Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Aviso Todo esforço foi feito para garantir a qualidade editorial desta obra, agora em versão digital. Destacamos, contudo, que diferenças na apresentação do conteúdo podem ocorrer em função de restrições particulares às versões impressa e digital e das características técnicas específicas de cada dispositivo de leitura. Este eBook é uma versão da obra impressa, podendo conter referências a este formato (p. ex.: “Circule conforme indicado no exemplo 1”, “Preencha o quadro abaixo”, etc.). Buscamos adequar todas as ocorrências para a leitura do conteúdo na versão digital, porém alterações e inserções de texto não são permitidas no eBook. Por esse motivo, recomendamos a criação de notas. Em caso de divergências, entre em contato conosco através de nosso site (clique aqui). https://www.grupoa.com.br/conteudo/institucional/fale-conosco Versão impressa desta obra: 2020 Porto Alegre 2020 © Artmed Editora Ltda., 2020 Gerente editorial: Letícia Bispo de Lima Colaboraram nesta edição: Coordenadora editorial: Cláudia Bittencourt Editora: Simone de Fraga Capa: Paola Manica | Brand&Book Preparação de originais: Aline Pereira de Barros e Marquieli de Oliveira Leitura final: Netuno e Daniela Louzada Editoração: Clic Editoração Eletrônica Ltda. Produção digital: HM Digital Design T772 Transtornos da personalidade [recurso eletrônico] / Organizadores, Mario Rodrigues Louzã, Táki Athanássios Cordás. – 2. ed. – Porto Alegre: Artmed, 2020. E-pub. Editado também como livro impresso em 2020. ISBN 978-85-8271-585-7 1. Medicina. 2. Psiquiatria. 3. Distúrbios da personalidade. I. Louzã, Mario Rodrigues. II. Cordás, Táki Athanássios. CDU 616.008.485 Catalogação na publicação: Karin Lorien Menoncin – CRB 10/2147 Reservados todos os direitos de publicação à ARTMED EDITORA LTDA., uma empresa do GRUPO A EDUCAÇÃO S.A. Av. Jerônimo de Ornelas, 670 – Santana 90040-340 – Porto Alegre – RS Fone: (51) 3027-7000 Fax: (51) 3027-7070 SÃO PAULO Rua Doutor Cesário Mota Jr., 63 – Vila Buarque 01221-020 – São Paulo – SP Fone: (11) 3221-9033 SAC 0800 703-3444 – www.grupoa.com.br É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, no todo ou em parte, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrônico, mecânico, gravação, fotocópia, distribuição na Web e outros), sem permissão expressa da Editora. http://www.grupoa.com.br/ Autores Mario Rodrigues Louzã Psiquiatra. Médico assistente e coordenador do Programa de Déficit de Atenção/Hiperatividade no Adulto (PRODATH) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-HCFMUSP). Doutor em Medicina pela Universidade de Würzburg, Alemanha. Táki Athanássios Cordás Psiquiatra. Coordenador da Assistência Clínica do IPq-HCFMUSP. Coordenador do Programa de Transtornos Alimentares (Ambulim) do IPq-HCFMUSP. Professor do Programa de Fisiopatologia Experimental da FMUSP, dos Programas de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP) e do Programa de Neurociências e Comportamento do Instituto de Psicologia da USP. Alberto Stoppe Jr. Psiquiatra. Especialista em Psiquiatria e certificado na área de atuação em Psicogeriatria pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Mestre e Doutor em Psiquiatria pela USP. Alexander Moreira-Almeida Psiquiatra. Coordenador das Seções de Espiritualidade e Psiquiatria da Associação Mundial de Psiquiatria (AMP) e da ABP. Professor associado de Psiquiatria e diretor do Núcleo de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde (Nupes) da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Especialista em Terapia Cognitivo-comportamental pelo IPq-HCFMUSP. Doutor em Psiquiatria pela FMUSP. Alexandre Pinto de Azevedo Psiquiatra. Coordenador do Grupo de Estudos em Comer Compulsivo e Obesidade (Grecco) do Ambulim do IPq-HCFMUSP. Coordenador do Ambulatório de Atendimento a Homens com Transtornos Alimentares (Gahta) do Ambulim do IPq-HCFMUSP. Supervisor da Residência Médica em Psiquiatria do Ambulim do IPq-HCFMUSP. Especialista em Transtornos Alimentares e em Medicina do Sono pelo IPq-HCFMUSP. Mestre em Ciências pela FMUSP. Aline Valente Chaves Psiquiatra. Colaboradora do Programa de Transtornos Afetivos (Progruda) do IPq-HCFMUSP. Membro da Comissão Científica da Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos (Abrata). Especialista em Transtorno do Humor. Ana Carolina Schmidt de Oliveira Psicóloga. Pesquisadora e colaboradora da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad)/Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas (Inpad). Professora das Pós-graduações em Saúde Mental, Terapia Cognitivo-comportamental e Psicologia do Trânsito (Vida Mental) da Universidade Paulista (Unip). Especialista em Dependência Química pela Uniad/Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Doutoranda no Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Unifesp. André Malbergier Psiquiatra. Coordenador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do IPq-HCFMUSP. Mestre em Saúde Pública pela Universidade de Illinois, Chicago, Estados Unidos. Doutor em Medicina pela FMUSP. Andreza Carla de Souza Lopes Psicóloga. Professora da Universidade São Judas Tadeu. Pesquisadora e coordenadora da equipe de Neuropsicologia do Ambulim do IPq-HCFMUSP. Especialista em Neuropsicologia pelo Instituto de Doenças Neurológicas de São Paulo (Inesp/SP). Especialista em Psicologia Clínica pela Ulbra/Manaus. Especialista em Metodologia do Ensino Superior pelo Centro Universitário do Norte (Uninorte). Mestra em Neurociências e Comportamento pela USP. Antonio de Pádua Serafim Psicólogo. Neuropsicólogo. Diretor da Unidade de Neuropsicologia do IPq-HCFMUSP. Professor titular de Psicologia da Universidade Metodista de São Paulo. Professor colaborador do Departamento de Psiquiatria da FMUSP e do Programa de Pós-graduação em Neurociências e Comportamento do IP-USP. Mestre em Neurociências e Doutor em Ciências pela USP. Bruna Bartorelli Psiquiatra. Médica assistente do IPq-HCFMUSP. Chefe do Ambulatório de Transtornos Somatoformes (Soma) do IPq-HCFMUSP. Carmita H. N. Abdo Psiquiatra. Professora associada do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex) do IPq-HCFMUSP. Doutora e Livre-docente em Psiquiatria pela FMUSP. Presidente da ABP. Carolina de Mello Santos Psiquiatra. Colaboradora do Grupo Interconsultas do IPq-HCFMUSP. Chei Tung Teng Psiquiatra. Professor colaborador da FMUSP. Doutor em Psiquiatria pela USP. Cristiana Castanho de Almeida Rocca Psicóloga. Neuropsicóloga. Professora colaboradora da FMUSP. Especialista em Avaliação Psicológica e Neuropsicológica pela FMUSP. Mestra em Fisiopatologia Experimental e Doutora em Ciências pela FMUSP. Cristiano Nabuco de Abreu Psicólogo. Coordenador do Grupo de Dependências Tecnológicas do Programa dos Transtornos do Impulso (Pro-Amiti) do IPq-HCFMUSP. Formação em EFT pela Universidade de Toronto. Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Doutor em Psicologia Clínica pela Universidade do Minho, Portugal. Pós-doutorado no Departamento de Psiquiatria do HCFMUSP. Daniel Martins de Barros Psiquiatra. Professor colaborador do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Coordenador médico do Núcleo de Psiquiatria Forense (Nufor) do IPq-HCFMUSP. Doutor em Ciências pela FMUSP. Daniela Meshulam Werebe Psiquiatra. Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise (SBP). Ênio Roberto de Andrade Psiquiatra. Diretor do Serviço de Psiquiatria da Infância e da Adolescência do IPq-HCFMUSP. Professor adjunto de Psiquiatria do HCFMUSP. Pesquisador associado do Inpad. Especialista em Psiquiatra da Infância e da Adolescência pelo IPq-HCFMUSP. Mestre em Medicina Psiquiátrica pela FMUSP. Fabiana Chamelet Nogueira Psiquiatra. Fabiana Saffi Psicóloga-chefe do Serviço de Psicologia e Neuropsicologia do Ipq-HCFMUSP. Psicóloga perita do Nufor do IPq-HCFMUSP. Curso de AprimoramentoProfissional em Avaliação Psicológica e Neuropsicológica realizado no Serviço de Psicologia e Neuropsicologia do IPq-HCFMUSP. Especialista em Psicologia Jurídica pelo Conselho Federal de Psicologia. Mestra e doutoranda em Ciências na USP. Fábio Tapia Salzano Psiquiatra. Vice-coordenador do Ambulim do IPq-HCFMUSP. Mestre em Ciências pela FMUSP. Fátima Vasques Psicóloga clínica. Especialista em Terapia Cognitiva pela Unip. Fellipe Augusto de Lima Souza Psicólogo. Professor da Residência de Psiquiatria do HC Radamês Nardini, Mauá. Coordenador dos Grupos de Habilidades do Ambulim do IPq-HCFMUSP. Especialista em Transtornos Alimentares pelo Ambulim do IPq-HCFMUSP. Formação em Terapia Comportamental Dialética pelo Behavioral Tech. Francisco Lotufo Neto Psiquiatra. Gamaliel Coutinho de Macedo Psiquiatra. Geilson Lima Santana Psiquiatra. Pesquisador do Núcleo de Epidemiologia Psiquiátrica do IPq-HCFMUSP. Especialista em Psiquiatria Geral e Certificado de Atuação em Psiquiatria da Infância e Adolescência pela ABP. Doutor em Ciências pela FMUSP. Gustavo Gil Alarcão Psiquiatra. Colaborador do Serviço de Psicoterapia do IPq-HCFMUSP. Psicanalista filiado à SBPSP. Doutorando em Ciências na FMUSP. Hewdy Lobo Psiquiatra. Especialista em Psiquiatria Forense pela ABP. Mestre em Administração pela Unip. Homero Vallada Psiquiatra. Professor associado do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Professor visitante do Karolinska Institutet, Suécia. Doutor em Medicina pelo King’s College, Londres. Ivanor Velloso Meira-Lima Psiquiatra. Professor associado de Psiquiatria e Psicologia Médica da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Mestre em Genética pela Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Psiquiatria e Psicologia Médica pela Unifesp. Pós-doutorado no IPq-HCFMUSP. Júlia Catani Psicóloga clínica. Psicóloga e psicanalista no Soma do IPq-HCFMUSP. Bolsista do CNPq. Psicanalista pelo Instituto Sedes Sapientiae. Especialista em Saúde Mental e Psicopatologia pelo IPq-HCFMUSP. Mestra em Ciências pelo Instituto de Psicologia da USP. Doutoranda em Ciências no Instituto de Psicologia da USP. Laura Helena Silveira Guerra de Andrade Psiquiatra do IPq-HCFMUSP. Coordenadora do Núcleo de Epidemiologia do IPq-HCFMUSP. Doutora em Psiquiatria pela USP. Pós-doutorado na Johns Hopkins University School of Public Health. Leonardo Sauaia Psiquiatra do Southern District Health Board, Dunedin, Nova Zelândia. Membro da Sociedade Internacional de Estudos sobre Transtornos de Personalidade (ISSPD). Letícia Oliveira Alminhana Psicóloga. Mestra em Teologia pela EST/RS. Doutora em Saúde pela UFJF. Pós-doutorado na University of Oxford/Reino Unido e PNPD/Capes na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Luciana de Carvalho Monteiro Psicóloga. Professora convidada do Serviço de Psicologia e Neuropsicologia do IPq- HCFMUSP. Especialista em Avaliação Psicológica e Neuropsicológica na Instituição Hospitalar pelo IPq-HCFMUSP. Mestra em Ciências pela FMUSP. Luciana Roberta Donola Cardoso Psicóloga e pesquisadora. Especialista em Psicologia Comportamental pela USP. Mestra em Análise do Comportamento pela PUC-SP. Doutora em Ciências pela FMUSP. Luis Felipe Costa Psiquiatra. Psicoterapeuta pela Sociedade de Psicodrama de São Paulo. Especialista em Psiquiatria pela ABP/AMB e em Transtornos Afetivos pelo HCFMUSP. Mara Behlau Fonoaudióloga. Professora de Relacionamentos Interpessoais: Comunicação em Negócios no Instituto de Ensino e Pesquisa-Insper. Diretora do Centro de Estudos da Voz (CEV) de São Paulo. Especialista em Voz pelo Conselho Federal de Fonoaudiologia. Mestra em Ciências e Doutora em Distúrbios da Comunicação Humana pela Unifesp. Marco Aurélio Monteiro Peluso Psiquiatra. Doutor em Psiquiatria pela USP. Pós-doutorado em Psiquiatria na University of Texas Health Science Center at San Antonio/Estados Unidos. Pós-doutorado em Psiquiatria na USP. Maria Aparecida da Silva Psiquiatra. Colaboradora do Grupo de Estudos de Atenção ao Desenvolvimento Infantil (Geadi) do Laboratório de Comportamento Motor da Escola de Educação Física & Laboratório de Avaliação Neurofuncional da Faculdade de Fisioterapia da USP. Mestra e Doutora em Ciências pela USP. Mirella Baise Psicóloga clínica. Especialista em Neuropsicologia pelo IPq-HCFMUSP. Mestra em Neurociências pela USP. Oswaldo Ferreira Leite Netto Psiquiatra. Diretor do Serviço de Psicoterapia do IPq-HCFMUSP. Professor do Instituto de Psicanálise da SBPSP. Especialista em Psicanálise pela SBPSP/Associação Psicanalítica Internacional. Membro efetivo da SBPSP. Paulo Germano Marmorato Psiquiatra. Especialista em Psiquiatria da Infância e Adolescência pelo IPq-HCFMUSP. Renato Luiz Marchetti Psiquiatra. Professor colaborador do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Coordenador do Projeto de Epilepsia e Psiquiatria (Projepsi) do IPq-HCFMUSP. Doutor em Psiquiatria pela FMUSP. Renato T. Ramos Psiquiatra. Professor associado do Departamento de Psiquiatria da Universidade de Toronto, Canadá. Renerio Fraguas Jr. Psiquiatra. Professor livre-docente. Professor associado do Departamento e do IPq-HCFMUSP. Diretor da Divisão de Psiquiatria e Psicologia do Hospital Universitário da USP. Especialista em Psiquiatria pelo IPq-HCFMUSP. Doutor pelo IPq-HCFMUSP. Pós-doutorado no Depression Clinical and Research Program, Massachusetts General Hospital, Harvard Medical School, Massachusetts, Boston, Estados Unidos. Ricardo Alberto Moreno Psiquiatra. Especialista em Transtornos do Humor: Depressão e Bipolar pelo IPq-HCFMUSP. Doutor em Medicina pela USP. Roberta Catanzaro Perosa Psiquiatra colaboradora e supervisora do Ambulatório de Anorexia Nervosa e Bulimia Nervosa do Ambulim do IPq-HCFMUSP. Especialista em Transtornos Alimentares pelo Ambulim do IPq-HCFMUSP. Sergio Paulo Rigonatti Psiquiatra. Professor adjunto de Psiquiatria no HCFMUSP. Pesquisador associado do Inpad. Especialista em Psiquiatria Forense e em Dependência Química pela Uniad/Unifesp. Mestre em Ciências pela Unifesp. Doutor em Saúde Mental pela USP. Thays Vaiano Fonoaudióloga. Professora do CEV. Mestra e Doutora em Distúrbios da Comunicação Humana pela Unifesp. Wanderly Barroso Campos Psiquiatra. Coordenador do Ambulatório de Psicogeriatria do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (UFGO). Preceptor da Residência Médica de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da UFGO. Especialista titular em Psiquiatria e Psicogeriatria pela ABP. Yara Azevedo Prandi Psiquiatra. M Prefácio uito próximos das melhores histórias de ficção científica, estudos recentes baseados em conceitos psicológicos como introversão e extroversão, entre outros, discutem características de personalidade, em humanos e robôs, que facilitariam a interação homem-máquina em diferentes atividades do dia a dia. Por sua vez, estudando animais como Euprymna tasmanica (lula do bolinho do sul ou lula do sul), marmotas-de-ventre- amarelo, esquilo-vermelho-americano, Macaca mulatta (macaco rhesus) e chimpanzés, cientistas calculam que a hereditariedade de traços de personalidade nessas espécies pode alcançar até 60%. Estudando bonobos (Pan paniscus) – elegantes e ostentadores de belos topetes, também conhecidos como chimpanzés- pigmeus –, é possível dizer que eles se diferenciam dos chimpanzés (membros do mesmo gênero em seus traços de personalidade) em parte por variações do receptor 1a da vasopressina. Esses e outros trabalhos sofisticados sugeririam que a compreensão da personalidade e diferentes desdobramentos em anima nobili já estivessem bem avançados. Não obstante, embora consideráveis esforços venham sendo feitos levando à identificação de cerca de 1.000 genes que estão envolvidos em sua formação, o estudo das variáveis genéticas que influenciam a personalidade está apenas no início. É possível dizer que esses genes conhecidos seriam provavelmente responsáveis pelos três grandes sistemas de aprendizado e memória nos seres humanos: o condicionamento comportamental dos hábitos e tarefas; o aprendizado intencional do planejamento de metase relações sociais; e uma espécie de aprendizado autobiográfico, uma forma de visualizar, em si mesmo, uma narrativa pessoal no tempo e no espaço. É muito, e é pouco ainda. Se a definição e o entendimento do que é personalidade no ser humano são ainda muito parciais, estudar o que chamamos de transtornos da personalidade nos remete a terrenos ainda mais pantanosos – transtorno da personalidade como termo, como modo patológico de ser ou comportar-se, ou como conceito tem uma longa e tortuosa história na psiquiatria. Padrões de comportamento similares aos conhecidos hoje como transtornos da personalidade (ou “tipos” de personalidades), embora chamados de modo diferente, são conhecidos desde o início da história do homem. Uma primeira abordagem pode ser vista em Os caracteres (ΧΑΡΑΚΤΗΡΕΣ), de Teofrasto (372 a.C. a 287 a.C.). O trabalho é um panorama bem escrito, inteligente e mordaz dos tipos morais, sendo, definitivamente, a primeira tentativa de escrever uma sistematização caracterológica. Ao longo dos séculos, muitos conceitos, modelos e teorias foram criados para justificar esses diferentes modos de pensar e se comportar. A convergência de nome, comportamento e conceito ocorre pela primeira vez apenas no início do século XX, deixando parcialmente para trás conceitos anteriores: filosóficos (Kant, Locke), frenológicos, localizacionistas, morais, degenerativos e outros. De Kretschmer e seu modelo dimensional e Kurt Schneider com sua visão tipológica até chegarmos ao DSM-5 com seu modelo híbrido, muito se discutiu sobre esse tópico, verdadeiro calcanhar de Aquiles da nosologia psiquiátrica. O consenso ainda está longe, termos como personalidade, transtorno da personalidade, caráter, temperamento, constituição, self, ego, estado, traço, psicopatia, sociopatia ainda estão presentes em nosso meio e, muitas vezes, são usados inadvertidamente, orientados por razões científicas, ideológicas ou socioculturais. Esta é a 2ª edição do livro Transtornos da personalidade, lançado em 2011. Oito anos após, capítulos foram revistos e atualizados, outros foram acrescidos e novos autores de destaque em suas áreas se juntaram a nós. Agradecemos aos brilhantes colegas autores de capítulos que nos emprestam e ao leitor seu conhecimento. Agradecemos à nossa Editora, Artmed, pela competência, carinho e confiança constantes. Acreditamos que esta edição deu um passo à frente no conhecimento do nosso objeto de estudo – talvez os bonobos tenham ficado um passo atrás. Contudo, sempre temos a impressão de que, ao darmos um passo à frente em direção à montanha, esta recua e se distancia novamente. Boa leitura! Mario Rodrigues Louzã Táki Athanássios Cordás Organizadores Berrios GE. European views on personality disorders: a conceptual history. Compr Psychiatry. 1993;34(1):14-30. Zachar P, Krueger RF, Kendler KS. Personality disorder in DSM-5: an oral history. Psychol Med. 2016;46(1):1-10. Zwir I, Arnedo J, Del-Val C, Pulkki-Råback L, Konte B, Yang SS, et al. ncovering the complex genetics of human character. Mol Psychiatry. 2018. [Epub ahead of print] Sumário 1 Transtornos da personalidade: um esboço histórico-conceitual Táki Athanássios Cordás, Mario Rodrigues Louzã 2 Personalidade, voz e comunicação Thays Vaiano, Mara Behlau 3 Transtornos da personalidade: epidemiologia Geilson Lima Santana, Marco Aurélio Monteiro Peluso, Laura Helena Silveira Guerra de Andrade 4 Aspectos genéticos Ivanor Velloso Meira-Lima, Homero Vallada 5 Neurobiologia dos transtornos da personalidade Maria Aparecida da Silva, Luciana de Carvalho Monteiro, Mario Rodrigues Louzã 6 Avaliação psicológica da personalidade: modelos e instrumentos Antonio de Pádua Serafim, Cristiana Castanho de Almeida Rocca 7 Transtornos da personalidade: aspectos médico-legais Antonio de Pádua Serafim, Sergio Paulo Rigonatti, Daniel Martins de Barros 8 Transtornos da conduta na infância e na adolescência e transtorno da personalidade antissocial Paulo Germano Marmorato, Ênio Roberto de Andrade 9 Transtornos da personalidade em idosos Wanderly Barroso Campos, Alberto Stoppe Jr. 10 Transtorno da personalidade borderline Hewdy Lobo, Ana Carolina Schmidt de Oliveira, Táki Athanássios Cordás, Fabiana Chamelet Nogueira 11 Personalidade, transtornos da personalidade e esquizofrenia Yara Azevedo Prandi, Gamaliel Coutinho de Macedo, Mario Rodrigues Louzã 12 Transtornos da personalidade e obesidade Alexandre Pinto de Azevedo 13 Personalidade e dependência de drogas André Malbergier, Luciana Roberta Donola Cardoso 14 Transtornos alimentares Táki Athanássios Cordás, Fábio Tapia Salzano, Alexandre Pinto de Azevedo, Andreza Carla de Souza Lopes, Mirella Baise 15 A interface entre personalidade, transtornos da personalidade e transtornos do humor Ricardo Alberto Moreno, Luis Felipe Costa, Aline Valente Chaves 16 Transtornos da personalidade e transtornos de ansiedade Renato T. Ramos 17 Transtornos da personalidade e transtornos dissociativos (ou conversivos) Letícia Oliveira Alminhana, Alexander Moreira-Almeida 18 Sintomas somáticos, transtornos relacionados e personalidade* Bruna Bartorelli, Júlia Catani, Renerio Fraguas Jr., Daniela Meshulam Werebe 19 Transtornos da personalidade e transtornos da sexualidade Carmita H. N. Abdo 20 Transtornos da personalidade no transtorno de déficit de atenção/hiperatividade Maria Aparecida da Silva, Mario Rodrigues Louzã 21 Transtornos da personalidade associados à epilepsia Renato Luiz Marchetti 22 Transtornos da personalidade e suicídio Carolina de Mello Santos, Chei Tung Teng, Leonardo Sauaia 23 Tratamento farmacológico dos transtornos da personalidade Roberta Catanzaro Perosa, Fábio Tapia Salzano, Táki Athanássios Cordás 24 Um olhar psicanalítico sobre o transtorno da personalidade borderline Oswaldo Ferreira Leite Netto, Gustavo Gil Alarcão 25 O vínculo terapêutico e a terapia comportamental dialética no transtorno da personalidade borderline Francisco Lotufo Neto, Fabiana Saffi 26 Terapia cognitiva nos transtornos da personalidade Fátima Vasques, Cristiano Nabuco de Abreu, Fellipe Augusto de Lima Souza O 1 Transtornos da personalidade: um esboço histórico-conceitual Táki Athanássios Cordás, Mario Rodrigues Louzã conceito de personalidade como um conjunto de características relativamente estáveis de cada indivíduo é possivelmente tão antigo quanto a própria humanidade. Na Grécia Antiga, merece destaque a obra Os Carateres, que apresenta a primeira tentativa conhecida de tipologia da personalidade, escrita por Tirtamo de Lesbos (372 a.C.-288 a.C.), denominado Teofrasto (“o que tem o dom divino no uso das palavras”).1 Constituída por uma sequência de 30 retratos, cada um dedicado a um tipo humano, apesar da leitura difícil e de vários trechos perdidos, nessa obra é possível encontrar descrições muito agudas, como o descarado, o mesquinho, o tagarela, o arrogante e aquele que alguns identificam como o protótipo do distímico: o eterno descontente. Na China antiga, Confúcio (551 a.C.-472 a.C.), em Os Analectos, descreve o temperamento como a combinação de “sangue” e da “essência vital”, com mudanças ao longo da vida.2 Nascido em Pérgamo, em 128 d.C., e falecido em Roma, em 210 d.C. (?), Galeno, com seu trabalho médico prolífico, que também abordava os mais diversos temas filosóficos, em nada relacionados à medicina, alcançou um nível de respeito comparado apenas ao de Hipócrates. Galeno descreve pela primeira vez o estado de dilirium dos alcoolistas e a simulação das doenças, que chama de patomímia. Profundo conhecedor dos textos de Hipócrates, reafirma a exatidão da descrição da melancolia feita por esse autor. A teoria humoral é extensivamente desenvolvida por Galeno, no entanto, perde força no milênio seguinte. A Figura 1.1 e o Quadro 1.1 apresentam uma visão esquemática de sua teoria dos humores. Figura 1.1 Visão esquemática da teoria dos humores, de Galeno. QUADRO 1.1 Teoria dos humores Humor Qualidades Elemento Personalidade Sanguíneo Quente, úmido Ar Otimista, falante, irresponsável, gordoColérico Quente, seco Fogo Explosivo, ambicioso, magro Fleumático Frio, úmido Água Lento, corpulento, preguiçoso Melancólico Frio, seco Terra Introspectivo, pessimista, magro Ao longo dos séculos, filósofos como Descartes, Leibnitz e Kant propuseram suas concepções a respeito de processos psicológicos do ser humano, como caráter, personalidade, consciência e introspecção, bem como o conceito de identidade. No século XIX, quando começam as tentativas de classificação dos transtornos mentais e de comportamento, as diferentes escolas europeias separam pessoas que teriam algum tipo global de prejuízo mental daquelas que, apesar de estarem em contato com a realidade, apresentariam alterações de comportamento, conduta ou características pessoais que comprometeriam suas vidas (Quadro 1.2). QUADRO 1.2 Principais autores que desenvolveram conceitos de transtornos da personalidade Autor Ano Conceito Descrição Pinel 1809 Manie sans delire Prejuízo afetivo sem prejuízo da capacidade de compreensão Rush 1812 Moral alienation of the mind Atos repreensíveis são manifestações de transtorno mental Prichard 1835 Moral insanity Perversão mórbida de afetos e emoções, sem prejuízo das funções intelectuais Esquirol 1838 Monomanie Transtorno focal da mente Morel 1850 Degenerescences Teoria geral da degeneração Lombroso 1876 Criminoso nato ou atávico Derivação da teoria da degeneração Koch 1891 Psychopathische Minderwertigkeiten (inferioridade psicopática) Derivação da teoria da degeneração Gross 1909 Psychopathische Minderwertigkeiten Derivação da teoria da degeneração Schneider 1923 Personalidades psicopáticas Tipologia de características da personalidade Kretschmer 1921 Biótipo e temperamento Relação entre tipo físico, características da personalidade e transtornos mentais Pinel inclui em sua nosografia a manie sans delire, cuja caracterização é controversa, porém indica um quadro de furor sem prejuízo do intelecto (i.e., sem psicose).3 Influenciado pelas ideias liberais da Revolução Francesa, reafirma que o homem, ao contrário das ideias preconcebidas de um determinismo biológico, é livre para julgar, escolher e assumir a responsabilidade por seus atos. O caso célebre que influenciou o psiquiatra francês a elaborar sua teoria ocorreu quando um indivíduo claramente não doente e com consciência e capacidade de julgamento preservados empurrou, em estado de fúria, uma mulher para dentro de um poço. Essa caracterização de um comportamento evidentemente anormal em um indivíduo preservado no restante de seu psiquismo é um conceito central para o desenvolvimento das ideias sobre personalidade anormal. O termo “loucura moral” foi cunhado por Prichard, em 1835, para se referir a síndromes comportamentais cuja maior característica seria a ausência de delirium. A releitura de sua descrição sugere que o médico inglês buscava um modo de acomodar pacientes que, hoje, receberiam o diagnóstico de transtorno bipolar sem quadro delirante, e não de um transtorno da personalidade. A teoria da degeneração de Morel oferece uma explicação geral, a qual pode ser aplicada especificamente àqueles que apresentam “inferioridade psicopática”, seja de modo genérico, como Koch e Gross, seja de modo específico, como Lombroso, em sua proposta do “criminoso nato”. Ao longo desse período, o conceito de transtorno da personalidade foi associado ao de criminalidade, criando uma ponte entre a psiquiatria e a área jurídica criminal. A tipologia de Kretschmer Em 1921, Ernst Kretschmer4 (1888-1964) sugere uma tipologia que, aparentemente, conseguiria unir os aspectos físicos com o temperamento. O psiquiatra alemão propôs a associação entre os tipos leptossômico, atlético e pícnico e seus correspondentes psicológicos fleumático, viscoso-explosivo e ciclotímico.4 Um quarto tipo morfológico, o displásico, apresentaria menor correlação com um tipo psicopatológico específico. A tipologia de Kretschmer também merece ser destacada pela proposta de um contínuo entre o normal e o patológico. Suas ideias foram aplicadas na prática por Sheldon,5 nos Estados Unidos, com nomes como viscerotonia, somatotonia e cerebrotonia. As personalidades psicopáticas, de Kurt Schneider Kurt Schneider6 (1887-1967) utiliza o termo “personalidades psicopáticas” para descrever as pessoas que “sofrem com sua anormalidade de personalidade ou que fazem sofrer a sociedade”. Segundo sua sistemática clínica, são variações extremas da normalidade (e não doenças stricto sensu) dentro de um continuum, em cujo centro estatístico estão as personalidades normais. Mais afastadas da média, estão as personalidades anormais, das quais se distinguem as personalidades psicopáticas. Esse autor propõe uma tipologia não sistemática com 10 tipos principais, com características acentuadas, havendo a possibilidade de combinações variadas entre elas (Quadro 1.3). QUADRO 1.3 As personalidades psicopáticas, segundo Kurt Schneider6 Subtipo Características Hipertímico Humor alegre acentuado, temperamento vivaz, atividade intensa, cooperativo Depressivo Humor triste, pessimista, angustiado, cético, pouca autoconfiança Inseguro de si Insegurança interior, falta de autoconfiança Fanático Dominado por um complexo de ideias, ativo, expansivo Necessitado de valorização Aparenta mais do que é, chama atenção para si; no extremo, caracteriza-se pela pseudologia fantástica Lábil de humor Oscilações de humor, irritabilidade/depressão, reage aos estímulos depressivamente Explosivo Reage de modo raivoso por qualquer motivo Sem índole (Gemütlos) Sem piedade, vergonha ou consciência; frio Sem vontade (Willenlos) Influenciável Astênico Dificuldade de concentração e de memória, pouca capacidade produtiva, cansaço As personalidades acentuadas (Akzentuierte), de Karl Leonhard Karl Leonhard7 (1904-1988) propõe uma série de tipos de personalidades acentuadas, não necessariamente anormais (Quadro 1.4). As características dessas personalidades poderiam se situar em um continuum entre a normalidade e os transtornos da personalidade. QUADRO 1.4 Tipos de personalidades acentuadas, segundo Karl Leonhard7 Demonstrativo Hiperexato Hiperinsistente Descontrolado (Ungesteuerte) Hipertímico Distímico Lábil de humor Exaltado (Überschwenglich) Ansioso Emotivo Extrovertido Introvertido Os critérios atuais: DSM-5 e CID-10 A 10a edição da Classificação internacional de doenças (CID-10),8 da Organização Mundial da Saúde, considera três possibilidades etiológicas de transtornos da personalidade: transtornos decorrentes de doença, lesão e disfunção cerebrais (F07); transtornos específicos de personalidade (F60); e alterações permanentes de personalidade, não atribuíveis a lesão ou doença cerebral (F62). Os transtornos da personalidade decorrentes de doença, lesão ou disfunção cerebrais (F07) caracterizam-se por mudanças de personalidade decorrentes de doenças cerebrais (p. ex., tumores, epilepsia, acidente vascular cerebral, traumatismo cranioencefálico, etc.) (Quadro 1.5). QUADRO 1.5 Transtornos de personalidade decorrentes de doença, lesão e disfunções cerebrais, segundo a CID-108 F07.0 Transtorno orgânico de personalidade F07.1 Síndrome pós-encefalítica F07.2 Síndrome pós-concussional Os transtornos específicos de personalidade (F60) seriam decorrentes de fatores constitucionais e ambientais, caracterizados por padrões rígidos de comportamento e desadaptação interpessoal e social que se afastam significativamente da média de uma determinada cultura (Quadro 1.6). QUADRO 1.6 Transtornos da personalidade segundo a CID-108 e o DSM-59 CID-10 DSM-5 Paranoide Paranoide Grupo A Esquizoide Esquizoide Esquizotípica Dissocial Antissocial Grupo B Emocionalmente instável Borderline Narcisista Histriônico Histriônica Anancástico Obsessivo-compulsiva Grupo C Ansioso (evitativo) Evitativa Dependente Dependente Na CID-10,8 existe, ainda, a possibilidade de uma alteração permanente de personalidade em indivíduos sem transtorno da personalidade prévio após uma experiência catastrófica (F62.0)ou doença psiquiátrica (F62.1). Diferentemente das edições anteriores, o DSM-59 abandona o sistema multiaxial, excluindo a divisão entre os transtornos do Eixo I e os do Eixo II (os transtornos da personalidade). Assim como na CID-10,8 o DSM-5,9 considera a possibilidade diagnóstica de mudança da personalidade devido a uma condição médica (310.1) e também aos transtornos da personalidade (310) (Quadro 1.6).9 A maioria dos subtipos propostos é semelhante aos da CID-10.8 A exceção mais importante é o transtorno da personalidade esquizotípica, que, na CID-10,8 está classificado junto aos transtornos do espectro da esquizofrenia (transtorno esquizotípico [F21]). No DSM-59 os transtornos da personalidade são, ainda, separados em três grupos (A, B e C), conforme suas características comuns. Além da classificação categorial, o DSM-59 apresenta uma proposta de classificação dimensional dos transtornos da personalidade, ainda a ser pesquisado de modo mais detalhado. Nessa classificação, dois aspectos são considerados: prejuízos no funcionamento da personalidade (Quadro 1.7) e traços patológicos da personalidade (Quadro 1.8). O nível dos prejuízos (de si mesmo e interpessoal) varia de ‘0’ (sem prejuízo) a ‘4’ (prejuízo grave). Os traços de personalidade derivam do modelo dos cinco fatores, conhecido como Big Five, incluindo seis domínios, e estes contendo no total 25 facetas específicas. QUADRO 1.7 Elementos do funcionamento da personalidade Si mesmo (self) • Identidade • Autodirecionamento Interpessoal • Empatia • Intimidade QUADRO 1.8 Domínios dos traços da personalidade Afetividade negativa Distanciamento Antagonismo Desinibição Psicoticismo Nesta classificação dimensional, são considerados os seguintes transtornos da personalidade: antissocial, evitativa, borderline, narcisista, obsessivo-compulsiva e esquizotípica. Perspectivas futuras: CID-11 A preparação da 11a edição da Classificação internacional de doenças (CID-11), a qual envolve a revisão de toda a Classificação, não apenas da área de saúde mental, ainda está em desenvolvimento (uma versão preliminar encontra-se em h ttps://icd.who.int/). Sua codificação será modificada de forma que os transtornos mentais receberão o código “06”. Há, ainda, pouca informação sobre os transtornos da personalidade. Relações entre personalidade, transtorno da personalidade e transtorno mental O Grupo A dos transtornos da personalidade Os transtornos da personalidade esquizoide, paranoide e esquizotípica, juntos, formam o chamado Grupo A dos transtornos da personalidade no DSM-5.9 Convém lembrar que, na CID-10,8 o transtorno esquizotípico não é considerado um transtorno da personalidade, mas uma síndrome vizinha à esquizofrenia. Há muitas décadas, esse grupo, caracterizado por um “estranho” (“extravagante” ou “exótico”) padrão de cognição e afeto, isolamento social e quadros psicóticos transitórios, é relacionado com o espectro esquizofrênico.10 https://icd.who.int/ Kraepelin, Berze e Hoch descrevem certos familiares de primeiro grau de pacientes com demência precoce. Os termos personalidade esquizoide e esquizoidia foram cunhados pelo grupo de Bleuler por volta de 1910.11 O Grupo B dos transtornos da personalidade O transtorno da personalidade borderline e o transtorno da personalidade histriônica foram incorporados ao Eixo II, transtornos da personalidade, pelo DSM-III, após uma longa evolução conceitual.12 O termo borderline foi continuamente utilizado na psicanálise para descrever a “linha cinzenta” entre neuróticos e psicóticos. Já o termo histriônico substitui o milenar termo histérico, carregado de preconceito, usado com conotações etiológicas sexuais na mulher desde Hipócrates até Freud.13 O termo narcisismo, por sua vez, remonta à mitologia grega. Narciso era um rapaz de extrema beleza. Seus pais (Céfiso e Liríope), antes do nascimento, consultam um oráculo para saber sobre o destino de seu filho. Ele sentencia que Narciso terá vida longa, desde que não veja a imagem de seu próprio rosto. Narciso, ao rejeitar o amor de Eco, sofre a vingança dos deuses; exposto ao reflexo de seu rosto num lago, apaixona-se por si mesmo (talvez o primeiro “selfie” da história...), definhando até a morte (https://www.britannica.com/topic/Narcissus- Greek-mythology). O termo é utilizado na psiquiatria no fim do século XIX; na psicanálise, por Freud, em 1914, no artigo “Introdução ao Narcisismo” (Freud, 2010), e, posteriormente, por Heinz Kohut e Otto Kernberg, psicanalistas americanos. O “transtorno da personalidade narcisista” aparece pela primeira vez no DSM-III, em 1980.14 Pessoas com personalidade antissocial provavelmente existem desde a aurora da humanidade. Na Ética a Nicomano, Aristóteles diz que certas coisas “[...] não são agradáveis por natureza, (a) algumas se tornam tais por efeito de distúrbios no organismo, outras (b) devido a hábitos adquiridos e outras ainda (c) em razão de uma natureza congenitamente má” (Livro VII, 5).15 Recentemente, os termos “psicopatia”, “sociopatia” e “transtorno da personalidade antissocial” têm sido utilizados de modo intercambiável; no entanto, alguns autores sugerem que seriam conceitos distintos, embora com muita superposição. “Psicopatia” seria um termo mais genérico, caracterizado por ausência de empatia, frieza emocional, ausência de culpa e, eventualmente, atos violentos e antissociais. Por ser vislumbrado já na infância e na adolescência, admite-se que tenha uma base biológica importante. Já a “sociopatia” seria decorrente da interação entre uma predisposição biológica e de condições ambientais adversas. O conceito de “transtorno da personalidade antissocial”, por sua vez, está delimitado tanto no DSM-59 quanto na CID-108 (com a denominação “transtorno da personalidade dissocial”).16–18 O Grupo C dos transtornos da personalidade O menos claro dos três grupos de transtornos da personalidade é composto por pacientes com características de evitação, dependência e anancásticos. A falta de clareza em relação a esse grupo se deve ao fato de os quadros serem frouxamente relacionados e de a superposição com os transtornos de ansiedade não estar clara.19 Referências 1. Teofrasto. Os caracteres. Lisboa: Relógio D’Água; 1999. 2. Crocq MA. Milestones in the history of personality disorders. Dialogues Clin Neurosci. 2013;15:147-53. 3. Berrios GE. European views on personality disorders: a conceptual history. Compr Psychiatry. 1993;34(1):14-30. 4. Kretschmer E. Körperbau und charakter: untersuchungen zum konstitutionsproblem und zur lehre von den temperamenten. Berlin: Julius Springer; 1921. 5. Sheldon WH. The varieties of temperament: a psychology of constitutional differences. New York: Harper; 1942. 6. Schneider K. Klinische psychopathologie. 12. aufl. Stuttgart: Georg Thieme Verlag; 1980. 7. Leonhard K. Akzentuierte persönlichkeiten. 2. aufl. Stuttgart: Fischer; 1976. 8. Organização Mundial da Saúde. Classificação de transtornos mentais e de comportamento da CID-10. Porto Alegre: Artmed; 1993. 9. American Psychiatric Association. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5. 5. ed. Porto Alegre: Artmed; 2014. 10. Frangos E, Ahanassenas G, Tsitourides S, Katsanou N, Alexandrou P. Prevalence of DSM III schizophrenia among the first- degree relatives of schizophrenic probands. Acta Psychiatr Scand. 1985;72(4):382-6. 11. Bleuler M. The schizophrenic disorders. Long term patient and family studies. New Haven: Yale University; 1978. 12. American Psychiatric Association. DSM-III: diagnostic and statistical manual of mental disorders. 3rd ed. Washington: APA; 1980. 13. Stone MH. Borderline and histrionic personality disorders: a review. In: Maj M, Akiskal HP, Mezzich JE, Okasha A, editors. Personality disorders. London: Wiley; 2005. https://www.britannica.com/topic/Narcissus-Greek-mythology 14. Russel GB. Narcissism and the narcissistic personality disorder: a comparison of the theories of Kernberg and Kohut. Br J Med Psychol. 1985;58 (Pt 2):137-48. 15. Aristóteles. Ética a Nicomano. Brasília:UnB; 1999. 16. Walsh A, Wu HH. Differentiating antisocial personality disorder, psychopathy, and sociopathy: evolutionary, genetic, neurological, and sociological considerations. Criminal Justice Studies. 2008;21(2):135-52. 17. Conti RP. Psychopathy, sociopathy, and antisocial personality disorder. Forensic Res Criminol Int J. 2016;2(2):00046. 18. Anderson NE, Kiehl KA. Psychopathy: developmental perspectives and their implications for treatment. Restor Neurol Neurosci. 2014;32(1):103-17 19. Tyrer P. The anxious cluster of personality disorders: a review. In: Maj M, Akiskal HP, Mezzich JE, Okasha A, editors. Personality disorders. London: Wiley; 2005. A 2 Personalidade, voz e comunicação Thays Vaiano, Mara Behlau voz humana é um dos aspectos mais importantes da projeção da personalidade, caracterizando, em grande parte, as interações sociais. É interessante recuperar a conexão simbólica entre personalidade e voz.1 A palavra personalidade vem do latim persona e refere-se à máscara usada pelos atores romanos para personare; mais precisamente, persona refere-se à abertura da boca da máscara pela qual o som da voz deveria ressoar. O uso da máscara, a persona, permitia não somente um sistema de amplificação para a voz, mas também uma nova identidade ao ator. Da máscara a palavra passou a designar o ator, a persona no drama e, finalmente, a personalidade. Do mesmo modo que ocorre com a formação da personalidade, o desenvolvimento da voz é considerado um processo longo, gradual e único. A possibilidade de vocalizar está presente desde o nascimento, sendo o choro um dos eventos mais esperados neste momento. Embora as primeiras vocalizações já sinalizem condições de fome, dor e prazer,2 o que pode ser interpretado como uma resposta fisiológica e/ou emocional, a identidade vocal propriamente dita de um indivíduo leva décadas para se desenvolver e consiste em uma série de características persistentes, observáveis e mensuráveis manifestada pelas formas de uso da voz nos relacionamentos interpessoais. A voz modulada em palavras e frases forma a fala articulada, que nos seres humanos exige uma alta complexidade e a interação de dois sistemas motores: o sistema motor emocional e o sistema motor somático. Há menos de quatro décadas, a neurologia e a neurociência acreditavam que o trato corticospinal controlava todos os movimentos, entretanto, novas descobertas evidenciaram que regiões envolvidas em funções emocionais possuem sua própria configuração, com rotas neurais específicas para o tronco encefálico e a medula espinal, constituindo o chamado sistema motor emocional, que regula os movimentos musculares relacionados à expressão das emoções. O sistema motor volitivo ou somático controla direta ou indiretamente os motoneurônios que inervam a musculatura do corpo axial e proximal, regulando a postura corporal, além dos motoneurônios do pescoço e da musculatura externa do olho que determinam a direção do campo visual.3 O som da voz que ouvimos no ambiente é o resultado da fonação (vibração das pregas vocais na laringe) mais a ressonância nas cavidades superiores, que modifica esse som básico ao passar pela laringe, faringe e boca (Figura 2.1), formando os sons da fala e as características da comunicação oral individual. A produção da voz humana envolve um comportamento motor laríngeo que se estende de respostas límbicas reflexas a atos vocais aprendidos extremamente sofisticados como os da fala e do canto.4 A voz como produto final é a resultante complexa da interação de fatores orgânicos e de seu uso na comunicação. O uso da voz como parte do comportamento comunicativo é influenciado pelos traços de personalidade moderadamente hereditários e que moldam nossa tendência para responder de certa forma, sob certas circunstâncias.5 Figura 2.1 Esquema da laringe e das pregas vocais. (A) Posição da laringe no pescoço. (B) Pregas vocais em visão superior. À semelhança de todos os comportamentos humanos, as condições genéticas são apenas a base da construção da voz e é a interação com o ambiente que vai determinar a qualidade vocal de um indivíduo, tão única a ponto de ter valor como prova forense.6 As condições genéticas determinam as características básicas do trato vocal, que é o conjunto de estruturas responsáveis pela produção da voz. A principal estrutura responsável pela produção do som é a laringe, onde se localizam as duas pregas vocais, cuja vibração produz o som básico de uma voz (a frequência fundamental). Outras estruturas supralaríngeas (faringe, boca, língua e cavidade nasal), são responsáveis pelos formantes do som, essenciais para representar a identidade vocal. Contudo, além da contribuição desses fatores orgânicos, estudos com gêmeos mostram a grande participação dos fatores ambientais na qualidade vocal e também no desenvolvimento de distúrbios da voz.7 Os músculos laríngeos afastam as pregas vocais permitindo a entrada de ar para os pulmões (inspiração) e sua saída para o meio ambiente (expiração), na situação de repouso. Contudo, quando produzimos a voz, o ciclo respiratório se altera, a inspiração faz-se de modo mais rápido e durante a expiração os músculos da laringe aproximam as pregas vocais, que, ao vibrarem, produzem o som básico da fonação. Esses mesmos músculos, juntamente com os da faringe, do palato, da face e da língua modulam o som vocal básico para que possamos produzir os sons da fala, variando o tom e o volume, a fim de passar uma mensagem específica e transmitir diferentes emoções. Vocalizar, embora não seja exclusivo da espécie humana, manifesta-se com grande sofisticação entre nós, por ser o vetor da linguagem para transmissão de pensamentos, ideias e emoções. Assim, a laringe pode ser considerada um órgão para manifestações emocionais e não somente um órgão que responde ao sistema neuromotor.1,8 Embora o som da voz mude ao longo da vida de um indivíduo, há sempre uma informação nuclear que o identifica, relacionada à forma com que são usados os diversos parâmetros da comunicação oral. Os principais componentes físicos da voz que contribuem para caracterizar a qualidade vocal, ou seja, a impressão global gerada por uma voz, estão apresentados no Quadro 2.1. QUADRO 2.1 Principais componentes físicos da qualidade vocal Componentes físicos Significado Tipo de voz Representa a qualidade vocal; pode ser rugosa (rouca), soprosa (com ar) ou tensa (com esforço); há grande influência cultural nesse aspecto; é definida pela composição dos componentes harmônicos e ruídos na distribuição do espectro acústico. Ataque vocal Modo de início da sonorização das vogais, ou seja, da interrupção do fluxo de ar expiratório pela vibração das pregas vocais; pode ser isocrômico, quando a vibração coincide com a saída do ar; soproso, quando há escape de ar antes da sonorização, ou brusco, quando há predomínio de tensão e a emissão parece uma breve explosão sonora. Frequência fundamental Tom médio específico da voz que pode variar de grave a agudo, expresso em Hertz; impacto na identificação do gênero e da maturidade emocional; vozes masculinas adultas variam de 80 a 150Hz e femininas de 150 a 250Hz. Extensão fonatória e gama tonal A extensão fonatória é a variação de frequências que um indivíduo consegue emitir, da mais grave à mais aguda; a gama tonal refere-se aos tons usados na fala; a variação pode ser restrita (monotom), regular ou ampla (grande riqueza de tons) e é expressa em semitons ou Hertz. Extensão dinâmica e intensidade vocal A extensão dinâmica é a variação de intensidade que um indivíduo consegue produzir, da mais fraca à mais forte; a intensidade vocal é o volume médio da voz, geralmente expressa em decibéis. Ressonância Foco de concentração de energia no trato vocal, podendo ser laríngea, faríngea, oral ou nasal; depende da amplificação dos harmônicos no espectro acústico. Ritmo e velocidade de fala O ritmo é a cadência na melodia da fala, que pode ser influenciada por hesitações, prolongamentos e repetições de sons, além de bloqueios; já a velocidade da fala,ou taxa de elocução, é uma medida do número médio de palavras por minuto, podendo ser lenta, regular ou rápida; a velocidade regular do português brasileiro é de 140 palavras por minuto, mas há grande influência regional. Articulação dos sons da fala Representa a dicção e é o resultado das posições assumidas pelas estruturas do trato vocal, laringe, faringe, língua, véu palatino e lábios, o que modifica a corrente aérea expiratória; pode ser genericamente categorizado como sobrearticulado, com movimentos exagerados, regular ou subarticulado; tem influência cultural importante. Padrão respiratório na fala Característica pessoal que representa a forma com a qual distribuímos os processos de inspiração e expiração na fala; a inspiração pode ser superficial ou profunda, rápida ou lenta, oral ou nasal, e a expiração pode ser coordenada com a produção da fala ou incoordenada, com aporte respiratório insuficiente, uso de ar de reserva ou pausas respiratórias inadequadas. O processo de desenvolvimento da linguagem precisa da produção vocal como fonte carregadora de informação fonética e emocional, refletindo características sutis dos sistemas nervoso e somático. A comunicação emocional, além da verbal, faz parte da competência comunicativa e é expressa essencialmente pelo uso da voz, caracterizada pela variação de seus componentes físicos, contribuindo em grande parte para nossa regulação social. Por meio da voz, além de expressarmos nosso estado emocional e a qualidade da interação com o(s) outro(s), demonstramos características de nossa personalidade, sinalizamos o quanto percebemos e aceitamos opiniões diferentes das nossas e como antecipamos o efeito do que dizemos e da forma como transmitimos a mensagem a quem nos ouve. Neste capítulo daremos destaque para a emoção percebida pela voz do falante, a psicodinâmica vocal, a relação entre voz e traços de personalidade e os principais dados referentes aos distúrbios vocais e de personalidade. Voz e emoção percebida A voz, na comunicação oral, é frequentemente usada para inferir estados emocionais, e somos capazes de captar a emoção transmitida por uma voz a partir de 200 milissegundos após termos entrado em contato com o som, independente do conteúdo linguístico. Essa é uma experiência corriqueira que nos faz inferir o humor de alguém após um simples “alô” ao telefone. Somos seres “ativados por voz” e nossos cérebros são configurados para responder imediatamente ao som da voz; até mesmo na vida uterina bebês reagem diferentemente à voz da mãe que a de outras mulheres, e bebês com um dia de vida já respondem de modo diferente às vozes humanas que a outros sons.9 A análise do som da voz e da fala de alguém permite detectar comportamentos humanos agrupados em três categorias de identificação:6 1. Emoções, tais como tensão, raiva, medo, tristeza, depressão e alegria; 2. Estados induzidos por condições externas, como intoxicação por álcool e drogas; 3. Certos comportamentos intencionais, como falsidade, mentira, disfarce e evitação. Julgamentos pela voz, sejam acurados ou não, influenciam nossas interações sociais, a escolha de parceiros, de líderes e até mesmo de opções que fazemos como consumidores.10,11 Esse julgamento automático é um recurso de facilitação da interação e da economia cognitiva.12 Emoções causam alterações em nossas respiração, fonação e articulação, o que, em parte, determina modificações em diversos parâmetros do sinal acústico que percebemos ao escutarmos uma voz. Mais de um século de pesquisas relacionadas à biologia, à psicologia e às ciências da comunicação sugerem que vários estados emocionais podem ser percebidos por características acústicas presentes na nossa voz. Comunicar emoções é crucial para nossas relações sociais e para nossa sobrevivência13 e, por essa razão, tanto a expressão como a compreensão das emoções por meio da voz têm sido amplamente estudadas. Estudos de neuroimagem confirmam que existe uma arquitetura cerebral para percepção, compreensão e processamento das informações socialmente relevantes transmitidas tanto pela face quanto pela voz.14 Embora as evidências sobre reconhecimento de emoções pela voz ainda não sejam tão convincentes quanto as de reconhecimento de emoções pela face, novas perspectivas estão se acumulando. Evidências sobre os fenômenos cognitivos específicos para o processamento de voz ainda são evasivas, mas a convergência de dados clínicos e de neuroimagem sugerem a existência de processos cerebrais e de neurônios específicos para a percepção vocal. Essas regiões específicas do córtex estão localizadas no giro temporal superior e ao serem estimuladas mostram maior oxigenação em resposta a sons vocais que a sons não vocais (de fontes naturais ou produzidos artificialmente). Embora seja notadamente forte para sons de fala, a resposta seletiva de voz também é observada para sons que não são de fala, mostrando que, particularmente, o hemisfério direito não está apenas interessado no processamento do conteúdo linguístico da voz, mas também no conteúdo expresso além das palavras.14–15 O ser humano é bastante habilidoso em perceber emoções transmitidas pela voz, seja o estímulo natural ou manipulado acusticamente.16–17 Emoções negativas parecem ser mais facilmente percebidas que as positivas.18 Além disso, mulheres percebem as emoções de forma mais acurada e rápida que os homens,19 porém, com o envelhecimento há um decréscimo nessa habilidade para ambos os sexos.20 As duas dimensões emocionais mais estudadas sobre a expressão e a percepção da voz são o nível de atividade psicofisiológica relacionada à emoção em si (excitação) e a valência, que se refere ao valor afetivo da emoção, como neutra, positiva ou negativa.21–22 Um estudo interessante22 confirmou que além de se obter julgamentos consistentes a partir da análise do som de uma única palavra (“alô”), um espaço vocal social de duas dimensões, valência e dominância, pode resumir todas as vozes. Dos dez traços de personalidade testados – a saber: agressividade, atratividade, competência, confiança, dominância, feminilidade, agradabilidade, masculinidade, confiabilidade e calor humano –, a valência foi composta por confiança e agradabilidade e está relacionada à frequência fundamental da voz, enquanto a dominância foi relacionada a parâmetros acústicos mais estáveis. O estudo também concluiu que vozes masculinas são consideradas mais atraentes quando apresentam valência e dominância e nas vozes femininas apenas a valência interfere nesse julgamento. A primeira impressão sobre a atratividade masculina está relacionada à percepção de força do falante, enquanto para as mulheres é relacionada ao calor humano e confiança percebidos. Aspectos como qualidade vocal, características prosódicas e tempo de emissão têm sido associadas com algumas emoções básicas universais,23–24 como apontado no Quadro 2.2. A prosódia, aspecto suprassegmental da fala, relacionado ao tom e ao ritmo de fala, ocupa um lugar central nesses estudos e concentra-se principalmente em características temporais (velocidade de fala e duração dos sons) e dinâmicas (frequência fundamental e intensidade vocal). Geralmente a frequência fundamental (tom) e o nível de pressão sonora (volume ou intensidade vocal) aumentam ao expressarmos fortes emoções e diminuem durante períodos de baixa atividade emocional. Embora haja aspectos e sutilezas vocais culturais, o caráter universal dessas manifestações emocionais básicas é considerado uma garantia da sobrevivência do homem, independentemente da cultura ou da língua falada.23,25 QUADRO 2.2 Características vocais associadas com as emoções básicas, em comparação com uma emissão neutra Características vocais e de fala Medo Ansiedade Tristeza Felicidade/alegria Desgosto Desespero Raiva Qualidade vocal Irregular Voz de peito e soprosa Neutra, sem tensão ou soprosidade Soprosa ou metálica Voz de peito, embargada Tensa e irregular Voz tensa Velocidade de fala Muito rápida Um pouco mais rápida Um pouco mais lenta Mais rápida oumais lenta Muito lenta Um pouco mais rápida Mais rápida Articulação dos sons Precisa Tensa Restrita Normal Normal Imprecisa Precisa Frequência de fala (tom da voz) Muito alta, aguda/fina Muito alta, aguda/fina Um pouco mais baixa, grave/grossa Muito alta, aguda/fina Muito baixa, grave/grossa Um pouco mais alta, aguda/fina Mais alta, aguda/fina Extensão vocal (variação de tom) Muito ampla Muito ampla Mais restrita Muito ampla Um pouco mais ampla Muito ampla Ampla Modulação vocal (melodia na fala) Normal Ênfases abruptas em algumas sílabas Terminações de frase com a voz mais grave Terminações de frase com a voz mais aguda Terminações de frase com voz abruptamente mais grave Terminações de frase com a voz mais aguda Ênfases em algumas sílabas com terminação descendente Intensidade vocal (volume) Normal Alta Baixa Alta Baixa Alta Alta Fonte: Adaptado de Murray, e Arnott;23 Pittam e Scherer24 O som da voz impacta o ouvinte e interfere diretamente na comunicação, revelando elementos importantes das características biológicas, psicológicas e socieducacionais e produzindo uma resposta que merece ser mais bem compreendida, por meio da exploração da chamada psicodinâmica vocal. Psicodinâmica vocal A dinâmica vocal espelha a psicodinâmica do indivíduo e o som da voz impacta diretamente o ouvinte interferindo na transmissão da mensagem. A esse padrão de impacto e à resposta que dele advém, dá-se o nome de psicodinâmica vocal.1,26 A voz carrega um número incontável de informações, e diversos estudos revelam as inferências que fazemos sobre a etnia do falante,27 o gênero,28 sua situação socioeconômica,29–30 traços de personalidade,21,31 além de seu estado emocional e mental.32–33 Também somos capazes de estimar a idade, a estatura física e a massa corporal ao ouvirmos vozes tão bem quanto ao analisarmos esses mesmos parâmetros olhando para uma fotografia;28,34 ao ter acesso às vozes e fotografias, avaliadores conseguem associar corretamente 75% das pessoas com suas respectivas vozes.34 Em situações normais de interação, modificamos diversos aspectos da qualidade vocal, consciente ou inconscientemente, e a forma como utilizamos a voz revela tendências de interação. Parâmetros de frequência (voz mais grave ou mais aguda), de intensidade (voz mais forte ou mais fraca) e de velocidade de fala (mais lenta ou mais rápida) são facilmente percebidos pelos ouvintes que interpretam tais modificações, conscientes ou não desse impacto. Desvios no tipo de voz, ressonância, frequência fundamental, extensão vocal, intensidade e articulação dos sons da fala transmitem determinadas impressões, independentemente do fato desses desvios serem a consequência de distúrbios da voz, de escolhas estilísticas do falante ou do resultado direto de um estado emocional em particular e das características da interação na situação de comunicação. Julgamento psicodinâmicos frequentemente relatados na clínica vocal ilustram a frequência com a qual nos baseamos na voz para inferir os mais variados aspectos do falante. Uma primeira impressão ruim pode ser provocada simplesmente por um desvio vocal presente35 e um indivíduo portador de um distúrbio de voz pode ter dificuldades de expressão emocional e relacionais que não tem a ver com sua personalidade ou com as emoções que está experimentando. Um resumo dos principais parâmetros vocais e de fala, com suas principais impressões, obtidas por relatos de pacientes e clínicos, muitas das quais representando julgamentos psicodinâmicos, está apresentado no Quadro 2.3.36 O fato da voz ser um comportamento expressivo mensurável e de se poder prever uma série de aspectos sobre o falante contribui para a relevância da análise e da relação entre psicodinâmica vocal e personalidade. QUADRO 2.3 Principais modificações de parâmetros de voz, de fala e de respiração, associadas à caracterização e aos efeitos psicodinâmicos na comunicação Parâmetros Caracterização e efeito psicodinâmico Tipo de voz Impressão geral transmitida pela qualidade vocal; é o som da voz como um todo. Voz rugosa (rouca) Caracterizada por irregularidade nos ciclos glóticos que produzem o som básico da fonação; em grau discreto pode ser considerada sensual; em grau moderado e intenso passa ideia de cansaço, abuso de fala e estresse; é interpretada como desagradável apenas quando o desvio é muito intenso, sinalizando problemas de saúde. Voz em tom basal Um tipo específico de rugosidade, produzida por encurtamento máximo e adução longa das pregas vocais, o que produz ciclos lentos e redução da frequência fundamental; é associada a indivíduos controladores ou, quando em grau intenso, a pessoas intimidantes, assustadoras e que provocam medo; quando o som basal aparece somente nos finais das frases pode representar uma opção estilística, um fenômeno recente mais observado nos Estados Unidos, Reino Unido e Austrália entre jovens de 20 a 30 anos; é avaliado como falta de profissionalismo e afetação. Voz tensa, tensa- estrangulada ou comprimida Caracterizada por esforço muscular percebido e visto no aparelho fonador; em grau discreto passa tentativa de controle; quando os desvios são maiores, pode transmitir agressividade, raiva, incômodo, rigidez psicológica e aflição; é sempre interpretada como desagradável. Voz soprosa Caracterizada por fechamento incompleto das pregas vocais; pode passar a impressão de fraqueza e cansaço, mas também de sensualidade, dependendo de como a modulação e os ciclos respiratórios se apresentam. Voz sussurrada Caracterizada por ausência de vibração das pregas vocais, confere um caráter intimista à comunicação, como se contasse um segredo; aparece em casos de distúrbios psicossomáticos e conversão. Voz fluida Caracterizada por adução leve entre as pregas vocais na produção da fonação; de característica locucional, confere sensualidade ao falante e passa sedução ao ouvinte; é também observada quando se quer consolar ou acalmar alguém. Voz bitonal Resultante de um regime vibratório duplo ou da alternância de contração entre os músculos tireoaritenóideo e cricotireóideo; como são percebidos dois tons alternados em sílabas próximas, ou saltos de frequência em trechos da emissão, causa estranheza ao ouvinte, interpretação de indefinição de personalidade, ou de falta de maturidade e de virilidade nos rapazes; pode ser manifestação de muda vocal incompleta nos homens. Voz monótona Caracterizada por falta de variação de frequência durante a fala ou por padrão de altura repetitivo, é resultado de redução na dinâmica muscular laríngea e pode ser interpretada como falta de capacidade de capturar a atenção do ouvinte ou pessoa monótona e desinteressante. Voz trêmula Resultado de sustentação irregular da frequência fundamental, passa a impressão de emotividade, sensibilidade excessiva, fragilidade, indecisão e, em maior grau, medo ou também senilidade. Voz infantilizada Tom agudo em indivíduos adultos por comportamento vocal ou alterações anatômicas; produz um julgamento de ingenuidade ou de imaturidade; nas mulheres pode passar necessidade de proteção ou submissão; em graus intensos nos homens compromete a categorização de masculinidade. Voz virilizada Tom grave em mulheres por espessamento de pregas vocais, geralmente resultante de uso de esteroides anabolizanteas; passa a impressão de masculinidade. Voz presbifônica Típica do envelhecimento natural da laringe, da atrofia de seus músculos e das modificações na mucosa, pode transmitir julgamentos negativos de senilidade, falta de potência, deterioração física ou falta de saúde. Voz hipernasal (“anasalada”) Resultado de foco de ressonância alto e concentrado na cavidade nasal; se o grau for discreto e o trato vocal estiver relaxado, pode conferir sensação de afetividade, carinho e sensualidade; se o grau for moderado ou intenso, pode conferir interpretações negativas e estereotipadas de limitação intelectual, além de problemas físicos, falta de energia e inabilidade social. Voz hiponasal Resultado de pouco aproveitamento dacavidade de ressonância nasal; pode-se confundir com a voz hipernasal e produz também sensação de limitação intelectual. Voz pastosa Resultado de ressonância orofaríngea reduzida, como se a pessoa falasse com uma batata na boca; passa sensação de limitação mental, falta de maturidade psicoemocional; quando associada com fala arrastada, passa a impressão de fala intoxicada por álcool e/ou por drogas. Ressonância Amplificação e amortecimento de sons de determinadas frequências do espectro. Está psicodinamicamente relacionada ao objetivo emocional do discurso. Equilibrada Uso balanceado dos ressonadores, indica facilidade de esteriorizar emoções e é associada a um bom equilíbrio psicoemocional. Laringofaríngea Musculatura hipercontraída da laringe e/ou faringe, passa a impressão de tensão e de sentimentos de agressividade. Excessivamente oral Maior concentração de amplificação do som na cavidade da boca, está associada à vaidade excessiva, personalidade narcisista e afetação. Nasal Maior concentração de amplificação do som na cavidade nasal, em grau discreto confere sensualidade e afetividade, em maiores graus indica presença de fatores orgânicos (fissura palatina ou fissura submucosa). Frequência vocal Corresponde ao número de ciclos glóticos por segundo que as pregas vocais realizam, geralmente referido como frequência fundamental; está psicodinamicamente relacionada à percepção de gênero do falante ou à intenção do discurso. Voz mais grave Pregas vocais longas e mucosa espessa; associada à masculinidade ou a indivíduos mais autoritários e energéticos. Voz mais aguda Pregas vocais mais curtas e mucosa delgada; associada à feminilidade ou a indivíduos mais dependentes, infantis ou frágeis. Tons graves na fala Contexto triste ou sério na comunicação; geralmente associado com menor variação de tons nas frases, ênfase pobre e velocidade de fala lenta. Tons agudos na fala Contexto alegre ou leve na comunicação; geralmente associado com maior variação de tons, ênfase mais marcada e velocidade de fala rápida. Gama tonal É a extensão das frequências usadas durante a fala, a faixa de variação de tons no discurso e está associada ao caráter do falante e à maneira de transmitir as emoções. Gama tonal restrita Pouca variação na dinâmica de alongamento e encurtamento das pregas vocais; indica controle das emoções e pode estar associada a pessoas mais rígidas, reprimidas e com dificuldade de negociar. Gama tonal rica Variação na dinâmica de alongamento e de encurtamento das pregas vocais de acordo com a emoção e o contexto; indica alegria, satisfação, riqueza de sentimentos e excitação. Gama tonal excessivamente variada Descontrole na dinâmica de alongamento e de encurtamento das pregas vocais, pode indicar falta de controle e de regulação emocional, além de sensibilidade excessiva. Intensidade vocal É o resultado da resistência que as pregas vocais oferecem ao fluxo aéreo vindo dos pulmões, também referida como volume de voz; tem relação com a pressão laríngea subglótica; expressa como o falante lida com a noção de limite próprio e dos outros. Adequada Controle balanceado das forças aerodinâmicas e musculares de acordo com o ambiente da fala; consciência do espaço sonoro e da dimensão do outro, indicando respeito aos limites. Elevada Firmeza na coaptação glótica e grande fluxo aéreo translaríngeo, produz um volume de voz excessivo para o ambiente; passa a impressão psicodinâmica de franqueza, vitalidade e energia, mas também de desrespeito aos limites, falta de educação, invasão do espaço do outro e recurso de intimidação. Reduzida Coaptação com reduzida adução de pregas vocais e fluxo translaríngeo reduzido, produz uma voz baixa para o ambiente, podendo dificultar a compreensão da mensagem; passa a impressão de timidez, insegurança, inferioridade, baixa autoestima, medo da reação do outro ou falta de experiência nas relações interpessoais. Articulação dos sons da fala Processo de ajustes motores dos órgãos fonoarticulatórios na produção dos sons de um determinado código linguístico e em seu encadeamento na fala; expressa interesse pelo outro e cuidado de ser compreendido. Articulação bem definida Processo adequado de produção e coarticulação dos sons da fala; passa clareza de ideias, desejo de ser compreendido e preocupação com o ouvinte. Articulação imprecisa Falhas na produção de sons da fala ou em seu encadeamento; causa a impressão de dificuldade de organização mental, desinteresse em se comunicar ou em ser compreendido pelo outro. Inexatidão articulatória momentânea Perda momentânea de precisão na articulação de alguns sons ou no encadeamento pela coarticulação; transmite perda de controle repentino em virtude de uma situação emocional relacionada a surpresa ou a confusão. Articulação exagerada Sobrearticulação dos sons da fala, muitas vezes acompanhada de prolongamentos em sua duração média; transmite certo grau de afetação e narcisismo. Articulação travada Pouca abertura de boca com prejuízo na produção dos sons e em sua coarticulação na cadeia da fala; transmite contenção de sentimentos, sobretudo raiva, e tentativa de controle de agressividade. Respiração Movimento de inspiração e expiração dos pulmões para trocas gasosas; a respiração para a fala requer uma inspiração curta e a inserção dos sons articulados na fase expiratória; está relacionada aos ciclos da vida e ao contato com o ambiente. Adequada Ciclos semelhantes em situação de repouso e predominância da expiração durante a fala; reflete troca adequada com ambiente e seus interlocutores. Superficial ou curta Ciclos inspiratórios e expiratórios curtos e quase sem movimentação da caixa torácica; reflete ansiedade ou dificuldade de fazer contato com o ambiente. Exagerada Ciclos inspiratórios podem ser ruidosos, com excessiva concentração de fluxo inspiratório nasal, podendo haver abertura das narinas, com estridor e expiração curta e com fluxo excessivo; reflete agitação, raiva e descontrole emocional quando associado a desvios nos outros parâmetros da fala, como tom agudo e alta intensidade; ou tentativa de controle, quando não acompanhada de fala. Embora o som da voz impacte diretamente o outro, qualifique a comunicação e espelhe com bastante propriedade quem somos, a exploração da relação entre voz e personalidade não tem sido sistemática e carece de estudos abrangentes. Voz e traços de personalidade A relação entre voz e personalidade é conhecida e trabalhada desde a Antiguidade. Aristóteles propõe uma lista extensiva de parâmetros vocais relacionados a tipos de personalidade, expressão das emoções, aspectos sociais e educacionais dos falantes, questões culturais e sociais, muitas das quais válidas ainda hoje e registradas no trabalho seminal de Paul Moses.1 De modo geral, impressões relativas à personalidade do outro são inferidas com base no som da voz21 e há um certo consenso quanto à associação entre voz e tipo de personalidade percebida, com maior impacto da frequência da voz que do conteúdo verbal da fala.37 Manipular uma mesma amostra de fala alterando sua frequência fundamental (valor absoluto, frequência média e variação na fala) favorece uma percepção diferente da personalidade.38 Contudo, embora a associação entre voz e personalidade tenha recebido diversos estudos interessantes, não há um experimento abrangente e controlado o suficiente que tenha mapeado as características vocais de todos os traços de personalidade. Alguns trabalhos merecem destaque, como o estudo de Addington (1968) que solicitou a atores a leitura de uma frase a partir de estímulos diferentes e associou nove características vocais a 40 traços de personalidade, com confiabilidade elevada (0,81); uma das principais conclusões desse estudo é que os atores, independentemente do gênero, ao fazerem uma leitura acelerada eram percebidos como mais animados e extrovertidos; além disso, ao usarem maior modulação de voz (variação mais rica de tom), homens e mulheres foram percebidos como mais dinâmicos e os homens foram tambémconsiderados mais femininos, enquanto as mulheres mais extrovertidas. Posteriormente, Scherer25 identificou que vozes com ampla modulação revelam pessoas mais dinâmicas, extrovertidas e benevolentes. Embora os traços de personalidade sejam considerados pelos menos parcialmente hereditários, aspectos motivacionais, afetivos, comportamentais e atitudinais podem contribuir para sua modificação.39–40 Um dos aspectos tradicionalmente mais estudados é a relação entre a frequência da voz ou do tom de voz (mais grave ou agudo) e a percepção de competência e benevolência;38 ao se manipular o tom e a velocidade de uma voz por síntese de fala, encontrou-se uma tendência de associação entre aumento de modulação e benevolência; entre velocidade de fala mais lenta com menor competência e também entre velocidade de fala mais rápida com menor benevolência; os resultados são mais consistentes no que se refere à manipulação da velocidade de fala que entonação. Relacionar a voz à personalidade, atratividade e capacidade reprodutiva do falante parece ter sentido biológico e tem recebido muita atenção de pesquisadores de diversas áreas. Há elevado consenso sobre atratividade vocal21,39 e essa decisão é formulada assim que se ouve o outro falar, independentemente do sexo do falante.31 Pessoas que soam atraentes são percebidas como detentoras de características de personalidade mais desejáveis, tais como agradabilidade, calor humano, honestidade, dominância e disponibilidade.21 Mulheres preferem homens com vozes mais graves e os percebem como mais dominantes, maduros, saudáveis e mais masculinos,41–42 além de mais competentes, persuasivos, confiantes e confiáveis.10 Por outro lado, os homens percebem as mulheres de vozes mais agudas como mais atraentes, subordinadas, femininas, saudáveis e jovens.42 Esses dados foram obtidos em estudos com amostras neutras de fala, como contagem de números e controle de informações como características articulatórias e prosódicas.41–42 Recentemente foi comprovado que a associação entre voz e atratividade é multiparamétrica e mais complexa do que se acreditava, sendo ponderada de modo diverso por homens e mulheres em função de sua prioridade na comunicação;43 por exemplo, para os homens a dominância física foi prevista por variação restrita do tom da voz e pelo conteúdo de palavras, enquanto o domínio social foi previsto apenas pelo conteúdo em si; já para as mulheres, a atratividade foi prevista por uma voz mais grave, intensidade mais forte e pelo conteúdo de palavras. Além disso, em contextos de interação, as pessoas modificam intuitivamente vários parâmetros vocais para persuadir, seduzir ou influenciar possíveis parceiros, usando um padrão vocal diferente daquele usado normalmente. Animais de diversas espécies respondem de modo diferenciado ao som das vocalizações44 e tal associação estende-se também para a raça humana, não somente quanto à atratividade sexual, mas também quanto às características de liderança. Pesquisas em vocalização animal comprovam que os chamados de animais contêm informações sobre o emissor e que os receptores desses sinais vocais são influenciados por esta informação;10 vocalizações em frequências graves são marcadores vocais de dominância e estrutura física, conferindo superioridade aos machos na competição pelas fêmeas.45 De modo semelhante nos seres humanos, o atributo de liderança está associado a vozes mais graves e pode auxiliar o indivíduo a obter posições hierárquicas mais elevadas e a receber mais votos;10–11 essa preferência por líderes que utilizem vozes graves pode comprometer a avaliação da capacidade de liderança de mulheres.46 Possuir uma voz atraente parece trazer mais impressões positivas do que possuir um corpo atraente; pesquisadores compararam avaliações de atratividade feitas por meio da voz com julgamentos da personalidade dos donos dessas vozes feitos por outros juízes. Os resultados mostraram que não somente há concordância sobre quais vozes são mais atraentes, mas também quanto ao fato de que traços de personalidade mais positivos foram atribuídos a elas; as vozes preferidas foram associadas a personalidades mais calmas, de boa natureza e honestas, sendo que honestidade foi mais associada ao som da voz que à imagem da face das pessoas.21 As diversas teorias da personalidade dão maior ou menor importância aos aspectos de uso da voz,47 geralmente dentro da análise do parâmetro competência (com menção à competência comunicativa) ou comportamento anormal (comportamento na interação). Duas teorias abordam com maior interesse os aspectos da comunicação. A primeira delas é a de Jung que definiu atitudes e funções mentais como potencialidades existentes em todas as pessoas.47 Esse conhecimento acabou por favorecer a criação de diversos instrumentos de medição, como o Myers-Briggs Type Indicator – MBTI, amplamente disseminado no mundo das organizações, que identifica 16 tipos de personalidade baseados em quatro dimensões:48 1. Atitude de extroversão ou introversão (busca de energia no mundo exterior versus predominância no mundo interior); 2. Função mental de busca de informação por via de sensação ou intuição (busca pelo real, por fatos versus busca intuitiva por possibilidades e relações); 3. Função mental de tomada de decisão por pensamento ou sentimento (análise lógica e impessoal, com critérios versus decisão por valores pessoais); 4. Atitude de estilo de vida entre julgar ou perceber (estrutura e organização versus adaptação e espontaneidade). Indivíduos extrovertidos usam mais a comunicação oral, pensam enquanto falam e têm maior possibilidade de desenvolver problemas vocais; indivíduos que buscam informação por meio de sensação tendem a dar mais informações concretas e podem ser mais descritivos em seu discurso; pessoas com preferência pelo pensamento tendem a ser mais assertivas do que pessoas guiadas pelo sentimento, que apresentam mais sensibilidade aos outros; finalmente pessoas com estilo de vida de julgamento apresentam um discurso mais estruturado e as com estilo de percepção dão-se melhor nas situações de improviso, mostrando grande adaptabilidade na comunicação. A segunda teoria é o Modelo dos Cinco Grandes Fatores da Personalidade – Big-Five Factors of Personality (BFP), baseado nos trabalhos de Cattell e apresentado por pesquisadores independentes em diversas versões e análises, usando hipóteses léxicas para estudar os traços de personalidade por cinco fatores distintos centrais.47 Os BFPs receberam os seguintes nomes: 1. Abertura para a experiência (interesse por variedade de experiências, cultura, criatividade); 2. Consciencialidade (responsabilidade, autodisciplina, respeito aos deveres); 3. Extroversão (tendência a procurar estimulação e companhia das pessoas); 4. Agradabilidade (ser compassivo e cooperante); 5. Neuroticismo ou Instabilidade emocional (tendência a experimentar emoções negativas). Cada um desses fatores possui seis facetas distintas. O BFP considera diversos elementos relacionados à comunicação interpessoal e há uma boa correlação dos fatores com as dimensões do MBTI, com exclusão do neuroticismo, que não é avaliado no indicador;39 o comportamento interpessoal pode ser definido pelos eixos de extroversão e de cordialidade.40 Dos aspectos relacionados aos tipos psicológicos e aos cinco fatores, com certeza a dimensão extroversão-introversão tem interesse particular e é o aspecto mais pesquisado. Um estudo controlado com eletromiografia revelou que indivíduos saudáveis introvertidos têm comportamento vocal e função laríngea diferentes dos extrovertidos em tarefa de fala ansiogênica, apresentando maior risco de desenvolverem disfonia por tensão muscular. A atividade da musculatura infra- hióidea e a percepção de desvantagem vocal foram maiores nos introvertidos,49 o que é consistente com a Teoria dos Traços para Distúrbios Vocais, que será explorada no próximo item. Há poucos estudos sobre distúrbios vocais e personalidade, mas alguns dados estimulam pesquisas para compreender melhor
Compartilhar