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A�PRIMEIRA�PEDRA Krzysztof Charamsa A�PRIMEIRA�PEDRA Eu, padre gay, e a minha revolta contra a hipocrisia da Igreja Católica Tradução Gilson César Cardoso de Sousa Título do original: La Prima Pietra. Copyright © 2016 Rizzoli Libri S.p.A./Rizzoli. Copyright da edição brasileira © 2017 Editora Pensamento-Cultrix Ltda. Texto de acordo com as novas regras ortográ�cas da língua portuguesa. 1ª edição 2017. Citação da página 15 © 2015 Mondadori Libri S.p.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou usada de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópias, gravações ou sistema de armazenamento em banco de dados, sem permissão por escrito, exceto nos casos de trechos curtos citados em resenhas críticas ou artigos de revistas. A Editora Seoman não se responsabiliza por eventuais mudanças ocorridas nos endereços convencionais ou eletrônicos citados neste livro. Editor: Adilson Silva Ramachandra Editora de texto: Denise de Carvalho Rocha Gerente editorial: Roseli de S. Ferraz Preparação de originais: Nilza Agua Produção editorial: Indiara Faria Kayo Editoração eletrônica: Fama Editora Revisão: Vivian Miwa Matsushita Produção de ebook: S2 Books Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Charamsa, Krzysztof A primeira pedra : eu, padre gay, e a minha revolta contra a hipocrisia da Igreja Católica / Krzysztof Cha tradução Gilson César Cardoso de Sousa. — São Paulo : Seoman, 2017. Título original: La prima pietra ISBN: 978-85-5503-047-5 1. Charamsa, Krzysztof, 1972- 2. Clero gay — Biogra�a 3. Homossexualidade — Aspectos religiosos — Católica 4. Igreja Católica — Clero — Biogra�a I. Título. 17-01665 CDD-922.2 Índices para catálogo sistemático: 1. Ex-padres católicos : Memórias autobiográ�cas 922.2 1ª Edição Digital: 2017 eISBN: 978-85-5503-048-2 Seoman é um selo editorial da Pensamento-Cultrix. Direitos de tradução para o Brasil adquiridos com exclusividade pela EDITORA PENSAMENTO-CULTRIX LTDA., que se reserva a propriedade literária desta tradução. Rua Dr. Mário Vicente, 368 — 04270-000 — São Paulo, SP. Fone: (11) 2066-9000 — Fax: (11) 2066-9008 http://www.editoraseoman.com.br E-mail: atendimento@editoraseoman.com.br Foi feito o depósito legal. http://www.s2books.com.br/ http://www.editoraseoman.com.br/ mailto:atendimento@editoraseoman.com.br Sumário Sumário Capa Folha de Rosto Créditos A Primeira Pedra Os Protagonistas do Drama Primeira Parte O Encontro Eu, Narciso Meu Goldmundo O Dia Seguinte Segunda Parte A Bela e a Fera Família Fé Pátria Escola Vocação Um Seminário, ou Melhor, Três Celibato Igreja Renúncia Confissão de Sexo Clero Deus Imutável Inquisição O Esperma Segundo o Santo Ofício Uma Universidade, ou Melhor, Duas Bento, Francisco e os Sínodos Desperdiçados Corporação Hipócrita Celibatários e Violentos Leprosos Terceira Parte O Despertar A Heteroditadura A Europa Livre O Espelho do Cinema Gay Mais Três Passos em Busca de Mim Mesmo Religião Também para os Gays Minha Saída do Armário Finalmente Livre Deus Venceu O Homem Não Havia se Suicidado As Últimas Horas O Instante que Encerra o Futuro Aos meus Leitores Post Scriptum A Declaração da Saída do Armário Carta ao Papa Francisco O Novo Manifesto de Libertação Gay A�Primeira�Pedra Ao homem que me beijou e me deu a mão para me arrancar da mentira Ao homem que amo, a Eduard Os�Protagonistas� do�Drama EU Quem sou eu? Sempre fui dramático. Sempre vivi cada instante como se fosse a eternidade. O todo no fragmento. Serei, eu próprio, um fragmento? Não, eu sou a totalidade. A totalidade da pessoa. Eu sou uma pessoa. IGREJA Quem é a Igreja neste drama? A que ponho aqui em cena é ela, a Igreja Católica, universal. Os irmãos mais meticulosos dirão que aludo principalmente às altas hierarquias eclesiásticas. Mas não farei distinções. Sou �el ao que a Igreja, a comunidade de Cristo, me ensinou sobre ela mesma. Uma coisa peço aos irmãos e irmãs, católicos e católicas, que porventura não se identi�quem com a face encarquilhada que desvendo, e que não tenham seus próprios pecados a confessar: não se ofendam e sejam compreensivos. Convido-os, no entanto, a reconhecer que, embora não comunguemos com os sumos sacerdotes homofóbicos, ainda assim somos parte do espírito empobrecido e odioso dessa personagem do drama. Eu em primeiro lugar... Primeira Parte O Encontro Eu,�Narciso Já não quero ser Narciso pelo resto da vida. Antes, queria sê-lo, para sempre. Essa me parecia a única possibilidade de realização; convenci-me de que era excitante, desejável, bom. Narciso é o amigo secreto de todos os gays como eu. O amigo descoberto quando se lê Hermann Hesse, que traz dentro de si o fascínio e a dor de amar homens, o prazer e o mistério de se apaixonar por homens. Sim, também eu, no fundo do coração, fui Narciso. Fui Narciso antes de me apaixonar por Queer as Folk,[1] antes de me interessar pelo cinema gay, antes de ler Chama-me por Teu Nome,[2] antes de mergulhar na biblioteca que todo homossexual deveria conhecer antes de se tornar cliente da Cómplices, uma fantástica pequena livraria do Bairro Gótico de Barcelona (como seria bom que cada cidade tivesse uma!). Era aquele mesmo Narciso que tantos padres reconheceram dentro de si quando se encontraram face a face com um membro de seu próprio clube, toda vez que se perguntaram se aquele homem ali à frente partilhava seu segredo. Narciso é o código cifrado para se ter acesso a uma sublime beleza, oculta e proibida, a uma natureza espiritual que quer exprimir-se. Narciso continua a existir porque nem os católicos nem os puritanos conseguiram aniquilá-lo. Narciso me permitiu sobreviver no inferno da heterossexualidade obrigatória. Por isso eu citava Hesse em minhas palestras religiosas, quase com lágrimas nos olhos. Esperava que alguém captasse o sentido oculto daquela referência, em nada condizente com a doutrina cristã que eu pregava, e entendesse que, na verdade, eu só queria me libertar, pôr à mostra minha verdadeira natureza — naturalíssima para mim e para milhares de outros como eu. Também citei Hesse em meu último livro de tema católico, meu testamento Virtù e Vocazione,[3] no qual revelei nas entrelinhas aquilo em que acreditava e como acreditava; mas também por que tudo parecia irreal simplesmente em razão de não ter sido levada em conta a verdadeira natureza do homem, daquele homem. Passou despercebido um pequeno detalhe oculto: eu sou gay. Citava desesperadamente Hesse, esperando que alguém ignorasse as inúteis teorias devotas e, por �m, me olhasse nos olhos. Narciso é o sacerdote católico, o padre erudito, o monge exemplar, o abade diligente, todo imerso nos estudos e nos livros. Por que ele faz isso? Porque não ama, porque não pensa no amor, porque sepultou a natureza do amor. Seu amigo de sempre, Goldmundo,[4] que no �m da vida aparece na abadia, provoca uma espécie de explosão. Narciso sussurrou ao ouvido de Goldmundo: Minha vida foi pobre de amor, faltou-me o melhor. Nosso abade Daniel me disse um dia que eu lhe parecia orgulhoso e talvez tivesse razão. Não sou injusto com os homens, esforço-me por ser correto e paciente com eles — mas nunca os amei. De dois eruditos no convento, o mais erudito é aquele que eu mais amo; nunca pude querer bem a um cientista fraco, ignorando sua fraqueza. No entanto, se sei o que é o amor, isso eu devo a ti. Poderia ter-te amado, só a ti entre os homens. Não conseguirias avaliar o que signi�cas: signi�cas a fonte no deserto, a árvore �orida em terreno inóspito. Devo a ti que meu coração não haja mirrado, que reste em mim um ponto acessível à graça.[5] Quando citava essa passagem diante de padres, freiras e leigos mais ou menos devotos, na verdade queria gritar-lhes o que precede a excruciante admissão do abade Narciso: “Nunca ameias pessoas, era sempre responsável por elas, respeitoso como convinha, e tendo-as em boa conta; mas amar, nunca amei ninguém”. Quanto desejei bradar, também eu, essas palavras de Hesse e as que se seguem algumas linhas depois! Não podia fazê-lo, mas esperava ao menos que alguém relesse a obra toda sobre a qual eu devia passar em branco. Com efeito, ao ver Goldmundo, Narciso lhe disse: “Como estou feliz por voltares! Senti muita saudade de ti, pensava em ti todos os dias e às vezes tinha medo de que não quisesses voltar mais”. Goldmundo sacudiu a cabeça: “Ora, não seria grande perda”. Narciso, cujo coração ardia de dor e afeto, inclinou-se lentamente para ele e fez o que em muitos anos de amizade não �zera jamais, roçou com os lábios os cabelos e a fronte de Goldmundo. Este percebeu o que acontecia, primeiro com estupor, depois com emoção[6].” Mais que a ausência de amor, aqui Narciso confessava sua homossexualidade e lamentava um amor tolhido, dilacerado, infamado. Sua Igreja e ele próprio deviam odiá-lo, matá-lo, aniquilá-lo — mas esse amor sempre renascia. Estava vivo, não obstante os insensíveis e catolicíssimos gendarmes da única ressurreição verdadeira, que no entanto destruía as pessoas. Narciso encontrava seu modus vivendi naquela absurda negação da realidade. Mas então... então chegou a hora de sua saída do armário. Isso eu queria gritar aos meus ouvintes, aqueles corretos e perspicazes homófobos e homófobas. Quando eu estudava em Lugano, ia muitas vezes encontrar Hesse em seu túmulo nas proximidades de Montagnola. No Ticino, ele passara seus últimos anos de vida e ali morrera. Aquilo, para mim, era uma espécie de peregrinação romântica proibida, que na verdade ninguém me proibia. Muitos talvez nem soubessem que o corpo de Hesse repousava lá, sob dois blocos de pedra e nada mais. E, é bem provável, a maioria ignorava quem era ele. Aproximava-me, nostálgico, de sua tumba para buscar inspiração, para lhe abrir, como a um velho gay, a minha alma. Mas aquela região no sul da Suíça, com sua cultura de tolerância, era para mim um asilo de conforto e liberdade interior. Lá, o mestre Hesse vivia em mim e eu con�ava naquele amigo sensível e romântico, �lho de um rígido missionário protestante. Hesse me havia presenteado com o nome de Narciso. Hoje sei que não quero mais ser Narciso. Hoje sei que possuo meu Goldmundo e não pretendo dissipar minha vida �cando sem ele. Hoje quero começar a amar como sou, como Deus quer, como Deus entende o amor. Meu�Goldmundo Narciso não está só. Nunca esteve só. Também eu encontrei meu Goldmundo. Aconteceu uma noite em Barcelona. Foi então que nos descobrimos, nos apaixonamos, nos comprometemos. Foi então que decidimos não �car mais sós. Foi então que rocei seus lábios e seus cabelos. Aquela noite, passei-a entre seus braços quentes e fortes. Ele me amava e eu só pensava num modo de não perder seu amor. Foi uma das noites mais belas da minha vida, em um hotel no Eixample, o mais feio que eu já vira. Não, não era o hotel Axel.[7] Era uma pensãozinha horrível... e justamente ali encontrei meu futuro novio, meu parceiro, meu marido! Bela noite, uma das mais belas de toda a minha vida, e eu rezava a Deus para que não terminasse. Rezava a Deus para que aquele homem verdadeiro não me deixasse mais só. Mas como? Calma... Na verdade, ele deveria me deixar o mais rápido possível porque eu era... um padre. E ele não sabia. Sabia meu nome: Pietro, um nome de guerra, obviamente. E a cidade de onde eu vinha: Milão, o que também era falso. Qual era o meu trabalho? Lecionava �loso�a (bem, isso não estava muito distante da verdade). Minha falsa nacionalidade completava o relato. Ele sabia tudo quanto podem saber os amantes de uma noite. Eu, porém, não queria me esconder mais. Queria me revelar — mas por qual motivo? O que me atraía naquele homem, que já sentia meu? Não queria perdê-lo, estava apaixonado. E naquela noite vi Deus, o Deus que me amava, me abraçava, me aceitava porque me compreendia. Eu, versado em Deus, em tudo o que é divino... e também em tudo o que é homofóbico, �nalmente O vira. Encontrara um homem, mas vira Deus. E, por sorte, estava perdendo de vista sua Igreja medíocre. O�Dia�Seguinte Goldmundo me abrira para o amor ao semelhante, mas antes de tudo me abrira para o amor a mim mesmo. Com ele eu experimentava o que já sabia apenas teoricamente: não poderás amar teu semelhante se não amares de maneira sadia e equilibrada a ti mesmo, se primeiro não te aceitares, se primeiro não te conheceres. Se odeias a ti mesmo, se mentes a ti mesmo, não podes amar teu semelhante. Não precisamos do cristianismo para entender que está aí a chave das relações humanas. Se o cristianismo hoje se gaba de ensinar esses princípios, ou ao menos partilhá-los, na verdade o faz apenas em teoria, apegando-se a auspícios devotos e insigni�cantes. Ora, a verdade que conta está na vida, não nas teorias. E minha experiência na Igreja �zera de mim um perfeito teórico, capaz de explicar tudo, mas incapaz de viver a vida verdadeira. Não foi fácil libertar-me da ideologia opressiva da Igreja. Ela era uma prisão insuportável, que se assenhoreara de todas as �bras do meu ser. Era uma forma mentis, uma maneira de pensar e agir tirânica, que eu julgava ao mesmo tempo estranha e imprescindível. Medo, mentira... habituamo-nos a tudo e, surpreendentemente, acabamos por gostar de tudo, já que não vislumbramos outra possibilidade. Ao homem por quem me apaixonara eu devia dizer meu nome. Não podia mentir-lhe. Mas não sabia como fazer isso, pois tinha medo de perdê-lo. Então, o ódio que eu sentia por mim mesmo chegou ao ápice. Odiava a mentira que haviam me inculcado. A farsa da minha vida! O embuste onipresente em que minha Igreja me educara! Eu sentia nojo de mim. Quando nos impingem a necessidade de mentir sobre questões fundamentais da vida, no �m não sabemos mais quando dizemos a verdade e quando mentimos. Não sabemos mais quem somos porque, de fato, não existimos mais. Até então, a lavagem cerebral me convencera de que os gays não existiam. Mas agora, naquela noite maravilhosa, diante de mim estava o homem que eu amava, como Narciso ama Goldmundo. Também ele não queria me perder... e, no entanto, parecia-me vê-lo já desvanecer-se: eu não me lembrava sequer do número do meu telefone, que pretendia dar-lhe. Não me lembrava do meu endereço no Skype. Não me lembrava do meu e-mail. Não me lembrava de nada. Talvez fugisse de mim mesmo, não dele. O meu Goldmundo me acompanhou até o aeroporto. Restavam apenas uns poucos minutos, os últimos, em seu carro, antes que chegasse ao �m uma história fugaz. Sendo assim, de longe eu não poderia reparar o dano. Minha Igreja venceria: talvez, em sua in�nita misericórdia eclesiástica, me perdoasse até a escapada, desde que eu retornasse sem indulgência ao ódio a mim mesmo, à minha natureza. Goldmundo, é certo, suspeitava que eu lhe escondesse alguma coisa. Já no dia anterior, em nosso primeiro passeio por Barcelona (como me senti feliz por caminhar ao lado de um homem em plena luz do sol, sem medo!), ele me �zera perguntas: “Você não está por acaso casado com uma mulher? Tem �lhos?”. Eu lhe respondi tranquilamente: “Não!” Acontece que não me perguntou: você não é por acaso monsenhor, padre? Goldmundo havia me levado ao seu lugar preferido em Barcelona: Santa María del Mar, uma igreja imersa numa atmosfera de paz. Incrível... era meu primeiro encontro sério com um homem e ele me levava a uma igreja! Uma igreja de sonho, silenciosa e acolhedora, pronta para uma cerimônia de casamento. Sentamo-nos num banco, admirando as vigas do teto em gótico catalão. Estávamos de mãos dadas. Eu o amava diante de meu Deus, sem nenhuma vergonha. Nosso encontro ia terminar, após um dia e uma noite. Mas o ódio à minha natureza, o medo e a mentira iriam chocar-se com a verdade simples do amor entre dois homens. Por um lado, eu me dizia: esquece o fato, ele não existe!Mas outra voz perguntava: como assim, não existe?! Está aqui! E ele me abraçava. Restavam poucos instantes daquela viagem de carro. Eu não queria voltar ao pesadelo do meu cotidiano beato, todo entregue à salvação. “Eduard, tengo que decirte una cosa: yo soy cura”.[8] Ele se chama Eduard... Rompi em lágrimas, sem conseguir mais me controlar. Dava-me conta de ter experimentado, até aquele momento, a “morte assistida” de uma parte fundamental da minha personalidade, um trauma absurdo e gratuito, um homicídio violento da minha dignidade, fantasticamente orquestrado pela Igreja durante os longos anos em que havia sido cura. O voo para Roma me esperava. “Eduard, se você ainda me quer, eu gostaria de lhe telefonar.” Não podia voltar à “serenidade” católica do Evangelho porque ela me impunha um ódio cego e irracional a mim mesmo, à minha orientação sexual. Estava apaixonado. Sonhava com o que era coerente com minha natureza, com minha orientação sexual, com meu ser mais íntimo. Sonhava com a liberdade. Com ser eu mesmo. Sonhava com uma vida nova. Impossível? Não! Possível. Os cristãos não dizem que nada é impossível a quem ama? Mas como me arrisquei a essa experiência? Por que cheguei a esse ponto? Que caminho me trouxe até aqui? Segunda Parte A Bela e a Fera Família Para que eu possa me entender, preciso voltar no tempo, e voltar muito... Preciso voltar à gênese, à minha família. Preciso voltar ao ventre da minha mãe. Devo dizer já quando nasci? Pois direi: nasci a 5 de agosto, um sábado de muito calor, e por isso, em meu aniversário, sempre gostei de ir à praia. Primeiro no Norte, na península de Hel, no mar Báltico, com suas longas e profundas extensões de areia um pouco selvagens, a cerca de cinquenta quilômetros de casa; depois, nas praias mais ao sul. Nasci em 1972, ano em que o grande Guy Hocquenghem publicava seu texto programático Le Désir Homosexuel.[9] Nasci sob a boa estrela do manifesto da revolução homossexual que denunciava, com vigor, a dissimulada obsessão homofóbica. Ele descrevia as dinâmicas da homofobia e lançava os alicerces de um movimento de libertação dos homossexuais, depois de sair do armário naquele mesmo ano. Guy disse a verdade para desmascarar a hipocrisia coletiva e por isso foi expulso do Partido Comunista, de que era membro. A sociedade a que pertencia não desejava ouvir suas denúncias. Naquele ano nascia também o termo “homofobia”: o psicólogo americano George Weinberg, em seu Society and the Healthy Homosexual, dava nome ao medo irracional que se experimenta diante de um homossexual, àquela fobia em presença da diversidade que gera violência, ódio, destruição. Dar um nome exato ao mal é o primeiro passo para a vitória sobre o próprio mal. No entanto, segundo a mentalidade do ambiente católico em que nasci, esse nome nem deveria existir.[10] Corria o ano de 1972: a palavra que denuncia o medo e o ódio contra os homossexuais não podia nunca ser pronunciada. O desejo homossexual não podia nunca ser revelado. Talvez então eu não devesse ter nascido? Mas nasci. O desejo homossexual foi corajosamente a�rmado. E, graças a Deus, um cientista �nalmente de�niu o ódio contra os gays... Nasci num tempo e num espaço em que os gays não existiam o�cialmente. Representavam o tabu perfeito. Mesmo hoje, quando a homossexualidade vem à luz, é preciso fazer tudo para voltar ao tabu imposto: essa coisa vergonhosa, doentia, indizível, perversa, pecaminosa, diabólica... não, o�cialmente ela não existe. Algo que nos torna leprosos não deve sequer ter um nome. É necessário calá-lo com pudor. No mundo onde nasci não importava a ninguém que, em 1973, ano de meu primeiro aniversário, fosse organizado em Paris o Primeiro Congresso Mundial das Organizações Homossexuais (ao qual eu não podia ser convidado!). Não importava a ninguém que, naquele ano, a Associação Americana de Psiquiatria eliminasse a homossexualidade de sua respeitada lista de distúrbios psicológicos.[11] A ciência corrigia, pois, seus próprios erros, enquanto o mundo católico em que nasci considerava essas novas posições simplesmente como infundadas. Contudo, na época, mesmo no âmbito católico um jesuíta catalão, Salvador Guasch, revelou publicamente que era homossexual e nem por isso menos feliz. Um gay ousando não se sentir distante de Deus! Mera presunção de um desgraçado! Dizem que pagou essa sinceridade com vários meses de manicômio e terapias brutais, para se curar ou ao menos reprimir seus desejos malsãos e seus pensamentos “contra a natureza”. Eu tinha então um ano e não podia saber nada sobre essa corajosa saída para a luz do dia; mas meu mundo castrava quem se permitia ser feliz sem a autorização da Igreja e do Estado. Sim, nasci num mundo católico. Amo minha família. Minha mãe era uma mulher de fé inabalável. Com sua fé era capaz de fazer milagres, de resistir a provas insuportáveis. Sua fé nunca vacilou, nem diante de comportamentos aberrantes da Igreja: minha mãe tinha um quê de genial, que a punha além da mediocridade humana. Meus pais eram economistas de formação. Trabalhavam juntos, ainda que, segundo a mentalidade católica, o pai — como verdadeiro macho — devesse manter a família. Fui seu primogênito: após três anos, nasceu meu irmão e, quando eu tinha doze anos, nasceu minha irmã. As coisas pararam por aí. Meu pai saiu de casa no mesmo dia em que, chegado à maturidade, entrei para o seminário a �m de me tornar padre. Na época, eu não conhecia outros casos de separação e o �m do casamento dos meus pais foi absolutamente insólito. Ficamos sem nada, num apartamento velho, com toda a poupança acumulada para uma casa nova sumindo juntamente com meu pai. No processo de divórcio, minha mãe não quis apresentar nenhuma defesa e não lutou pelo pleno respeito aos direitos seus e dos �lhos. Eu a compreendi na radicalidade de seu silêncio. No fundo, não aceitava o divórcio e, portanto, se recusava a lutar pelo que lhe cabia. Pensando bem, contudo, para defender nossos direitos precisávamos igualmente de um bom advogado e isso não podíamos nos permitir. Assim meu pai se foi, sem pensar muito nas necessidades dos �lhos: só mandava o dinheiro estipulado pelo juiz para minha irmã, mas ao menos havia paz. Para mim, separar-me de meu pai foi uma libertação. Talvez tudo tenha sido diferente com meus irmãos. Entrando para o seminário, eu começava uma vida nova, enquanto eles permaneciam em casa. Mas o convívio com meu pai, do qual só guardo uma vaga lembrança, se tornara insuportável: ele era ausente, não estabelecera uma verdadeira relação paterna conosco. Agora sei que, a seu modo, nos amava, mas de maneira possessiva, como se ama uma propriedade, de forma não muito diferente da que ocorre em certas famílias patriarcais e machistas. Não lhe guardo nenhum rancor, mas conservo, ainda assim, a sensação de não ter um pai ao meu lado. Segundo uma interpretação frequente no universo católico, um menino com pai ausente e mãe superprotetora (coisa que a minha nunca foi) tende a se tornar efeminado, portanto homossexual — isto é, transviado e pecaminoso. Por isso, no correr dos anos, ao buscar uma explicação para mim mesmo, apropriei-me desse estereótipo: era gay porque minhas relações com meu pai tinham sido negativas ou inexistentes (e a Igreja possuía já a solução perfeita para mim: com o celibato, oferecia-me um esconderijo, uma escapatória “digna” ao casamento heterossexual). Mais tarde, conheci dezenas e dezenas de gays que mantinham um ótimo relacionamento — ou pelo menos um relacionamento normal — com seus pais (caso me seja lícito empregar o adjetivo “normal”, que parece apanágio exclusivo da Igreja Católica, tão rigorosa quanto o foi no passado a in�exível doutrina marxista, contra a qual ela própria lutava!). Acho que nunca fui o �lho dos sonhos do meu pai: tinha mais a�nidades eletivas com a arte, a ópera lírica, o teatro e o balé que com o futebol. Garoto ainda, refugiava-me nos livros, mas não os de matemática e sim os de literatura, poesia, história. Não era, pois, o �lho machoque ele poderia querer, forte o bastante para esmurrar um colega, o modelo viril de rapaz destinado a ocupar- se, como ele, de economia e �nanças. Um economista: não um sonhador, um romântico, um idealista! Sempre tive a impressão de que, para meu pai, o �lho predileto era meu irmão, que além dos livros se dedicava à bola, como se devia esperar de um macho “são”. Sim, eu era gay! Sou gay desde que meus genitores me deram a vida. Mas não foram eles nem ninguém que infundiram em mim a homossexualidade. Não é o pai ou a mãe que transmite ao �lho a condição homossexual ou heterossexual: eles podem, isto sim, transmitir-lhe a homofobia, o medo e o ódio aos gays e à condição de gay. Dos outros se herda a homofobia; a homossexualidade é dada. Ela é um dom para o homossexual, como o é a heterossexualidade para o heterossexual. É o dom de meu Deus, o dom da natureza, o dom da vida. É a boa energia presenteada e disseminada entre as pessoas. Só a homofobia pode contaminar a energia boa. Às vezes, penso que meu pai já suspeitava de alguma coisa em mim quando eu ainda era bem pequeno; teria sido curioso ver sua reação quando saí do armário. Diria “eu sempre soube”, “eu suspeitava” ou “eu temia”? Hoje, porém, nem sequer imagino a possibilidade de estabelecer uma relação qualquer com ele: depois de tantos anos de ausência injusti�cada, é como se meu pai estivesse morto. Não acredito no “dogma da a�nidade de sangue” que nos force a simpatizar com alguém, ainda quando esse alguém nos ignorou e desprezou por muito, muito tempo. Eu amava meu irmão e minha irmã. Hoje penso que nem sempre consegui demonstrar plenamente esse afeto a meu irmão, o que me entristece. Seria eu igual ao meu pai? A impressão de ele ser o predileto me bloqueava? À minha irmã, pelo contrário, eu não poupava os cuidados extremosos de irmão mais velho: eu cuidava dela, eu a protegia e a amparava, quase tomando o lugar do meu pai. Brotou assim em mim, instintivamente, a ideia de manter a família depois do abandono: sentia-me responsável por seu sustento, desejando apenas que fôssemos felizes. Renunciava a tudo para ajudá-los, na tentativa de amenizar seu dia a dia e dar-lhes segurança. Anos depois, cheguei a auxiliar outras pessoas nos estudos. Havia conhecido gente boa, mecenas sinceros que colaboraram na minha educação, e sentia a necessidade de renunciar a uma parte do que recebia para ajudar alguém mais a estudar, como haviam feito comigo. Eu vivia para os outros. Não raro acho que dei passos maiores que as pernas, passos que me custaram grandes sacrifícios; mas faria tudo de novo, mil vezes. Naqueles anos, meus irmãos e eu éramos felizes e estáveis. Tudo o que eu fazia para meus entes queridos me parecia a manifestação de um amor tipicamente gay: ora exuberante, ora complicado, ora exagerado, quase como se, no subconsciente, eu buscasse sua aprovação, seu amor por aquilo que eu era realmente (mas que eles ignoravam). Sempre que re�ito sobre minha infância, pergunto-me se não levava tudo muito a sério. Eu era compenetrado, parecendo maduro demais; não me permitia o que os rapazes costumam se permitir. Em certo sentido, �quei adulto de repente. Seria esse um modo de me esconder, de levantar desde logo um muro entre minha alma, delicada e sensível, e o mundo? Naquela época, todos os meninos católicos deviam saber que se devia sentir um enorme desprezo por aqueles que gostavam de machos. Horror, recusa da vergonhosa depravação ou “abjeção”, como diria Julia Kristeva.[12] Sempre levei a sério a fé da minha família e da minha Igreja. Mas talvez a Igreja tenha me confundido com relação ao amor a si mesmo. Eu não hesitava em acolher o mandamento de amar aos outros, mas percebia a descon�ança dos pregadores da Igreja quanto ao amor a si próprio e à verdade pessoal. Quando, há algum tempo, confessei à minha mãe que era homossexual, a resposta dela foi absolutamente inesperada: não a reação imposta pela mentalidade da Igreja, mas uma manifestação de amor sem limites desde o primeiro instante. Ela só insistia em que não conseguia imaginar quanto eu havia sofrido por “aquilo”, quanta dor me teria provocado um segredo assim, escondido por tanto tempo. Perguntou-me por que eu não lhe contara antes, na adolescência. Eu não encontrava palavras para responder: só me restou deixar sobre a mesa de seu computador o link para o �lme de 2009 Orações para Bobby, a história verdadeira de Mary Griffith, uma cristã devota, e de sua caminhada rumo à compreensão da homossexualidade após o suicídio de seu amado �lho gay. Nesse �lme, podem-se entrever algumas das razões pelas quais, até aquele momento, eu não tinha conseguido revelar minha homossexualidade: nossa Igreja, como Mary �zera com Bobby, tentaria curar- me. Talvez houvesse pedido um milagre a São Sebastião, visto que o problema não lhe devia ser estranho. Mas no fundo o motivo era que, então, não se falava quase nunca em homossexualidade: a Igreja impunha a seus �éis silêncio sobre tudo o que fosse suspeito, “inexistente”. Se existia, era apenas para servir de tema às mais infames piadas homofóbicas. Não bastasse isso, eu desejava ser padre e devia, consequentemente, ser homófobo, odiar esse “produto” diabólico da sociedade moderna, do qual apenas a Igreja Católica e as ditaduras comunistas — nisso, paradoxalmente aliadas — podiam proteger as pessoas. De início, eu estava imbuído de juízos condenatórios contra todos os homossexuais pervertidos: sabia que representavam o mal, um mal que não me dizia respeito. Por isso, aquilo que eu experimentava dentro de mim só podia ser fruto de um grande erro ou então um sentimento passageiro, fadado a desaparecer com o tempo. Então, convencido de que se tratava de mera confusão da adolescência, habituei-me a pensar que o desejo por outros rapazes era em mim apenas uma tendência natural a imitá-los. Hoje, antes de me tornar padre, eu provavelmente re�etiria mais a fundo sobre a coerência dos preceitos de uma instituição religiosa tão desumanamente ignara da identidade humana. Na época, porém, eu só queria me assegurar de que não houvesse nada de verdadeiro em meu desejo homossexual. Escondia-o de mim mesmo, descartava-o como algo de efêmero e irreal, um momento de extravio ou, pior ainda, uma doença. Mas, sobretudo, um pecado. Pois, para a mentalidade católica, os únicos pecados graves são aqueles que dizem respeito à sexualidade, em particular quando um homem gosta de outros homens. Esse pecado é inominável. “Aquilo” não tem nome... Em minha família, sempre houve uma certa dose de “pose”. Chamávamos nossos pais de “senhor” e “senhora”, um costume antigo e raro, mas nunca pensei que essa forma de comunicação nos mantivesse a distância ou atribuísse caráter “o�cial”, especialmente às relações com minha mãe. Ela era minha melhor amiga e uma ótima con�dente, exceto por “aquilo”. Nos últimos anos, porém, na era do Skype e do WhatsApp — que se tornaram o canal de comunicação privilegiado com minha mãe —, comecei a achar meio forçado dirigir-me a ela na terceira pessoa, em mensagens breves e frequentes. Mas sei também que muitos pais a invejariam por essa expressão de respeito �lial e nobreza. Seus netos são menos cerimoniosos (graças a Deus!). Com o tempo, minha mãe passou a usar chapéus cada vez maiores e espalhafatosos. Não tardei a imitá-la com meu chapéu preto. Mas como me agradavam os dela, coloridos, elegantes, de mil formatos diferentes, ora comedidos, ora extravagantes! Eu próprio a presenteava com alguns. Mais tarde, ela adotou modelos menores e mais esportivos, talvez porque, a�nal de contas, uma mulher moderna, além da missa diária, não deixa de ir regularmente à academia. Bem pesadas as coisas, minha infância não foi infeliz. Uma de minhas lembranças mais leves e agradáveis está ligada às férias que passávamos em Hamburgo, na casa da minha tia, ou em Londres, na casa do meu tio. A irmã e o irmão do meu pai — minha madrinha e meu padrinho de batismo — haviam se casado respectivamente com um alemão evangélico e uma inglesa católica: os dois erammuito diferentes do meu pai. Embora médicos, morreram ambos de uma doença incurável por volta dos quarenta anos de idade. Eu passava o ano inteiro sonhando com as férias no Ocidente, um período feliz. Sentia uma atração espontânea por aquela Europa livre e moderna, um mundo bem diferente da Polônia. Gostava principalmente de Hamburgo e do Alster, o lago central em cuja vizinhança moravam nossos tios. Sonhava com as grandes casas, os jardins, as ruas, as lojas da cidade, mas também com a missa dominical menos pomposa e mais sóbria que a nossa. Invejava o horário de trabalho daquelas pessoas, que de manhã deixava tempo para um longo café, hábito impensável com o ritmo opressivo da Polônia comunista. Em Hamburgo, quando eu ainda era pequeno, levaram-me a uma exposição de Andy Warhol, a primeira de um artista gay que eu visitava (ignorando “devotamente” esse fato). A certa altura, identi�quei-me a tal ponto com aquele mundo que já imaginava minha permanência na Polônia como um breve parêntese cinzento, de quase um ano, inserido em minha vida no Ocidente livre. Minha tia alimentava ideias liberais que me inquietavam e atraíam ao mesmo tempo: fazia perguntas, nutria dúvidas, amava a arte. Falou-me do método de autoeducação da consciência por meio do movimento, de Moshe Feldenkrais; [13] além disso, ali eu podia apreciar sua esplêndida coleção de quadros de pintores poloneses. Diante da minha tia, apesar das certezas da minha fé, eu procurava não me fechar às dúvidas, à coragem de relativizar, à audácia da “insustentável leveza do ser” aprendida de Milan Kundera. Gostava de conversar com ela, agradava-me sua inquietação, fascinava-me sua independência dos esquemas e estereótipos: ela estava anos-luz distante do provincianismo do catolicismo polonês. Nossa casa na Polônia estava sempre cheia de amigos do meu pai; parecia até que eles tinham mais direito ao local que nós, os moradores. Mas havia também a biblioteca da minha mãe, com todos os clássicos estrangeiros e poloneses, além de incontáveis volumes de arte, minha paixão. Formei-me à sombra desses livros, como por exemplo as obras de Miron Bialoszewski,[14] exceto, é claro, Tajny Dziennik (O Diário Secreto), publicado postumamente apenas em 2012. O caso de Bialoszewski era talvez o mais interessante entre os dos gays que viveram no regime comunista: ele havia conseguido morar anos a �o sob o mesmo teto com seu companheiro. Pelo que eu tinha lido dele em nossa casa, não podia certamente imaginar nada disso e só muito tempo depois �quei sabendo de suas viagens a Nova York, de sua “embriaguez” diante da liberdade concedida aos homossexuais nos Estados Unidos, da função salví�ca daquelas estadas. Também ele, como eu, vivia em nossa casa — mas todos ignoravam que fosse gay. Apenas a biblioteca dos meus avós paternos superava a da minha mãe. Eu pasmava diante daquela parede coberta de volumes do chão ao teto. Ali havia de tudo; e foi entre esses livros que encontrei um antiquíssimo guia de Lugano, que li antes de partir para estudar na Suíça. Aprendi que Lugano não era nenhuma capital, mas uma cidadezinha sem os grandes teatros, bibliotecas ou galerias de arte que eu esperava encontrar. Em compensação, abrigava um museu: não um museu de província e sim uma das mais notáveis coleções particulares de arte do mundo, a pinacoteca yssen-Bornemisza, instalada na monumental Villa Favorita, às margens do lago. Bastante animado, já antevia as intermináveis visitas... quando, ao chegar a Lugano, me informaram de que no verão anterior a baronesa transferira tudo para Madri, deixando ali apenas uns poucos quadros modernos, sem grande importância. Mais tarde visitei várias vezes aquela coleção em sua nova sede espanhola; na época, porém, só me restou o velho guia do meu avô para recordar os tempos idos. O que faltava em nossa casa, entretanto, era um piano: minha mãe vendera o dela quando meu irmão nasceu, pois não havia espaço naqueles minúsculos e esquálidos aposentos comunistas. Sempre detestei espaços exíguos, a estreiteza intelectual ou física, a sensação de claustrofobia angustiante que sufoca o coração e o espírito. Não tínhamos mais piano porque, em nossa casa, seria preciso colocá-lo sobre nossas cabeças, à maneira de um quadro surrealista: só um Giorgio De Chirico conseguiria instalá-lo ali, como num de seus interiores metafísicos. Minha mãe compraria outro piano anos depois, já sozinha com seus �lhos (apenas minha irmã aprendeu a tocar), retomando a paixão antiga que havia sido obrigada a esquecer: dedicara todo o seu tempo a nós, os �lhos, sem reservar sequer uma parcela minúscula para si mesma. Como eu gostava de ouvi-las tocando juntas, mesmo quando se tratava somente de longos e in�ndáveis exercícios! Era música e isso me bastava. Jamais esquecerei minha primeira escapada de Lugano para assistir a um concerto no Scala de Milão: o ingresso custava cinco mil liras para a segunda galeria, de onde eu avistava perfeitamente o lustre; e, entre centenas de lâmpadas e cristais, com um pouquinho de sorte e equilíbrio, também a cantora. A música me embriagava, levando-me ao mundo onde eu verdadeiramente existia. Contudo, a lembrança mais viva da minha infância é mesmo a parede forrada de livros. Aquela visão me encantava também por representar um de meus grandes objetivos: mais até do que uma coleção de arte, eu queria possuir no futuro uma imensa biblioteca. Com o tempo, cheguei quase a alcançar esse objetivo: vivia constantemente imerso nos livros e sabia a localização exata de cada volume, que se entranhara em meu cérebro como num catálogo mental. Ultimamente, precisei guardar boa parte dos volumes em caixas porque, na minha casinha em Roma (uma espécie de cubículo onde eu morava), as paredes eram minúsculas e só pude instalar uma estante Ikea no centro do quarto, de onde os livros transbordavam. De um lado caíam sobre a cama, e, de outro, sobre a escrivaninha — e eu também precisava de algum espaço para mim! Chegou o momento em que comecei, aos poucos, a vender minha biblioteca, ante a perspectiva de uma inevitável mudança após a saída do armário que estava planejando. Desfazer-me dos livros foi para mim uma espécie de homicídio violento, ou antes, de suicídio assistido, com boa dose de masoquismo injusto, cometido entre as estreitas paredes domésticas. Todavia, o motivo dessa decisão di�cílima era mais profundo: dei-me conta de que aqueles livros me haviam distanciado do mundo, das pessoas de carne e osso. Em parte, me ajudaram a suportar os absurdos impostos pela Igreja, mas, ao mesmo tempo, constituíam um elemento da minha prisão. Desfazer-me deles era um exercício espiritual pesadíssimo, mas necessário. Espero que eu possa um belo dia recuperar aquela biblioteca, em minha nova vida: trarei de volta meus livros, como minha mãe trouxe de volta seu piano. Sendo homossexual, por um longo tempo imaginei que só poderia ter minha família de origem. Aliás, amo muito minha família. Mas hoje sei que os gays não estão fadados, por força de uma sociedade heteronormativa, a �car exclusivamente a serviço dos pais, irmãos ou tios. Gays e lésbicas têm o direito de formar sua própria família como qualquer outra pessoa neste planeta insigni�cante, onde todos procuram, com maior ou menor êxito, amar e ser amados para não permanecerem sozinhos — pois a natureza impele as pessoas a se unirem. Impedir um gay ou uma lésbica de satisfazer esse desejo natural é, claramente, cruel e desumano. Hoje sei, além disso, que para os homossexuais podem existir também famílias de eleição, de escolha: muitos de meus amigos renegados por suas famílias de origem conseguiram encontrar novas comunidades e novos contextos familiares, casando-se com os respectivos parceiros e sendo, pela graça de Deus, �nalmente reconhecidos. Os católicos têm razão ao repetir que a família é a coisa mais importante; mas, ao mesmo tempo, procuram destruir ideologicamente as famílias formadas por dois gays ou duas lésbicas. Elas, porém, se regeneram, renascem, ressurgem. Gays e lésbicas — enxotados,excluídos, abandonados ou simplesmente alvo de piedade das famílias de origem — desejam, ainda assim, construir as suas próprias. Frequentemente se encontram em outros espaços domésticos e familiares com pessoas que lhes querem bem, segundo exigiria o Evangelho dos católicos. Surgem assim famílias que não odeiam, não humilham, não julgam — apenas amam. Sobre a essência da família, o afeto, o respeito e a �delidade entre os membros, aprendi muito mais com os homossexuais do que com as teorias da minha Igreja. Os gays e as lésbicas, assim como os heterossexuais, só desejam a segurança e o calor de uma vida humanamente familiar. Então se afastam para buscar a felicidade ou, ao menos, para se libertar da opressão de mães que tremem de medo do julgamento alheio e não conseguem atinar com a irracionalidade das convenções religiosas impostas; de pais prontos a renegá-los, preferindo vê-los mortos a aceitá-los como homossexuais; de famílias à espera de um castigo divino que resolva de�nitivamente o “incômodo problema”. Quantos deles não ouvem pelas costas, da boca de seus próprios entes queridos: “É um veadinho doente e pervertido”, “É uma sapatona transviada e excêntrica... Foi ela que quis ir embora, nós não a expulsamos”... Alguns homossexuais, infelizmente, nunca se libertam dessas vozes, desesperam-se ouvindo-as ecoar o tempo todo. Gays e lésbicas serão sempre uma minoria; ainda assim, à maioria heterossexual não é lícito pensar: “Nós somos em maior número... os outros façam o que quiserem, desde que permaneçam invisíveis... Não reconheceremos nenhum de seus direitos...” Ainda hoje, em muitas famílias e em várias comunidades religiosas, nada mudou. A mentalidade da minha Igreja continua pintando os homossexuais como inimigos animalescos e ferozes da família, verdadeiros destruidores da beleza doméstica e do matrimônio. Todavia, paradoxalmente, nos gays e nas lésbicas o desejo de formar uma família é às vezes mais intenso que nos heterossexuais. Eles querem viver um cotidiano sadio, sem medo de dizer quem são. Um cotidiano onde exista simplesmente o respeito à dignidade e à diversidade. A dignidade de toda pessoa na diversidade. Fé Se devo apresentar-me, basta que diga: sempre fui profundamente religioso. Uma pessoa religiosa com boa dose de razão sadia, nem fundamentalista, nem tépida nem indiferente. Recebi a fé com o leite da minha mãe: ela nutriu minha primeira experiência de fé, que guardei dentro de mim para examiná-la e compreendê-la. Desde pequeno, minha fé era exigente, uma fé de coroinha severo e rigoroso, para dizer o mínimo. Provavelmente — alguém sugerirá —, eu devesse ter aprendido a relativizar, a viver meu credo com um pouco mais de liberdade, como faz a maior parte dos padres e católicos. Mas eu, não: eu jamais conseguiria imitá-los. Para mim, o princípio fundamental da fé era sua coerência absoluta. Uma coerência absoluta, interna, entre todos os preceitos, normas e doutrinas. Uma coerência absoluta em sua visão da vida. Uma coerência da qual eu precisava captar a lógica, pois nunca me ocorreu obedecer cegamente ao que a Igreja ensinava. Queria coligir provas, demonstrar as razões daquilo em que a Igreja me pedia para crer, porquanto o mundo, secularizado, não podia mais assimilar sua lógica coerente. Desde jovem, sonhei ser arqueólogo: chegar às origens das coisas, entender o passado, atingir a própria raiz do nosso ser. Talvez por isso mesmo, anos depois, eu vislumbrasse na metafísica a disciplina predileta, pois ela busca a arché, investiga as razões do ser. Iguais exigências eu tentava satisfazer na fé. Uma vez veri�cada sua coerência, eu a defendia com todas as minhas forças. Advogava o rigor do ensino moral da Igreja, dos preceitos e das normas, até em matéria de sexualidade. Mas, desse modo, ia me afastando da realidade, com risco de me tornar homófobo e incapaz de compreender as verdadeiras necessidades das pessoas. Aquele mundo, visto como desumano, me indignava — embora eu é que estivesse me distanciando da humanidade. Talvez eu fosse um pouco ingênuo por acreditar tanto na Igreja, mas minha fé era sincera como a de uma criança. Crer era uma esperança plena, reconfortante e libertadora: minha segurança, meu consolo, meu refúgio. Eu tinha a certeza do amor de Deus e continuo a tê-la. Fui e sou inteiramente apaixonado pelo divino. A fé me ensinou também a amar minha pátria, era um baluarte contra a opressão da ditadura comunista. Uma fé exigente: as páginas do Evangelho me educavam e me fascinavam. Dela, eu não esperava nada, mas, em troca, exigia uma absoluta coerência entre suas ideias e a verdade, entre a doutrina e a realidade. Assim, pretendia conservá-la para tentar ser perfeito abandonando pai e mãe, tudo em nome de Deus. Estava convencido de que, em matéria de fé, minha Igreja não me impunha nada de falso, pressentindo subconscientemente que não suportaria jamais descobrir um paradoxo, uma “esquizofrenia” entre fé e realidade. Minha fé entrou em crise — ou melhor, evoluiu, amadureceu — quando me deparei com a incongruência da Igreja relativamente à homossexualidade e à sexualidade em geral. O que eu deveria fazer para salvar minha fé? Abandonar a Igreja? Não, não me privaria do prazer de pôr a trabalhar os funcionários eclesiásticos — aqueles preguiçosos — e vê-los rabiscando, com suas caras de palhaço, decretos de suspensão, excomunhões, penas adicionais... para o traidor, para mim, que ousara preferir a liberdade às suas imposições paranoicas. Não lhes daria a satisfação de arquivar minha pasta como fazem com aqueles que “saem” da Igreja. Teriam de inventar alguma coisa para justi�car seu cargo e suas poltronas; teriam de interromper suas longas pausas para o café. E enquanto isso eu, para salvar minha fé, aceitaria o exílio da Igreja. Certo dia, após uma das primeiras audiências concedidas pelo papa Francisco ao prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, ao ler os decretos disciplinares lavrados por um velho teólogo, descobri que o pontí�ce havia perguntado: “Não seria melhor convidá-lo para tomar uma cerveja e falar com ele de irmão para irmão, a �m de resolver o caso?” O prefeito nos contou isso sorrindo da ingenuidade do novo papa, que parecia não entender como se governa a Igreja. Ouvir o outro de irmão para irmão e procurar o entendimento? Isso não, pelo menos na Igreja Católica! O papa Francisco professava abertamente sua fé numa religião fraterna, amistosa e compassiva, mas também ele devia aprender a se comportar na Igreja real e, sobretudo, a manter a boca fechada. Eu, igualmente, aprendi com o tempo a lição dessa Igreja: a hipocrisia de uma fraternidade de fachada a que corresponde, de fato, a disposição para atacar o outro pelas costas, valendo-se da arma do formalismo. O Santo Ofício zombava da ingenuidade do espírito fraterno, dos olhos voltados para a razão e a realidade: a Igreja é governada por leis e normas que devem ser respeitadas de olhos fechados, sem atenção ao mundo real. Obedeça cegamente ou vá embora. Aí está: revelei que fui um alto funcionário da Igreja Católica, no Vaticano... Pátria Minha pátria é a Polônia, um país glorioso. Sinto orgulho das minhas origens: não gostaria de ter nascido em outra terra. Considero-a europeia e nobre. Sou um romântico que derrama lágrimas ao pensar na longa sequência de insurreições e ressurreições de sua pátria. Ao mesmo tempo, sonho vê-la livre de ideias provincianas e estreitas, com horizontes abertos, com mentalidade tolerante, respeitando todos e cada um. Nasci em Gdynia, uma cidade moderna da Pomerânia ao sul do Báltico, que faz parte de uma área metropolitana chamada Tricidade (Trójmiasto) juntamente com a histórica Gdańsk (Dantzig) e o balneário de Sopot. Gdynia foi construída no período entre as duas guerras numa pequena região de pescadores: no primeiro pós-guerra, com efeito, Gdańsk era chamada de “Cidade Livre”, conforme o Tratado de Versalhes, e havia grandes obstáculos ao acesso dos poloneses ao porto.Decidiu-se então construir outro porto a apenas vinte e cinco quilômetros de distância. Gdynia é para mim uma janela que, como num quadro de René Magritte, se abre para o céu sereno do mundo; mesmo durante o comunismo, quando as janelas do país inteiro eram blindadas, Gdynia permanecia pelo menos entreaberta. Sempre sonhei possuir uma grande casa em minha cidade, de dois andares e uma parede inteira de vidro voltada para o mar, com um quadro de Magritte no lado oposto! Nós chamávamos Gdynia de “Corinto do Norte”: graças ao tráfego intenso e ao intercâmbio comercial do porto, parecia um centro moderno, empreendedor, laborioso, onde não se podia frear de todo o a�uxo de estímulos externos; nos anos 1980, não obstante a penúria cultural do regime, era possível assistir no teatro aos musicais americanos que vinham da Broadway, de Um Violinista no Telhado a Jesus Cristo Superstar e Os Miseráveis. Sempre amei minha cidade porque ali me parecia que o provincianismo polonês, tal qual descrito por Witold Gombrowicz, Stanislaw Ignacy Witkacy e Bruno Schulz,[15] fosse apenas uma lembrança distante. Minha família é polonesa, embora, devido ao sobrenome Charamsa, muita gente pensasse que não era: na verdade, sobre esse sobrenome, contavam-se as histórias mais estapafúrdias, a maior parte delas infundadas. Meu avô dizia que os Charamsa eram de origem espanhola, chegados à Polônia depois de uma peregrinação por vários países europeus: muitos Charamsa, com efeito, vivem hoje na República Tcheca, na Áustria e na Alemanha. Outros a�rmavam que nosso sobrenome era, ao contrário, oriental, de origem árabe ou persa. Na realidade, os familiares da minha avó paterna tinham deixado algumas propriedades na Moldávia, enquanto os do meu avô provinham da voivodia de Volínia, hoje na Ucrânia. Não me desagradaria descobrir que tenho também raízes judaicas: isso explicaria minha simpatia natural, curiosidade e benevolência para com esses irmãos e irmãs. Não partilhei jamais o sentimento que a Igreja, e a Inquisição em particular, procuraram infundir, disseminando suspeita e descon�ança contra eles. Por muito tempo vivi esta contradição: os judeus me agradavam, mas eu tinha de descon�ar deles para defender a pureza da minha fé católica. Reconheço aí a mesma lógica que a Igreja, assustada com toda diversidade, sempre aplicou aos homossexuais, também estes destinados à “conversão” ou à eliminação por destoarem de seu modelo heterossexual. Uma eliminação sutil, dissimulada, minuciosa, para a qual não eram necessários campos de concentração: bastava extirpar psicológica, moral e socialmente toda diversidade com um bombardeio cotidiano. Com meu sobrenome que não soa muito polonês, sempre percebi dentro de mim uma vocação internacional: sou polonês, sim, mas enquanto europeu. Não me sinto �lho de uma Polônia enclausurada em si mesma, que emprega a violência psicológica contra aqueles que se distanciam das tradições patriarcais, misóginas e homofóbicas; não me sinto �lho de uma Polônia clerical, de um Estado confessional, teocrático, semelhante a vários países orientais onde as esferas religiosas participam ativamente do poder e mandam na vida dos cidadãos; repudio o provincianismo da Polônia, sufocada pelos estereótipos confessionais que impedem o pensamento livre e onde as pessoas creem cegamente. Crê e não penses, pois a Igreja já pensou por ti. Devoto, ignorante e calado: eis o modelo do polonês que o clero impõe, obtendo às vezes, infelizmente, bons resultados. Na Polônia, a Igreja se ligou de tal forma à nação que, no passado, ousou defendê-la da ditadura comunista; mas, após a queda do Muro, transformou-se em uma Igreja medíocre, empenhada unicamente em reconquistar e manter sua posição dominante no âmbito político e �nanceiro. Nos últimos vinte e cinco anos, a Igreja polonesa conseguiu destruir o que de grande e bom soubera realizar sob o comunismo: a história julgará com rigor, assim o espero, os homens que ocuparam o vértice de uma instituição avessa à modernidade e indigna de seu papel. No prazo de menos de três décadas, conseguiram fazer da minha pátria um país grotesco, votado à idolatria, que transformou João Paulo II num autêntico bezerro de ouro. Na Polônia, existem mais de mil e quinhentos asilos e escolas que ostentam o nome dele, com os bispos ocupando seu tempo em abençoar monumentos horríveis erigidos a ele, encontrados por todos os cantos do país numa embaraçosa ostentação de mau gosto. Retratamo-lo nas poses mais descabidas. Inspiradas pelo mesmo furor ideológico com que o regime comunista ergueu estátuas a Lenin ou a Stalin, brotam agora esculturas comemorativas do papa polonês, às vezes nas mesmas ruas e praças, com a mesma falta de estilo e medida que distinguia o sistema comunista. Após a queda do Muro, a Igreja polonesa aplicou os mesmos métodos comunistas de domínio das almas, de controle ideológico, de sujeição das massas empobrecidas: a ditadura pode ter acabado na Europa, mas a Igreja a preservou e�cazmente em meu país, onde os espaços que �caram livres após a remoção das estátuas de Lenin e Stalin foram habilmente ocupados pelas do papa Wojtyla. Porém, esse é um tema sobre o qual não se pode discutir, assim como não se discutia nada sob o regime comunista: a pessoa corre o risco de ser denunciada por ofensa aos sentimentos religiosos. Exprimir alguma dúvida sobre o valor de certas escolhas ou projetos é considerado, como nos tempos da ditadura, um ataque ao próprio sistema. Os funcionários do novo regime, não mais os do partido único e sim os da Igreja, se justi�cam a�rmando que essa visão “monumental” é apoiada pelas massas e que eles só fazem levar em conta os sentimentos do povo. Omitem, no entanto, que desse modo se colocam como novos “formadores de consciência”, acabando por utilizar em proveito próprio as escolhas populares. E, sobretudo, atulharam minha pátria com monumentos ao ídolo, sustentando que o povo assim o quis. Quando dei com os olhos pela primeira vez no horrendo e mastodôntico centro pastoral em memória de João Paulo II, em Cracóvia, sendo construído a dois passos de uma outra igreja imensa, dedicada à misericórdia, pensei com desgosto no papa que se opusera ao comunismo e agora — na cripta recém- terminada — me �tava de todas as paredes em pinturas monstruosas que lembram antes os retratos de um ditador norte-coreano. Do mesmo modo, em Varsóvia estão utilizando também fundos públicos para construir um templo à providência divina, um verdadeiro bunker de enormes proporções: outro mastodonte sobre o qual é impossível discutir. A Igreja sufocou o país com obras insuportavelmente pomposas e sem beleza, como outrora gostava de fazer o sistema comunista para a�rmar seu domínio — contra o qual era melhor não dizer nada, nem em voz baixa. Amo minha pátria, parente mais pobre das outras nações europeias, talvez, mas não privada da dignidade de uma história gloriosa, aberta e tolerante. Amo a Polônia que fundou uma das primeiras universidades do mundo, a Jaguelônica de Cracóvia, em 1364, a Polônia que elaborou uma das primeiras constituições da era moderna, a Polônia que em diversos períodos foi capaz de proteger os judeus oprimidos em outras regiões da Europa, a Polônia que em diversas épocas não seguia as duras leis de perseguição aos homossexuais, vigentes no estrangeiro, a Polônia capaz de tomar emprestados o corte ou o estilo das roupas dos turcos para seus nobres. Minha Polônia não é uma Polônia xenófoba, fundamentalista e intransigente, mas um país aberto e, ao mesmo tempo, cioso de sua identidade, cultura, literatura e teatro. Às vezes — quando noto que a Igreja censura os cartazes dos teatros e consegue até suspender os espetáculos que não lhe agradam —, me pergunto aonde terá ido parar essa Polônia. Meu país, que por sorte progrediu economicamente nas últimas décadas, perdeu credibilidade do ponto de vista espiritual porque está nas mãos de um clero no qual não faltam manipuladores ideológicos de intelecto extremamente míope, mas hábeis no carreirismo eclesiástico.Já não se distingue entre o que é essencial para a fé de um religioso e o que é interessante para o poder secular de uma seita o mais das vezes ofensiva e medíocre. Assim, o valor de um polonês é estimado segundo ele esteja de acordo ou não com a exposição do cruci�xo nos lugares públicos, como se a cruz fosse essencial não apenas em cada canto de um lar cristão, mas também em todos os espaços partilhados com judeus, muçulmanos e ateus. Nesse clima de intrusão católica opressiva, os outros não têm sequer o direito de existir. A Polônia é um país onde provoca debate e até desprezo o fato de o novo prefeito de uma cidade ter a coragem de tirar o retrato do papa João Paulo II do gabinete que herdou de seu predecessor. A Polônia é um país onde, nas repartições públicas, a�xa-se na parede, não o retrato do presidente da República, mas o do chefe religioso morto! Na Polônia, a Igreja, sutil e disfarçadamente, incita ao ódio, à intolerância, à discriminação: mas espero que, um dia, os poloneses abram os olhos e a abandonem em massa, tornando-se adultos, educados e tolerantes, retomando o direito de pensar e não deixando que o clero o faça por eles. Sonho com o dia em que despertaremos: não gostaria, é claro, que a Igreja perdesse seus �éis, mas na Polônia já não vejo outro caminho para nos libertarmos de um clero farisaico e prepotente. Emblemático desse clima foi o que aconteceu após a tragédia do avião presidencial acidentado em Smolensk, em 2010,[16] um drama nacional que acompanhei colado ao televisor durante toda a semana: �z isso não só porque me comovo com facilidade, mas porque amo profundamente meu povo e este vivia na ocasião uma de suas catástrofes mais graves. Não conseguia entender como Deus permitira que semelhante tragédia assolasse este pobre país, livre há apenas vinte anos. Mas quando, hoje, re�ito sobre o que ocorreu na mentalidade popular por causa daquela desgraça, não derramo sequer uma lágrima. A tragédia se transformou rapidamente num circo burlesco: uma legião de mitômanos, um exército de acusadores que viam naquilo um possível atentado, teorias da conspiração úteis à política direitista abençoada pela Igreja. E, para coroar o ridículo das celebrações, a reconstituição em escala real do avião, com a foto dos políticos sorridentes nas janelinhas, não sem a devida bênção do pároco local. O projeto dos monumentos mudava temporariamente de tema: os católicos poloneses conseguiram, com a ajuda da Igreja, transformar um drama humano numa sucessão de manifestações de gosto duvidoso. Na época, um dos instrumentos da propaganda da Igreja foram os megafones da rádio Maria, da televisão Trwam (Persevero) e do jornal Nasz Dziennik (Nosso Jornal). Lembro-me, com desagrado, da imagem que aparecia na tela quando terminavam as transmissões daquele canal, uma mensagem publicitária repisada pelo resto da noite: “Somos a única voz da verdade em sua casa, ajude- nos com doações”. Penso, entristecido, em quanto essa voz única da verdade formou e transformou parte da consciência do meu país com meios de propaganda cada vez mais coercitivos.[17] Não obstante tudo isso, insisto em sonhar com uma Polônia de vistas largas e tolerante, um país de religiosos maduros, não de ideólogos que in�uenciam as massas com uma propaganda cuja credibilidade ninguém investiga. Mas para isso, é claro, será necessário esperar algumas gerações. Até lá, denunciemos a estupidez da ideologia, sabendo que di�cilmente se pode mudar alguma coisa de um dia para o outro. Por trás de tudo isso existe uma mentalidade que a Igreja soube moldar muitíssimo bem. Nossos parabéns à sua e�ciência! Escola Da escola, guardo a lembrança de um isolamento constante. Achava-me diferente e não podia falar sobre isso com ninguém, muito menos esperar a compreensão dos outros, o que alimentava em mim um sentimento constante de solidão. Mas, pensando bem, não era eu que me isolava: o clima geral, hostil à diversidade, coagia-me a viver em meu universo, inacessível aos demais, mas cheio de emoções e desejos, de arte e fantasia. Era a típica alienação de um gay que ainda não entende as profundezas de sua diversidade, mas tem medo delas e por isso evita o contato com o mundo. Eu vivia isolado? Sim. Sobretudo, não possuía os instrumentos para investigar minha diversidade. Hoje observo que os homossexuais, homens e mulheres durante séculos incompreendidos e excluídos tal como eu o fui, apuraram uma sensibilidade toda própria, criaram e recriaram seu universo, tiveram a coragem de sonhar uma coisa nova, explorar o inexplorado, abrir aos outros os horizontes da beleza e das artes. Jovem, eu era um aluno meticuloso e pontual, metódico além de todos os limites e talvez por isso parecesse a alguns insuportável. Queria entender e seguir só o que fosse cabalmente demonstrado, não aceitando soluções provisórias nem meias verdades úteis apenas no momento. Levava tudo a sério: era “horrivelmente” adulto. Acho que nunca fui menino ou adolescente. Já na escola elementar me esforçava por tirar as maiores notas. Na Polônia, ainda sob o regime comunista, ensinava-se o russo, a língua dos opressores. Eu odiava o comunismo na mesma medida em que amava a língua e a literatura russas. Lembro-me de que, naquele tempo, era apaixonado por São Petersburgo e o Hermitage imerso nas noites brancas, por Moscou com a galeria Tretjakov e o museu Pushkin: conhecia tão bem esses lugares que poderia trabalhar ali como guia autorizado. Fora da escola, porém, aprendia inglês por conta própria com uma jovem estudante que nem sempre �cava satisfeita com meu aproveitamento. Isso acontecia devido à minha di�culdade inata para seguir as regras gramaticais. Ignorava ainda que, depois de sair da Polônia, começaria minha grande aventura com inúmeras línguas diferentes! Na escola, eu achava os garotos muito violentos e eles talvez me achassem muito fraco. Além disso, não jogava futebol e, se hoje há muitos gays apaixonados por esse esporte, na época — devido a um preconceito frequentemente infundado que ainda persiste — quem não jogava bola �cava sob forte suspeita de ser homossexual e, portanto, digno de escárnio. Assim, meu maior problema se devia ao esporte; as aulas de educação física me provocavam verdadeira ânsia e eu sofria terrivelmente naqueles momentos de vergonha. Sentia-me diferente, mas ao mesmo tempo, no fundo, orgulhava-me dessa diversidade: era feliz por não ser como os outros, embora lamentando que não me aceitassem. A nota em educação física constituía para mim um drama: gostaria de tirar nota máxima para não comprometer a média anual. Com o tempo, do ponto de vista atlético, alcancei meus colegas de então. Hoje vou três vezes por semana à academia. Pratico kick boxing, TRX Suspension Training, CX WORX e body balance, mas principalmente o spinning, cujo ritmo compensa as noitadas nas discotecas que nunca frequentei na adolescência. Depois adotei a corrida, a natação e até o esqui nas belíssimas pistas dos Alpes de Siusi, onde tinha ao jantar a companhia de uma velha amiga alemã, com quem me exercitava na língua de Goethe. Hoje sou um esportista e, quando penso no adolescente avesso à atividade física que fui, compreendo e lamento o rapazinho que chorava pelos cantos quando era ridicularizado e humilhado na escola. E ele queria ser igual aos outros, não diferente. A época da escola foi para mim um período de conquista e sofrimento, de isolamento insuportável e de estudo árduo: temia os garotos e me sentia atraído por eles; além disso, como acontece com muitos adolescentes, atormentava-me a ideia de que os pênis deles fossem maiores que o meu, embora nunca os tivesse visto. Na época, eu estava sozinho e justi�cava essa solidão alegando que queria ser sacerdote. Já na escola elementar esse era um desejo claro e de�nido em mim; criança, não brincava de padre, pois sabia que iria sê-lo, e essa percepção nítida acompanha todas as minhas recordações da infância. Hoje entendo que esse desejo estava profundamenteligado ao fato de eu ser gay e à atitude espiritual característica de muitos homossexuais: somos particularmente abertos ao transcendente, ao divino, à religião. Contudo, o desejo de ser sacerdote não estava associado à possibilidade de evitar o matrimônio e a formação de uma família: eu não era um daqueles que, tendo consciência de sua orientação sexual, escolhem, sob a pressão social, o hábito talar a �m de viver uma vida solitária no refúgio do celibato. Queria ser padre porque, graças à sensibilidade homossexual, via nisso um acesso à espiritualidade. Assim nasceu meu grande drama: uma parte visceral de mim era a fé, que me induzia a aderir à Igreja; a outra, igualmente visceral, era a homossexualidade que, entretanto, o clero negava com exasperação. Como padre, eu queria me oferecer por inteiro à Igreja; mas um aspecto básico e indissociável de mim era por ela estigmatizado como incompatível. Esperei ouvir, no seio da Igreja, uma voz mais equilibrada e menos arrogante, com quem pudesse conversar — mas esse apoio nunca me foi dado. Felizmente, bem mais tarde, encontrei ajuda na leitura de Michel Foucault sobre a sexualidade e a história do sexo no Ocidente:[18] o �lósofo francês insistia com �rmeza na importância capital do sexo na construção da personalidade. Mas a descoberta que mais me libertou foi o conhecimento de Judith Butler e da teoria queer.[19] Um dia, fascinado por seus livros, eu disse a um colega padre: “Se esta senhora estiver certa em apenas dez por cento do que diz, a Igreja terá motivos para tremer e passar sem demora a enfrentar sua análise”. Ele, com seu senso inato de humor e sua capacidade de levar tudo na brincadeira, respondeu: “Justamente porque parece ter mais de dez por cento de razão, nunca nos ocuparemos dessa senhora. Além disso, é mulher e talvez lésbica...” Butler é lésbica! Por um instante, conseguimos rir dessa Igreja que teme o pensamento alheio. Na escola me sentia só, mas isso não signi�ca que não tivesse amigos e até amigas: lembro-me sobretudo de duas, uma na escola primária, a outra na secundária. Com a primeira eu ia à ópera quando tínhamos treze ou catorze anos (naquela época, na Polônia, o curso primário era de oito anos). Parecia um programa de aposentados, mas então a ópera era para mim o lugar onde eu me sentia mais livre, o território mais gay da cidade. A ópera sempre me atraíra, fazendo-me sentir eu mesmo: sonhador e criativo. (Nos últimos tempos, precisei deixá-la um pouco de lado, pois meu companheiro dorme a sono solto quando ouve música lírica: nisso, não parece tão gay quanto eu!) Com a segunda, conversava sobre história e �loso�a. Talvez nesse caso, também, parecêssemos antes pensadores com uma carreira pela frente do que jovens em busca do amor. As duas garotas eram ótimas pessoas, mas eu, na realidade, fugia também delas: considerava-as amigas — para mim, amigas de um gay. Acontece, porém, que nenhuma podia imaginar esse detalhe de minha personalidade e eu tinha de me esforçar para que não descobrissem... Sentia-me bem com as meninas, mais sensíveis e sérias do que meus colegas homens, os quais poderiam me considerar efeminado — coisa que então me aterrorizava. Hoje, esse estereótipo não me criaria nenhum problema, mas, na época, era uma preocupação constante. Tinha um medo absurdo de ser visto como “um maricas agarrado às saias da mãe” ou “um menino que não sai de perto das meninas”, consideradas inferiores aos machos. Tratava-se do mesmo receio, talvez uma forma interiorizada de misoginia, que reconheci mais tarde até na Igreja. O sentimento antifeminino reaparece na homofobia, segundo a qual o gay nada mais é que um mísero efeminado. Hoje, sou tranquilo quanto à minha virilidade: amo minha masculinidade que se apaixona por homens. Com o passar do tempo, nós, homossexuais, conseguimos a�rmar e defender su�cientemente nossa masculinidade: não somos mulheres, damo-nos bem com mulheres e homens, compreendemos as primeiras e as apoiamos quando defendem seus direitos, como de resto todo homem deveria fazer. Hoje, pelo contrário, são os machos homófobos que muitas vezes nutrem no íntimo o medo de ser considerados “mulherzinhas”, um medo que escondem apelando para a violência. A bem da verdade, nos tempos de escola, em minha mente de zeloso discípulo adolescente não havia uma autêntica consciência de eu ser gay, ou, se havia, estava recalcada. Eu a “matava” em um corajoso suicídio cotidiano, em um ato masoquista. Só havia espaço para o desejo de ser padre em minha fantasia. A ambição de uma vida solitária, de uma vida de estudo dedicada ao ensino, eis o que me fascinava. Meu colégio, um dos melhores da Polônia, sempre foi para mim motivo do maior orgulho. Uma escola muito especial porque algumas matérias eram ensinadas em inglês. Eu preferia a história, mais “feminina”, à matemática, mais “viril”. Odiava as disciplinas cientí�cas, mas a área de história e literatura, que me teria agradado, não era das melhores; optei então pela física e a matemática. Fui bem nos dois ou três primeiros anos, pois o professor de álgebra parecia mais um �lósofo que um matemático. Eu esperava com impaciência o momento em que, bem no meio da lição, ele esquecia os cálculos insuportáveis e começava a fazer suas sugestivas re�exões metafísicas. Mas as coisas pioraram quando o homem se aposentou e foi substituído por um professor que se interessava unicamente pelas equações, as quais iam se tornando para mim, cada vez mais, um tema esotérico de outro mundo. Ao pesadelo do esporte juntavam-se agora os profundos mistérios matemáticos. Quanto eu não daria para me ocupar somente de literatura, história, �loso�a! Quanto eu não daria para poder pensar em vez de fazer contas! Consolava-me quando tinha uma hora livre. Fugia então para uma igreja franciscana próxima, onde �cava escondido para rezar. Eram momentos intensos, dos quais não falava a ninguém. Sabia já, havia muito tempo, que desejava ser padre, mas lembro-me de que naquelas horas de fortes experiências interiores pedia apenas para não ser gay. Rezava para que Deus afastasse de mim aqueles sentimentos, resolvesse minhas dúvidas, calasse os desejos que eu não devia ter. Mas Deus não ouviu minhas preces, talvez porque não lhe agrade que alguém lhe peça coisas contrárias à sua natureza, em vez de esforçar-se para compreendê-la. Deus não me tirou o desejo, o prazer e os sentimentos homossexuais, mas naqueles momentos me dava paz. Da igreja franciscana eu saía sempre mais sereno, como se o tal “problema” íntimo estivesse temporariamente esquecido, ou melhor, como se Deus pouco se importasse com ele, interessando-se apenas por outros valores que via em mim. Aquela experiência libertadora de diálogo com Deus sempre permaneceu comigo, embora depois nem o seminário nem a vivência na Igreja a tenham favorecido ou cultivado — muito pelo contrário. O mais das vezes, os padres não eram educados para estabelecer uma relação pessoal com Deus, que pudessem transmitir aos �éis; aprendiam somente uma sequência mecânica de ações devotas, que a Igreja lhes impunha com o temor do pecado. Mas, por felicidade, foi então que aprendi a rezar como adulto sendo ainda adolescente. Vocação Sinto-me chamado por Deus. Já disse que a vocação me acompanhou desde sempre. A partir dos primeiros instantes de vida, soube que queria ser padre. Depois quis também ser arqueólogo e estudar história, mas uma coisa não excluía a outra. Talvez a atividade do escavador se conciliasse com a do sacerdote. E talvez só com ela. Eu queria estudar história, provavelmente devido a uma a�nidade inata com tudo o que era antigo e tradicional, com tudo o que superara a prova do tempo. Além disso, o próprio cristianismo apresentava o passado como modelo. Na era clássica eu encontrava as respostas às minhas perguntas sem me deixar distrair pelo presente, esnobando a arte e a literatura contemporâneas. Assim, rodeava-me daquele passado que coincidia como “tempo das catedrais” e, para mim, representava a ordem e a regra, algo em que eu con�ava: mais tarde, deveria ajustar contas com o fato de aquela época signi�car também injustiças, preconceitos, suspeitas. Ela, com seu rigor e disciplina, instaurara igualmente um clima de intolerância e discriminação que se arrastara por séculos. Só depois de compreender isso é que consegui iniciar minha aventura no pensamento de hoje, encarar o rosto do homem moderno e a psyché da arte contemporânea. No fundo, o que eu queria não era escavar a história, mas inserir-me nela com as certezas da minha formação cristã. A metáfora que melhor representa minha condição nessa época é a de São Cristóvão, meu santo protetor. Minha mãe decidira dar-me esse nome, con�ando-me à sua proteção porque eu nascera fraco e precisava do amparo de um santo forte para crescer sadio e robusto. Cristóvão, talvez um militar, resolvera servir ao patrão mais poderoso da terra e, portanto, escolhera Deus. Conta a lenda que ajudava as pessoas a atravessar um rio num ponto onde não havia ponte; uma noite, enquanto dormia em sua tenda na margem, um menino o chamou, pedindo-lhe que o transportasse para a margem oposta. Embora cansado, Cristóvão, ao vê-lo, tomou-o nos ombros, certo de que o trajeto seria rápido e indolor, mas, ao entrar na água, começou a afundar sob o peso daquela pequenina criatura. Só quando chegou, esgotado, à outra margem é que perguntou à criança quem ela era. E a criança respondeu: “Sou o patrão do mundo, a quem serves. Sou o Deus que se fez homem, o Deus menino”. Ao longo da vida, sempre quis servir a esse patrão, o mais forte de todos. A escolha do cristianismo era radical, zelosa, exclusiva, absoluta e não admitia, fora de si, outra verdade ou outro caminho para chegar a ela. Ainda criança, ainda rapaz, eu via o cristianismo como o porto mais seguro da minha existência e, nessa percepção, não havia espaço algum para a incerteza, o relativismo e a dúvida. Tudo era absoluto. Eu me sentia como Cristóvão, isto é, “o que carrega Cristo”: a lenda do santo está inscrita em seu nome e, portanto, no meu. Eu queria ser como ele, levar as pessoas até a verdade na outra margem do rio da vida. Era radical e sincero: hoje, diria um pouco naïf, ingênuo e bastante inocente. Talvez por isso, quando comecei a enfrentar seriamente a mentira católica sobre a homossexualidade, a primeira experiência não foi a raiva por ter sido ludibriado, por ter me deixado confundir durante tanto tempo: não, foi uma imensa tristeza, a desilusão e uma sensação de vazio. Eu não queria, é claro, renunciar à minha vocação, mas percebi, num mar de sofrimento, que aquele sistema, carregando-me nos ombros como Cristóvão, estava caindo aos pedaços. A Igreja me obrigava à submissão cega, à falsidade, à hipocrisia, enquanto eu, na coerência de minha fé, não fazia concessões. Ambígua e empobrecida, ela se furtava a qualquer embate sério com as ciências sobre a homossexualidade, refugiando-se em estereótipos ofensivos. Desse modo, crescia cada vez mais em mim a frustração por uma mentalidade tão obtusa, tão enclausurada na própria ideologia, incapaz de um exame sereno da realidade e agora privada de todo desejo de confrontar-se com a realidade. Ao �m, acabei por me sentir como em Esperando Godot: curvando-me às mensagens cada vez mais insensatas da Igreja, já não sabia se acatava o absurdo ou ria de desespero. Mas Godot não conseguia nunca descobrir os motivos. Samuel Beckett estava certo. Essa experiência, no entanto, con�rmava a autenticidade e o valor da minha vocação, que jamais abandonarei. Sempre buscarei a verdade e sempre a trarei para dentro de mim. Quero também preservar a coerência da minha vocação. E, no �m das contas, sou padre e gay — além de loucamente feliz por sê-lo. Um�Seminário,�ou�Melhor,�Três Constantemente me lembro do segredo oculto nas palavras com as quais Paulo de Tarso descrevia algo que o a�igia de dor e a�ição: “um espinho na carne” (II Coríntios, 12:7).[20] Qual podia ser essa coisa que o perturbava tanto a ponto de levá-lo a uma con�ssão tão explícita? Quando eu era jovem, parecia-me intuir que Paulo resguardava um mistério de modo algum estranho a alguns papas ou cardeais. Escondia sua homossexualidade. Se isso for verdadeiro, explicará sua obsessão com as relações sexuais entre homens, onde via o demônio. Hoje eu de�niria como homofóbica essa sua �xação, permeada de medo e autorrejeição enquanto gay. Assim, já na adolescência, eu tinha o pressentimento de que essas palavras de Paulo estivessem associadas à homossexualidade. Era minha exegese paulina pessoal, nunca con�rmada porque, na Igreja, ninguém discutiria semelhante conjectura, em hipótese alguma. Com efeito, a Igreja sempre a�rmou que essa passagem é obscura e sujeita a diversas interpretações. Por outro lado — eu me perguntava quando jovem aprendiz das artes da fé —, haveria sentido em demonstrar inequivocamente o que vinha a ser o tal espinho na carne de Paulo? A meu ver, não; entretanto, não era necessário muito para acalentar dúvidas sobre sua orientação sexual. Homem erudito, sábio, que �zera bons estudos, ardente em seu zelo e com uma certa dose de misoginia: características às quais se poderia facilmente acrescentar uma possível homossexualidade vivida de forma oculta. Mesmo assim, nos anos de minha formação, Paulo me induziu a crer que a homossexualidade fosse um comportamento contra o qual se devia lutar, como se luta contra uma doença satânica. De fato, os textos de Paulo de Tarso eram sempre apresentados pela Igreja como uma condenação formal dos homossexuais. Ele, no entanto, nunca falou de homossexualidade e sim de “homogenitalidade”, isto é, do ato sexual entre homens independentemente de estes serem por natureza gays ou héteros. Nem Paulo nem nenhum outro autor bíblico podiam compreender corretamente as diversas orientações sexuais humanas, então desconhecidas, e portanto não estavam à altura de julgar adequadamente os comportamentos e os afetos a elas associados. Também aí Paulo era �lho de seu povo e de sua época. Por um lado, sabia que os atos homogenitais eram severamente proibidos pelos judeus com o �m de protegerem sua identidade religiosa de práticas ligadas, no mundo pagão, à idolatria ou à prostituição sagrada, como o testemunham algumas páginas da Bíblia. Por outro, Paulo, homem culto e bom conhecedor do mundo grego, sabia que ali eram de todo naturais as relações entre um homem adulto e outro mais jovem. Mas, nesse caso, o que ele condenava era a pederastia e não a sã homossexualidade tal qual a conhecemos hoje. No correr dos séculos, milhares de pessoas com desejos e sentimentos homossexuais passaram pelos seminários católicos, onde eram doutrinados pela exegese “verdadeira” dos textos paulinos sobre homossexualidade, que sussurrava a seus ouvidos: “Odeia os homossexuais, eles serão condenados por toda a eternidade e não estarão conosco no paraíso”. Também eu vivi esse pesadelo em um ambiente recluso, onde só havia homens paradoxalmente vestidos com roupas de mulher. Passei por seminários... Foram três: o primeiro na Polônia, o segundo na Suíça e o terceiro em Roma, onde, porém, eu já alcançara a posição de superior. No seminário da Polônia, eu ansiava por rever minha família, meus entes queridos e o resto do mundo. Vivia num isolamento insano, onde se fazia de tudo para afastar o seminarista do contato com os outros, encerrando-o numa espécie de prisão ou manicômio sob o pretexto de que seis anos depois ele voltaria a se relacionar de modo normal com seus semelhantes. As festas de Natal e Páscoa eram um pesadelo porque eu tinha de passá-las naquele ambiente esquálido, engolindo uma comida digna dos animais. Mas o pior aspecto do seminário, a verdadeira imundície, eram as relações humanas entre os superiores e nós, seminaristas. O objetivo do seminário consistia em nivelar pela mediocridade, tornando taxativos e automáticos certos hábitos e disciplinas que, sem nenhum valor formativo,