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Quantidade de ferro na dieta: 6 a 8 mg/1.000 cal, representa 10 a 15mg diários. Absorção: 10 a 12%. Na mulher, em período pré- menopausa ou durante gestação, e em crianças na idade de crescimento, a absorção de ferro varia de 1,0 a 2,0 mg/dia; no homem adulto, de 0,5 a 1,0 mg/dia. O ferro heme é também absorvido; cerca de 15% do que se ingere são absorvidos. Perda: fezes, menstruação, descamação das células intestinais e epidérmicas. O conteúdo férrico de um organismo adulto é de aproximadamente 4g. O ferro encontra-se, principalmente, ligado aos radicais prostéticos das porfirinas dos grupos heme das moléculas de hemoglobina (65%) e de mioglobina (5%), como também as enzimas (1%). O restante está sob formas de ferritina e de hemossiderina, no fígado. A absorção de ferro ocorre, preferencialmente, no duodeno e no jejuno, diminuindo progressivamente em direção ao íleo. O mecanismo celular de absorção de ferro não está ainda bem esclarecido, mas a absorção é maior em meio ácido (importância do HCl) e substâncias que aumentam a conversão do íon férrico 3+ em ferroso 2+ (vitamina C, fosfatos, oxalatos, aminoácidos livres) também ajudam. • O ferro heme é absorvido na membrana luminal por mecanismo ainda não conhecido. No citosol do enterócito, o grupo heme sofre ação da heme oxigenasse, liberando o Fe 2+ , que pode ser oxidado a Fe 3+ , o qual é então reduzido a íon ferroso (Fe 2+ ) por ação da enzima ferro redutase. O Fe 2+ , por sua vez pode ser transportado para o interior celular por duas vias distintas: • No lúmen do intestino, o Fe 2+ interage com a transferrina formando o complexo Fe 2+ -Tf, que se liga a um receptor de transferrina, para penetrar no enterócito por endocitose. No citosol, o baixo pH da vesícula endocítica causa a liberação do ferro do complexo Tf-receptor. Esse complexo é reciclado para a ML, deixando o ferro livre no citosol. • O Fe 2+ pode também ser transportado para o citosol através do cotransportador H + :Fe 2+ (DMT1). Para isso, é reduzido pela DcytB redutase (Duodenal cytochrome B). Como as formas de ferro ionizado e livre são citotóxicas, o ferro do citosol interage principalmente com a mobilferrina para ser tamponado. Quando os níveis plasmáticos de ferro são elevados, aumenta a formação intracelular de mobilferrina, com diminuição da transferência do íon para o plasma. O oposto ocorre quando esse níveis ficam reduzidos. Uma vez no citoplasma do enterócito, o ferro tem dois caminhos: Ser armazenado como ferritina ou atravessar a membrana basolateral para chegar ao citoplasma. A proporção de ferro que segue cada uma das vias é determinada quando a célula é formada nas criptas do epitélio intestinal. A proteína HFE e o receptor de transferrina formam o complexo HFE-TfR que modula a capacidade absortiva do enterócito que futuramente irá migrar para os vilos intestinais. O ferro que permanece nos enterócitos é perdido quando a célula morre e é descamada, não sendo efetivamente absorvido. O transporte de ferro na membrana basolateral ainda é pouco compreendido; provavelmente o ferro é transportado nesta barreira ligado ao transportador IRE (iron-responsive element) ou ferroportina. No plasma, o Fe 2+ é oxidado a Fe 3+ (pela Hefaestina) que interage com uma transferrina plasmática, a fim de ser transportado para os tecidos. hematologia: anemias Igor Mecenas Quando o ferro é absorvido pelo intestino delgado, ele imediatamente se combina, no plasma sanguíneo, com a beta globulina apotransferrina para formar transferrina, que é em seguida transportada pelo plasma. O ferro na transferrina está ligado frouxamente e por conseguinte, pode ser liberado para qualquer ponto do corpo. O excesso de ferro no sangue é depositado nos hepatócitos e em menor quantidade nas células reticuloendoteliais da medula óssea. A captação do ferro ligado à transferrina é intermediada pelo TfR, que pode ocorre sob duas formas: • O TfR1 é amplamente expresso na maioria das células; • OTfR2 é restrito a hepatócitos, células da cripta duodenal e células eritroides, sugerindo que o TfR2 desempenhe um papel mais especializado no metabolismo do ferro. Cerca de 25% do ferro do organismo estão localizados em reservatórios, principalmente fígado e baço, um pouco menos pela pele e a própria medula óssea. Excetuando-se o ferro da hemoglobina sanguínea, sem dúvida, a maior proporção de ferro no corpo é armazenada no fígado, sob a forma de ferritina. O ferro também pode depositar-se como Fe(OH) 3 coloidal. As células hepáticas contêm grande quantidade de apoferritina. No citoplasma das células, o ferro se combina com a apoferritina formando ferritina. Uma quantidade variável de ferro pode se combinar, por meio de aglomerados de radicais de ferro, com essa molécula. Dessa maneira, a ferritina pode conter de pequenas a grandes quantidades de ferro. Assim, o sistema hepático da apoferritina atua como tampão do ferro sanguíneo, assim como meio de armazenamento de ferro. Quando o ferro se encontra disponível nos líquidos corporais em quantidades extras, ele forma ferritina e é armazenado nas células hepáticas e quando atinge nível baixo, a ferritina libera o seu ferro. Quando a quantidade de ferro no plasma diminui, parte do ferro no depósito de ferritina é mobilizada com facilidade e transportada sob forma de transferrina pelo plasma para onde é necessária. Ela tem forte ligação aos receptores das membranas celulares das hemácias na medula óssea e é ingerida pelo eritroblasto por endocitose. O ferro é liberado para as mitocôndrias, onde o heme é sintetizado. Pequenas quantidades são armazenadas sob forma extremamente insolúvel (hemossiderina). Isso ocorre de modo particular, quando a quantidade total de ferro no organismo é superior à que pode ser acomodada no reservatório de depósito da apoferritina. A hemossiderina forma aglomerados bastante grandes nas células e, portanto, pode ser observada ao microscópio como grandes partículas. Durante a vida extrauterina, ocorre exclusivamente na medula óssea, enquanto, na vida fetal, ocorre em outros tecidos, como o fígado ou baço. A medula existe praticamente em todos os ossos durante os primeiros anos de vida, para ir diminuindo gradativamente com a idade, até ficar limitada, posteriormente, aos ossos chamados membranosos, como esterno, costelas, vértebras, pelve etc. No indivíduo idoso, o volume funcionante de medula óssea é menor ainda que aquele dos jovens. Calcula-se que a cada 24 horas são repostas aproximadamente 2x10 11 das células destruídas. Quando ocorre um estímulo muito intenso da eritropoiese, por exemplo, após uma hemorragia importante, outros tecidos ósseos que têm normalmente uma medula vermelha muito limitada podem começar de novo uma intensa atividade formativa de hemácias, e em casos extremos, também o fígado e o baço podem reassumir a função eritropoiética. • Células precursoras: células-tronco (ou trancais ou, genericamente, stem cells), correspondentes a células pluripotentes indiferenciadas que, sob a ação de fatores de crescimento originariam a célula-tronco mieloide e a partir dela, a UFC eritroide. • Pró-eritroblasto: é continuamente formado a partir de células precursoras. Pela ação de fatores maturativos, dá lugar à produção exclusiva de elementos figurados no sangue. Contém polirribossomos livres. • Eritroblasto Basófilo: Uma célula filha compromete-se na formação exclusiva de eritrócitos. Inicia a síntese de hemoglobina. O eritroblasto basófilo não se divide, porém apresenta uma estocagem de proteínas e enzimas que levam à síntese de hemoglobina e anidrase carbônica. • Eritroblasto policromatílico: Se tinge com vários corantes, devido ao seu protoplasma parcialmente desprovido de hemoglobina (basófilo) e parcialmente impregnado com hemoglobina. Sofre mitoses e o núcleo começa a regredir.• Eritroblasto ortocromático: Núcleo condensado (picnótico) e diminuição gradual do diâmetro celular. • Reticulócitos: Apresenta uma fina rede que apresenta características de retículo basófilo, que é o remanescente do retículo endoplasmático do eritroblasto. Representa um eritrócito jovem, que pode sair da medula precocemente, sem ter completado totalmente a síntese de hemoglobina. Apresenta-se no sangue periférico em número maior quando a eritropoiese aumenta; é então indicativo de uma ativa produção eritrocitária. Os reticulócitos penetram no sistema vascular, transformando-se em eritrócitos mesmo dentro de 24 a 48h • Eritrócito: Quando a síntese de hemoglobina é finalizada e as diferentes organelas subcelulares, diminuindo de tamanho, espalham-se pelo citoplasma e finalmente são extruídas da célula. Na produção de eritrócitos, deve-se considerar a síntese de proteínas, dado que parte da hemoglobina, a globina, é uma proteína; precisa-se então de aminoácidos, além do ferro, coenzimas (vitaminas) e fornecimento de energia. Para a formação das hemácias, observam-se duas fases sucessivas: uma primeira fase de mitoses, com grande número de células como resultado final, e uma segunda, de diferenciação, com formação de hemoglobina. Primeira fase (Mitótica) Necessita de ácido fólico (B 9 ) e vitamina B 12 (cianocobalamina). • Ácido fólico: B 9 ou ácido pteroil-glutâmico, é um fator de maturação por ser elemento indispensável na formação de ácidos nucléicos agindo na metilação do desoxiuridilato, formando desoxitimidilato, que é um nucleotídeo necessário para a síntese de DNA. Encontra-se especialmente nos alimentos vegetais, em particular nas folhas (daí o nome fólico), como alface, almeirão, repolho, espinafre, mas também na laranja e no fígado. A quantidade necessária de ácido fólico por dia não é rigidamente exata, mas deve estar em tomo de 200 mg; sua carência diária produz anemia macrocítica sem distúrbios do sistema nervoso. • Vitamina B12: é também indispensável para a fase divisória da eritropoiese, porque representa um fator de maturação para todas as células que crescem. Age também como coenzima, na conversão dos nucleotídeos da ribose em nucleotídeos de desoxirribose, necessária na formação de DNA. É sintetizada na natureza por microrganismos; os animais adquirem-na ingerindo alimentos de origem animal, pela produção interna das bactérias intestinais (não ocorre em humanos), ou pela ingestão de alimentos contaminados com bactérias. Consiste em um pequeno grupo de compostos, as cobalaminas, todas com a mesma estrutura básica, com um átomo de cobalto no centro de um anel corrina ligado a uma porção nucleotídica. Não ocorre em frutas, cereais e verduras. Sua carência determina que as células mães da série vermelha não se dividam em quantidade suficiente mas, incorporando aminoácidos em velocidade normal, crescem na medula grandes células (megaloblastos), aparecendo no sangue circulante poucos glóbulos vermelhos de tamanho exagerado. Essa anemia chama-se anemia perniciosa de Biermer. O megalócito formado tem uma membrana frágil, daí sua curta meia-vida; Castle demonstrou que, para ser absorvida, a B12 precisava ligar-se a ao fator intrínseco (um glicosaminoglicano) permitindo sua absorção por pinocitose na mucosa intestinal. O fator intrínseco é secretado na mucosa do antro pilórico do estômago. Uma vez absorvida, a vitamina B12 é armazenada no fígado. Mais recentemente, foi identificado um fator proteico da secreção salivar que permitiria a ligação da vitamina B12 ao fator intrínseco. Segunda fase (diferenciação) Ocorre uma intensa síntese de hemoglobina, característica da hemácia. Para a síntese de hemoglobina precisa-se de ferro (no estado ferroso), aminoácidos, cobre (2 mg/dia), piridoxal (vitamina B6), e traços de cobalto e níquel. O estímulo mais potente que age sobre a medula óssea para produzir mais hemácias é a hipóxia tissular (diminuição da pressão parcial de oxigênio). A hipoxia não age diretamente sobre a medula óssea, já que a hipoxia deprime a medula. Observa-se que quando o rim fica hipoxêmico, libera-se eritropoietina (EPO), hormônio - altamente glicosilado que contém aproximadamente 5g% de carboidrato, principalmente ácido siálico - que pode estimular a eritropoiese, e cuja concentração plasmática oscila entre 8 a 18 U/L, e pode aumentar, até exageradamente, em situações de anemia decorrente de hipóxia celular; a via média é de 5-6 horas, sendo o seu catabolismo hepático principalmente por ruptura das ligações de ácido siálico. Aparentemente, o rim constituiria a principal fonte de EPO no adulto; porém no animal renoprivo a taxa plasmática de eritropoietina persiste; enquanto em situações de hiperoxia ou de hipertransfusão tais níveis efetivamente são deprimidos. Existiria, então, uma eritropoietina não renal, a qual seria secretada por células hepáticas. Aceita-se a existência de um receptor ou sensor de oxigênio, provavelmente representado por uma hemeproteína que, tanto na célula renal, como na hepática, atuaria como sensor de pO2, pela qual induzir- se-ia produção de eritropoietina. Desconhece-se a localização celular de dito sensor de oxigênio, mas novas evidências sugerem que poderia radicar nos fibroblastos do mesmo espaço peritubular e intersticial, onde é mesmo detectada a síntese de eritropoietina. Inicia-se nos eritroblastos, que formam uma proteína conjugada composta de duas partes: o núcleo heme e a globina. • Heme: é uma metaloporfirina e é sintetizado na mitocôndria, onde quatro compostos pirrólicos combinam-se formando protoporfirinas; uma delas, a protoporfirina IX, combina-se com o ferro em estado ferroso, constituindo-se o heme. • Globina: contém histidina e é sintetizada no retículo endoplasmático. Liga-se ao heme (4 hemes: 1 globina) constituindo-se a hemoglobina, de peso molecular 66,7 kD. A hemoglobina possui grande afinidade pelo oxigênio, que então se liga a ela formando oxiemoglobina, através de uma combinação frouxa reversível, que depende da pressão de O 2 , do pH e da temperatura. A ligação frouxa deve-se à impossibilidade da combinação do O 2 com as duas valências positivas do ferro (Fe 2+ ); liga-se, então, fracamente com duas das seis valências de coordenação do ferro, de modo que cada molécula de hemoglobina, que tem quatro átomos de ferro, transporta quatro moléculas de oxigênio. Deve-se salientar que o ferro da hemoglobina está em estado ferroso (Fe 2+ ), capaz portanto de se ligar e desligar facilmente do O 2 ; se o ferro for oxidado, passa para Fe 3+ (férrico), que não possui a capacidade de ligar-se ou desligar-se do O 2 . A oxidação do ferro na hemácia pode ocorrer pela produção de H 2 O 2 que se dissocia em H 2 O e O 2 e pode oxidar o Fe 2+ , passando para Fe 3+ . Existe também na hemácia a glutationa reduzida, que se reduz a H 2 O 2 e a torna incapaz de oxidar o ferro. Não obstante, o Fe 3+ pode passar para Fe 2+ pela ação do NADPH e NADH, que doam seus H + e o Fe 3+ passa para Fe 2+ . Uma droga, a fenilidrazina, produz ruptura dos glóbulos vermelhos por hemólise. Ela oxida o Fe 2+ formando Fe 3+ , requerendo quantidades grandes de NADPH e NADH para permitir a passagem novamente a Fe 2+ ; mas, à medida que vão se formando o NADPH e NADH, por feedback negativo, inibe-se a glicólise anaeróbica, com menor formação de ATP. Sabe-se que o eritrócito possui, em sua membrana, a espectrina, que confere resistência à membrana globular, permitindo-lhe que se deforme, durante sua passagem pelos vasos sanguíneos pequenos, sem se romper. Nas condições de déficit de ATP, não haveria fósforo suficiente para fosforilar a espectrina. Isto leva a uma espectrina fisiologicamente insatisfatória, que outorga menor resistência à membrana globular, ocorrendo facilmente a destruição da hemácia frente a deformações mínimas.As hemácias, na circulação, duram aproximadamente 120 dias porque contêm um estoque limitado de enzimas citoplasmáticas necessárias à metabolização de glicose. Mas no decorrer do tempo, esta estocagem vai se perdendo, e não pode ser reposta, pois as hemácias carecem de DNA e RNA, tornando-se os glóbulos menos ativos metabolicamente e ficando mais frágeis, rompendo-se em passagens vasculares muito estreitas, como acontece, especialmente, na polpa vermelha esplênica. A destruição da hemácia pode ocorrer simplesmente no próprio sangue circulante, porém seria mais frequente que a fragmentação eritrocitária ocorra no baço, pelo atrito maior de uma membrana frágil contra as paredes vasculares estreitas e sinuosas. Na hemólise, as hemácias estouram e os elementos constitutivos são eliminados no plasma. As primeiras células a serem hemolisadas seriam as mais velhas, porque sua membrana é mais fraca, sendo a espectrina fosforilada dependente da produção de ATP; quando falha a glicólise anaeróbica, haverá a consequente alteração da membrana. Logo após a hemólise, a hemoglobina liberada é fagocitada pelas células macrofágicas do sistema macrofágico, especialmente do baço, onde ocorre maior destruição celular. No sistema macrofágico a hemoglobina é quebrada nos dois constituintes básicos, heme e globina. A globina incorpora-se ao pool proteico e, portanto, comporta-se como qualquer outra proteína de origem tecidual. O ferro é liberado do heme e transportado pela transferrina, incorporando-se, por sua vez, ao pool de ferro, podendo ser utilizado na nova síntese de hemoglobina, ou ser depositado nos reservatórios teciduais. Por outro lado, a estrutura cíclica da protoporfirina é perturbada, abrindo-se o anel, ficando uma estrutura de forma linear, chamada biliverdina, que logo é reduzida a bilirrubina, que circula em forma livre (não conjugada), pelo sangue, até chegar ao fígado, de onde é eliminada pela bile. Etimologicamente anemia significa falta de sangue, mas realmente há só diminuição da hemoglobina circulante, que é menor que 840g no total, determinando-se taxas sanguíneas menores de 14g%. A hemoglobina corpuscular média diminui de 34g% em regra geral, mas não forçosamente, porque o que interessa é a redução da quantidade total de hemoglobina. Sabendo que a hemoglobina total depende da fórmula Hb = P x Vm, pode-se estabelecer que poderia haver anemia quando: 1. da diminuição da produção de hemácias; 2. da redução da vida média das hemácias. As anemias associadas a eritrócitos normocíticos e normocrômicos bem como a uma resposta inapropriadamente baixa dos reticulócitos (índice de reticulócitos < 2 a 2,5) são anemias hipoproliferativas, categoria que abrange a deficiência de ferro em seu estágio inicial (antes do desenvolvimento dos eritrócitos microcíticos hipocrômicos), a inflamação aguda e crônica (incluindo muitos cânceres), a doença renal, certos estados hipometabólicos, como a desnutrição proteica e deficiências endócrinas, além das anemias causadas por lesão da medula óssea. A deficiência de ferro é uma das formas mais prevalentes de má nutrição. Globalmente, 50% da anemia são atribuíveis à deficiência de ferro e são responsáveis por cerca de 841.000 mortes anualmente em todo o mundo. A África e partes da Ásia respondem por 71% dos óbitos. Já a América do Norte representa apenas 1,4% da morbidade e mortalidade associadas à deficiência de ferro. De acordo com a OMS, anemia é um problema de saúde pública global, que afeta o estado de saúde, a capacidade laborativa e a qualidade de vida de cerca de 2 bilhões de pessoas, cerca de um terço da população mundial. A Deficiência de Ferro (DF) é responsável por 75% de todos os casos de anemia. Tanto em países subdesenvolvidos quanto em países desenvolvidos, a DF advém principalmente de desigualdades sociais. É muito mais prevalente em estratos sociais mais baixos, nos grupos de menor renda, e na população menos educada Esse dado deve ser considerado na proposição de medidas populacionais de profilaxia e tratamento. A evolução para deficiência de ferro pode ser dividido em três estágios. • Balanço de ferro negativo: as demandas (ou as perdas) de ferro excedem a capacidade do organismo de absorver o ferro da dieta. Essa fase resulta de diversos mecanismos fisiológicos, como perda de sangue, rápidos surtos de crescimento no adolescente ou ingestão inadequada de ferro alimentar. A ocorrência de uma perda de sangue de mais de 10-20 mL de eritrócitos por dia é superior à quantidade de ferro absorvível pelo intestino a partir de uma dieta normal. Em tais circunstâncias, o déficit de ferro deve ser compensado pela mobilização do ferro dos locais de armazenamento no RE. Durante esse período, as reservas de ferro diminuem. Enquanto houver reservas passíveis de mobilização, o ferro sérico, a capacidade total de ligação ao ferro (TIBC) e os níveis de protoporfirina eritrocitária irão permanecer dentro dos limites normais. Nesse estágio, a morfologia do eritrócito e os índices eritrocitários são normais. • Eritropoiese deficiente em ferro: Quando ocorre depleção das reservas, o nível sérico de ferro começa a diminuir. Gradualmente, a TIBC aumenta assim como os níveis de protoporfirina eritrocitária. Por definição, as reservas de ferro medular estão ausentes quando o nível sérico de ferritina é <15 μg/L. Contanto que o ferro sérico permaneça dentro da faixa normal, a síntese da hemoglobina não é afetada a despeito da redução das reservas de ferro. Quando a saturação da transferrina cai para 15 a 20%, a síntese da hemoglobina é afetada, constituindo o período de eritropoiese deficiente em ferro. A cuidadosa avaliação do esfregaço de sangue periférico revela o primeiro aparecimento de células microcíticas, e, se houver disponibilidade de tecnologia laboratorial, pode-se detectar a presença de reticulócitos hipocrômicos na circulação. • Anemia ferropriva: Gradualmente, a hemoglobina e o hematócrito começam a diminuir, refletindo a anemia por deficiência de ferro. A saturação da transferrina nesse momento é de 10 a 15%. Quando ocorre anemia moderada (Hb de 10-13 g/dL), a medula óssea permanece hipoproliferativa. Na anemia grave (Hb de 7-8 g/dL), a hipocromia e a microcitose tornam-se mais proeminentes, aparecem células- alvo e eritrócitos deformados (pecilócitos) no esfregaço sanguíneo, com formas em charuto ou lápis e a medula eritroide torna-se cada vez mais ineficaz. Em consequência, na anemia ferropriva prolongada e grave ocorre hiperplasia eritroide da medula óssea mais do que hipoproliferação. Deficiência de ferro pode gerar redução da capacidade funcional de vários sistemas orgânicos, estando associada à alteração do desenvolvimento motor e cognitivo em crianças, redução da produtividade no trabalho e problemas comportamentais, cognitivos e de aprendizado em adultos. Em gestantes, aumenta o risco de prematuridade, baixo peso, sendo responsável por 18% das complicações no parto e morbidade materna. As queixas costumam ser leves, pois a anemia se instala de maneira insidiosa, gerando adaptação, e há pacientes completamente assintomáticos. Pode-se observar palidez cutaneomucosa, fadiga, baixa tolerância ao exercício, redução do desempenho muscular, perversão alimentar ou pica (desejo e consumo de substâncias não nutritivas como gelo, terra, sabão, argila), baqueteamento digital e coiloníquia (unhas em forma de colher), atrofia das papilas linguais, estomatite angular e disfagia (formação de membranas esofágicas ou síndrome de Plummer-Vinson). Hemograma É um teste rápido, barato e amplamente disponível no rastreio de anemia ferropriva, mas incapaz de detectar DF sem anemia. Frequentemente se observa hipocromia, microcitose, aumento do índice de Anisocitose Eritrocítica (RDW) e plaquetose, além da presença de anisocitose, poiquilocitose, hemácias em charuto, eliptócitose reticulocitopenia ao exame microscópico. Mielograma A avaliação dos estoques de ferro na medula óssea a partir da coloração do tecido medular pelo corante de Perls é considerada padrão-ouro no diagnóstico de DF. É exame invasivo, de reprodutibilidade e acurácia questionáveis, não tendo papel na prática clínica diária. No mielograma observa-se hiperplasia eritroblástica com displasias morfológicas na DF moderada até hipoplasia das três linhagens da DF grave prolongada. Dosagem da ferritina sérica Está diretamente relacionada com a concentração de ferritina intracelular e, portanto, com o estoque corporal total. Deficiência de ferro é a única condição que gera ferritina sérica muito reduzida, o que torna a hipoferritinemia bastante específica deste diagnóstico. No entanto, valores normais ou elevados de ferritina não excluem a presença de DF, pois a ferritina é uma proteína de fase aguda, tendo sua concentração sérica aumentada na presença de inflamação, infecção, doença hepática e malignidade, mesmo na presença de DF grave. Ferro sérico É a fração do ferro corporal que circula primariamente ligado à transferrina, e encontra-se reduzido na DF. Varia com o ritmo circadiano e a alimentação e, por isso, a coleta de sangue para sua dosagem deve ter horário e jejum padronizados. Está também reduzido na presença de inflamação, não devendo, desta forma, ser utilizado isoladamente para avaliação de DF. Transferrina Tem capacidade de ligar simultaneamente duas moléculas de ferro. Sua produção é regulada pelo ferro corporal, aumentando quando os estoques estão exauridos. Pode ser dosada diretamente ou pela TIBC (Total Iron Binding Capacity), ensaio que permite a estimativa dos sítios de ligação de ferro disponíveis. A transferrina sérica se eleva em condições como gestação e uso de contraceptivos orais, estando reduzida na presença de inflamação, infecção, malignidade, doença hepática, síndrome nefrótica e desnutrição. Transferrina ou TIBC, juntamente com o ferro sérico, permitem o cálculo do Índice de Saturação de Transferrina (IST). O IST é calculado a partir da razão [Ferro sérico/TIBC] ou [Ferro sérico/Transferrina × 0,71], variando de 20 a 45%. Zinco Na DF, zinco é incorporado no lugar do ferro, formando a Zincoprotoporfirina (ZPP). A taxa de elevação de ZPP é proporcional ao déficit de ferro na medula em relação à eritropoese, e a elevação de ZPP é o primeiro marcador de eritropoese deficiente em ferro, embora não seja específico. Concentração de sTfR O fragmento solúvel do receptor de transferrina (sTfR) é derivado do receptor de transferrina de todas as células, porém os principais geradores desse fragmento são os eritroblastos e reticulócitos. Assim, a concentração de sTfR reflete a atividade eritropoética e se encontra elevada na DF. A razão do sTfR pelo logaritmo da ferritina sérica (sTfR/log da ferritina) mostrou-se útil na determinação de DF em pacientes com anemia de doença crônica. O principal problema da dosagem de sTfR é a falta de padronização internacional que permita comparação entre os diferentes ensaios, o que impede sua ampla utilização. Hepticidina A dosagem plasmática ou urinária de hepcidina ainda não está comercialmente disponível, mas parece promissora em estudos preliminares na distinção entre anemia ferropriva e anemia de doença crônica. Seus níveis estão aumentados na presença de inflamação e de estoques de ferro elevados, e reduzidos na presença de DF. O tratamento da DF consiste na reposição oral ou venosa. No entanto, é mandatória a investigação da causa e sua pronta correção; do contrário, a reposição é paliativa e tende a ser ineficaz no longo prazo. Oral • Adultos: 180 a 200 mg de ferro elementar/dia • Crianças: 1,5 a 2 mg de ferro elementar/dia Dividida em 3 a 4 tomadas, preferencialmente com o estômago vazio, ou 30 minutos antes das principais refeições. Manter as doses terapêuticas por 4 meses após a resolução da anemia. A forma ferrosa é mais bem absorvida que a férrica. Para pacientes em uso de antiácidos e IBP recomenda-se a reposição com doses maiores e por mais tempo. A prevalência de efeitos colaterais é de até 30%, notadamente do TGI: pirose e dor epigástrica, náuseas, vômitos, empachamento, dor abdominal em cólica, diarreia e obstipação. O paciente deve ser informado de que é esperada mudança da cor das fezes, e que os efeitos colaterais melhoram com o tempo. Redução das doses diárias e ingestão do medicamento junto com alimentos diminuem a eficácia, porém diminuem os efeitos colaterais. Parenteral A reposição parenteral de ferro é efetiva, cara, trabalhosa, não isenta de efeitos colaterais, e deve ser indicada em situações especiais. A via intramuscular, praticamente proscrita, está associada à dor local, pigmentação irreversível da pele e linfonodomegalia. A infusão venosa pode estar associada a irritação, dor e queimação do sítio de punção, náuseas, gosto metálico na boca, hipotensão e reação anafilactoide, sendo que o principal fator no aparecimento dessas reações é a velocidade de infusão. Resistência Com doses adequadas de ferro suplementar observa-se recuperação rápida da anemia por deficiência de ferro na maioria dos pacientes. O sinal mais precoce de resposta é o aumento na contagem de reticulócitos, que atinge seu pico entre o 5º e o 10º dias de tratamento. Observa-se, também, aumento médio de 1g/dL por semana na Hb. Considerável proporção dos pacientes tratados apresenta má resposta, recaída precoce ou resistência. Nesses casos, deve-se investigar: presença de fatores que interfiram na absorção intestinal, persistência do sangramento, perda maior que a capacidade de absorção, má adesão e, se constatada a impossibilidade de uso da via oral, partir para a reposição parenteral. As anemias megaloblásticas são um grupo de distúrbios que se caracterizam pela presença de aspectos morfológicos distintos dos eritrócitos em desenvolvimento na medula óssea. Em geral, a medula óssea é celular, e a anemia tem como base a eritropoiese ineficaz. A causa consiste habitualmente em uma deficiência de cobalamina (vitamina B12) ou de folato; entretanto, a anemia megaloblástica pode surgir de anormalidades genéticas ou adquiridas que afetam o metabolismo destas vitaminas, ou de defeitos na síntese do DNA não relacionados à cobalamina ou ao folato. A absorção e o metabolismo da cobalamina e do folato são descritos, seguidos de uma discussão da base bioquímica, das características clínicas e laboratoriais, das causas e do tratamento da anemia megaloblástica. Deficiência de Cobalamina (B12) Nos países ocidentais, a deficiência de vitamina B12 em geral decorre de anemia perniciosa (adisioniana). Com menor frequência, pode ser provocada por veganismo no qual falta B12 na dieta (mais comum na Índia), gastrectomia e doenças do intestino delgado. Não há síndrome de deficiência de B12 como resultado de consumo excessivo ou perda da vitamina, de modo que a deficiência inevitavelmente leva ao menos 2 anos para desenvolver-se, isto é, o tempo necessário para que haja depleção dos depósitos ao ritmo de 1 a 2 µg/dia, quando se estabelece severa má-absorção de B12. O óxido nitroso, no entanto, é capaz de inativar rapidamente B12 do organismo. Deficiência de Folato (B9) Em geral, decorre de dieta pobre em folato, isolada ou em combinação com uma condição em que haja aumento de utilização ou má-absorção do folato. Um turnover celular excessivo, de qualquer tipo, incluindo gravidez, é a principal causa de aumento das necessidades de folato, pois há mais moléculas degradadas pelo aumento de síntese de DNA. O mecanismo pelo qual os anticonvulsivantes e os barbitúricos causam deficiência ainda é controverso. O álcool, a sulfassalazina e outros compostos podem ter efeitos múltiplos no metabolismo do folato. A hematopoese normal compreende intensa proliferação celular, quepor sua vez implica a síntese de numerosas substâncias como DNA, RNA e proteínas; em especial, é necessário que a quantidade de DNA seja duplicada exatamente. Tanto os folatos como a vitamina B 12 são indispensáveis para a síntese da timidina, um dos nucleotídeos que compõem o DNA, e a carência de um deles tem como consequência menor síntese de DNA. Os folatos participam dessa reação na forma de N5- N10-metilenotetraidrofolato, que cede um radical -CH3 (metil) à desoxiuridinamonofosfato (dUMP), transformando-a em timidinamonofosfato (dTMP) que, por sua vez, será incorporada ao DNA. A vitamina B 12 participa indiretamente nesta reação, funcionando como coenzima da conversão de homocisteína em metionina, transformando simultaneamente o 5-metiltetraidrofolato em tetraidrofolato, a forma ativa de folato que participa da síntese de timidina. Na ausência de vitamina B12, o folato vai se transformando em 5-metiltetraidrofolato, uma forma de transporte do folato, inútil para síntese da timidina e do DNA. A síntese inadequada de DNA tem como consequência modificações do ciclo celular, retardo da duplicação e defeitos no reparo do DNA. Por outro lado, a síntese de RNA não está alterada, pois a timidina não é necessária para sua síntese; não há, portanto, redução da formação de proteínas citoplasmáticas e do crescimento celular. Devido principalmente à lentidão da divisão celular na fase S do ciclo celular, há aumento do número de células com quantidade de DNA entre o diploide e o tetraploide. Estudos citogenéticos revelam exuberantes alterações cromossômicas, como gaps, fraturas e separação prematura do centrômero. A maioria dessas células com lesões cromossômicas graves não é capaz de completar a divisão celular, sendo prematuramente destruídas na medula óssea. Essa desorganização cromossômica é reversível após o tratamento adequado. O quadro morfológico do sangue periférico e da medula óssea é idêntico nas deficiências de folatos ou de vitamina B12: dissociação de maturação nucleo-citoplasmática, produzindo células de tamanho aumentado e com alterações morfológicas características. No entanto, uma parcela considerável dessas células morre na própria medula óssea, antes de completar o desenvolvimento. A intensa desordem da maturação nuclear das três linhagens, mais evidente na série eritroide, produz um aumento de morte celular intramedular: apenas 10 a 20% dos eritrócitos sobrevivem e tornam-se viáveis para o sangue periférico (hematopoese ineficaz). Como resultado, além da anemia macrocítica, com megaloblastos na medula óssea e número de reticulócitos normal ou baixo, pode também ocorrer neutropenia, com neutrófilos polissegmentados e moderada plaquetopenia. Anemia Perniciosa É causada por agressão autoimune à mucosa gástrica, levando à atrofia do estômago. A parede do estômago torna-se delgada, com infiltrado de linfócitos e plasmócitos na lâmina própria. Pode ocorrer metaplasia intestinal. Há acloridria, e a secreção de fator intrínseco torna-se ausente ou quase ausente. Aumenta a gastrina sérica. A infecção por H. pylori pode iniciar uma gastrite autoimune: em pacientes jovens, causa anemia ferropênica; em idosos, causa anemia perniciosa. A principal manifestação clínica é a anemia; apesar de plaquetopenia e neutropenia ocorrerem com frequência, sangramento ou infecções secundárias à plaquetopenia são pouco comuns. A deficiência da síntese de DNA afeta a divisão celular em outros tecidos em que há rápida multiplicação, em especial os epitélios do tubo digestivo, originando queixas de diarreia, glossite (ardência, dor e aparência vermelha da língua, “língua careca”), queilite e perda do apetite. Pode ser encontrada discreta a moderada esplenomegalia. A deficiência de vitamina B 12 determina ainda uma degeneração do cordão posterior da medula espinal, cuja base bioquímica seria a carência de S-adenosil- metionina resultante de menor suprimento de metionina, pelo bloqueio da mesma reação homocisteína-metionina discutida anteriormente. O quadro resultante, denominado “degeneração combinada subaguda da medula espinal”, inclui sensações parestésicas dos pés (formigamento ou picada de agulhas), pernas e tronco, seguidas de distúrbios motores, principalmente dificuldades da marcha, redução da sensibilidade vibratória, comprometimento da sensibilidade postural, marcha atáxica, sinal de Romberg, e comprometimentos das sensibilidades termoalgésica e dolorosa “em bota” ou “em luva”. O envolvimento do cordão lateral é menos frequente, manifestando-se por espasticidade e sinal de Babinski. A tríade de fraqueza, dor na língua e parestesias é clássica na deficiência de vitamina B 12 , mas os sintomas iniciais variam muito. São também comuns as manifestações mentais como a depressão e os déficits de memória, disfunção cognitiva e demência, além de distúrbios psiquiátricos graves como alucinações, paranoias, esquizofrenia. A deficiência de folatos não causa envolvimento do sistema nervoso, mas a deficiência durante a gravidez aumenta a incidência de defeitos de tubo neural em recém-nascidos. Sangue periférico Os principais achados são anemia macrocítica, leucopenia, trombocitopenia, acompanhados de anisocitose, macrocitose com macro-ovalócitos, poiquilocitose, e granulócitos polissegmentados. A contagem de reticulócitos é normal ou baixa, mas o cálculo do índice de reticulócitos corrigido indica anemia hipoproliferativa. Em resumo, tem-se como manifestação uma pancitopenia associada à macrocitose. No entanto, a macrocitose pode estar mascarada pela coexistência de carência de ferro, talassemia ou anemia de doença crônica, que são doenças que produzem microcitose e hipocromia, e nesses casos pode-se observar anemia dimórfica, com duas populações de células. As principais alterações morfológicas no esfregaço do sangue periférico são: • Eritrócitos: macro-ovalócitos, poiquilocitose com esquistócitos, dacriócitos, corpúsculos de Howell- Jolly, anel de Cabot, eritroblastos, e até megaloblastos; • Granulócitos: hipersegmentação nuclear, com presença de neutrófilos polissegmentados reconhecidos por no mínimo 5% de neutrófilos com cinco lobos (regra dos 5) ou um neutrófilo com seis ou mais lobos; • Leucócitos: leucopenia com neutropenia, podendo os leucócitos chegar até abaixo de 2.000/μL, embora seja rara a ocorrência de infecções graves; • Plaquetas: trombocitopenia com 30.000 a 100.000 plaquetas/μL. Medula óssea O quadro citológico medular é muito característico, e quando a punção é realizada precocemente, antes do uso de medicamentos com vitamina B 12 ou folatos, o diagnóstico de anemia megaloblástica pode ser firmado com segurança. Há intensa hiperplasia da medula óssea, com acentuada hiperplasia da linhagem eritroide, que é composta por megaloblastos: eritroblastos mais volumosos que o normal, com núcleos com estrutura mais granular e menos condensada. Além disso, há grandes quantidades de aberrações citológicas, como megaloblastos gigantes ou com núcleos polilobulados, binucleados, contendo múltiplos micronúcleos, pontes citoplasmáticas e nucleares, e cariorréxis. As alterações na série branca são representadas principalmente por mielócitos e metamielócitos de volume aumentado, contendo núcleo gigante. O ferro medular está aumentado em virtude da eritropoese ineficaz e geralmente há grande número de sideroblastos, mas só raramente há sideroblastos em anel. Dosagem das vitaminas Na deficiência de folatos, tanto o sérico quanto eritrocitário estão diminuídos, enquanto que os níveis de vitamina B 12 estão normais ou aumentados. O folato eritrocitário é mais acurado na avaliação dos depósitos de folatos, porque não sofre influência de drogas ou dieta, mas tem caído em desuso. A mensuração do folato sérico também deve ser analisada com cautela, porque pode apresentar dados falso-positivos ou falso-negativos. Na deficiênciade B 12 os níveis de cobalamina estão geralmente baixos e os de folato normais. Entretanto, níveis subnormais ou mesmo normais de B 12 podem ocorrer em indivíduos com carência, em especial idosos. Pesquisa de metabólitos Nos casos de dúvida diagnóstica, a dosagem sérica de ácido metilmalônico e de homocisteína total pode auxiliar na diferenciação das duas anemias megaloblásticas. Ambos estão aumentados em cerca de 95% dos casos de deficiência de vitamina B12, enquanto que o aumento de homocisteína sem aumento do ácido metilmalônico ocorre em 91% na deficiência de folatos. O alto custo desses exames faz com que sejam reservados para situações de dúvidas diagnósticas. Identificação da causa A forma mais direta e simples, atualmente, de identificar a anemia perniciosa é a realização de endoscopia gástrica com biópsia nos pacientes em que se revela uma anemia megaloblástica com baixos níveis de vitamina B 12 . Se houver sinais de gastrite atrófica, o diagnóstico provável é de anemia perniciosa, e a execução de outros exames somente é necessária se houver dúvidas ou se o quadro for atípico. O teste de Schilling consiste na ingestão oral da vitamina B 12 marcada, seguida de medida da vitamina B 12 radiativa excretada na urina no período de 24h após a ingestão oral. A pesquisa de anticorpos anti-fator intrínseco e anti-célula parietal, e a ausência de produção de ácido clorídrico pelo estômago após estímulo máximo (acloridria) contribuem para confirmar o diagnóstico de anemia perniciosa. Outros exames endoscópicos e radiológicos do tubo digestivo auxiliam no diagnóstico das afecções ileojejunais. A mais importante medida no tratamento dessas anemias consiste em identificar a causa e removê-la, se possível. Só excepcionalmente há necessidade de tratar esses pacientes com transfusões sanguíneas, uma vez que a reposição adequada do nutriente é acompanhada de pronta resposta, com rápida normalização hematológica. Nos casos em que há concomitância com carência de ferro, o tratamento deve ser simultâneo, caso contrário não haverá recuperação completa dos níveis de hemoglobina. A melhora subjetiva acontece em 48h, com o restabelecimento da hematopoese normal. Como pode ocorrer modificação da estrutura da medula óssea com uma simples refeição hospitalar, a punção de medula óssea para fins diagnósticos deve ser realizada o mais rapidamente possível. A contagem do reticulócitos aumenta até atingir o pico no 5º-8º dia, e sua elevação é proporcional ao grau de anemia. A hemoglobina e o hematócrito começam a melhorar já na primeira semana, e a hemoglobina deve atingir o seu valor normal em cerca de um mês. Se isso não ocorrer, deve ser investigada a associação da anemia megaloblástica com outras doenças que cursam com anemia hipocrômica. O número de neutrófilos normaliza em uma semana e a hipersegmentação desaparece em 10-14 dias. Quanto maior o tempo de duração dos sintomas neurológicos, menor a probabilidade de serem reversíveis; podem melhorar nos primeiros 6 a 18 meses, estabilizando-se depois. Carência de B12 A anemia perniciosa deve ser tratada com vitamina B12 por via parenteral por toda a vida, uma vez que o defeito de absorção é irreversível. Existem numerosos esquemas terapêuticos que se baseiam na noção de recompor os depósitos com doses iniciais repetidas, seguidas de injeções periódicas a intervalos regulares para suprir as necessidades. Por exemplo, injeções de 5 mg semanais no primeiro mês, seguidas de injeções de 5 mg mensais. Pacientes idosos com atrofia gástrica e má absorção por dificuldade de dissociação da vitamina B12 do alimento e vegetarianos beneficiam-se preventivamente com doses orais da vitamina em torno de 50 μg/dia (doses maiores podem ser usadas sem efeitos indesejáveis). Carência de Folato Correção da dieta, aumentando a ingestão de verduras. Ácido fólico por via oral na dose de 5 mg/dia até que a causa da carência tenha sido removida. A quantidade de folato absorvida quando se usam doses terapêuticas é geralmente suficiente para tratar a carência, mesmo quando há defeito de absorção. O risco do tratamento é a possibilidade de haver resposta (parcial) em pacientes com deficiência de vitamina B 12 . Nesses casos, o quadro hematológico pode melhorar, mas a doença neurológica pode se exacerbar. Em muitos casos a causa da carência é autolimitada, como na gravidez e em prematuros; em outros, a carência de folatos de origem nutricional tem grande tendência a recair, como em alcoólatras e em pacientes com doença celíaca. Tratamento permanente é necessário em pacientes que têm doenças que aumentam o consumo de folatos, como anemias hemolíticas crônicas e pacientes submetidos à diálise. A anemia falciforme é um exemplo clássico de uma alteração mínima na estrutura de hemoglobina capaz de provocar, sob determinadas circunstâncias, uma singular interação molecular e drástica redução na sua solubilidade. O termo “síndromes falciformes” identifica as condições em que o eritrócito sofre falcização após redução na tensão de oxigênio, enquanto que a designação “doenças falciformes” é reservada às situações em que a falcização das hemácias conduz a manifestações clínicas evidentes. Assim, as doenças falciformes incluem a anemia falciforme, que representa o estado homozigoto para a hemoglobina S (SS), e as interações hemoglobina S- betalassemia (S/β tal), hemoglobinopatia SC (SC), hemoglobinopatia SD (SD) e hemoglobina S-persistência hereditária de hemoglobina fetal (S/PHHF). É importante observar que, nessa definição, o estado heterozigótico para hemoglobina S (“traço falciforme”) é classificado como síndrome falciforme, mas não como doença falciforme. A alteração molecular primária na anemia falciforme é representada pela substituição de uma única base no códon 6 do gene da globina b, uma adenina (A) é substituída por uma timina (T) (GAG→GTC). Esta mutação resulta na substituição do resíduo glutamil na posição b 6 por um resíduo valil (β6Glu→Val) e tem como consequência final a polimerização das moléculas dessa hemoglobina anormal (HbS) quando desoxigenadas. A substituição do ácido glutâmico por valina na posição β6 ocorre na superfície da molécula, sem provocar alterações significativas na sua conformação global. A hemoglobina S na conformação oxi é isomorfa à hemoglobina normal, sugerindo que a estrutura das duas moléculas (exceto pela substituição do aminoácido) são similares. As solubilidades das hemoglobinas oxigenadas A e S são semelhantes, embora pequenas diferenças tenham sido detectadas em tampão fosfato concentrado. Em soluções diluídas, as propriedades físicas das hemoglobinas desoxigenadas A e S são também parecidas. No entanto, soluções concentradas de desoxi- hemoglobina S e desoxi-hemoglobina A diferem grandemente, e este fato fornece as bases físico-químicas da gelificação e falcização. A hemoglobina S, quando desoxigenada in vitro, torna-se relativamente insolúvel e agrega-se em longos polímeros. Esses polímeros resultam do alinhamento de moléculas de hemoglobina S, unidas por ligações não covalentes e, na descrição desse fenômeno, os termos polimerização, agregação e gelificação são usados como sinônimos. A polimerização da desoxi-hemoglobina S depende de numerosas variáveis, como concentração de oxigênio, pH, concentração de hemoglobina S, temperatura, pressão, força iônica e presença de hemoglobinas normais. Somente a forma desoxigenada de hemoglobina S sofre polimerização; o fenômeno não ocorre, normalmente, com nenhuma das formas cuja conformação se assemelha à oxi-Hb S, como meta-Hb S, carboxi-Hb S ou cianometa-Hb S. A polimerização da hemoglobina S é o evento fundamental na patogenia da anemia falciforme, resultando na alteração da forma do eritrócito e na acentuada redução de sua deformabilidade. A Hemoglobina Fetal (HbF) inibe a polimerização, fenômeno responsável pela redução desintomatologia clínica nos pacientes com elevados níveis de Hb fetal. Da mesma forma, a HbA participa pouco do polímero e esta é a razão para a quase ausência de anormalidades clínicas nos heterozigotos para o gene da hemoglobina S. Cinética da Falcização Todas as hemácias contendo predominantemente hemoglobina S podem adquirir a forma falciforme clássica após desoxigenação, em decorrência da polimerização intracelular da desoxi-Hb S, processo normalmente reversível após a reoxigenação. No entanto, a repetição frequente desse fenômeno provoca lesão de membrana em algumas células, fazendo com que a rigidez e a configuração em forma de foice persistam mesmo após a reoxigenação. Assim, esses eritrócitos, denominados genericamente “células irreversivelmente falcizadas” ou células densas, retêm permanentemente a forma anormal, mesmo na ausência de polimerização intracelular de hemoglobina. Em decorrência de sua acentuada rigidez, as células irreversivelmente falcizadas têm vida-média reduzida e contribuem significativamente para a anemia hemolítica dos pacientes. No entanto, o quadro clínico da anemia falciforme, contrastando com as demais formas de anemia hemolítica, não dependem substancialmente dos sintomas causados pela anemia propriamente, mas, sim, da ocorrência de lesões orgânicas causadas pela inflamação e obstrução vascular e das chamadas “crises de falcização”. Nos períodos entre as crises, a “fase estável”, os pacientes evoluem praticamente assintomáticos, a despeito da anemia persistente, com níveis de hemoglobina variáveis, mas, em geral, ao redor de 8 g/dL. Processo Vaso-Oclusivo O fenômeno de vaso-oclusão ocorre geralmente na microcirculação. No entanto, grandes artérias, principalmente nos pulmões e cérebro, também podem ser afetadas. Atualmente, acredita-se que o fenômeno vaso-oclusivo compreende um processo com várias etapas que envolve interações de hemácias, leucócitos ativados, células endoteliais, plaquetas e proteínas do plasma. A liberação intravascular de hemoglobina pelas hemácias fragilizadas, além da vaso-oclusão recorrente e dos processos de isquemia e reperfusão, leva a dano e ativação das células endoteliais da parede do vaso. Como consequência, há indução de uma resposta inflamatória vascular e a adesão de células brancas e vermelhas à parede dos vasos sanguíneos. Tal fato, associado a uma redução na biodisponibilidade de Óxido Nítrico (NO) no interior do vaso e ao estresse oxidativo, pode ocasionar, em alguns casos, uma redução no fluxo sanguíneo e, finalmente, a vaso- oclusão. • Vaso-oclusão e o endotélio: As células falcizadas, e a própria hemoglobina liberada no vaso pelo processo de hemólise, podem ocasionar danos às células endoteliais que revestem a parede vascular. A subsequente ativação das células endoteliais tem consequências significativas que incluem a expressão de moléculas de adesão, como VCAM-1 (molécula de adesão vascular -1), ICAM-1 (molécula de adesão intercelular-1) e E- selectina na superfície celular e a produção de citocinas e quimiocinas como Interleucina (IL)-8, IL-6 e GM-CSF (fator estimulador de colônias de granulócitos-macrófagos). O endotélio ativado ainda libera fatores procoagulantes e fatores vasoconstritores potentes, como as Endotelinas 1 e 2 (ET-1, ET-2). • A vaso-oclusão e a inflamação: A anemia falciforme está, geralmente, associada a um estado inflamatório crônico que exerce um papel fundamental na ativação das células endoteliais e células sanguíneas, em especial, dos leucócitos. Diversas moléculas inflamatórias se apresentam em níveis elevados na anemia falciforme, incluindo TNF-a (Fator de Necrose Tumoral- a), IL-1β, proteína C reativa (todos potentes ativadores do endotélio) além do M-CSF (fator estimulador de colônia de macrófagos), IL-3, GM-CSF, IL-8 e IL-6. Além disso, algumas proteínas anti-inflamatórias como a Heme- Oxigenase-1 (HO-1) e IL-10 também estão aumentadas na anemia falciforme, possivelmente tentando limitar a produção de moléculas inflamatórias e a ativação endotelial na doença. • A vaso-oclusão e a adesão celular: A vaso- oclusão é o resultado de um mecanismo complexo que, aparentemente, culmina na adesão de células vermelhas, leucócitos e plaquetas ao endotélio e à parede vascular que pode causar diminuição no fluxo sanguíneo e, portanto, a vaso-oclusão. A expressão de moléculas como VCAM-1, ICAM-1, selectinas e CD36 na superfície das células endoteliais ativadas tem como consequência a captura das células brancas e vermelhas que, por sua vez, também apresentam propriedades adesivas aumentadas. As células vermelhas e, em especial, os reticulócitos de indivíduos com doenças falciformes apresentam maior capacidade adesiva devido ao grande número de moléculas de adesão como a integrina VLA-4 (integrina a4b1), CD36, ICAM-4 e BCAM/Lu, que estão altamente expressas nessas células e interagem com as moléculas subendoteliais da parede vascular (laminina, trombospondina, fibronectina etc.) ou com as moléculas das células endoteliais (CD36, VCAM-1, BCAM/Lu, P-selectina, entre outras). Os leucócitos, geralmente encontrados em estado ativado na circulação de indivíduos com AF, também aderem com mais facilidade ao endotélio vascular, particularmente na presença de um estímulo inflamatório. Acredita-se, atualmente, que o processo vaso-oclusivo é desencadeado pela adesão de leucócitos, em especial dos neutrófilos, já que são células grandes (12-15 μm) e relativamente rígidas, à parede da microvasculatura. Adicionalmente, os leucócitos aderidos podem intermediar a adesão secundária de hemácias à parede vascular e a combinação desses episódios inicia o processo vaso-oclusivo, uma vez que ocorre a obstrução física dos pequenos vasos da microcirculação. A interação dos leucócitos com o endotélio é intermediada, na maior parte, pelas integrinas Mac-1 e LFA-1, além de algumas moléculas como a L-selectina, e ligantes da E-selectina na superfície dos leucócitos que, por sua vez, interagem com as moléculas ICAM-1, P-selectina e E-selectina presentes na superfície das células endoteliais. Ademais, há indícios de que um número elevado de granulócitos circulantes está associado à maior incidência de complicações na anemia falciforme. As plaquetas, também encontradas em estado ativado na AF, podem aderir ao endotélio vascular, exacerbando a inflamação local pela liberação de mediadores inflamatórios potentes. Assim sendo, as plaquetas também apresentam papel importante no mecanismo de vaso-oclusão. • vaso-oclusão e o óxido nítrico: O NO é um gás sinalizador produzido constitutivamente pelas células endoteliais e é responsável pela regulação do tônus vasomotor. A biodisponibilidade do NO está reduzida na AF, principalmente devido ao seu consumo pela hemoglobina livre, liberada na circulação após a hemólise das hemácias. O resultado principal da redução da disponibilidade do NO é a inibição da vasodilatação dependente de NO, contribuindo assim com a vasoconstrição, favorecendo potencialmente a vaso-oclusão e participando da fisopatogenia de algumas manifestações como hipertensão pulmonar e priapismo. • Vaso-oclusão, plaquetas e a coagulação: A fisiopatologia da AF está associada a um estado de hipercoagulabilidade. Indivíduos com AF apresentam níveis elevados de marcadores de ativação de trombina, plaquetas e células endoteliais, tais como o dímero-D, Trombina- Antitrombina (TAT), ligante de CD40 solúvel (CD40L), Fator Tecidual (FT), Fator Ativador de Plaquetas (FAP), Fator de von Willebrand (FvW), entre outras moléculas. Há dados que indicam uma associação na AF entre a hemólise e a ativação da coagulação, bem como uma possível contribuição da ativação plaquetária para o AVC na doença. Contudo, é provável que a vaso- oclusão recorrente contribua com a hipercoagulabilidade por aumentar a ativação do endotélio e das plaquetas. • Vaso-oclusão e o estresseoxidativo: Na anemia falciforme, múltiplos mecanismos são responsáveis por aumentar a produção de ROS na vasculatura, como, por exemplo, lesões por isquemia-reperfusão que ocorrem nos vasos sanguíneos devido à interrupção e subsequente reestabelecimento do fluxo sanguíneo. A presença de ROS no vaso sanguíneo e a baixa concentração de oxigênio apresentam um papel importante na ativação das células endoteliais, em que a produção de ROS é amplificada pela presença da enzima xantina oxidase ativada e o desacoplamento (ou inativação) da enzima sintase de óxido nítrico, a qual pode produzir ânions superóxidos. A atividade aumentada da NADPH oxidase (devido à leucocitose), a formação de Dimetilarginina Assimétrica (DMAA) e a auto-oxidação da própria hemoglobina S na presença de oxigênio também contribuem com a produção de ROS. Por outro lado, importantes mecanismos de defesa antioxidantes, como os níveis das vitaminas A, C e E e a atividade das enzimas glutationa peroxidase e superóxido dismutase, estão diminuídos na anemia falciforme. O estresse oxidativo provavelmente apresenta um papel importante em vários mecanismos fisiopatológicos da anemia falciforme. Além da ativação do endotélio, facilitando a hemólise, aumentando as propriedades adesivas das células brancas e vermelhas, e elevando a oxidação dos lipídios presentes na membrana celular, o estresse oxidativo também participa do consumo intravascular de NO. Anemia Hemolítica Presente na maioria dos pacientes com síndromes falcêmicas, com hematócrito de 15 a 30% e reticulocitose significativa. Antigamente, acreditava-se que a anemia exercia efeitos protetores contra a vasoclusão ao reduzir a viscosidade sanguínea. Entretanto, a história natural e os estudos clínicos de terapia farmacológica sugerem que o aumento do hematócrito e a inibição da reticulocitose por retroalimentação podem ser benéficos mesmo à custa de aumento na viscosidade do sangue. O papel dos reticulócitos aderentes na vaso-oclusão pode explicar estes efeitos paradoxais. Granulocitose É comum. A contagem dos leucócitos pode flutuar de modo substancial e imprevisível durante e entre episódios álgicos, infecções e outras doenças intercorrentes. Vaso-oclusão Resulta em múltiplas manifestações. Os episódios intermitentes em estruturas de tecido conectivo e musculoesqueléticas provocam isquemia dolorosa que se manifesta como dor aguda e hipersensibilidade, febre, taquicardia e ansiedade. Estes episódios recorrentes, denominados crises álgicas, constituem a manifestação clínica mais comum. Sua frequência e gravidade variam enormemente. A dor pode surgir em quase qualquer parte do corpo e durar poucas horas até 2 semanas. As crises repetidas que exigem internação(> 3 por ano) são correlacionadas com redução da sobrevida na idade adulta, sugerindo que esses episódios estão associados a acúmulo de lesão crônica dos órgãos-alvo. Os fatores desencadeantes consistem em infecção, febre, exercício excessivo, ansiedade, mudanças abruptas da temperatura, hipóxia ou corantes hipertônicos. Os microinfartos repetidos podem destruir os tecidos que apresentam leitos microvasculares propensos à falcização. Assim, ocorre frequentemente a perda do baço nos primeiros 18-36 meses de vida, causando suscetibilidade a infecções, em particular por pneumococos. A obstrução venosa aguda do baço (crise de sequestro esplênico ), evento raro no início da infância, pode exigir transfusão de emergência e/ou esplenectomia para impedir a retenção do débito arterial no baço obstruído. A oclusão dos vasos da retina pode provocar hemorragia, neovascularização e descolamentos subsequentes. A necrose papilar renal sempre induz à isostenúria. A necrose renal mais disseminada acarreta insuficiência renal em adultos, constituindo causa tardia comum de morte. A isquemia óssea e a articular podem resultar em necrose asséptica, particularmente das cabeças do fêmur ou úmero, artropatia crônica e suscetibilidade incomum à osteomielite, que pode ser causada por microrganismos como a Salmonella, raramente encontrados em outros contextos. A síndrome da mão e pé decorre de infartos dolorosos dos dedos e dactilite. O acidente vascular encefálico (AVE) é particularmente comum em crianças, tendendo um pequeno subgrupo a sofrer episódios repetidos, menos comuns em adultos, nos quais quase sempre são hemorrágicos. Uma complicação particularmente dolorosa em homens é o priapismo devido ao infarto dos tratos de saída venosos do pênis, sendo a impotência permanente uma consequência frequente. As úlceras crônicas das pernas provavelmente surgem por isquemia e infecção secundária na circulação distal. Síndrome Torácica Aguda É manifestação distinta, caracterizada por dor torácica, taquipneia, febre, tosse e dessaturação arterial de oxigênio, podendo simular pneumonia, embolia pulmonar, infarto e embolia da medula óssea, isquemia miocárdica ou infarto pulmonar in situ. Acredita-se que a síndrome torácica aguda reflita a falcização. Com frequência, é difícil ou mesmo impossível distinguir a síndrome torácica aguda de outros distúrbios. Infarto pulmonar e pneumonia são as afecções subjacentes ou concomitantes mais frequentes em pacientes com tal síndrome. Os episódios repetidos de dor torácica aguda são correlacionados com redução da sobrevida. Nos casos agudos, a redução da saturação arterial de oxigênio é especialmente grave, visto que promove a falcização em escala maciça. As crises pulmonares crônicas, agudas ou subagudas causam hipertensão pulmonar e cor pulmonale, constituindo causa cada vez mais comum de morte à medida que o paciente sobrevive por mais tempo. Existe considerável controvérsia sobre o possível papel desempenhado pela HbS plasmática livre na remoção do NO 2 , elevando, assim, o tônus vascular pulmonar. As síndromes falciformes são notáveis pela sua heterogeneidade clínica. Alguns pacientes permanecem praticamente assintomáticos até a idade adulta ou mesmo no decorrer dela, enquanto outros sofrem crises repetidas que exigem internação desde o início da infância. Os pacientes com anemia falciforme-talassemia e anemia falciforme-HbE tendem a apresentar sintomas semelhantes e ligeiramente mais discretos talvez devido aos efeitos favoráveis da produção de outras hemoglobinas no eritrócito. A hemoglobinopatia se, uma das variantes mais comuns da anemia falciforme, caracteriza-se frequentemente por graus menores de anemia hemolítica e maior tendência ao desenvolvimento de retinopatia bem como necrose asséptica dos ossos. Entretanto, na maioria dos aspectos, as manifestações clínicas assemelham-se às da anemia falciforme. Na verdade, algumas variantes raras da hemoglobina agravam o fenômeno de falcização. A variabilidade clínica em diferentes pacientes que herdam a mesma mutação causadora de doença (hemoglobina falciforme) fez com que a anemia falciforme se tornasse o foco de esforços para identificar polimorfismos genéticos modificadores em outros genes, como possíveis responsáveis pela heterogeneidade. Por esse motivo, a complexidade dos dados obtidos até o momento diminuiu a expectativa de que a ampla análise do genoma possa produzir perfis individualizados capazes de prever a evolução clínica de um paciente. Apesar disso, surgiram vários padrões interessantes dessas análises de modificação genética. Por exemplo, os genes que afetam a resposta inflamatória ou a expressão de citocina parecem candidatos à modificação. Os genes que afetam a regulação da transcrição dos linfócitos podem estar envolvidos. Assim, parece provável comprovar- se que alterações polimórficas fundamentais na resposta inflamatória do paciente aos danos provocados pelos eritrócitos falciformes ou na resposta a infecções crônicas ou recorrentes são importantes para prognosticar a gravidade clínica da doença. O diagnóstico das síndromes falciformes depende fundamentalmenteda comprovação da hemoglobina S pela eletroforese de hemoglobinas, utilizando conjuntos complementares de suportes e tampões que permitam a distinção das diferentes hemoglobinas anormais. As técnicas mais utilizadas incluem a eletroforese de hemoglobina em acetato de celulose com pH 8.4, em gel de ágar com pH 6.2, e teste de solubilidade da hemoglobina em tampão fosfato concentrado. A detecção da HbS pode também ser feita com base em Cromatografia Líquida de Alta Performance (HPLC) ou Eletroforese com Focalização Isoelétrica (FIE). A alteração molecular pode ser facilmente identificada pela Reação em Cadeia da Polimerase (PCR), seguida de sequenciamento do DNA ou digestão com uma enzima de restrição apropriada. Este último é o método utilizado no diagnóstico pré-natal das doenças falciformes, ou em alguns casos de difícil diagnóstico pela eletroforese de hemoglobinas. É importante ressaltar que é quase sempre indispensável para o diagnóstico correto das síndromes falciformes o estudo de todos os familiares disponíveis. Todos os recém-nascidos de grupos populacionais onde a frequência da mutação para HbS é elevada devem ser submetidos à triagem neonatal para detecção de doença falciforme. Atualmente, são bem conhecidos os benefícios do diagnóstico precoce, introdução de antibioticoterapia profilática e programa adequado de vacinação. Alguns estudos bem controlados mostram que a introdução dessas medidas permite reduzir a mortalidade nos cinco primeiros anos de vida de 25% para aproximadamente 3%. Os procedimentos laboratoriais para o diagnóstico em amostras de recém-nascidos devem separar com segurança a HbF das outras hemoglobinas. O teste pode ser realizado em sangue de cordão umbilical ou amostras de sangue venoso coletado em papel de filtro, podendo ser utilizada a mesma estratégia de coleta de amostras para outros testes neonatais, como de fenilcetonúria e de hipotireoidismo congênito (“testes do pezinho”). As técnicas comumente utilizadas são a focalização isoelétrica ou cromatografia líquida de alta performance. Os níveis de hemoglobina em pacientes na fase estável variam entre 6 a 10 g/dL. Em geral, a anemia é normocrômica e normocítica, embora os níveis de reticulócitos sejam elevados (entre 5 e 20%). Ocasionalmente podem ser observados eritroblastos circulantes. É sempre importante estabelecer os valores hematológicos basais para cada paciente, pois esses valores permanecem relativamente estáveis em um deles, mas variam grandemente em diferentes pacientes. Valores reduzidos de VCM indicam S/β talassemia ou associação com α-talassemia. Ocasionalmente, pode ocorrer deficiência de ferro em pacientes com doenças falciformes, que também pode levar à hipocromia e à microcitose. As clássicas hemácias em forma de foice são caracteristicamente observadas nas doenças falciformes, embora outras formas aberrantes possam também ser visualizadas. Em recém-nascidos poucas células falcizadas podem ser observadas, devido à elevada porcentagem de HbF. Após o primeiro ano de vida, as células falcizadas tornam-se mais evidentes. Hemácias em alvo também podem aparecer, principalmente na S/β talassemia e na hemoglobinopatia SC. Com a redução na função esplênica, podem ser identificados corpos de Howel-Jolly. A hipofunção esplênica pode ser avaliada também pela contagem de inclusões intracelulares observadas por microscopia de contraste de interferência (quantificação de hemácias com pits). Os clássicos dados laboratoriais de hemólise estão presentes: elevação de bilirrubina indireta, redução de haptoglobina sérica, elevação de urobilinogênio urinário e hiperplasia eritroide na medula óssea. Frequentemente, há leucocitose, às vezes com desvio à esquerda, alteração que nem sempre está relacionada a processo infeccioso, podendo ser observada mesmo na fase estável. A contagem de plaquetas está em geral elevada, podendo atingir até 1.000.000/μL. Provavelmente, tanto a leucocitose quanto a trombocitose estão associadas à hiperplasia de medula óssea em pacientes com hipofunção esplênica, além do estado inflamatório crônico. As provas de coagulação são normais durante a fase estável, mas, durante os episódios vaso-oclusivos, alguns testes podem apresentar alterações características de hipercoagulabilidade. A velocidade de hemossimentação está geralmente baixa, não sendo parâmetro útil nas doenças falciformes, pois as hemácias falcizadas dificilmente formam os grupamentos que facilitam a sedimentação. Nos pacientes não submetidos a transfusões crônicas, os níveis de ferritina são inicialmente normais, podendo apresentar discreta elevação após a terceira década de vida. Ao contrário, nos pacientes submetidos a transfusões repetidas, esses níveis são elevados, podendo ocorrer hemocromatose secundária. Muitas vezes, é necessária a terapia com quelantes de ferro, embora as lesões orgânicas sejam menos acentuadas que aquelas observadas nos pacientes com β-talassemia. Pacientes com doenças falciformes devem, sempre que possível, ser acompanhados regularmente em serviços especializados (Centros de Atenção a Doenças Falciformes) com a presença de equipes multidisciplinares (médicos, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais e fisioterapeutas). Desse modo, os objetivos básicos da terapêutica consistem no tratamento das complicações específicas e em cuidados gerais da saúde. Além dos cuidados gerais para acompanhamento do crescimento, desenvolvimento somático e psicológico, e tratamento específico de lesões orgânicas (como colecistopatia, úlceras de pernas, osteomielite etc.), o tratamento a longo prazo apoia-se em: • Suplementação com ácido fólico: 5 mg/dia, deve ser sempre realizada devido à hiperplasia eritropoética • Uso de medicamentos que promovem o aumento da hemoglobina fetal em pacientes selecionados A terapia com hidroxiureia está geralmente associada a um aumento nos níveis de Hemoglobina Fetal (HbF) nos pacientes com anemia falciforme, diminuindo, por sua vez, a falcização das hemácias e promovendo melhora significativa nos níveis de hemólise. Uma taxa menor de hemólise pode reduzir o consumo de NO intravascular, além de diminuir a ativação do endotélio. Evidências apontam que a HU pode agir como um doador de NO in vivo, possivelmente melhorando a biodisponibilidade desse vasodilatador na anemia falciforme. Outro efeito importante da terapia com HU é a redução na contagem de leucócitos, já que os leucócitos participam de forma significativa na inflamação e na oclusão física dos vasos. Indiretamente, a terapia com HU está associada a uma diminuição na expressão das moléculas de adesão na superfície das células brancas e vermelhas, além de melhorar parcialmente o estado inflamatório e reduzir o estado de hipercoagulabilidade dos pacientes. Tratamento das crises dolorosas vaso-oclusivas São de difícil tratamento e a conduta depende da gravidade da dor e da presença ou não de outras complicações concomitantes. As regras básicas são tratar agressivamente o fator desencadeante, hidratação adequada e analgesia. Para crises leves, podem ser utilizados paracetamol, AAS, dipirona e ibuprofeno; nos casos moderados, sem resposta à medicação inicial, pode então ser associada codeína ou tramadol; nas crises dolorosas graves, deve ser administrada morfina. Tratamento das demais crises agudas Aplásticas, sequestro esplênico, neurológicas, síndrome torácica aguda Tratamento das Infecções A conduta global relacionada às infecções em pacientes com doenças falciformes incluem: imunização para prevenir infecção; penicilina profilática; e tratamento adequado do paciente com febre. Febre em pacientes com doenças falciformes deve sempre ser considerada um problema grave e potencialmente fatal. Nunca deve ser presumido que o paciente tem uma doença viral. As infecções comuns são Septicemia fulminante (Streptococcus pneumoniae e Haemophilus influenzae),Meningite pneumocócica (S. pneumoniae), Pneumonias (S. pneumoniae, H. influenzae e Mycoplasma pneumoniae) e Osteomielite (Salmonella). Transfusão Sanguínea Pacientes com anemia falciforme toleram bem a anemia crônica e necessitam de transfusões somente em circunstâncias especiais, como, por exemplo, crise de sequestro, AVC, crise aplástica, preparação para cirurgia, gravidez, hipóxia com síndrome torácica aguda e priapismo. Nos casos de crises de sequestro e crise aplástica, transfusões simples são necessárias para restaurar a massa sanguínea circulante e garantir uma oferta adequada de oxigênio aos tecidos. Nas outras situações, transfusão de substituição é provavelmente mais adequada que transfusão simples, pois reduz a viscosidade que poderia ser causada por elevação do hematócrito. No entanto, esse é ainda um assunto controverso. Um estudo cooperativo mostrou que em situações pré-cirúrgicas, transfusões simples apresentam resultados favoráveis quando comparados à transfusão de substituição. Na indicação de regime transfusional na anemia falciforme, em geral, o objetivo deve ser manter o nível de HbS abaixo de 30%. Nesses casos, deve ser lembrado que o acúmulo de ferro é inevitável, e pode ser tratado com quelantes de ferro, por via parenteral com desferoxamina, ou via oral com deferiprone ou deferasirox. Além disso, devem ser avaliados todos os riscos inerentes às transfusões sanguíneas, tais como reações transfusionais, transmissão de patógenos e, especialmente, aloimunização. Redução de 60 a 80% nas células falciformes circulantes pode ser atingida em crianças com anemia falciforme em 6 a 12 horas pela troca de duas vezes a massa de hemácias (2× volume sanguíneo × hematócrito). Nos centros em que for disponível separador automático de células, a transfusão de substituição (2 volumes) pode ser feita em 90 minutos. Um estudo demonstrou inequivocadamente que um regime de transfusão sanguínea que mantenha o nível de HbS abaixo de 30% reduz enormemente o risco do primeiro episódio de AVC em crianças com Doppler Ultrassonográfico Transcraniano (DTC) alterado. Esse procedimento deve ser aplicado rotineiramente para todos os pacientes com anemia falciforme. Transplante de células-tronco hematopoéticas Um tratamento curativo para as doenças falciformes representa hoje objetivo fundamental para os pesquisadores nessa área. A única opção curativa para doenças falciformes até o momento é o transplante de células-tronco hematopoéticas aparentado, indicado a crianças com casos graves (como, por exemplo, ocorrência de acidente vascular cerebral na infância) e que tenham doador compatível na família. A descoberta de novas drogas que isoladamente ou em conjunto com a HU aumentem a produção de HbF, o aprimoramento das técnicas do transplante de medula óssea em adultos e com fontes alternativas de células progenitoras hematopoéticas, tais como sangue de cordão umbilical, doador não aparentado ou haploidêntico, ou a terapia gênica representam alternativas possíveis que no futuro poderão conduzir a novas possibilidades de cura ou melhor controle dessas enfermidades.
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