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147 UNIDADE 3 OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir desta unidade você será capaz de: • Identificar A Especificidade Dos Gêneros Épico E Narrativo; • Compreender A Relação Entre O Gênero Épico E O Gênero Narrativo; • Reconhecer As Relações Entre A Literatura E Outras Áreas Do Conhecimento; • Compreender As Relações Da Literatura Com A História E A Sociedade. Esta unidade está dividida em três tópicos. Ao final de cada um deles, você terá atividades que vão ajudá-lo a refletir sobre os assuntos abordados. TÓPICO 1 – O GÊNERO ÉPICO TÓPICO 2 – O GÊNERO NARRATIVO TÓPICO 3 – LITERATURA E SUAS RELAÇÕES COM A HISTÓRIA E A SOCIEDADE 148 149 TÓPICO 1 O GÊNERO ÉPICO UNIDADE 3 1 INTRODUÇÃO Você viu na primeira unidade do livro de Teoria da Literatura I que, desde a Antiguidade, a literatura se divide em gêneros literários, quais sejam: o gênero lírico, o gênero dramático e o gênero épico ou narrativo. Nesta unidade, estudaremos mais detidamente os gêneros épico e narrativo. Todos vivemos envoltos em narrativas, sejam elas reais ou ficcionais. Como afirma Antonio Candido (2004, p. 174), não há povo e não há homem que possa viver sem fabulação e, assim, a criação ficcional “está presente em cada um de nós”. Nesta unidade, você conhecerá mais sobre a narrativa, a começar pelo mais antigo gênero narrativo. O gênero épico, caracterizado pela presença de narrador e de personagens, narrava, misturando eventos históricos e mitológicos, os mitos de fundação das nações na Antiguidade. A seguir, você conhecerá os modernos gêneros narrativos, que herdaram características do gênero épico, especialmente a disposição para a totalidade, pluralidade ou variedade, o que explica a consolidação e valorização da prosa narrativa na modernidade. Neste tópico, você estudará as relações da literatura, em especial da narrativa, com outras áreas do conhecimento, e o gênero épico, suas características e a trajetória das epopeias. Ao final deste tópico, você estará ambientado com as relações da literatura com outras áreas do conhecimento e com o gênero épico. Seja bem-vindo! UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO 150 2 O GÊNERO NARRATIVO E AS RELAÇÕES DA LITERATURA COM OUTRAS ÁREAS DO CONHECIMENTO A literatura constitui uma atividade plural que, para se manifestar em sua especificidade, assimila uma diversidade de áreas do conhecimento, especialmente, mas não exclusivamente, os gêneros narrativos. Roland Barthes (2010, p. 18) acentua esse aspecto da literatura, sustentando nele uma defesa da literatura diante das outras disciplinas: A literatura assume muitos saberes. Num romance como Robinson Crusoé, há um saber histórico, geográfico, social (colonial), técnico, botânico, antropológico (Robinson passa da natureza à cultura). Se, por não sei que excesso do socialismo ou de barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto numa, é a disciplina literária que devia ser salva, pois todas as ciências estão presentes no monumento literário. Barthes evidencia a relação da literatura com outras áreas do conhecimento, e imediatamente escreve: É nesse sentido que se pode dizer que a literatura, quaisquer que sejam as escolas em nome das quais ela se declara, é absolutamente, categoricamente realista: ela é a realidade, isto é, o próprio fulgor do real. Entretanto, e nisso verdadeiramente enciclopédica, a literatura faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles; ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto é precioso (BARTHES, 2010, p. 18). “Verdadeiramente enciclopédica, a literatura faz girar os saberes”, afirma Barthes (2010, p. 18), confirmando o fato de que “todas as ciências estão presentes no monumento literário”, e dinamicamente. E mais: “ela é a realidade”, advoga Barthes, sem reduzir a literatura ao realismo de um Zola, por exemplo, que, como Barthes, entretanto, acreditava que “as obras-primas do romance contemporâneo dizem muito mais sobre o homem e sobre a natureza do que graves obras de Filosofia, de História e de Crítica” (COMPAGNON, 2012, p. 7-8). Afinal, a literatura abrange, de fato, muitos conhecimentos, especialmente sobre a vida, o homem e o mundo. Como confirma Antoine Compagnon (2012, p. 8), “exercício de reflexão e experiência de escrita, a literatura responde a um projeto de conhecimento do homem e do mundo. Um ensaio de Montaigne, uma tragédia de Racine, um poema de Baudelaire, o romance de Proust nos ensinam mais sobre a vida do que longos tratados científicos”. A abrangência da literatura em suas relações com outras áreas do conhecimento se revela mais profunda no gênero narrativo, cujas possibilidades de representação seriam aprimoradas pelo romance. Afinal, o romance representa a “vida cotidiana no seu condicionamento às circunstâncias históricas”, conforme Erich Auerbach (2009, p. 499) se refere a Stendhal e Balzac, o que culminaria, ainda segundo Auerbach (2009, p. 500) no “realismo moderno, que se desenvolveu desde então em formas cada vez mais ricas, correspondendo à realidade em constante mutação e ampliação da nossa vida”. TÓPICO 1 | O GÊNERO ÉPICO 151 NOTA Honoré de Balzac (1799-1850) foi um escritor francês, considerado o fundador do Realismo. Escreveu “A mulher de trinta anos”, “Ilusões perdidas”, entre outras obras. Émile Zola (1840- 1902) foi um escritor francês, considerado criador e representante mais expressivo do Naturalismo. Escreveu “Germinal”, entre outras. Stendhal (1783-1842) foi um escritor francês. Escreveu “O vermelho e o negro”, entre outras. A esse respeito, Vitor Manuel de Aguiar e Silva (1976, p. 111-112) compreende que “a literatura se afirma como meio privilegiado de exploração e de conhecimento, não apenas da realidade exterior, mas da realidade interior, do eu profundo que as convenções sociais mascaram”. Conforme Silva (1976, p. 260), desde que o romance se afirma, a partir do Romantismo, como uma forma valorizada, “apta a exprimir os multiformes aspectos do homem e do mundo”, transforma-se “em penetrante e, por vezes, despudorada análise das paixões e dos sentimentos humanos”. “O romance assimilara sincreticamente diversos gêneros literários, desde o ensaio e as memórias até à crônica de viagens; incorporara múltiplos registros literários, revelando-se apto para a representação da vida cotidiana”, explica Silva (1976, p. 261), que elenca diferentes classificações que comprovam a abrangência do romance e, por conseguinte, suas relações com outras áreas do conhecimento: romance psicológico, romance histórico, romance poético e simbólico, romance de análise e crítica da realidade social contemporânea etc. Silva (1976, p. 262) constata que “o século XIX constitui inegavelmente o período mais esplendoroso da história do romance”, quando “o romance domina a cena literária” e, “com os realistas e naturalistas, em geral, a obra romanesca aspira à exatidão da monografia, de estudo científico dos temperamentos e dos meios sociais”. Depois, no declinar do século XIX e nos primeiros anos do século XX, começa a processar-se a crise e a metamorfose do romance moderno, relativamente aos modelos, tidos como “clássicos”, do século XIX: aparecem os romances de análise psicológica de Marcel Proust e de Virginia Woolf; James Joyce cria os seus grandes romances de dimensões míticas, construídos em torno das recorrências dos arquétipos (Ulisses e Finnegans Wake), Kafka dá a conhecer os seus romances simbólicos e alegóricos. Renovam-se os temas, exploram-se novos domínios do indivíduo e da sociedade, modificam-se profundamente as técnicas de narrar, de construir a intriga, de apresentar as personagens. Sucedem- se o romance neorrealista, o romance existencialista, o nouveau roman. O romance não cessa, enfim, de revestir novas formas e de exprimir novos conteúdos numa singular manifestação da perene inquietude estética e espiritual do homem (SILVA, 1976,p. 263). UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO 152 As “possibilidades expressivas” (SILVA, 1976, p. 263) do romance e, em geral, do gênero narrativo, contribuem para a caracterização da narrativa como totalidade, pluralidade, variedade etc., e como correspondência com a realidade, como compreende Auerbach, em suas múltiplas dimensões da vida cotidiana. Assim, ao romance se associa a disposição para a totalidade de que trata Georg Lukács (2000), as pluralidades constatadas por Mikhail Bakhtin (2002, p. 73), ao afirmar que “o romance, tomado como um conjunto, caracteriza-se como um fenômeno, pluriestilístico, plurilíngue e plurivocal”, ou o “realismo formal” a que corresponde a “forma romance” como reflexo do “realismo filosófico”, segundo Ian Watt (1990). Na narrativa se condensam, portanto, como uma disposição para a totalidade e para a realidade, outras áreas do conhecimento, como a psicologia, a psicanálise, a história, a filosofia, a sociologia, a economia, a antropologia, a linguística etc. Diante da multiplicidade compreendida pela literatura, constituindo, enquanto um saber multidimensional, uma estrutura plural que requer estabelecer relações com outros saberes, uma cooperação pluridisciplinar, a teoria da literatura assume um aspecto interdisciplinar, condizente com a interdisciplinaridade constitutiva da literatura: A Teoria Literária assume um caráter interdisciplinar porque assimila os conhecimentos de ciências afins tais como a sociologia, a antropologia, a linguística, a história, a psicanálise, todas voltadas igualmente para manifestações do ser e do fazer humanos. Este inter-relacionamento amplia e enriquece o estudo da Literatura. [...] A crítica, qualquer que seja a via de acesso escolhida (sociológica, psicológica, linguística...), não pode descartar-se de sua dupla feição: enquanto crítica obedecerá a um rigor, que lhe é garantido pelo método de abordagem e, enquanto literária, incluirá literariamente o sentido que, na literatura, ultrapassa o campo do conhecimento com o qual se articulou, na construção do modelo de leitura (SOARES, 1984, p. 90-91). Nesse sentido, e corroborando com Soares (1984), Jonathan Culler (1997) constata que, apesar de ser um legado de teorias críticas formalistas e imanentistas, focadas na leitura cerrada do texto literário, a teoria literária seguiu outro rumo: os trabalhos de teoria literária estão intimamente relacionados a outros textos, dentro de um domínio ainda não nomeado, mas muitas vezes chamado “teoria”, para resumir, uma vez que seu objeto não é explicitamente a literatura. A heterogeneidade da “teoria” extrapola a moldura disciplinar dentro da qual seriam normalmente avaliados: “o que caracteriza os membros desse gênero é sua capacidade de funcionar não como demonstrações dentro dos parâmetros de uma disciplina, mas como redescrições que desafiam as fronteiras disciplinares”, afirma Culler (1997, p. 15), reconhecendo que não há limites aos assuntos que os trabalhos de teoria possam abordar. TÓPICO 1 | O GÊNERO ÉPICO 153 A razão para isso, segundo Culler, não é nenhuma novidade para nós: “a literatura”, afirma Culler (1997, p. 17), “tem como matéria toda a experiência humana e, particularmente, a ordenação, interpretação e articulação da experiência”. Afinal, como vimos, a literatura analisa as relações humanas, ou manifestações da psique humana, ou os efeitos das condições materiais sobre a experiência individual, de modo que a abrangência da literatura possibilita que qualquer teoria seja levada para a teoria literária, abrangendo questões mais gerais da racionalidade, da autorreflexão e da significação. Portanto, e não apenas por suas relações com outros conhecimentos, mas por constituir um conhecimento singular, “é o conhecimento literário que se nos impõe defender”, como proclama Compagnon (2012, p. 9) repetindo Barthes (2010). O mesmo Jonathan Culler que identifica a heterogeneidade da “teoria” em virtude das suas relações com outras áreas do conhecimento afirma o seguinte a respeito da narrativa, nosso objeto de estudo neste tópico: Finalmente, a questão básica para a teoria no domínio da narrativa é essa: a narrativa é uma forma fundamental de conhecimento (dando conhecimento do mundo através de sua busca de sentido) ou é uma estrutura retórica que distorce tanto quanto revela? A narrativa é uma fonte de conhecimento ou de ilusão? O conhecimento que ela parece apresentar é um conhecimento que é o efeito do desejo? (CULLER, 1999, p. 94). Culler (1999, p. 94), enfim, pergunta ainda se “os efeitos esclarecedores e consoladores das narrativas são ilusórios” e pondera: Para responder a essas perguntas precisaríamos tanto de conhecimento do mundo que seja independente das narrativas quanto de alguma base para considerar esse conhecimento mais autorizado do que o que as narrativas proporcionam. Mas se existe ou não esse conhecimento autorizado separado da narrativa é precisamente o que está em questão na pergunta a respeito de se a narrativa é ou não uma fonte de conhecimento ou de ilusão. Portanto, parece provável que não possamos responder a essa pergunta, se é que, de fato, ela tem uma resposta. Ao invés disso, devemos ficar nos movendo para lá e para cá entre a consciência da narrativa como uma estrutura retórica que produz a ilusão de perspicácia e um estudo da narrativa como o principal tipo de busca de sentido à nossa disposição. Afinal de contas, mesmo a exposição da narrativa como retórica tem a estrutura de uma narrativa: é uma história em que nossa ilusão inicial cede à crua luz da verdade e emergimos mais tristes, mas mais sábios; desiludidos, mas depurados. Paramos de dançar em círculos e contemplamos o segredo. Assim diz a história (CULLER, 1999, p. 94). A se guiar pelo exposto, parece que não temos muitas alternativas às narrativas, em outras palavras: não temos como sair das narrativas. E essa é uma boa razão para estudarmos a narrativa, não é verdade? Justamente a isso nos propomos nesta unidade, iniciando pelo gênero épico. UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO 154 2.1 GÊNERO ÉPICO O mais antigo gênero narrativo, o gênero épico se caracteriza pela presença de narrador e de personagens. Misturando eventos históricos e mitológicos, narra os mitos de fundação das nações na Antiguidade, legando aos modernos gêneros narrativos a disposição para a totalidade, pluralidade ou variedade, como veremos. 2.1.1 A origem do gênero épico A origem da literatura ocidental se encontra intimamente relacionada com as epopeias de Homero e, portanto, com a origem do gênero épico. Como observa Angélica Soares (2007, p. 39): “A forma épica de narrar [...] tem nas epopeias de Homero (meados do século IX a.C.) – a Ilíada e a Odisseia – as suas primeiras manifestações. Nelas situam-se também as fontes do gênero narrativo”. NOTA Homero: Poeta épico da Grécia antiga, a quem se atribui a autoria das epopeias Ilíada e Odisseia. FONTE: Disponível em: <http://mundoeducacao.bol.uol.com.br/historiageral/importancia- dos-poemas-homero-na-educacao-grega.htm>. Acesso em: 10 out. 2017. TÓPICO 1 | O GÊNERO ÉPICO 155 Aristóteles, que considera a epopeia como uma das artes mais elevadas, julga Homero o modelo a ser buscado. “Digno de louvor por muitos motivos” (ARISTÓTELES, 2008, p. 94). Homero “era o maior autor de obras elevadas” para Aristóteles (2008, p. 44), que, ao se referir aos elementos constitutivos da epopeia, afirma: “Tudo isso Homero usou em primeiro lugar e na perfeição. Assim, na verdade, compôs ele cada um dos seus poemas: a Ilíada, simples e de sofrimento, e a Odisseia, complexa (com reconhecimentos ao longo de todo o poema) e de caráter. E, além disso, superou todos na elocução e no pensamento” (ARISTÓTELES, 2008, p. 93). A esse respeito, Paulo Martins (2009, p. 91) corrobora o julgamento de Aristóteles: Realmente, não há como negar que as epopeias homéricas – Ilíada e Odisseia – comofrutos e flores de uma civilização são marcos incontestes do mundo grego, afinal, até mesmo Platão, séculos depois da composição desses dois poemas, afirmara, tratando de Homero em seu livro A República, que “este poeta ensinou a Grécia”. Ao confirmar a importância das epopeias de Homero, retomando, inclusive, uma passagem em que Platão, antes de Aristóteles, afirma que Homero “ensinou a Grécia”, Paulo Martins assinala um aspecto importante do gênero épico, ou seja, a sua função de narração mítica e histórica da fundação das antigas civilizações. Martins (2009, p. 91) observa ainda: “Se o poeta grego é o cerne da civilização helênica, também o seria para os romanos e, por consequência, para nós, ocidentais”. E, ao constatar o legado da poesia grega homérica para toda a tradição ocidental do gênero épico, Martins evidencia nas epopeias de Homero uma “característica importante e diferenciada”, qual seja, a oralidade: Isto é, aquela poesia foi composta entre os séculos IX e VIII a.C. e transmitida oralmente por cantores (os aedos) antes de ser consignada pela escrita a partir do século VII a.C. Tal propriedade é importantíssima, pois determina características formais no poema, a saber: as repetições sistemáticas, a presença de epítetos (aspectos exemplares das personagens), as formulações lapidares que percorrem os milhares de versos das obras. Assim, se por um lado Homero é semelhante a Camões, por outro ele se distancia gravemente do mesmo, uma vez que o meio pelo qual seus poemas são transmitidos era diverso: o primeiro pela voz; o segundo, pela escrita (MARTINS, 2009, p. 91). Em suas origens, portanto, o gênero épico era transmitido oralmente, o que, como constata Martins, tem implicações formais. Vejamos, então, mais detidamente as características do gênero épico. UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO 156 NOTA A Ilíada narra a conquista de Ílion ou Troia, na Guerra de Troia, motivada pela ira de Aquiles. Um dos personagens, o grego Odisseu ou Ulisses, é o protagonista da Odisseia. A Odisseia, por sua vez, narra a acidentada viagem de Ulisses de volta para casa ao fim da guerra. 2.1.2 Características do gênero épico As características do gênero épico, como vimos breve e antecipadamente na unidade anterior, foram primeiramente descritas por Platão e Aristóteles. Relembremos: a épica, para Platão (2001, p. 110), é um gênero misto, pois na epopeia “é o próprio poeta que fala”, mas, em determinados momentos, o personagem fala “como se fosse ele mesmo”, momentos estes em que o poeta “faz um discurso como se se tratasse de outra pessoa”. Como podemos perceber, Platão constata, portanto, no gênero épico uma mistura dos outros dois gêneros literários, o gênero lírico, em que “é o próprio poeta que fala”, e o gênero dramático, em que o personagem fala “como se fosse ele mesmo”. E com isso Platão (2001, p. 112) conclui que a epopeia é “formada da combinação das duas precedentes”, escreve se referindo aos gêneros lírico e dramático. Vejamos um exemplo de Homero, em que Platão se fundamenta para caracterizar o gênero épico. Observe este fragmento do Livro 1, da Odisseia, na tradução portuguesa de Manuel Odorico Mendes: NOTA Manuel Odorico Mendes (1799-1864) foi um tradutor e poeta brasileiro, conhecido por ser autor das primeiras traduções portuguesas em versos das obras de Homero e Virgílio, sendo precursor da moderna tradução criativa. FONTE: Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Odorico_Mendes>. Acesso em: 10 out. 2017. TÓPICO 1 | O GÊNERO ÉPICO 157 Da guerra e do mar sevo recolhidos Os que eram salvos, um por seu consorte Calipso, ninfa augusta, apetecendo, Separava-o da esposa em cava gruta. O céu, porém, traçou, volvendo-se anos, De Ítaca reduzi-lo ao seio amigo, Onde novos trabalhos o aguardavam: De Ulisses condoíam-se as deidades; Mas, sempre infenso, obstava-lhe Netuno, Este era entre os Etíopes longínquos, Do oriente e ocidente últimos homens, Num de touros e ovelhas sacrifício A deleitar-se; e estavam já no alcáçar Do Olimpo os habitantes em concílio. O soberano, a recordar Egisto Do Agamenônio Orestes imolado, Principia: “Os mortais ah! nos imputam, Os males seus, que ao fado e à própria incúria Devem somente. Contra o fado mesmo, Do porvir não cuidoso, há pouco Egisto, Em seu regresso o Atrida assassinando, Esposou-lhe a mulher, bem que enviado O Argicida sutil o dissuadisse: — De o matar foge e poluir seu leito; Senão, tem de vingá-lo, adolescente Sendo investido no seu reino Orestes. — Mercúrio o amoestou, mas surdo Egisto, Os delitos por junto expia agora”. A quem Minerva: “Sumo pai Satúrnio, Jaz com razão punido esse perverso; Todo que o imitar, com ele acabe! Mas a aflição de Ulisses me compunge, Que, há tanto longe dos amenos lares, Em ilha está circúnflua e nemorosa, Lá no embigo do mar; onde é retido Pela filha de Atlante onisciente, Que o salso abismo sonda, o peso atura Das colunas que a terra e o céu demarcam. A deusa com blandícias o acarinha; De Ítaca ele saudoso, o pátrio fumo Ver deseja e morrer. Não te comoves? Irritou-te faltando, em sua amada E em Troia, com ofertas e holocaustos?” E o Junta-nuvens: “Que proferes, filha, Do encerro dessa boca? eu deslembrar-me Do mortal mais sisudo, o mais devoto, Aos celícolas pio e dadivoso! UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO 158 Da terra o abarcador é quem o avexa, Por ter do olho privado a Polifemo, O mor Ciclope, que, num antro unida A Netuno, pariu Toosa, estirpe De Fórcis deus do pego insemeável. O Enosigeu d’então lhe poupa a vida, Mas de Ítaca o arreda. Provejamos Na vinda sua; aplaque-se Netuno: Só contra todos contender não pode”. A Olhicerúlea: “Ó padre, ó rei supremo, Se vos praz que à família torne Ulisses, Da ínsula Ogígia à ninfa emadeixada Mercúrio o intime, o herói prudente parta. A Ítaca baixo a confortar o filho: Os comantes Argeus convoque ousado; Suste aos vorazes procos a carnagem De flexípedes bois e ovelhas pingues. Dali, na Esparta e na arenosa Pilos, Do amado genitor se informe e indague, E entre humanos obtenha ilustre fama” (HOMERO, 2009b, p. 13-14). Você percebeu, neste fragmento da epopeia e, portanto, do gênero épico, a mistura dos outros dois gêneros literários de que fala Platão? Note que nos primeiros versos “é o próprio poeta que fala”, como diria Platão. Em passagens como: Da guerra e do mar sevo recolhidos Os que eram salvos, um por seu consorte Calipso, ninfa augusta, apetecendo, Separava-o da esposa em cava gruta (HOMERO, 2009b, p. 13). Temos, portanto, um narrador que narra as ações dos personagens da epopeia. Por outro lado, em passagens como: Do Olimpo os habitantes em concílio. O soberano, a recordar Egisto Do Agamenônio Orestes imolado, Principia: “Os mortais ah! nos imputam, Os males seus, que ao fado e à própria incúria Devem somente... (HOMERO, 2009b, p. 13). O narrador deixa o personagem falar, de modo que o personagem fala “como se fosse ele mesmo”, como diria Platão. A partir do momento em que “o soberano [...] principia”, dizendo “Os mortais ah! nos imputam”, o narrador desaparece para deixar falar o personagem. O mesmo ocorre, a seguir, com o Argicida, com Minerva, com o Junta-nuvens, que dialoga, inclusive, com Minerva: “Que proferes, filha, do encerro dessa boca?”, e assim por diante. TÓPICO 1 | O GÊNERO ÉPICO 159 NOTA As epopeias de Homero receberam diversas adaptações para o cinema. Troia (EUA, 2004), dirigido por Wolfgang Petersen, A ira de Aquiles (Itália, 1962), dirigido por Marino Girolami, A Guerra de Troia (Itália, 1961), dirigido por Giorgio Ferroni, e Helena de Troia (EUA, 1956), dirigido por Robert Wise, são adaptações da Ilíada. FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-47357/>; <http:// www.benitomovieposter.com/catalog/lira-di-achille-p-124149.html?language=en>; <https:// www.allmovie.com/movie/la-guerra-di-troia-v114510>; <http://dvdtonyrocha.blogspot.com. br/2015/03/filmes-epico-hercules-e-maciste.html>. Acesso em: 10out. 2017. O seriado A Odisseia (1997), dirigido por Andrei Konchalovsky, e o filme Ulisses (Itália, 1954), dirigido por Mario Camerini, são inspirados, por sua vez, em Odisseia. FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-206991/ creditos/>; <http://www.cliografia.com/2013/09/16/ulysses-o-filme/>. Acesso em: 10 out. 2017. UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO 160 Ao descrever o gênero épico, Aristóteles (2008), por sua vez, afirma que a epopeia imita com palavras em verso. Adiante, Aristóteles (2008, p. 47) reitera esse aspecto, associando a epopeia com a narrativa, ao observar que a epopeia se caracteriza por “ter um metro uniforme e por ser uma narrativa”. E ao comparar a epopeia e a tragédia, constata: A epopeia tem uma característica particular muito importante para aumentar a extensão, uma vez que, na tragédia, não é possível imitar muitas partes da ação que se desenrolam ao mesmo tempo, mas apenas a parte representada em cena pelos atores. Em contrapartida, na epopeia, por ser uma narração, é possível apresentar muitas ações realizadas simultaneamente, através das quais, desde que sejam apropriadas ao assunto, se aumenta a elevação do poema. Este privilégio contribui, assim, para dar grandiosidade, proporcionar uma mudança ao ouvinte e introduzir variedade com episódios diversos (ARISTÓTELES, 2008, p. 93-94). Como podemos ver, Aristóteles identifica na epopeia a possibilidade de apresentar “muitas ações realizadas simultaneamente”, justamente por meio da narração. A vantagem da epopeia se encontra, portanto, na sua “variedade”, de modo que o épico, para Aristóteles, define-se pela pluralidade: “por épico entendo com pluralidade de histórias”, explica Aristóteles (2008, p. 76). ATENCAO O aspecto da variedade ou da pluralidade caracteriza aqui a epopeia como narração fundamental, como veremos adiante, à futura compreensão do romance, forma narrativa, enquanto totalidade. Com relação ao modo de imitar, como diria Aristóteles, da epopeia, Anatol Rosenfeld (2014) observa que o que caracteriza o gênero épico é fundamentalmente a presença de um narrador, que, ao comunicar um evento passado, estabelece uma distância entre o narrador e o mundo narrado: “É sobretudo fundamental na narração o desdobramento em sujeito (narrador) e objeto (mundo narrado)”, conclui Rosenfeld (2014, p. 25). No entanto, Aristóteles menciona ainda a extensão da epopeia, característica retomada por Emil Staiger (1975) para diferenciar o substantivo epopeia do adjetivo épica: “E o que se dá com a epopeia?”, pergunta Staiger (1975, p. 97), que responde: “Denomina-se epopeia uma longa narrativa em versos. Toda longa narrativa em versos é épica? Não!”. A questão colocada por Staiger, diferenciando a epopeia e a épica, interessa na medida em que aponta para a especificidade dos gêneros narrativos, que estudaremos a seguir, como o romance, que se considera uma transformação da epopeia, permanecendo associada com a épica: TÓPICO 1 | O GÊNERO ÉPICO 161 Por outro lado, chamamos também o romance de obra épica, embora ele não seja nenhuma narrativa em versos e também nenhuma epopeia propriamente. Aqui há uma situação de impasse. Uma epopeia é uma narrativa em versos. Nem toda narrativa em versos é épica. Um romance não é uma narrativa em versos, portanto não é uma epopeia, mas é ainda assim uma obra épica (STAIGER, 1975, p. 97-98). Essa distinção seria analisada por Hegel, que fundamentaria, por sua vez, a teoria do romance de György Lukács e, por extensão, uma infinidade de autores que teorizam o romance, como Mikhail Bakhtin, Erich Auerbach, Ian Watt, Antonio Candido, Roberto Schwarz, Franco Moretti, entre outros, considerando o aspecto da variedade ou pluralidade, constatado desde Aristóteles, que permite compreender a complexidade da realidade. Aprofundaremos essa questão adiante, quando estudarmos os gêneros narrativos. Por ora, concentremos nossa atenção nas características da epopeia clássica. O que, então, caracteriza a epopeia, ao lado dos aspectos que vimos, associados com o modo de narração? Para respondermos a essa questão, vejamos como Massaud Moisés resume as demais características do gênero épico: A poesia épica deve girar em torno de assunto ilustre, sublime, solene, especialmente vinculado a cometimentos bélicos; deve prender-se a acontecimentos históricos, ocorridos há muito tempo, para que o lendário se forme ou/e permita que o poeta lhe acrescente com liberdade o produto da sua fantasia; o protagonista da ação há de ser um herói de superior força física e psíquica, embora de constituição simples, instintivo, natural; o amor pode inserir-se na trama heroica, mas em forma de episódios isolados; e, sendo terno e magnânimo, complementar harmonicamente as façanhas de guerra (MOISÉS, 1999, p. 184). Essas são, portanto, as principais características da epopeia clássica que, além de conter um narrador e personagens que se enunciam em discurso direto, ser uma narrativa longa, escrita em versos, apresenta, como observa Moisés, um caráter elevado e solene, assunto bélico, heróis subordinados, em sua ação, a deuses e forças sobrenaturais, em que acontecimentos históricos se misturam com a mitologia. Angélica Soares (2007, p. 39), por sua vez, resume as características da epopeia desta forma: Sendo a epopeia uma longa narrativa literária de caráter heroico, grandioso e de interesse nacional e social, ela apresenta, juntamente com todos os elementos narrativos (o narrador, o narratário, personagens, tema, enredo, espaço e tempo), uma atmosfera maravilhosa que, em torno de acontecimentos históricos passados, reúne mitos, heróis e deuses, podendo se apresentar em prosa (como as canções de gesta medievais) ou em verso (como Os lusíadas). Você percebeu que, como observa Soares, a epopeia apresenta os elementos narrativos, como narrador, narratário, personagens, tema, enredo, espaço e tempo? Estudaremos a seguir os elementos que os gêneros narrativos herdaram da epopeia. Vejamos agora como se estruturam as epopeias clássicas: UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO 162 Do ponto de vista da estrutura, o poema épico se desdobraria em três partes autônomas: a proposição, ou seja, o apelo aos deuses para que auxiliem o poeta na sua empreitada criadora; a narração, parte central e mais extensa, que contém o relato minucioso da ação executada pelo herói; a narração deve obedecer a uma sequência lógica; entretanto, à ordem cronológica seria preferível a artificial, que surpreende a ação em meio (in media res); o epílogo, fecho da ação, deve guardar um imprevisto, mas ser verossímil e coerente, além de conter um final feliz (MOISÉS, 1999, p. 184). Massaud Moisés divide a estrutura da epopeia, como podemos ver, em três partes: a proposição, a narração e o epílogo. A essas três partes, Angélica Soares (ano, p. 39) inclui outras duas: “Toda epopeia deveria constituir-se de cinco partes”, afirma a autora. Assim, a estrutura da epopeia pode ser organizada, conforme Soares, desta forma: 1) Proposição 2) Invocação 3) Dedicatória 4) Narração 5) Remate, epílogo ou desfecho Com relação à estrutura, destaquemos a proposição ou, como explica Moisés (1999, p. 184), “o apelo aos deuses para que auxiliem o poeta na sua empreitada criadora”, pois ela pode contribuir para compreendermos a trajetória das epopeias que estudaremos a seguir. Observe os primeiros versos da Ilíada, de Homero, que compõem a proposição da epopeia, na tradução em versos de Manuel Odorico Mendes: Canta-me, ó deusa, do Peleio Aquiles A ira tenaz, que, lutuosa aos Gregos, Verdes no Orco lançou mil fortes almas, Corpos de heróis a cães e abutres pasto: Lei foi de Jove, em rixa ao discordarem O de homens chefe e o Mirmidon divino (HOMERO, 2009a, p. 65). Note que o poeta invoca a deusa, solicitando que cante “do Peleio Aquiles a ira tenaz”, ou seja, que inspire o poeta em sua criação sobre a ira ou a luta de Aquiles.Na proposição, o poeta revela, como podemos ver, o tema da epopeia, neste caso, a Guerra de Troia ou, mais propriamente, as ações heroicas de Aquiles na Guerra de Troia. Observe agora os primeiros versos da Odisseia, de Homero: Canta, ó Musa, o varão que astucioso, Rasa Ílion santa, errou de clima em clima, Viu de muitas nações costumes vários. Mil transes padeceu no equóreo ponto, Por segurar a vida e aos seus a volta; TÓPICO 1 | O GÊNERO ÉPICO 163 Baldo afã! pereceram, tendo insanos Ao claro Hiperiônio os bois comido, Que não quis para a pátria alumiá-los. Tudo, ó prole Dial, me aponta e lembra (HOMERO, 2009b, p. 13). Note, agora, que na proposição da Odisseia o poeta solicita que a Musa, a entidade da mitologia grega que inspira a criação, cante “o varão que astucioso, rasa Ílion santa, errou”, ou seja, que cante “tudo”, “aponta e lembra”, pede o poeta, sobre o homem, o “varão”, Ulisses e sua viagem de retorno à ilha de Ítaca, sua casa, e a Penélope, sua esposa, depois de finda a Guerra de Troia. Vejamos, finalmente, como as proposições das duas epopeias de Homero podem contribuir para compreendermos a trajetória das epopeias. 2.1.3 A trajetória das epopeias Vimos que as epopeias de Homero, a Ilíada e a Odisseia, originam o gênero épico. E vimos que suas proposições revelam o tema de cada epopeia, a luta de Aquiles e a viagem de Ulisses, respectivamente. Observe agora a proposição da Eneida, de Virgílio, na tradução em verso de Manuel Odorico Mendes: NOTA Virgílio (70 – 19 a.C.): poeta nacional do Império Romano, considerado o maior dos poetas latinos, iniciou em 29 a.C. a escrita da epopeia Eneida por solicitação de Augusto, tendo trabalhado nela por 10 anos. Como autor de poesia lírica, escreveu Bucólicas e Geórgicas. FONTE: Disponível em: <https://sites.google.com/site/literaturalatinansn/la-poesia/ poesia-epica/virgilio>. Acesso em: 10 out. 2017. UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO 164 Eu, que entoava na delgada avena Rudes canções, e egresso das florestas, Fiz que as vizinhas lavras contentassem A avidez do colono, empresa grata Aos aldeões; de Marte ora as horríveis Armas canto, à Itália e de Lavino às praias Trouxe-o primeiro fado. Em mar e em terra Muito o agitou violenta mão suprema, E o lembrado rancor da seva Juno; Muito em guerras sofreu, na Ausônia quando Funda a cidade e lhe introduz os deuses: Donde a nação latina e albanos padres, E os muros vêm da sublimada Roma. Musa, as causas me aponta, o ofenso nume, Ou por que mágoa a soberana deia Compeliu na piedade o herói famoso A lances tais passar, volver tais casos. Pois tantas iras em celestes peitos! (VIRGÍLIO, 2005, p. 15). Você percebeu que o poeta canta as “armas” e o “fado” de Eneias, o troiano que “funda a cidade” de Roma, a “nação latina”? Comparemos a tradução em versos com a tradução em prosa de Tassilo Orpheu Spalding: Canto os combates e o herói que, por primeiro, fugindo do destino, veio das plagas de Troia para a Itália e para as praias de Lavínio. Longo tempo foi o joguete, sobre a terra e sobre o mar, do poder dos deuses superiores, por causa da ira da cruel Juno; durante muito tempo, também, sofreu os males da guerra, antes de fundar uma cidade e de transportar seus deuses para o Lácio: daí surgiu a raça latina e os pais albanos e as muralhas da soberba Roma (VIRGÍLIO, 1985, p. 11). Você pode encontrar ainda a tradução em versos no metro original da Eneida, de Virgílio, de Carlos Alberto Nunes, de que se seguem os primeiros versos: As armas canto e o varão que, fugindo das plagas de Troia por injunções do Destino, instalou-se na Itália primeiro e de Lavínio nas praias. A impulso dos deuses por muito tempo nos mares e em terras vagou sob as iras de Juno, guerras sem fim sustentou para as bases lançar da Cidade e ao Lácio os deuses trazer — o começo da gente latina, dos pais albanos primevos e os muros de Roma altanados (VIRGÍLIO, 1983, p. 9). TÓPICO 1 | O GÊNERO ÉPICO 165 Observe que a Eneida, de Virgílio, narra a história da viagem de Eneias, príncipe troiano salvo da guerra para fundar a nova Troia, ou seja, Roma, e das lutas que travou no Lácio, região da Itália Central na qual Roma foi fundada. Como esclarece Zélia de Almeida Cardoso (1989, p. 20): Compondo-se de doze cantos, ou livros, num total de 9.826 versos, a Eneida é, a um tempo, um poema mitológico e histórico. A lenda narrada no correr do texto – a história da acidentada viagem de Eneias, príncipe troiano salvo da guerra para fundar a nova Troia, e das duras lutas que travou no Lácio – é mero pretexto para a exaltação de Roma e de Augusto, para a valorização do romano e de seus feitos remotos e recentes, para a demonstração de vasta erudição em todas as áreas do conhecimento, para a sugestão de uma linha filosófica que sintetiza, praticamente, as correntes de pensamento então difundidas em Roma. Baseando-se nas epopeias homéricas, mas utilizando-se de várias outras fontes – os trágicos gregos, a lírica alexandrina, a história e a epopeia latinas –, Virgílio compôs um texto em que se aliam a grandeza da poesia da Grécia clássica e a sofisticação das formas literárias modernas, desenvolvidas no requinte do ambiente cultural de Alexandria. NOTA Augusto (63 a.C. – 14 d.C.): fundador do Império Romano e seu primeiro imperador, reinou entre 27 a.C. – 14 d.C. FONTE: Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ot%C3%A1vio_Augusto>. Acesso em: 10 out. 2017. UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO 166 Assim, a Eneida, conforme os preceitos clássicos da imitação (imitatio) e emulação (aemulatio), consiste em um decalque das epopeias de Homero, Ilíada e Odisseia e, portanto, uma contaminação (contaminatio) daquelas epopeias. Desse modo, dos doze cantos, seis imitam e emulam a Odisseia, e outros seis, a Ilíada. Como podemos perceber, se a Odisseia narra a viagem de Ulisses e a Ilíada a luta de Aquiles, como vimos, o primeiro verso da Eneida anuncia a contaminação das epopeias de Homero: “Arma vir um que cano, Troia e qui primus ab oris...”. Da mesma maneira que, conforme o princípio da imitação e da emulação, Virgílio se espelha em Homero, o poeta latino se torna modelo no Baixo Império, na Idade Média e na Renascença, como o comprovam os mais famosos épicos modernos, “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri (1265-1321), e “Os Lusíadas”, de Luís Vaz de Camões (1524-1580), ambos influenciados pela Eneida, de Virgílio. Observe as seguintes estrofes de A Divina Comédia, de Dante: Quando ao vale eu já ia baquear-me Alguém fraco de voz diviso perto, Que após largo silêncio quer falar-me. Tanto que o vejo nesse grão deserto, - “Tem compaixão de mim” – bradei transido – “Quem quer que sejas, sombra ou homem certo!” “Homem não sou” tornou-me – “mas hei sido, Pais lombardos eu tive; sempre amada Mântua lhes foi; haviam lá nascido. “Nasci de Júlio em era retardada, Vivi em Roma sob o bom Augusto, Quando em deuses havia a crença errada. “Poeta, decantei feitos do justo Filho de Anquíses, que de Tróia veio, Depois que Ílion soberbo foi combusto. “Mas por que tornas da tristeza ao meio? Por que não vais ao deleitoso monte, Que o prazer todo encerra no seu seio?” “- Oh! Virgílio, tu és aquela fonte Donde em rio caudal brota a eloquência?” Falei, curvando vergonhoso a fronte. – “Ó dos poetas lustre, honra, eminência! Valham-me o longo estudo, o amor profundo Com que em teu livro procurei ciência! TÓPICO 1 | O GÊNERO ÉPICO 167 “És meu mestre, o modelo sem segundo; Unicamente és tu que hás-me ensinado; O belo estilo que honra-me no mundo” (ALIGHIERI, 2003, p. 20-21). NOTA Dante Alighieri (1265-1321) foi um escritor e poeta florentino. Considerado o primeiro e maior poeta italiano. FONTE: Disponível em: <https://www.pinterest.co.kr/goth/dante-alighieri/>. Acesso em: 10 out. 2017. Você percebeu como o poeta se refere a Virgílio como um modelo, como uma influência? Em suas palavras, como uma “fonte donde em rio caudal brota a eloquência”?Como o poeta reconhece em Virgílio um “mestre, o modelo sem segundo”? Observe agora as primeiras estrofes de Os Lusíadas, de Camões: As armas e os Barões assinalados Que da Ocidental praia Lusitana Por mares nunca de antes navegados Passaram ainda além da Taprobana, Em perigos e guerras esforçados Mais do que prometia a força humana, E entre gente remota edificaram Novo Reino, que tanto sublimaram; E também as memórias gloriosas Daqueles Reis que foram dilatando A Fé, o Império, e as terras viciosas De África e de Ásia andaram devastando, E aqueles que por obras valorosos Se vão da lei da Morte libertando, Cantando espalharei por toda parte, Se a tanto me ajudar o engenho e arte. UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO 168 Cessem do sábio Grego e do Troiano As navegações grandes que fizeram; Cale-se de Alexandro e de Trajano A fama das vitórias que tiveram; Que eu canto o peito ilustre Lusitano, A quem Netuno e Marte obedeceram. Cesse tudo o que a Musa antiga canta, Que outro valor mais alto se levanta (CAMÕES, 1979, p. 29-31). NOTA Luís Vaz de Camões (1524-1580) foi um poeta português. Escreveu poesia épica, lírica e dramática. Considerado um dos maiores escritores da tradição ocidental. FONTE: Disponível em: <http://simoesdealmeida.weebly.com/escultura.html>. Acesso em: 10 out. 2017. Apesar de Camões conclamar que “Cessem do sábio Grego e do Troiano as navegações grandes que fizeram” e reiterar: “Cesse tudo o que a Musa antiga canta, que outro valor mais alto se levanta”, como uma forma de exaltação da nacionalidade portuguesa e da empresa colonialista de Portugal, você notou que os primeiros versos de Os Lusíadas praticamente repetem os primeiros versos da Eneida, de Virgílio? TÓPICO 1 | O GÊNERO ÉPICO 169 É ainda a Eneida, de Virgílio, que, no século XVIII, veremos figurar na epígrafe de O Uraguai (1769), de Basílio da Gama (1740-1795), epopeia colonial do Arcadismo brasileiro: At specus, et Caci detecta apparuit ingens Regia et umbrosae penitus patuere cavernae O texto latino narra o momento em que se conta para Eneias como Hércules matou o gigante Caco, que oprimia os povos nativos da Arcádia. Traduzidos: Mas a caverna, e o imenso reino de Caco apareceu descoberto, e o sombrio inferno se abriu por completo Os versos de Virgílio permitem compreender, em confronto com a epopeia de Basílio da Gama, o sentido da epígrafe enquanto metáfora da opressão dos povos indígenas, uma vez que O Uraguai narra a disputa entre índios, jesuítas e europeus nos Sete Povos das Missões, no Rio Grande do Sul. Vejamos os primeiros versos de O Uraguai: Fumam ainda nas desertas praias Lagos de sangue tépidos e impuros Em que ondeiam cadáveres despidos, Pasto de corvos. Dura inda nos vales O rouco som da irada artilheria. MUSA, honremos o Herói que o povo rude Subjugou do Uraguai, e no seu sangue Dos decretos reais lavou a afronta. Ai tanto custas, ambição de império! Observe o tom de denúncia contra a ambição imperial: “Ai tanto custas, ambição de império!”, lamenta o poeta diante dos horrores da guerra que descreve. A epopeia O Uraguai, de Basílio da Gama, como explica Angélica Soares (2007, p. 38-39): É um poema épico, composto em cinco cantos (conjuntos de estrofes) de versos brancos e estrofação livre, no qual é narrada a expedição de espanhóis e portugueses contra os índios e jesuítas habitantes da Colônia de Sete Povos das Missões, do Uruguai. Segundo o Tratado de Madri, de 1750, aquele território deveria passar a pertencer a Portugal, em troca da Colônia do Santíssimo Sacramento, possessão portuguesa situada em domínios espanhóis. Como os índios e os jesuítas se recusassem a ser súditos portugueses, Portugal e Espanha, em 1752, iniciam a expedição de conquista. O poema de Basílio da Gama versa sobre a última fase desse fato histórico. https://pt.wikipedia.org/wiki/H%C3%A9rcules https://pt.wikipedia.org/wiki/Gigante UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO 170 A outra famosa epopeia do Arcadismo brasileiro é Caramuru (1781), de Frei Santa Rita Durão (1722-1784), cuja primeira estrofe do primeiro canto, que apresenta a proposição da epopeia, evidencia a imitação e emulação das epopeias latinas, deixando entrever ecos da Eneida e de Os Lusíadas: De um varão em mil casos agitado, Que as praias discorrendo do Ocidente, Descobriu o Recôncavo afamado Da capital brasílica potente: Do Filho do Trovão denominado, Que o peito domar soube à fera gente; O valor cantarei na adversa sorte, Pois só conheço herói quem nela é forte. A respeito do poema épico de Frei Santa Rita Durão, Antonio Candido (2002, p. 8) observa que: O Caramuru pode ser considerado uma epopeia do tipo que se chamaria hoje colonialista, porque glorifica métodos e ideologias que censuramos até no passado. Mas que ainda são aceitos recomendados e praticados pelos amigos da ordem a todo preço, entre os quais se alinharia o nosso velho Durão, que era filho de um repressor de quilombos e hoje talvez se situasse entre os reacionários, com todo o seu talento, cultura e paixão. Tendo identificado a posição socioideológica do autor de Caramuru, Frei Santa Rita Durão, Candido (2002, p. 8) constata a diferença entre as duas epopeias brasileiras mencionadas: “Como sabemos, o Caramuru é uma resposta ao O Uraguai, cujo pombalismo ilustrado estava mais perto daquilo que no tempo era progresso. Mesmo sendo progresso de déspota esclarecido, useiro da brutalidade e do arbítrio” (CANDIDO, 2002, p. 8). O autor ainda descreve Frei Santa Rita Durão como um “poeta da guerra e da imposição cultural”, ao passo que Basílio da Gama, segundo Candido, “não simpatiza” com a guerra que narra, “lamentando a necessidade cruel da razão de Estado”: Como se sabe, a finalidade expressa do Caramuru é descrever o início da colonização da Bahia, por obra sobretudo de Diogo Álvares Correia e sua mulher, Paraguaçu. Simultaneamente, há um desígnio mais importante para o poeta: a redenção do índio pela conversão. Mas na perspectiva de hoje o resultado final se traduz no choque das culturas, que caracteriza o processo colonizador, justificado pelos dois desígnios (CANDIDO, 2002, p. 11-12). TÓPICO 1 | O GÊNERO ÉPICO 171 DICAS Caramuru, personagem histórico batizado Diogo Álvares Correia (1475-1557), um náufrago português que viveu entre os índios brasileiros, e que é o protagonista do poema épico de Frei Santa Rita Durão, é o personagem do filme de comédia “Caramuru – A invenção do Brasil” (2001), dirigido por Guel Arraes. FONTE: Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Caramuru_-_A_Inven%C3%A7%C3%A3o_ do_Brasil>. Acesso em: 10 out. 2017. Podemos, portanto, identificar nas epopeias coloniais brasileiras as características da poesia épica elencadas por Moisés (1999, p. 184), tais como o tema bélico, os acontecimentos históricos, o heroísmo, bem como o “caráter heroico, grandioso e de interesse nacional e social”, confirmado por Soares (2007), como vimos antes. Essas características da poesia épica, associadas com a sua função de exaltação nacional e imperial, nesse caso, da empresa colonial portuguesa, são relativizadas por Antonio Candido ao mesmo tempo que reconhece nelas uma contribuição para a configuração da literatura brasileira por meio da incorporação de peculiaridades locais, como o nativismo e o que, posteriormente, com o Romantismo, seria denominado indianismo. Podemos perceber a perspectiva de Antonio Candido nesta passagem a respeito do trecho que denomina “Sono de Paraguaçu”, de Caramuru: Este trecho exemplifica uma das contribuições dos poetas daquele tempo para a configuração da nossa literatura: inserir as peculiaridades locais num sistema expressivo tradicional, que as incorporasse à civilização colonizadora. Foi o que fizeram o Uraguai e o Caramuru. O índio e a natureza, tratados literariamente, importavam numa espécie de integração do mundo americano à expressão culta das fontes civilizadoras, sublimando o esmagamento das culturaslocais. Ao mesmo tempo importavam em renovar os símbolos cansados da tradição de origem clássica, levando ao patrimônio comum da literatura ocidental a perspectiva de um temário novo e uma nova forma (CANDIDO, 2002, p. 17). UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO 172 O Romantismo, a propósito, desempenha um papel importante na trajetória do gênero épico, uma vez que, como observa Vitor Manuel de Aguiar e Silva (1976, p. 260), “quando o romantismo se revela nas literaturas europeias, já o romance conquistara, por direito próprio, a sua alforria e já era lícito falar de uma tradição romanesca”: Com o romantismo, por conseguinte, a narrativa romanesca afirma- se decisivamente como uma grande forma literária, apta a exprimir os multiformes aspectos do homem e do mundo: quer como romance psicológico, confissão e análise das almas [...], quer como romance histórico, ressurreição e interpretação de épocas pretéritas [...], quer como romance poético e simbólico [...], quer como romance de análise e crítica da realidade social contemporânea (SILVA, 1976, p. 261). É justamente nesse contexto que G. W. F. Hegel (2010, p. 490), ao propor uma evolução histórica do gênero épico, compreende o romance, que denomina como a “epopeia burguesa moderna”, como uma ramificação do gênero épico. O que define o “caráter épico”, o “tom épico”, em conformidade com a variedade e pluralidade constatada por Aristóteles, como vimos antes, é a “totalidade”, ou seja, o épico apresenta “uma esfera definida da vida real, com os aspectos, as direções, os acontecimentos, os deveres etc. que comporta”, retirando seus temas “da natureza e da vida humana”, de modo a promover uma “união mais estreita da poesia com a realidade”: “É portanto o conjunto da concepção do mundo e da vida de uma nação que, apresentado sob a forma objetiva dos acontecimentos reais, constitui o conteúdo e determina a forma do épico propriamente dito”, conclui Hegel (2010, p. 442-443). Assim, Hegel (2010, p. 450) resume a obra épica como “uma ação cujas ramificações se confundem com a totalidade da sua época e da vida nacional; portanto, uma ação que só pode ser concebida mergulhada no seio de um mundo amplo e que comporta, por conseguinte, a descrição de toda a realidade de que faz parte”. Como podemos perceber, para Hegel (2010, p. 477), a obra épica se caracteriza, pois, por uma “multiplicidade” subordinada a uma “unidade concreta”, uma vez que “o conteúdo de uma obra épica é o todo de um mundo em que se realiza uma ação individual”, e são as transformações sociais que, diminuindo a extensão da ação individual, inviabilizariam a epopeia no mundo moderno: As condições da vida moral, os laços familiares, a solidariedade do povo, enquanto nação, na guerra e na paz, devem já existir, e ter mesmo atingido um certo grau de desenvolvimento, sem ter ainda assumido inteiramente a forma de preceitos, deveres e leis de caráter geral desprovidos de toda a particularidade subjetiva e mantendo a sua autoridade perante a vontade individual. Pelo contrário, são o sentimento do direito e da justiça, a moralidade dos costumes, a alma e o caráter que devem estar na origem de tudo e servir de suporte à vida familiar, social e política, antes que ela tenha adquirido a forma de uma realidade prosaica, capaz de se opor à maneira de pensar e sentir dos indivíduos. Uma constituição demasiado sólida do Estado, com leis minuciosamente elaboradas, com uma justiça presente por toda parte, uma administração bem organizada, com ministérios, chancelarias, polícia etc., não pode ministrar temas compatíveis com a poesia épica. TÓPICO 1 | O GÊNERO ÉPICO 173 É certo que as condições da moralidade e do direito devem estar bem consolidadas, mas só pelos próprios indivíduos ativos e pelo seu caráter, e não de um modo geral e sob uma forma que pretende ter em si mesma a sua justaposição. Assim encontramos na poesia épica não só a identidade substancial da vida e da atividade objetivas, mas também a liberdade nas manifestações desta vida e desta atividade, liberdade que as faz parecer uma emanação da vontade subjetiva dos indivíduos (HEGEL, 2010, p. 450-451). Com a “organização do Estado moderno” e “as maneiras de pensar individuais”, segundo Hegel, não há lugar para o herói tipicamente épico. No entanto, a “totalidade”, que unifica a variedade e multiplicidade da realidade representada, o aspecto regular e unificado da epopeia que depende, segundo Hegel (2010, p. 490), da “visão total do mundo”, permanece nos gêneros narrativos. Afinal, a “objetividade” do gênero épico se estende a outros “gêneros secundários”, enquanto “ramificações” do gênero épico, a exemplo do romance, a “epopeia burguesa moderna”, nas palavras de Hegel (2010, p. 490). Segundo Hegel (2010, p. 492), no romance “vemos reaparecer a riqueza e a variedade de interesses, de estado, de caracteres, de condições de vida, assim como todo o plano de fundo de um mundo total e a descrição épica de acontecimentos”. O romance descreve, como a epopeia, “uma visão total do mundo e da vida”, mas pressupõe “uma realidade já prosaica”. Essa perspectiva que, como vimos antes, influencia a teoria do romance de Lukács, é assinalada por Angélica Soares (2007, p. 42): A epopeia que, segundo Lukács, corresponde a um tempo anterior ao da consciência individual e, portanto, voltado para o destino de uma coletividade, não se manteve em nossa época, que se caracteriza sobretudo pelo individualismo e pelo investimento nos domínios do inconsciente humano. O sentido do épico, no entanto, se manifesta toda vez que se tem a intenção de abarcar a multiplicidade dinâmica da realidade em uma só obra, criando-se uma unidade. Nesse sentido, Hegel (2010, p. 509) identifica o épico nos tempos modernos não mais na epopeia: Se pretendemos encontrar nos tempos modernos obras verdadeiramente épicas, devemos procurá-las numa esfera diferente da epopeia propriamente dita. O estado do mundo moderno é, com efeito, de tal prosaísmo que o opõe uma recusa absoluta às condições que, segundo nós, a verdadeira poesia épica deve preencher. Por isso, como sugere Hegel (2010, p. 509), “a poesia épica, renunciando aos grandes acontecimentos nacionais, refugiou-se na esfera mais estreita e limitada dos acontecimentos domésticos, no campo e nas pequenas cidades, para nela encontrar temas próprios para uma exposição épica”. E, finalmente, Hegel (2010, p. 510) conclui constatando que “nas outras esferas da vida nacional e social dos nossos dias abriu-se um campo ilimitado, no domínio épico, para o romance, o conto e a novela”. UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO 174 NOTA No romance moderno, o Ulisses, de James Joyce, indica um sintoma do processo descrito por Hegel. O romance de Joyce recria a epopeia Odisseia, de Homero, condensando as aventuras de Ulisses em algumas horas da vida do agente de publicidade Leopold Bloom, protagonista de Ulisses. 175 Neste tópico, você aprendeu que: • O gênero épico surge na Antiguidade grega com as epopeias de Homero. • O gênero épico se caracteriza pela narração, definida pela enunciação de um narrador e de personagens. • O gênero épico se caracteriza por sua longa extensão e pelo caráter elevado e solene. • O gênero épico narra temas heroicos, míticos e históricos, que representam os mitos de fundação das nações. • A epopeia se estrutura em proposição, invocação, dedicatória, narração e remate, ou simplesmente em proposição, narração e epílogo. • O épico compreende a complexidade do mundo e da vida que narra, tendo legado essa característica aos gêneros narrativos, especialmente o romance. RESUMO DO TÓPICO 1 176 1 Assista ao filme Terra estrangeira (1996), dirigido por Walter Salles e Daniela Thomas, e reflita sobre a permanência intertextual de elementos narrativos, tais como motivos, imagens e temas provenientes das epopeias, como as viagens, o retorno para casa, os navios como metáforasdas nações, a expansão imperial, a colonização e a exploração e assim por diante. Qual o significado de tais elementos a partir de sua perspectiva? 2 “A poesia épica deve girar em torno de assunto ilustre, sublime, solene, especialmente vinculado a cometimentos bélicos; deve prender-se a acontecimentos históricos, ocorridos há muito tempo, para que o lendário se forme ou/e permita que o poeta lhe acrescente com liberdade o produto da sua fantasia; o protagonista da ação há de ser um herói de superior força física e psíquica, embora de constituição simples, instintivo, natural; o amor pode inserir-se na trama heroica, mas em forma de episódios isolados; e, sendo terno e magnânimo, complementar harmonicamente as façanhas de guerra” (MOISÉS, 1999, p. 184). Considerando as explicações do texto acima, avalie os fragmentos a seguir que se configuram como poesia épica: I- Musa, as causas me aponta, o ofenso nume,/ Ou por que mágoa a soberana deia/ Compeliu na piedade o herói famoso/ A lances tais passar, volver tais casos./ Pois tantas iras em celestes peitos! II- Eu agora — que desfecho! / Já nem penso mais em ti… / Mas será que nunca deixo/ De lembrar que te esqueci? III- Canta, ó Musa, o varão que astucioso,/ Rasa Ílion santa, errou de clima em clima,/ Viu de muitas nações costumes vários. IV- Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala. V- As armas e os Barões assinalados/ Que da Ocidental praia Lusitana/ Por mares nunca de antes navegados/ Passaram ainda além da Taprobana,/ Em perigos e guerras esforçados/ Mais do que prometia a força humana,/ E entre gente remota edificaram / Novo Reino, que tanto sublimaram. São poemas épicos os fragmentos em: a) ( ) I e II b) ( ) II e IV c) ( ) I, III e V d) ( ) II, IV e V e) ( ) III e IV AUTOATIVIDADE
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