao primeiro andar da casa e, ao sair, solto um fôlego
que não sabia que tinha estado a suster. Havia algo de muito assustador naquele
quarto, mas se, de alguma forma, conseguir �car com este emprego, ultrapassá-
lo-ei. Facilmente.
Os meus ombros relaxam por �m e os meus lábios estão a formar outra
pergunta quando oiço uma voz atrás de nós:
– Mamã?
Paro bruscamente e viro-me para ver uma menina atrás de nós no corredor.
Tem os mesmos olhos azul-pálidos de Nina Winchester, só que alguns tons
mais claros, e um cabelo tão louro que é quase branco. A menina usa um
vestido azul muito claro debruado a renda branca. E �ta-me como se
conseguisse ver através de mim. Até à minha alma.
Sabem aqueles �lmes sobre o culto assustador de, tipo, miúdos arrepiantes
que conseguem ler pensamentos e adoram o Diabo e vivem nos campos de
milho ou assim? Bem, se estivessem a escolher atores para um desses �lmes, esta
rapariga conseguiria o papel. Nem teriam de lhe fazer uma audição. Olhariam
para ela e diriam: Sim, vais ser a rapariga arrepiante número três.
– Cece! – exclama a Sra.Winchester. – Já voltaste da tua aula de ballet?
A menina anui lentamente.
– A mãe da Bella trouxe-me.
A Sra. Winchester envolve os ombros magros da menina com os braços, mas a
expressão da criança nunca se altera e os seus claros olhos azuis nunca deixam o
meu rosto. Haverá algum problema comigo, para ter medo de que esta menina
de nove anos me vá assassinar?
– Esta é a Millie – diz a Sra. Winchester à sua �lha. – Millie, esta é a minha
�lha, Cecelia.
Os olhos da pequena Cecelia são duas pequenas poças do oceano.
– Prazer em conhecê-la, Millie – diz ela educadamente.
Diria que que há pelo menos vinte e cinco por cento de probabilidades de me
assassinar durante o sono se eu conseguir este emprego. Mas quero-o na mesma.
A Sra. Winchester deposita um beijo no alto da cabeça loura da sua �lha e a
menina parte a toda a pressa para o seu quarto. Tem certamente uma sinistra
casa de bonecas lá dentro, que ganham vida à noite. Talvez seja uma das bonecas
que me vai matar.
Certo, estou a ser ridícula. Provavelmente, aquela menina é extremamente
doce. Não tem culpa de que lhe tenham vestido um arrepiante traje de criança
fantasma vitoriana. E eu adoro miúdos, em geral. Não que tenha interagido
muito com eles na última década.
Assim que regressamos ao piso térreo, a tensão deixa o meu corpo. A Sra.
Winchester é simpática e su�cientemente normal – para uma senhora assim tão
rica – e, enquanto tagarela sobre a casa e a sua �lha e o emprego, eu oiço-a
apenas vagamente. Tudo o que sei é que este será um local encantador para
trabalhar. Daria o meu braço direito para conseguir este emprego.
– Tem alguma pergunta, Millie? – pergunta-me.
Abano a cabeça.
– Não, senhora Winchester.
Ela faz estalar a língua.
– Por favor, trate-me por Nina. Se vai trabalhar aqui, sentir-me-ia tão tola
consigo a tratar-me por senhora Winchester – ri. – Como se eu fosse uma velhota
rica.
– Obrigada… Nina – digo-lhe.
O seu rosto brilha, ainda que isso possa ser das algas ou da casca de pepino ou
de seja lá o que for que os ricos aplicam aos rostos. Nina Winchester é o tipo de
mulher que faz tratamentos regulares no spa.
– Tenho um bom pressentimento acerca disto, Millie. Tenho mesmo.
É difícil não me deixar contagiar pelo seu entusiasmo. É difícil não sentir uma
centelha de esperança enquanto aperta a minha mão áspera na sua suave como a
de um bebé. Quero acreditar que, nos próximos dias, irei receber uma chamada
de Nina Winchester, a oferecer-me a oportunidade de trabalhar em sua casa e
abandonar �nalmente a Casa Nissan. Quero tanto acreditar nisso.
Mas, independentemente do que mais possa dizer sobre Nina, não é nenhuma
idiota. Não vai contratar uma mulher para trabalhar e viver em sua casa e tomar
conta da sua �lha sem fazer uma simples veri�cação de antecedentes. E quando
o �zer…
Engulo um nó na minha garganta.
Nina Winchester despede-se cordialmente de mim à porta da frente.
– Muito obrigada por ter vindo, Millie – estende a mão para apertar uma vez
mais a minha nas suas. – Prometo-lhe que terá notícias minhas em breve.
Não terei. Será a última vez que ponho os pés nesta casa magní�ca. Nunca
devia ter vindo aqui em primeiro lugar. Devia ter-me candidatado a um
emprego que tivesse reais hipóteses de conseguir, em vez de desperdiçar o
tempo de ambas aqui. Talvez algo no setor da comida rápida.
O jardineiro que vi da janela do sótão está de volta ao relvado da frente. Ainda
tem aquela tesoura gigante e está a moldar uma das sebes mesmo em frente à
casa. É um tipo grande, com uma T-shirt que exibe uns músculos
impressionantes e mal esconde as tatuagens na parte superior dos seus braços.
Ajeita o boné de basebol e os seus olhos muito negros erguem-se fugazmente da
tesoura para encontrar os meus do outro lado do relvado.
Ergo a mão em cumprimento.
– Olá – digo.
O homem olha-me �xamente. Não diz olá. Não diz «pare de pisar as minhas
�ores». Limita-se a �tar-me.
– Prazer em conhecê-lo também – murmuro em surdina.
Saio pelo portão eletrónico de metal que cinge a propriedade e arrasto-me de
regresso ao meu carro/casa. Olho para trás uma última vez, para o jardineiro no
pátio, que continua a observar-me. Há algo na sua expressão que me causa um
calafrio na espinha.
E, então, abana a cabeça de forma quase impercetível. Quase como se estivesse a
tentar avisar-me.
Mas não diz uma única palavra.
Q
2
uando se vive num carro, há que manter as coisas simples.
Não vamos receber grandes encontros, para começar. Nada de festas
de vinho e queijo, nada de noites de póquer.
E não faz mal, pois não há ninguém que eu queira ver. O maior problema é
onde tomar um duche. Três dias após ter sido despejada do meu estúdio, três
semanas depois de ser despedida do meu emprego, descobri uma área de serviço
com chuveiros. Quase chorei de alegria ao vê-la. Sim, os chuveiros têm muito
pouca privacidade e cheiram vagamente a dejetos humanos, mas, por essa
altura, estava desesperada por me limpar.
Neste momento, estou a desfrutar do meu almoço no banco de trás do carro. É
verdade que tenho um disco de aquecimento que posso ligar ao isqueiro para
ocasiões especiais, mas como sobretudo sanduíches. Muitas, muitas sanduíches.
Tenho uma geleira onde guardo as carnes frias e o queijo, e tenho pão branco –
noventa e nove cêntimos no supermercado. E aperitivos, claro. Pacotes de
batatas fritas. Bolachas salgadas com manteiga de amendoim. Twinkies. As
opções pouco saudáveis são in�nitas.
Hoje, estou a comer �ambre e queijo americano, com um pouco de maionese.
A cada dentada que dou, tento não pensar no quanto estou farta de sanduíches.
Após ter empurrado metade da minha sanduíche para baixo, o meu telemóvel
toca no bolso. Tenho um daqueles telemóveis de abrir pré-pagos que as pessoas
só usam se forem cometer um crime ou então tiverem viajado quinze anos para
trás no tempo. Mas preciso de um telemóvel e é só isto que posso pagar.
– Wilhelmina Calloway? – pergunta a voz seca de uma mulher do outro lado
da linha.
Retraio-me ante o uso do meu nome completo. Wilhelmina era a mãe do meu
pai, há muito falecida. Não sei que tipo de psicopatas poriam à �lha o nome de
Wilhelmina, mas já não falo com os meus pais (e, de igual modo, eles não falam
comigo), por isso é um pouco tarde para perguntar. Em todo o caso, sempre fui
apenas Millie, e tento corrigir as pessoas o mais cedo possível. Mas dá-me a
sensação de que, seja quem for que me está a ligar, não é alguém a quem vá
tratar pelo primeiro nome num futuro próximo.
– Sim…?
– Senhora Calloway – diz a mulher. – Daqui fala Donna Stanton, do Munch
Burgers.
Oh, certo. Munch Burgers – a gordurosa espelunca de comida rápida que me
concedeu uma entrevista há poucos dias. Seria para virar hambúrgueres ou então
operar a caixa registadora. Mas, se trabalhasse no duro, havia algumas
oportunidades de progressão. E, melhor ainda, a oportunidade de ter dinheiro
su�ciente para deixar de viver no meu carro.
Claro que o emprego que eu realmente teria adorado era em casa dos
Winchester. Mas passou uma semana inteira desde que me encontrei com Nina
Winchester. É seguro dizer que não consegui o meu emprego de sonho.
– Queria só informá-la – continua a Sra. Stanton – de que a vaga no Munch
Burgers já foi preenchida. Mas desejamos-lhe sorte na sua procura de emprego.
O �ambre e o queijo americano no meu estômago começam às voltas. Tinha
lido online que o Munch Burgers não tinha práticas de contratação muito
rigorosas. Mesmo que tivesse cadastro, poderia ter hipóteses. Foi a última
entrevista que consegui marcar desde que a Sra. Winchester não me ligou de
volta – e estou desesperada. Não posso comer nem mais uma sanduíche no
carro. Simplesmente não posso.
– Senhora Stanton – atiro. – Perguntava-me só se não poderia contratar-me
para algum outro local. Sou muito trabalhadora. Muito �ável. Faço sempre…
Paro de falar. Ela já desligou.
Aperto a minha sanduíche na mão direita enquanto seguro o telemóvel na
esquerda. É inútil. Ninguém me quer contratar. Todos os potenciais
empregadores olham para mim da mesma exata forma.Só quero começar de
novo. Matar-me-ei a trabalhar, se for preciso. Farei o que for necessário.
Combato as lágrimas, embora não saiba por que me dou ao trabalho.
Ninguém me verá a chorar no banco de trás do meu Nissan. Já não há ninguém
que se importe comigo. Os meus pais lavaram as suas mãos de mim há mais de
dez anos.
O meu telemóvel volta a tocar, arrancando-me à minha autocomiseração.
Limpo os olhos com as costas da mão e primo o botão verde para atender a
chamada.
– Estou? – crocito.
– Olá? Fala a Millie?
A voz soa-me vagamente familiar. Encosto o telemóvel ao ouvido, o meu
coração a dar um salto.
– Sim…
– Daqui fala a Nina Winchester. Entrevistei-a na semana passada?
– Oh – mordo com força o meu lábio inferior. Por que está ela a ligar-me
agora? Presumi que já tivesse contratado alguém e tivesse decidido não me
informar. – Sim, claro.
– Portanto, se estiver interessada, teríamos o maior gosto em oferecer-lhe o
emprego.
Sinto o sangue subir-me de tal modo à cabeça que quase �co tonta. Teríamos o
maior gosto em oferecer-lhe o emprego. A sério? Era concebível que o Munch Burgers
me pudesse contratar, mas parecia absolutamente impossível que uma mulher
como Nina Winchester me pudesse convidar para sua casa. Para viver.
Será possível que não tenha veri�cado as minhas referências? Não tenha feito
uma simples veri�cação de antecedentes? Talvez esteja simplesmente tão
ocupada que nunca o fez. Talvez seja uma dessas mulheres que se orgulham dos
seus instintos.
– Millie? Está aí?
Percebo que estive completamente silenciosa do meu lado da linha. Estou
assim tão estupefacta.
– Sim. Estou aqui.
– E então, está interessada no emprego?
– Estou — tento não soar ridiculamente ansiosa. – De certeza que estou.
Adoraria trabalhar para si.
– Trabalhar comigo – corrige Nina.
Solto um riso estrangulado.
– Certo. Claro.
– Quando pode começar, então?
– Hã, quando gostaria que eu começasse?
– O mais cedo possível! – invejo a gargalhada fácil de Nina, que soa tão
diferente da minha. Se ao menos pudesse estalar os dedos e trocar de lugar com
ela. – Temos pilhas de roupa a precisar de ser dobrada!
Engulo em seco.
– Que tal amanhã?
– Isso seria maravilhoso! Mas não precisa de tempo para arrumar as suas
coisas?
Não quero dizer-lhe que tudo o que tenho está já na bagageira do meu carro.
– Sou rápida a fazer as malas.
Ela ri novamente.
– Adoro o seu espírito, Millie. Mal posso esperar para a ter a trabalhar aqui.
Enquanto eu e Nina trocamos pormenores sobre o dia de amanhã, pergunto-
me se ela sentiria o mesmo em relação a mim se soubesse que passei os últimos
dez anos da minha vida na prisão.
N
3
a manhã seguinte, chego a casa dos Winchester depois de Nina já ter
saído para levar a Cecelia à escola. Estaciono junto ao portão de metal
que rodeia a propriedade. Nunca estivera numa casa protegida por
um portão, e muito menos vivido numa. Mas este ostentoso bairro de Long
Island parece apenas ter casas com portões. Atendendo a como é baixa a taxa de
criminalidade por aqui, parece-me um exagero, mas quem sou eu para julgar?
Mantendo-se todos os outros fatores, se pudesse escolher entre uma casa com
portão ou uma sem portão, também eu escolheria a primeira.
No outro dia, o portão estava aberto quando cheguei, mas hoje está fechado.
Trancado, aparentemente. Por um momento, �co ali parada, com os meus dois
sacos de viagem aos pés, a tentar perceber como entrar. Não parece haver
qualquer tipo de campainha ou intercomunicador. Mas aquele jardineiro está
outra vez na propriedade, agachado na terra com uma pá na mão.
– Desculpe! – grito.
O homem lança-me um olhar por cima do ombro e recomeça a cavar. Muito
simpático.
– Desculpe! – insisto de novo, su�cientemente alto para que não me possa
ignorar.
Desta vez, levanta-se muito, muito devagar. Não tem absolutamente nenhuma
pressa ao atravessar vagarosamente o gigantesco relvado da frente até à entrada
do portão. Tira as suas grossas luvas de borracha e arqueia as sobrancelhas na
minha direção.
– Olá! – digo, tentando esconder a minha irritação. – Chamo-me Millie
Calloway e é o meu primeiro dia de trabalho aqui. Estou só a tentar entrar
porque a senhora Winchester está à minha espera.
Ele não diz nada. Do outro lado do jardim, só tinha reparado em como é
grande – pelo menos uma cabeça mais alto do que eu, com bíceps do tamanho
das minhas coxas –, mas, mais próxima, percebo que é realmente bastante
atraente. Parece rondar os meados dos trinta, com um espesso cabelo preto asa
de corvo, húmido do esforço, pele morena e uma aparência toscamente
agradável. Mas a sua característica mais marcante são os olhos. Tem uns olhos
muito negros – tão escuros que não consigo distinguir a pupila da íris. Algo no
seu olhar me faz dar um passo atrás.
– Então, hã, pode ajudar-me? – pergunto.
O homem abre �nalmente a boca. Espero que me diga para desaparecer ou
para lhe mostrar a minha identi�cação, mas, em vez disso, lança-se numa
torrente de rápido italiano. Ou, pelo menos, acho que é italiano. Não posso
dizer que saiba uma palavra do idioma, mas uma vez vi um �lme italiano com
legendas e soava mais ou menos assim.
– Oh – digo, quando termina o seu monólogo. – Então, hã… nada de inglês?
– Inglês? – repete, numa voz com um sotaque tão cerrado que a resposta é
evidente. – Não. Nada de inglês.
Fantástico. Pigarreio, tentando descobrir a melhor forma de expressar o que
preciso de lhe dizer.
– Então, eu… – aponto para o peito. – Vou trabalhar. Para a senhora
Winchester – aponto para a casa. – E preciso… de entrar – aponto agora para a
fechadura do portão. – Entrar.
Ele limita-se a franzir-me o sobrolho. Fantástico.
Estou prestes a agarrar no meu telemóvel e a ligar a Nina quando ele se desvia
para o lado, prime uma espécie de interruptor e os portões se abrem, quase em
câmara lenta.
Uma vez abertos os portões, tiro um momento para olhar para a casa que será
o meu lar no futuro próximo. A casa tem dois andares, além do sótão,
estendendo-se pelo que parece ser sensivelmente o tamanho de um quarteirão
da cidade de Brooklyn.
É quase ofuscantemente branca – possivelmente pintada de fresco – e a
arquitetura parece contemporânea, mas o que sei eu? Apenas sei que parece que
as pessoas que aqui vivem têm tanto dinheiro que não sabem o que fazer com
ele.
Vou buscar um dos meus sacos, mas, antes que possa fazê-lo, o sujeito agarra
em ambos sem sequer gemer e leva-os por mim até à porta da frente. São sacos
muito pesados – contêm literalmente tudo o que possuo, além do meu carro –
por isso sinto-me grata por se ter oferecido para carregar o peso por mim.
– Gracias – digo-lhe.
Ele lança-me um olhar estranho. Hum, talvez isto tenha sido espanhol. Oh,
bem.
Aponto para o meu peito.
– Millie – acrescento.
– Millie – acena em entendimento, apontando depois para o seu próprio
peito. – Eu sou Enzo.
– Prazer em conhecer-te – digo desajeitadamente, apesar de não me entender.
Mas, por Deus, se vive aqui e tem um emprego, deve ter aprendido um pouco de
inglês.
– Piacere di conoscerti – responde.
Anuo em silêncio. Lá se vai a ideia de fazer amizade com o jardineiro.
– Millie – diz novamente, no seu denso sotaque italiano. Parece ter algo a
dizer, mas está em di�culdades com a língua. – Tu…
Silva uma palavra em italiano, mas, assim que ouvimos a porta da frente
começar a abrir-se, regressa apressadamente ao local onde estava agachado no
jardim da frente e mostra-se muito atarefado. Mal consegui distinguir a palavra
que disse. Pericolo. Seja o que for que isso signi�que. Talvez queira um
refrigerante. Peri Cola – agora com um toque de lima!
– Millie! – Nina parece encantada por me ver. Tão encantada que me envolve
nos seus braços e me aperta num abraço. – Estou tão feliz por ter decidido
aceitar o emprego. Senti simplesmente que tínhamos uma ligação. Sabe?
Era o que eu pensava. Tinha um «pressentimento» sobre mim, por isso não se
deu ao trabalho de fazer a investigação. Agora, tenho simplesmente de me
certi�car de que nunca terá qualquer razão para descon�ar de mim. Tenho de
sera empregada perfeita.
– Sim, sei o que quer dizer. Sinto o mesmo.
– Bem, entre!
Agarrando-me pela curva do cotovelo, Nina conduz-me ao interior da casa,
completamente alheia a eu estar em di�culdades com as minhas duas malas.
Não que eu estivesse à espera que me ajudasse. Nem lhe teria ocorrido tal coisa.
Não posso deixar de notar, ao entrar, que a casa está muito diferente da
primeira vez que cá estive. Muito diferente. Quando vim para a entrevista, a
casa dos Winchester estava imaculada – poderia ter comido de qualquer
superfície da sala. Mas, agora, o local parece uma pocilga. A mesa de café diante
do sofá tem seis chávenas em cima, com diferentes quantidades de diversos
líquidos pegajosos no interior, cerca de uma dúzia de jornais e revistas
amarrotados e uma caixa de piza amolgada. Há roupas e lixo espalhados por
toda a sala de estar e a mesa de jantar ainda contém os restos do jantar de ontem
à noite.
– Como pode ver – diz Nina –, chegou mesmo a tempo!
Quer dizer então que a Nina Winchester é uma desmazelada – é esse o seu
segredo. Vou levar horas a pôr este sítio em condições minimamente decentes.
Talvez dias. Mas não faz mal – tenho estado desejosa de fazer algum trabalho
honesto. E agrada-me que ela precise de mim. Se me conseguir tornar valiosa,
será menos provável que me despeça se – ou quando – descobrir a verdade.
– Deixe-me só guardar as minhas malas – digo-lhe. – E depois arrumo a casa
toda.
Nina solta um suspiro feliz.
– É um milagre, Millie. Muito obrigada. Além disso… – ergue a sua bolsa da
bancada da cozinha e vasculha o interior, acabando por retirar lá de dentro o
mais recente iPhone. – Comprei-lhe isto. Não pude deixar de reparar que usava
um telemóvel muito antiquado. Se precisar de a contactar, gostaria que tivesse
um meio de comunicação �ável.
Hesitante, fecho os dedos sobre o iPhone novinho em folha.
– Uau. É muito generoso da sua parte, mas não posso pagar um plano…
Ela sacode uma mão.
– Juntei-a ao nosso plano familiar. Não custou quase nada.
Quase nada? Tenho a sensação de que a sua de�nição dessas duas palavras é
muito diferente da minha.
Antes que possa protestar mais, o som de passos ecoa nas escadas atrás de
mim. Viro-me e um homem de fato cinzento vem a descer a escadaria. Ao ver-
me de pé na sala de estar, para bruscamente ao fundo dos degraus, como se
chocado com a minha presença. Os seus olhos arregalam-se ainda mais ao
reparar na minha bagagem.
– Andy! – chama Nina. – Vem conhecer a Millie!
Deve ser o Andrew Winchester. Quando estava a pesquisar a família
Winchester no Google, os meus olhos saltaram-me um pouco das órbitas ao ver o
valor líquido deste homem. Depois de ter visto todos aqueles cifrões, o cinema
em casa e o portão a rodear a propriedade �zeram um pouco mais de sentido. É
um empresário, que assumiu o comando da próspera empresa do pai e duplicou
os lucros desde então. Mas é óbvio, pela sua expressão surpreendida, que deixa
que seja a mulher a lidar com a maioria das questões domésticas, e esta parece
ter-se esquecido por completo de lhe dizer que contratou uma empregada
interna.
– Olá… – de sobrolho franzido, o Sr. Winchester entra na sala de estar. –
Millie, é isso? Desculpe, não percebi…
– Andy, eu falei-te nela! – protesta Nina, inclinando a cabeça para o lado. –
Disse-te que precisávamos de contratar alguém para ajudar nas limpezas e a
cozinhar e com a Cecelia. Tenho a certeza de que te disse!
– Sim, bem – o seu rosto relaxa �nalmente. – Bem-vinda, Millie. A ajuda é
certamente útil.
Andrew Winchester estende-me a mão para eu apertar. É difícil não notar que
é um homem incrivelmente atraente. Olhos castanhos penetrantes, uma densa
cabeleira cor de mogno e uma covinha sensual no queixo. É também difícil não
notar que é vários graus mais atraente do que a mulher, mesmo com o seu
aprumo impecável, o que me parece um pouco estranho. O homem é podre de
rico, a�nal. Podia ter qualquer mulher que quisesse. Respeito-o por não
escolher uma supermodelo de vinte anos para sua companheira de vida.
Guardo o meu telemóvel novo no bolso das calças de ganga e estendo o braço
para lhe apertar a mão.
– Prazer em conhecê-lo, senhor Winchester.
– Por favor – sorri calorosamente. – Trate-me por Andrew.
Ao ouvi-lo dizer as palavras, algo atravessa o rosto de Nina Winchester. Os
seus lábios torcem-se e os seus olhos semicerram-se. Mas não percebo muito
bem porquê. Ela mesma ofereceu-se para me deixar tratá-la pelo primeiro
nome. E não é como se Andrew Winchester me estivesse a tirar as medidas. Os
seus olhos mantêm-se respeitosamente nos meus e não descem abaixo do
pescoço. Não que haja muito para ver – apesar de não me ter dado ao trabalho
de usar os falsos óculos de tartaruga hoje, visto uma blusa modesta e umas
calças de ganga azuis confortáveis para o meu primeiro dia de trabalho.
– En�m – corta Nina. – Não tens de ir para o escritório, Andy?
– Oh, sim – endireita a gravata cinzenta. – Tenho uma reunião às nove e meia
na cidade. É melhor despachar-me.
Beija longamente os lábios de Nina e aperta-lhe o ombro. Tanto quanto posso
ver, são um casal bastante feliz. E o Andrew parece bastante terra a terra para
um homem cujo valor líquido tem oito algarismos a acompanhar o cifrão. É
doce a forma como lhe sopra um beijo da porta da frente – este é um homem
que ama a sua mulher.
– O seu marido parece simpático – digo a Nina, quando a porta se fecha.
A expressão sombria, descon�ada, regressa aos seus olhos.
– Acha que sim?
– Bem, sim – gaguejo. – Quer dizer, parece… Há quanto tempo são casados?
Nina observa-me, pensativa. Mas, em vez de responder à minha pergunta,
indaga:
– O que aconteceu aos seus óculos?
– O quê?
Ela arqueia uma sobrancelha.
– Trazia uns óculos no dia da sua entrevista, não trazia?
– Oh – contorço-me, relutante em admitir que os óculos eram falsos, a minha
tentativa de parecer mais inteligente e séria, e sim, menos atraente e
ameaçadora. – Eu… hã, estou a usar lentes de contacto.
– Está?
Não sei por que menti. Devia apenas ter dito que não preciso assim tanto dos
óculos. Em vez disso, insisti no erro e inventei agora umas lentes de contacto
que não estou realmente a usar. Consigo sentir Nina a perscrutar-me as pupilas
à procura delas.
– Há… há algum problema? – acabo por perguntar.
Um músculo contrai-se sob o seu olho direito. Por um momento, temo que
me vá dizer que é melhor eu sair. Mas, então, o seu rosto relaxa.
– É claro que não! Achei só que esses óculos �cavam tão giros em si. Muito
chamativos. Devia usá-los mais vezes.
– Sim, bem… – com a mão trémula, agarro na alça de um dos meus sacos de
viagem. – Talvez devesse levar as minhas coisas lá para cima para poder
começar.
Nina bate palmas.
– Excelente ideia!
Mais uma vez, não se oferece para levar nenhum dos meus sacos enquanto
subimos os dois lanços de escadas até ao sótão. A meio do segundo lanço, sinto-
me como se os meus braços estivessem prestes a cair, mas Nina não parece
interessada em parar para me dar um momento para reajustar as alças. Arquejo
de alívio ao poder largar os sacos no chão do meu novo quarto. Nina puxa o
cordão para acender as duas lâmpadas que iluminam a minha minúscula
habitação.
– Espero que esteja tudo bem – diz. – Calculei que preferisse ter a privacidade
de estar aqui em cima, bem como a sua própria casa de banho.
Talvez se sinta culpada por o seu enorme quarto de hóspedes estar vazio
enquanto eu vou viver num quarto pouco maior do que um armário de
vassouras. Mas não faz mal. Tudo o que seja maior do que o banco de trás do
meu carro é como um palácio. Mal posso esperar para dormir aqui esta noite.
Estou obscenamente grata.
– É perfeito – digo com sinceridade.
Além da cama, da cómoda e da estante, vejo uma outra coisa no quarto na
qual não reparei da primeira vez. Um pequeno frigorí�co, de cerca de trinta
centímetros de altura. Está ligado à parede e a zumbir ritmicamente. Agacho-
me e abro-o.
O frigorí�co tem duas pequenas prateleiras. E, na prateleira de cima, estão
três pequenas garrafas de água.
– Uma boa hidrataçãoé muito importante – diz Nina, com seriedade.
– Sim…
Ao ver a expressão perplexa no meu rosto, sorri.
– Obviamente, o frigorí�co é seu e pode guardar nele o que quiser. Pensei em
dar-lhe um avanço.
– Obrigada – não é assim tão estranho. Algumas pessoas deixam rebuçados
numa almofada. Nina deixou-me três pequenas garrafas de água.
– En�m… – diz, limpando as mãos às coxas, apesar de estarem imaculadas. –
Vou deixá-la desfazer as malas e depois começar a limpar a casa. Eu estarei a
preparar-me para a minha reunião da APP amanhã.
– APP?
– Associação de Pais e Professores – sorri. – Sou a vice-
-presidente.
– Isso é maravilhoso – respondo, pois é o que quer ouvir. É muito fácil
agradar Nina. – Vou só arrumar tudo num instante e começo já a trabalhar.
– Muito obrigada – os seus dedos tocam fugazmente o meu braço nu. Estão
quentes e secos. – É uma salvadora, Millie. Estou tão feliz por a ter aqui.
Ponho a mão no puxador quando a Nina vai a sair do quarto. E é então que
percebo. O que me tem vindo a incomodar neste quarto desde o primeiro
momento em que aqui entrei. Uma sensação doentia invade-me.
– Nina?
– Hã?
– Por que… – pigarreio. – Por que está a fechadura deste quarto do lado de
fora e não do de dentro?
A Nina olha para o puxador, como que a reparar nisso pela primeira vez.
– Oh! Peço imensa desculpa por isso. Costumávamos utilizar este quarto
como armário, pelo que obviamente queríamos que fechasse por fora. Mas então
converti-o num quarto de governanta, e suponho que nunca trocámos a
fechadura.
Se alguém quisesse, facilmente me poderia trancar aqui dentro. E só há aquela
janela, com vista para as traseiras da casa. Este quarto poderia ser uma
armadilha mortal.
Mas, por outro lado, por que haveria alguém de me querer trancar aqui
dentro?
– Pode dar-me a chave do quarto? – peço.
Ela encolhe os ombros.
– Nem sei bem onde está.
– Gostaria de ter uma cópia.
Os seus olhos azul-claros semicerram-se em mim.
– Porquê? O que espera guardar no seu quarto que não quer que nós
saibamos?
Fico boquiaberta.
– Eu… Nada, mas…
Nina atira a cabeça para trás e ri.
– Estou só a brincar. É o seu quarto, Millie! Se quer uma chave, eu arranjo-lhe
uma. Prometo.
Às vezes, parece que Nina tem dupla personalidade. Passa tão depressa do
quente ao frio. Diz que estava a brincar, mas eu não tenho assim tanta certeza.
Não tem importância, ainda assim. Não tenho outras perspetivas e este
emprego é uma bênção. Vou fazê-lo resultar. Não importa como. Vou fazer com
que Nina Winchester me adore.
Depois de Nina sair do quarto, fecho a porta atrás dela. Gostaria de a trancar,
mas não posso. Obviamente.
Ao fechar a porta, vejo marcas na madeira. Longas linhas �nas que atravessam
o comprimento da porta sensivelmente à altura do meu ombro. Passo os dedos
pelas reentrâncias. Quase parecem…
Arranhões. Como se alguém tivesse estado a arranhar a porta.
A tentar sair.
Não, isso é ridículo. Estou a ser paranoica. Às vezes, a madeira velha risca-se.
Não quer dizer nada de ominoso.
De repente, o quarto parece insuportavelmente quente e abafado. Há uma
pequena caldeira ao canto, que estou certa que o mantém confortável no
inverno, mas não há nada para o arrefecer nos meses mais quentes. Terei de
comprar uma ventoinha para pôr em frente à janela. Apesar de ser muito maior
do que o meu carro, continua a ser um espaço muito pequeno – não me
surpreende que o utilizassem como armário. Olho em volta, abrindo as gavetas
para veri�car o seu tamanho. Há um pequeno armário dentro do quarto, apenas
com o espaço su�ciente para pendurar os meus poucos vestidos. O armário está
vazio, exceto por um par de cabides e um pequeno balde azul ao canto.
Tento abrir a pequena janela para obter um pouco de ar. Mas não cede.
Semicerro os olhos para investigar mais de perto.
Passo o dedo ao longo do caixilho da janela. Parece ter sido colado ao local.
Apesar de ter uma janela, não abre.
Podia perguntar à Nina por isso, mas não quero dar a ideia de que me estou a
queixar quando ainda hoje comecei a trabalhar aqui. Talvez na próxima semana
o possa referir. Acho que não é pedir demasiado, ter uma janela funcional.
O jardineiro, Enzo, está agora no pátio das traseiras. Está a cortar a relva lá de
trás. Para por um momento, para limpar o suor da testa com o seu antebraço
musculado, e então ergue o olhar. Vê o meu rosto pela pequena janela e abana a
cabeça, como da primeira vez que o vi. Lembro-me da palavra que me silvou em
italiano antes de eu entrar na casa. Pericolo.
Tiro o meu telemóvel novinho em folha do bolso. O ecrã ganha vida ao meu
toque, enchendo-se de pequenos ícones para mensagens de texto, chamadas e
meteorologia. Este tipo de telemóvel não era comum no início da minha
reclusão, e não tive meios para comprar um desde a minha saída. Mas algumas
das raparigas tinham um nos centros de reabilitação para onde fui depois de
sair, por isso sei mais ou menos como os utilizar. Sei qual dos ícones abre um
navegador.
Na janela do navegador, escrevo Traduzir pericolo. O sinal deve ser fraco aqui
no sótão, pois demora muito tempo. Passou já quase um minuto quando a
tradução de pericolo aparece �nalmente no ecrã do meu telemóvel:
Perigo.
P
4
asso as sete horas seguintes a limpar.
Nina não poderia ter deixado esta casa mais suja se tentasse. Todas as
divisões estão imundas. A caixa de piza em cima da mesa de café ainda
tem duas fatias dentro, e há algo pegajoso e fétido derramado no fundo. Vazou e
a caixa está colada à mesa de café. Levo uma hora de demolha e trinta minutos
de esfrega intensa para que tudo �que limpo.
A cozinha é o pior. Além de seja o que for que está no caixote do lixo
propriamente dito, há dois sacos do lixo na cozinha, com o conteúdo a
transbordar. Um dos sacos tem um rasgão no fundo, e quando o levanto para o
levar para a rua, o lixo espalha-se por todo o lado. E o cheiro é para lá de
terrível. Engasgo-me, mas não vomito o meu almoço.
Há pratos empilhados no lava-loiça, e pergunto-me por que Nina não os pôs
simplesmente na sua máquina topo de gama, até que abro a máquina de lavar
loiça e vejo que também está cheia até cima de pratos sujos. Aquela mulher não
acredita em raspar os pratos antes de os pôr na máquina de lavar loiça. Nem,
aparentemente, em pôr a máquina a trabalhar. Antes de terminar, faço três
cargas de loiça. Lavo todas as panelas separadamente, na sua maioria cobertas de
comida dos dias anteriores.
A meio da tarde, consegui devolver a cozinha a um estado pelo menos algo
habitável. Estou orgulhosa de mim mesma. É o meu primeiro dia de trabalho
árduo desde que fui despedida do bar (de forma completamente injusta, mas é
assim a minha vida hoje em dia) e sinto-me lindamente em relação a isso. Tudo
o que quero é continuar a trabalhar aqui. E talvez ter uma janela no meu quarto
que se abra.
– Quem és tu?
Uma vozinha sobressalta-me quando estou a guardar a última carga de loiça.
Viro-me – a Cecelia está de pé atrás de mim, os seus claros olhos azuis a olhar-
me �xamente, com um vestido branco aos folhos que a faz parecer uma pequena
boneca. E por boneca, re�ro-me, claro, à sinistra boneca falante de A Quinta
Dimensão que assassina pessoas.
Nem sequer a vi entrar. E a Nina não está em lado algum. De onde veio ela
sequer? Se esta for a parte do emprego em que descubro que, na verdade, a
Cecelia está morta há dez anos e é um fantasma, despeço-me.
Bem, talvez não. Mas poderei pedir um aumento.
– Olá, Cecelia! – digo alegremente. – Sou a Millie. De agora em diante, vou
trabalhar em tua casa, a fazer limpezas e a tomar conta de ti quando a tua mãe
me pedir. Espero que possamos divertir-nos juntas.
A Cecelia pisca-me os seus olhos claros.
– Tenho fome.
Tenho de me lembrar de que é apenas uma menina normal que �ca com fome
e sede e rabugenta e usa a casa de banho.
– O que gostarias de comer?
– Não sei.
– Bem, de que tipo de coisas gostas?
– Não sei.
Cerro os dentes. A Cecelia transformou-se de rapariguinha arrepiante em
rapariguinha irritante. Mas acabámos de nos conhecer. Estou certa de que,
daqui a poucassemanas, seremos melhores amigas.
– Muito bem, vou só preparar-te um lanche, então.
Ela acena e sobe para um dos bancos instalados em redor da ilha da cozinha.
Os seus olhos continuam a parecer trespassar-me – como se pudessem ler todos
os meus segredos. Oxalá ela fosse para a sala de estar ver desenhos animados no
seu televisor gigante em vez de se pôr apenas a… observar-me.
– Então, o que gostas de ver na televisão? – pergunto, esperando que perceba
a deixa.
Ela franze o sobrolho como se eu a tivesse ofendido.
– Pre�ro ler.
– Isso é fantástico! O que gostas de ler?
– Livros.
– Que tipo de livros?
– Do tipo com palavras.
Oh, então é assim que vai ser, Cecelia. Muito bem, se ela não quer falar de
livros, posso mudar de assunto.
– Acabaste de voltar da escola? – pergunto-lhe.
Ela pisca-me os olhos.
– De onde mais haveria de vir?
– Mas… como chegaste a casa, então?
A Cecelia solta um bufo exasperado.
– A mãe da Lucy foi buscar-me depois do ballet e trouxe-me.
Ouvi Nina no andar de cima há cerca de quinze minutos, por isso presumo
que esteja em casa. Pergunto-me se devia informá-la de que a Cecelia chegou.
Por outro lado, não quero incomodá-la, e uma das minhas tarefas é tomar conta
da Cecelia.
Graças a Deus, a Cecelia parece ter perdido o interesse em mim e está agora a
vasculhar a sua mochila rosa-claro. Encontro algumas bolachas de água e sal na
despensa, bem como um frasco de manteiga de amendoim. Espalho a manteiga
de amendoim sobre as bolachas como a minha mãe costumava fazer. Repetir o
mesmo ato, feito pela minha mãe tantas vezes para mim, faz-me sentir um
pouco nostálgica. E triste. Nunca pensei que me fosse abandonar como fez. Já
chega, Millie. É a última gota.
Depois de espalhar manteiga de amendoim nas bolachas, corto uma banana e
ponho uma rodela em cada uma. Adoro a combinação de manteiga de
amendoim com banana.
– Tcharã! – faço deslizar o prato sobre a bancada da cozinha para o apresentar
à Cecelia. – Bolachas de manteiga de amendoim e banana!
Os seus olhos arregalam-se.
– Manteiga de amendoim e banana?
– Con�a em mim. É mesmo bom.
– Sou alérgica à manteiga de amendoim! – as maçãs do rosto da Cecelia �cam
muito coradas. – A manteiga de amendoim pode matar-me! Estás a tentar
matar-me?
Sinto um aperto no coração. Nina nunca me disse nada sobre uma alergia à
manteiga de amendoim. E têm-na mesmo ali na despensa! Se a �lha é
mortalmente alérgica aos amendoins, por que haveria ela de a ter em casa?
– Mamã! – grita a Cecelia, correndo em direção à escadaria. – A criada tentou
fazer-me mal com manteiga de amendoim! Socorro, mamã!
Oh, meu Deus.
– Cecelia! – silvo. – Foi um acidente! Não sabia que eras alérgica e…
Contudo, Nina vem já a descer apressadamente as escadas. Apesar da
desordem da sua casa, ela agora está impecável, com outro dos seus brilhantes
conjuntos de saia e blusa brancas.
O branco é a sua cor. E da Cecelia também, ao que parece. Com-binam com a
casa.
– O que se passa? – exclama Nina, ao chegar ao fundo das escadas.
Retraio-me ao ver a Cecelia correr para a mãe, enrolando os braços em torno
do seu peito.
– Ela tentou fazer-me comer manteiga de amendoim, mamã! Disse-lhe que
era alérgica, mas ela não me deu ouvidos.
A pele pálida da Nina ruboriza-se.
– Isso é verdade, Millie?
– Eu… – sinto a garganta completamente seca. – Não sabia que ela era
alérgica. Juro.
Nina franze o sobrolho.
– Eu falei-lhe nas alergias dela, Millie. Isto é inaceitável.
Nunca me disse. Nunca disse uma palavra sobre a Cecelia ser alérgica aos
amendoins. Apostaria a minha vida nisso. E, mesmo que o tivesse feito, por que
haveria de deixar um frasco de manteiga de amendoim na despensa? Estava
mesmo à frente!
Mas ela não vai acreditar em nenhuma das minhas desculpas. Na sua cabeça,
quase lhe matei a �lha. Vejo este emprego a fugir-me por entre os dedos.
– Lamento muito – falo com um nó na garganta. – Devo ter-me esquecido.
Juro que não voltará a acontecer.
A Cecelia está agora a soluçar, enquanto Nina a abraça e lhe acaricia
suavemente os cabelos louros. Finalmente, os soluços apaziguam-se, mas a
Cecelia mantém-se agarrada à mãe. Sinto uma terrível ponta de culpa. No
fundo, sei que não se deve alimentar uma criança sem veri�car primeiro com os
pais. Cometi um erro aqui, e se a Cecelia não estivesse tão vigilante, podia ter
acontecido algo terrível.
Nina respira fundo. Fecha os olhos por um momento e volta a abri-los.
– Tudo bem. Mas, por favor, certi�que-se de que não volta a esquecer-se de
algo tão importante.
– Não esquecerei. Juro – junto os punhos. – Quer que deite fora o frasco de
manteiga de amendoim que estava na despensa?
Ela �ca calada por um momento.
– Não, é melhor não. Podemos precisar dele.
Quero erguer os braços aos céus. Mas ela é que sabe se quer manter manteiga
de amendoim potencialmente letal em sua casa. Tudo o que eu sei é que não a
voltarei, certamente, a usar.
– Já agora – acrescenta Nina –, a que horas estará pronto o jantar?
Jantar? Era suposto eu fazer o jantar? Terá Nina imaginado outra conversa
entre nós que nunca tivemos? Mas não vou começar outra vez a arranjar
desculpas depois do desastre com a manteiga de amendoim. Procurarei algo no
frigorí�co para preparar.
– Sete horas? – digo. Três horas devem dar-me tempo mais do que su�ciente.
Ela anui.
– E não vai pôr manteiga de amendoim no jantar, pois não?
– Não, é claro que não.
– Por favor, não volte a esquecer-se, Millie.
– Não esquecerei. E alguém tem alguma outra alergia ou… intolerância?
Será ela alérgica aos ovos? Picadas de abelha? Demasiados trabalhos de casa?
Preciso de saber. Não posso correr o risco de voltar a ser apanhada desprevenida.
Nina abana a cabeça, enquanto a Cecelia ergue o seu rosto lacrimoso do peito
da mãe durante tempo su�ciente para me fulminar com o olhar. Não
começámos com o pé direito, nós as duas. Mas vou arranjar maneira de o
corrigir. Far-lhe-ei brownies ou assim. Os miúdos são fáceis. Os adultos são mais
complicados, mas estou decidida a também conquistar Nina e Andrew.
À
5
s ١٨h٤٥, o jantar está quase pronto. Havia alguns peitos de frango já
marinados no frigorí�co e alguém tinha deixado instruções no saco,
pelo que me limitei a fazer o que diziam e a metê-los no forno. Devem
adquirir a comida em algum tipo de serviço com as instruções já incluídas.
A cozinha cheira maravilhosamente quando a porta da garagem bate. Passado
um minuto, Andrew Winchester entra na divisão, com o polegar no nó da
gravata para o afrouxar. Eu estou a mexer um molho no fogão, e tenho de olhar
duas vezes ao vê-lo, pois tinha-me esquecido de como é atraente.
Ele sorri – é ainda mais bonito quando sorri.
– Millie, certo?
– Isso mesmo.
– Uau – inspira fundo. – Isso tem um cheiro incrível.
Sinto as maçãs do rosto corar.
– Obrigada.
Ele olha para a cozinha em aprovação.
– Deixou tudo limpo.
– É o meu trabalho.
– Suponho que sim – diz a rir. – Teve um bom primeiro dia?
– Tive, sim – não vou contar-lhe do desastre com a manteiga de amendoim.
Não precisa de saber, embora suspeite que Nina o irá informar. Estou certa de
que não vai apreciar quase lhe ter matado a �lha. – Tem uma bela casa.
– Bem, tenho de agradecer à Nina por isso. É ela que a gere.
Como que seguindo a deixa, Nina entra na cozinha, com outro dos seus trajes
brancos – diferente do de há apenas algumas horas. Mais uma vez, parece
impecável. Mas enquanto andava a limpar, mais cedo, tirei alguns minutos para
observar as fotogra�as na sua cornija. Há uma de Nina e Andrew juntos, de há
muitos anos, e ela era tão diferente nessa altura. Não tinha o cabelo tão louro e
usava menos maquilhagem e roupas mais casuais – e era, pelo menos, vinte
quilos mais magra. Quase não a reconheci – mas Andrew estava exatamente
igual.
– Nina – os olhos de Andrew iluminam-se ante a visão da mulher. – Estás
linda, como sempre.
Puxando-a para si, beija-a profundamente nos lábios. Ela derrete-se contra ele,
agarrando-lhe possessivamente os ombros. Quando se separam, ergue o olhar
para o �tar.
– Senti a tua falta hoje.
– Eu senti mais a tua.– Eu é que senti mais a tua.
Oh, meu Deus, durante quanto tempo vão discutir quem sentiu mais a falta
de quem? Viro costas, afadigando-me na cozinha. É constrangedor estar tão
perto desta demonstração de afeto.
– Então. – Nina é a primeira a afastar-se. – Estão a conhecer-se melhor?
– Ahã – assente Andrew. – E, seja o que for que a Millie está a fazer, tem um
cheiro incrível, não tem?
Olho para trás de mim. Nina observa-me junto ao fogão com aquela expressão
sombria nos seus olhos azuis. Não gosta que o marido me elogie. Mas não sei
qual é o problema – é óbvio que é louco por ela.
– Sim – concorda.
– A Nina é um caso perdido na cozinha – diz Andrew, rindo enquanto lhe
rodeia a cintura com o braço. – Morreríamos de fome se tudo dependesse dela.
A minha mãe costumava passar por cá para deixar refeições preparadas por ela
ou pelo seu chef pessoal. Mas desde que ela e o meu pai se reformaram e
mudaram para a Flórida, temos subsistido sobretudo devido a comida para fora.
Por isso, Millie, é uma salvadora.
Nina esboça um sorriso tenso. Ele está apenas a provocá-la, mas nenhuma
mulher quer ser comparada desfavoravelmente a outra. É um idiota se não sabe
isso. Mas, por outro lado, muitos homens são idiotas.
– O jantar estará pronto daqui a cerca de dez minutos – digo. – Por que não
vão relaxar para a sala de estar e eu chamo-vos quando estiver pronto?
Andrew arqueia as sobrancelhas.
– Quer jantar connosco, Millie?
O som de Nina a inspirar bruscamente enche a cozinha. Antes que possa dizer
alguma coisa, abano vigorosamente a cabeça.
– Não, vou apenas subir para o meu quarto e relaxar. Mas obrigada pelo
convite.
– A sério? Tem a certeza?
Nina dá uma palmada no braço do marido.
– Andy, passou o dia inteiro a trabalhar. Não quer jantar com os patrões. Quer
só ir lá para cima e trocar mensagens com as amigas. Certo, Millie?
– Certo – respondo, apesar de não ter amigas. Pelo menos, não cá fora.
Não parece fazer diferença para Andrew. Estava apenas a ser educado, alheio a
Nina não me querer à mesa de jantar. E não há problema algum. Não quero
fazer nada que a faça sentir-se ameaçada. Quero só manter-me na minha e fazer
o meu trabalho.
T
6
inha-me esquecido de como é incrível dormir com as pernas esticadas.
Tudo bem, esta cama não é nada de especial. É nodosa e as molas do
estrado gemem de cada vez que me mexo um só milímetro. Mas é tão
melhor do que o meu carro. E, mais incrível ainda, se precisar de ir à casa de
banho durante a noite, está mesmo ao meu lado! Não tenho de andar às voltas à
procura de uma área de serviço nem de apertar a minha lata de gás-pimenta na
mão enquanto esvazio a bexiga. Já nem preciso do gás-pimenta.
Sabe tão bem dormir numa cama normal que, poucos segundos depois de
pousar a cabeça na almofada, adormeço.
Quando volto a abrir os olhos, ainda está escuro. Sento-me na cama, em
pânico, tentando lembrar-me de onde estou. Tudo o que sei é que não estou no
meu carro. Demoro vários segundos a recordar-me dos acontecimentos dos
últimos dias. Nina a oferecer-me o emprego aqui. Deixar de viver no meu carro.
Adormecer numa cama a sério.
Gradualmente, a minha respiração abranda.
Tateio a cómoda junto à minha cama à procura do telemóvel que Nina me
comprou. São 3:46 da manhã. Não propriamente horas de me levantar para o
dia. Afasto os cobertores ásperos das pernas e desço da cama enquanto os meus
olhos se ajustam ao luar que entra pela pequena janela. Vou dar um salto à casa
de banho e depois tentarei voltar a adormecer.
Os meus pés fazem ranger as tábuas nuas do soalho do meu pequeno quarto.
Bocejo, tirando um segundo para me esticar até quase tocar com as pontas dos
dedos nas lâmpadas do teto. Este quarto faz-me sentir gigante.
Chego à porta do meu quarto, agarro no puxador e…
Não roda.
O pânico que se tinha esvaído do meu corpo ao perceber onde estava
intensi�ca-se novamente. A porta está trancada. Os Winchester trancaram-me
neste quarto. Nina trancou-me neste quarto. Mas porquê? Será tudo isto algum
tipo de jogo doentio? Andariam à procura de alguma antiga reclusa para
prender aqui – alguém de quem ninguém sentiria a falta? Os meus dedos roçam
os arranhões na porta, indagando quem terá sido a última pobre mulher presa
aqui dentro.
Sabia que isto tinha de ser demasiado bom para ser verdade. Mesmo com a
cozinha espetacularmente suja, parecia um emprego de sonho. Sabia que Nina
tinha de ter feito uma veri�cação de antecedentes. Provavelmente trancou-me
aqui dentro, pensando que nunca ninguém daria pela minha falta.
Lembro-me de há dez anos, da primeira noite em que a porta da minha cela se
fechou e eu soube que aquela seria a minha casa durante muito tempo. Jurei a
mim mesma que, se alguma vez saísse, nunca mais me deixaria encurralar em
qualquer situação. No entanto, passou menos de um ano desde a minha saída, e
aqui estou eu.
Mas tenho o meu telemóvel. Posso ligar para o 112.
Arranco o telemóvel da cómoda onde o deixei. Antes tinha rede, mas agora
não. Nenhuma barra. Nada de rede.
Estou presa aqui. Com apenas uma minúscula janela que não abre, com vista
para o jardim das traseiras.
O que vou eu fazer?
Estendo novamente a mão para o puxador, perguntando-me se poderei, de
alguma forma, derrubar a porta. Mas, desta vez, ao virá-lo bruscamente, o
puxador roda na minha mão.
E a porta abre-se.
Aos tropeções, saio para o corredor, a respiração acelerada. Paro lá por um
momento, enquanto o meu ritmo cardíaco regressa ao normal. Nunca estive
trancada no quarto, a�nal. Nina não tinha nenhuma conspiração maluca para
me prender lá dentro. A porta estava simplesmente emperrada.
No entanto, parece que não consigo sacudir esta sensação de inquietude. De
que devia sair daqui enquanto ainda posso.
Q
7
uando desço de manhã, Nina está a destruir sistematicamente a
cozinha.
Tirou todos os tachos e panelas do armário sob a bancada. Arrancou
metade dos pratos de cima do lava-loiça e vários deles estão partidos no chão da
cozinha. E agora está a vasculhar o frigorí�co, atirando comida ao acaso para o
chão. Estarrecida, vejo-a tirar um pacote de leite inteiro do frigorí�co e atirá-lo
ao chão. O leite começa imediatamente a jorrar, formando um rio branco em
torno dos tachos e panelas e dos pratos quebrados.
– Nina? – chamo, hesitante.
Ela paralisa, as mãos apertadas em torno de um pão. Vira bruscamente a
cabeça para me �tar.
– Onde estão?
– Onde… onde está o quê?
– As minhas notas! – solta um grito angustiado. – Deixei todas as minhas
notas para a reunião da APP desta noite na bancada da cozinha! E agora
desapareceram! O que lhes fez?
Em primeiro lugar, por que haveria ela de pensar que as suas notas estavam no
frigorí�co? Em segundo, tenho a certeza de que não as deitei fora. Quer dizer,
tenho noventa e nove por cento de certeza. Há alguma minúscula hipótese de
que houvesse um pequeno papel amarrotado em cima da bancada que eu
presumi que fosse lixo e deitei fora? Sim. Não posso excluir a possibilidade.
Mas tive bastante cuidado em não deitar fora algo que não fosse lixo. Para dizer
a verdade, quase tudo era lixo.
– Eu não lhes �z nada – digo.
Nina planta os punhos nas ancas.
– Está a dizer então que as minhas notas desapareceram simplesmente
sozinhas?
– Não, não estou a dizer isso – cuidadosamente, dou um passo na sua direção
e o meu ténis esmaga um prato partido. Mentalmente, tomo nota para nunca
vir à cozinha descalça. – Mas talvez as tenha deixado noutro sítio?
– Não! – responde. – Deixei-as aqui mesmo – com a mão aberta, bate com
tanta força na bancada da cozinha que me faz dar um salto. – Nesta mesma
bancada. E agora… foram-se! Desapareceram!
Toda esta agitação atraiu a atenção de Andrew Winchester. Entra na cozinha,
vestindo um fato escuro que o faz parecer ainda mais atraente do que ontem, se
tal é possível. Está nitidamente no processo de atar a gravata, mas os seus dedos
paralisam a meio do nó ao ver a confusão no chão.
– Nina?
Ela vira-se para o marido, os olhos marejados de lágrimas.
– A Millie deitou fora as minhas notas para a reunião desta noite!Abro a boca para protestar, mas é inútil. Nina tem a certeza de que eu deitei
fora as suas notas, e é perfeitamente possível que o tenha feito. Quer dizer, se
eram assim tão importantes, por que haveria ela de as deixar simplesmente na
bancada da cozinha? Pelo aspeto que tinha ontem, a cozinha bem podia estar
devoluta.
– Isso é terrível – Andrew abre os braços e ela atira-se para eles. – Mas não
tens algumas das tuas notas guardadas no computador?
Nina funga-lhe para o fato caro. Provavelmente está a enchê-lo de ranho, mas
Andrew não parece importar-se.
– Algumas. Mas terei de refazer grande parte.
E, então, vira-se para me lançar um olhar acusador.
Já basta de tentar a�rmar a minha inocência. Se ela tem a certeza de que lhe
deitei as notas fora, o melhor a fazer é simplesmente pedir desculpa.
– Lamento muito, Nina – digo. – Se houver algo que eu possa fazer…
Os olhos de Nina baixam-se para o desastre no chão da cozinha.
– Pode limpar esta confusão nojenta que deixou na minha cozinha enquanto
eu resolvo este problema.
Dito isto, sai pesadamente da cozinha. Os seus passos desaparecem escadas
acima enquanto eu contemplo como vou limpar todos estes pratos partidos,
agora misturados com leite derramado e cerca de vinte uvas a rebolar pelo chão.
Pisei uma delas, que agora está em toda a sola do meu ténis.
Andrew deixa-se �car para trás na cozinha, a abanar a cabeça. Agora que Nina
saiu, sinto que devia dizer algo.
– Escute – começo. – Não fui eu que…
– Eu sei – diz, antes de eu poder terminar a minha pro�ssão de inocência. – A
Nina é… irritável. Mas tem bom coração.
– Pois…
Despindo o casaco escuro, começa a arregaçar as mangas da sua imaculada
camisa branca.
– Deixe-me ajudá-la a limpar isto.
– Não tem de fazer isso.
– Será mais rápido se trabalharmos juntos.
Dirige-se ao armário junto à cozinha e tira a esfregona – �co chocada por
saber exatamente onde estava. Na verdade, orienta-se bastante bem no armário
dos produtos de limpeza. E agora compreendo. A Nina já fez coisas destas
antes. Ele habituou-se a limpar as suas confusões.
Mas, mesmo assim, eu trabalho aqui agora. Não é tarefa que lhe incumba.
– Eu limpo – ponho a mão na esfregona que tem na mão e puxo-a. – Está
todo arranjado, e é para isso que cá estou.
Por um momento, agarra-se à esfregona. Depois, deixa-me tirar-lha.
– Está bem. Obrigado, Millie. Agradeço o seu trabalho árduo.
Ao menos alguém o faz.
Enquanto começo a limpar a cozinha, lembro-me da fotogra�a na cornija de
Andrew e Nina nos seus primeiros tempos juntos, antes de casarem, antes de
terem a Cecelia. Parecem tão jovens e felizes juntos. É óbvio que Andrew
continua louco pela Nina, mas algo mudou. Sinto-o. Nina não é a pessoa que
costumava ser.
Mas não importa. Não tenho nada a ver com isso.
N
8
ina deve ter deitado metade do conteúdo do frigorí�co para o chão da
cozinha, pelo que tenho de ir ainda hoje à mercearia. Uma vez que,
ao que tudo indica, também vou cozinhar para eles, escolho algumas
carnes cruas e temperos que posso utilizar para preparar algumas refeições. Nina
carregou o seu cartão de crédito no meu telemóvel. Tudo o que comprar será
automaticamente debitado na sua conta.
Na prisão, as opções alimentares não eram muito entusiasmantes. A ementa
alternava entre frango, hambúrgueres, cachorros-quentes, lasanha, burritos e um
misterioso pastel de peixe que me fazia sempre vomitar. Havia vegetais como
acompanhamento, cozidos até ao ponto da desintegração. Costumava fantasiar
com o que comeria quando saísse, mas, com o meu orçamento, as opções não
eram muito melhores. Só podia comprar o que estava em promoção, e quando
passei a viver no meu carro, �quei ainda mais limitada.
É diferente fazer compras para os Winchester. Vou direta aos melhores cortes
de bife – procurarei no YouTube como os cozinhar. Às vezes, costumava cozinhar
bifes para o meu pai, mas isso foi há muito tempo. Se comprar ingredientes
caros, sairão bem independentemente do que eu lhes �zer.
Ao regressar a casa dos Winchester, levo quatro sacos a transbordar de
compras na bagageira do meu carro. Os carros de Nina e Andrew ocupam os
dois lugares na garagem, e ela deu-me instruções para não estacionar no
caminho de acesso, pelo que tenho de deixar o meu carro na rua. Quando estou
a atrapalhar-me para tirar os sacos da bagageira, o jardineiro Enzo emerge da
casa ao lado com uma assustadora ferramenta de jardinagem qualquer na mão
direita.
Vendo-me em di�culdades, e após um momento de hesitação, o Enzo corre
para o meu carro. Franze-me o sobrolho.
– Eu levar – diz, no seu inglês com sotaque carregado.
Começo a agarrar um dos sacos, mas ele recolhe os quatro nos seus braços
enormes e leva-os até à porta da frente. Aponta para a porta, esperando
pacientemente que eu a abra. Faço-o o mais rápido possível, uma vez que tem
mais de trinta e cinco quilos de compras nos braços. Ele limpa as botas ao
tapete da entrada, levando em seguida as compras o resto do caminho até à
cozinha e deixando-as na bancada.
– Gracias – digo-lhe.
Ele torce os lábios.
– Não. Grazie.
– Grazie – repito.
Deixa-se �car na cozinha por um momento, de sobrancelhas franzidas. Noto
uma vez mais que o Enzo é atraente, de uma maneira sombria e aterradora. Tem
tatuagens nos antebraços, parcialmente escondidas pela sua T-shirt – consigo
distinguir o nome «Antonia» inscrito num coração no seu bíceps direito.
Aqueles braços musculados podiam matar-me sem que sequer transpirasse, se
lhe passasse pela cabeça fazê-lo. Mas não me dá a ideia de que este homem me
queira magoar de todo. Quando muito, parece preocupado comigo.
Lembro-me do que me murmurou antes de Nina nos interromper no outro
dia. Pericolo. Perigo. O que estaria a tentar dizer-me? Achará que corro perigo
aqui?
Talvez devesse descarregar uma aplicação de tradução para o meu telemóvel.
Ele podia escrever o que quer dizer-me e…
Um ruído vindo de cima interrompe os meus pensamentos. O Enzo inspira
bruscamente.
– Eu ir – diz, rodando nos calcanhares e dirigindo-se de novo à porta.
– Mas… – apresso-me a segui-lo, mas é muito mais rápido do que eu. Sai
porta fora antes de eu sequer ter atravessado a cozinha.
Por um momento, �co na sala de estar, dividida entre guardar as compras e ir
atrás dele. Mas, então, a decisão é tomada por mim quando Nina desce as
escadas até à sala, vestindo um fato de calças branco. Acho que nunca a vi usar
nada além de branco – é certo que lhe realça o cabelo, mas o esforço de o manter
limpo daria comigo em doida. Claro que, de agora em diante, serei eu a tratar
da lavandaria. Tomo mentalmente nota para comprar mais lixívia da próxima
vez que for à mercearia.
Nina vê-me ali parada e as suas sobrancelhas arqueiam-se até à linha do
cabelo.
– Millie?
Forço um sorriso.
– Sim?
– Ouvi vozes aqui em baixo. Estava a receber companhia?
– Não. Nada disso.
– Não pode convidar estranhos para nossa casa – diz, franzindo-me o
sobrolho. – Se quiser receber algum convidado, espero que peça autorização e
nos avise com pelo menos dois dias de antecedência. E peço-lhe que o mantenha
no seu quarto.
– Era só aquele jardineiro – explico. – Ajudou-me a trazer as compras para
dentro de casa. Mais nada.
Esperava que a explicação satis�zesse Nina, mas em vez disso o seu olhar
ensombra-se. Um músculo contrai-se sob o seu olho direito.
– O jardineiro? Enzo? Ele esteve aqui?
– Hã… – esfrego a nuca. – É esse o seu nome? Não sei. Trouxe só as compras
para dentro.
Nina estuda o meu rosto como que a tentar detetar alguma mentira.
– Não quero que ele volte a entrar nesta casa. Está imundo de trabalhar lá
fora. Esforço-me tanto para manter esta casa limpa.
Não sei o que dizer a isso. O Enzo limpou as botas ao entrar na casa e não
deixou qualquer rasto de terra. E nada é comparável à confusão que eu vi ao
chegar a esta casa ontem.
– Compreende, Millie? – insiste.
– Sim – respondo rapidamente. – Compreendo.
Os seus olhos percorrem-me de uma forma que me deixa muito
desconfortável. Mudo o peso de um pé para o outro.
– A propósito, por que nunca usa os seusóculos?
Os meus dedos voam-me para o rosto. Por que usei aqueles estúpidos óculos
no primeiro dia? Nunca os devia ter usado, e quando me perguntou por eles
ontem, não devia ter mentido.
– Hã…
Ela arqueia uma sobrancelha.
– Estive na casa de banho do sótão e não vi qualquer solução para lentes de
contacto. Não era minha intenção bisbilhotar, mas se vai andar por aí a
conduzir com a minha �lha, a dada altura, espero que tenha boa visão.
– Certo… – limpo as mãos suadas às minhas calças de ganga. Devia
simplesmente dizer a verdade. – A questão é que eu não preciso realmente… –
pigarreio. – Não preciso realmente de óculos. Os que usei na minha entrevista
eram mais do tipo… decorativo. Sabe?
Ela lambe os lábios.
– Compreendo. Quer dizer então que me mentiu.
– Não estava a mentir. Era uma a�rmação de moda.
– Sim – os seus olhos azuis são como gelo. – Mas, depois, eu perguntei-lhe
por isso e disse-me que estava a usar lentes de contacto. Não foi?
– Oh – torço as mãos. – Bem, suponho que… Sim, dessa vez estava a mentir.
Suponho que me sentia embaraçada por causa dos óculos… Lamento muito.
Os cantos dos seus lábios curvam-se para baixo.
– Por favor, não me volte a mentir.
– Não o farei. Peço desculpa.
Por um momento, �ta-me com um olhar imperscrutável. De seguida, observa
a sala de estar, varrendo cada superfície com os olhos.
– E, por favor, limpe esta sala. Não lhe pago para namoriscar com o
jardineiro.
Dito isto, Nina sai pela porta da frente, batendo-a com força atrás de si.
N
9
ina está na sua reunião da APP esta noite – a que eu arruinei ao deitar
fora as suas notas. Vai comer qualquer coisa com alguns dos outros
pais, por isso fui encarregada de fazer o jantar para Andrew e para
Cecelia.
A casa �ca muito mais tranquila quando Nina não está. Não sei bem porquê,
mas tem simplesmente uma energia que preenche todo o espaço. Neste
momento, estou sozinha na cozinha, a selar um �let mignon na frigideira antes de
o en�ar no forno, e está um silêncio celestial em casa dos Winchester. É
agradável. Este emprego seria fantástico se não fosse a minha patroa.
Andrew tem um sentido de oportunidade incrível – chega a casa precisamente
quando eu estou a tirar os bifes do forno para os deixar a repousar na bancada da
cozinha. Espreita para dentro da divisão.
– Cheira maravilhosamente… outra vez.
– Obrigada – junto um pouco mais de sal ao puré de batata, que está já
ensopado em manteiga e natas. – Pode dizer à Cecelia para descer? Chamei-a
duas vezes, mas… – Na verdade, chamei-a três vezes. Ainda não me respondeu.
Andrew aquiesce.
– Entendido.
Pouco depois de desaparecer na sala de jantar e chamar o seu nome, oiço os
passos rápidos da Cecelia na escadaria. Então é assim que vai ser.
Preparo dois pratos com os bifes, o puré de batata e um acompanhamento de
brócolos. As doses são mais pequenas no prato da Cecelia, e não vou controlar se
come os brócolos ou não. Se o pai quiser que os coma, pode obrigá-la ele mesmo
a fazê-lo. Mas estaria a ser negligente se não lhe fornecesse vegetais. Quando eu
era pequena, a minha mãe certi�cava-se sempre de que havia uma dose de
vegetais nos pratos do jantar.
Estou certa de que ainda se pergunta onde errou na minha educação.
A Cecelia usa outro dos seus vestidos excessivamente extravagantes numa
pouco prática cor clara. Nunca a vi usar roupas de criança normais, e parece-me
simplesmente errado. Não se pode brincar com os vestidos que a Cecelia usa –
são demasiado desconfortáveis e qualquer partícula de pó se vê. Senta-se numa
das cadeiras à mesa de jantar, agarra no guardanapo que eu pus e estende-o
delicadamente sobre o colo. Por um momento, �co um pouco encantada.
Depois, abre a boca.
– Por que me deste água? – franze o nariz ao copo de água �ltrada que eu pus
no seu lugar. – Odeio água. Traz-me sumo de maçã.
Se eu falasse assim a alguém quando era pequena, a minha mãe ter-me-ia
batido na mão e obrigado a dizer «por favor». Mas a Cecelia não é minha �lha,
e ainda não consegui cair nas suas boas graças desde que aqui estou. Por isso
sorrio educadamente, retiro a água e levo-lhe um copo de sumo de maçã.
Quando lhe ponho o novo copo à frente, ela examina-o cuidadosamente.
Ergue-o para a luz, semicerrando os olhos.
– Este copo está sujo. Traz-me outro.
– Não está sujo – protesto. – Acaba de sair da máquina de lavar.
– Está manchado – faz uma careta. – Não o quero. Traz-me outro.
Respiro fundo e calmamente. Não vou discutir com esta menina. Se quer
outro copo para o seu sumo de maçã, vou buscar-lhe outro copo.
Enquanto vou procurar um novo copo para a Cecelia, Andrew chega à mesa de
jantar. Tirou a gravata e abriu o botão de cima da sua camisa branca. Capta-se
um ligeiríssimo vislumbre de pelos do peito a espreitar. E eu tenho de desviar
os olhos.
Os homens são algo com que ainda estou a aprender a lidar na minha vida
pós-reclusão. E com «aprender», o que quero dizer é, naturalmente, evitar por
completo. No meu último emprego a servir às mesas naquele bar – o meu único
emprego desde que saí –, os clientes convidavam-me inevitavelmente para sair.
Eu dizia sempre que não. Simplesmente não há espaço neste momento para algo
assim na minha vida arruinada. E, claro, os homens que me convidavam eram
homens com quem jamais quereria sair.
Fui para a prisão aos dezassete anos. Não era virgem, mas as minhas únicas
experiências resumiam-se a sexo desajeitado na escola secundária. Durante o
meu tempo na prisão, às vezes sentia um puxão perto dos guardas atraentes. Por
vezes, o puxão era quase doloroso. E uma das coisas por que ansiava quando
saísse era a possibilidade de ter uma relação com um homem. Ou mesmo apenas
sentir os lábios de um homem sobre os meus. Quero-o. É claro que sim.
Mas não agora. Um dia.
Ainda assim, ao olhar para um homem como Andrew Winchester, lembro-me
de que nem sequer toco num homem há mais de uma década – não dessa forma,
em todo o caso. Não é nada parecido com aqueles tarados no bar sórdido onde
eu costumava servir às mesas. Quando �nalmente voltar a sair, é este o tipo de
homem que procuro. Só que não casado, obviamente.
Tenho uma ideia: se alguma vez quiser libertar um pouco de tensão, o Enzo
talvez seja um bom candidato. Não, ele não fala inglês. Mas, se for só por uma
noite, não deve importar. Tem ar de quem saberia o que fazer sem ter de dizer
muito. E, ao contrário de Andrew, não usa aliança – embora não possa deixar de
me interrogar sobre essa tal Antonia, cujo nome tem tatuado no braço.
Arranco-me às minhas fantasias sobre o jardineiro sexy e regresso à cozinha
para ir buscar os dois pratos de comida.
Os olhos de Andrew iluminam-se ao ver o bife suculento, perfeitamente selado.
Estou realmente orgulhosa de como saiu.
– Tem um aspeto incrível, Millie! – exclama.
– Obrigada – digo.
Olho para a Cecelia, que tem a reação oposta.
– Blhec! Isto é bife – a�rmando o óbvio, suponho.
– Bife é bom, Cece – diz-lhe Andrew. – Devias experimentar.
A Cecelia olha para o pai e, depois, de novo para o prato. Cautelosamente,
espeta o garfo no bife, como se temesse que lhe pudesse saltar do prato para a
boca. Tem uma expressão angustiada no rosto.
– Cece… – diz Andrew.
Olho da Cecelia para Andrew, sem saber muito bem o que fazer. Ocorre-me
agora que provavelmente não devia ter preparado um bife para uma menina de
nove anos. Parti simplesmente do princípio de que devia ter gostos elevados, a
viver num sítio destes.
– Hum – digo. – Será melhor…?
O Andrew empurra a cadeira para trás e retira o prato da Cecelia da mesa.
– Muito bem. Vou preparar-te uns nuggets de frango.
Sigo-o de volta à cozinha, pedindo copiosas desculpas. Limita-se a rir.
– Não se preocupe com isso. A Cecelia é obcecada por frango, sobretudo por
nuggets. Podíamos estar a jantar no restaurante mais so�sticado de Long Island e
ela pediria nuggets de frango.
Os meus ombros relaxam um pouco.
– Não tem de fazer isto. Eu posso fazer-lhe os nuggets de frango.
Andrew pousa o prato na bancada da cozinha e agita um dedo na minha
direção.
– Oh, mas tenho. Se vai trabalhar aqui,

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