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1. Entender anemia e descrever os principais parâmetros do hemograma no seu diagnóstico. 2. Diferenciar os vários tipos de anemias baseados nos exames laboratoriais disponíveis. 3. Diferenciar os mecanismos envolvidos nas anemias hiperproliferativas e anemias hipoproliferativas. 4. Realizar o diagnóstico diferencial de anemias não carenciais. 5. Estudar fisiopatologia, quadro clínico e diagnóstico da anemia falciforme. 6. Caracterizar a importância do aconselhamento genético em doenças familiares e a atuação multiprofissional nas doenças falciformes. HEMATOPOIESE E A BASE FISIOLÓGICA DA PRODUÇÃO DE ERITRÓCITOS A hematopoiese refere-se ao processo de produção dos elementos figurados do sangue. O processo é regulado por meio de uma série de etapas que começa com a célula-tronco hematopoiética. As células tronco podem produzir eritrócitos, granulocitos de toda a classe, monócitos, plaquetas e células do sistema imune. O mecanismo molecular específico pelo qual as células-tronco se diferenciam em uma determinada linhagem não está completamente definido. Experimentos em camundongos sugerem que as células eritroides originam-se de um progenitor eritroide/megacariocítico comum que não se desenvolve na ausência da expressão dos fatores de transcrição de GATA1 e FOG-1 (de friend of GATA-1). Após diferenciação em uma linhagem, sofre influencia reguladora maior de fatores de crescimento e hormônios, as células progenitoras e precursoras hematopoiéticas. EPO(eritropoietina) que regula a produção de eritrócitos, ela é necessária para manutenção de células progenitoras eritroides diferenciadas. Na ausência de EPO sofrem apoptose. FIGURA 59-1 Regulação fisiológica da produção dos eritrócitos pela tensão tecidual de oxigênio. Hb, hemoglobina. Na medula óssea, o pró-normoblasto é o primeiro precursor eritroide morfologicamente identificável. Essa célula pode sofrer 4 a 5 divisões celulares, que resultam na produção de 16 a 32 eritrócitos maduros. Em caso de aumento na produção de EPO ou administração de EPO como fármaco, ocorre amplificação do número de células precursoras imaturas, as quais dão origem a número aumentado de eritrócitos. A regulação da própria produção de EPO está ligada à oxigenação tecidual. Nos mamíferos, o O2 é transportado até os tecidos ligados à hemoglobina contida no interior dos eritrócitos circulantes. O eritrócito maduro tem 8 μm de diâmetro, é anucleado, de forma discoide e extremamente flexível para atravessar com sucesso a microcirculação. A integridade de sua membrana é mantida pela geração intracelular de ATP. A produção normal dos eritrócitos permite a reposição diária de 0,8 a 1% das hemácias circulantes no corpo, pois a sobrevida média dos eritrócitos é de 100 a 120 dias. O órgão responsável pela produção dos eritrócitos é denominado éritron. Trata-se de um órgão dinâmico, constituído por um reservatório de células precursoras eritroides medulares de rápida proliferação e por uma grande massa de eritrócitos circulantes maduros. O tamanho da massa eritrocitária reflete o equilíbrio entre a produção e a destruição dos eritrócitos. A base fisiológica da produção e destruição dos eritrócitos fornece uma compreensão dos mecanismos que podem levar à anemia. O regulador fisiológico da produção dos eritrócitos, o hormônio glicoproteico EPO, é sintetizado e liberado por células de revestimento dos capilares peritubulares nos rins. Essas células são do tipo epitelial e altamente especializadas. Os hepatócitos sintetizam uma pequena quantidade de EPO. O estímulo fundamental para a produção de EPO é a disponibilidade de O2 para as necessidades metabólicas dos tecidos. O fator induzível por hipoxia (HIF)-1α representa um elemento fundamental na regulação do gene da EPO. Na presença de O2, o HIF-1α é hidroxilado em uma prolina-chave, que possibilita a ubiquitinação e degradação do HIF-1α por meio da via do proteassoma. Caso o O2 se torne um fator limitante, essa etapa de hidroxilação crítica não ocorre, permitindo ao HIF-1α unir-se a outras proteínas, ser transportado até o núcleo e suprarregular o gene da EPO, entre outros. Um aporte deficiente de O2 para os rins pode resultar de uma diminuição da massa eritrocitária (anemia), da ligação deficiente do O2 à molécula de hemoglobina ou de hemoglobina mutante de alta afinidade pelo O2 (hipoxemia) ou, raramente, do fluxo sanguíneo deficiente para os rins (estenose da artéria renal). A EPO regula a produção diária dos eritrócitos, e os níveis do hormônio podem ser medidos no plasma por meio de imunoensaios sensíveis – o nível normal de EPO é de 10 a 25 U/L. Quando a concentração de hemoglobina cai abaixo de 100 a 120 g/L (10-12 g/dL), os níveis plasmáticos de EPO aumentam proporcionalmente à gravidade da anemia FIGURA 59-2 Níveis de eritropoietina (EPO) na resposta à anemia. Quando o nível de hemoglobina cai para 120 g/L (12 g/dL), os níveis plasmáticos de eritropoietina aumentam logaritmicamente. Na presença de doença renal ou inflamação crônica, os níveis de EPO geralmente ficam mais baixos do que o esperado para o grau de anemia. À medida que o indivíduo envelhece, o nível de EPO necessário para sustentar níveis normais de hemoglobina parece aumentar. Na circulação, a EPO tem meia-vida de depuração de 6 a 9 horas e atua mediante sua ligação a receptores específicos na superfície dos precursores eritroides medulares induzindo sua proliferação e maturação. Sob o estímulo da EPO, a produção de eritrócitos pode aumentar 4 a 5 vezes em um período de 1-2 semanas, porém apenas na presença de nutrientes adequados, particularmente o ferro. Por conseguinte, a capacidade funcional do éritron exige uma produção renal normal de EPO, medula eritroide funcionante e um suprimento adequado de substratos para a síntese de hemoglobina. A ocorrência de um defeito em qualquer um desses componentes-chave pode acarretar anemia. Em geral, a anemia é reconhecida no laboratório quando os níveis de hemoglobina ou o hematócrito do paciente estão reduzidos abaixo de um valor esperado (faixa normal). A probabilidade e intensidade da anemia são definidas com base no desvio dos níveis de hemoglobina/hematócrito do paciente dos valores esperados para os indivíduos normais da mesma idade e sexo. No adulto, a concentração de hemoglobina exibe uma distribuição gaussiana. O valor médio do hematócrito para homens adultos é de 47% (desvio-padrão de ±7), enquanto nas mulheres adultas, é de 42% (±5). Qualquer valor isolado do hematócrito ou da hemoglobina está associado a uma probabilidade de anemia. Por conseguinte, um hematócrito < 39% em um homem adulto ou < 35% em uma mulher adulta tem probabilidade de apenas cerca de 25% de ser normal. O hematócrito tem menos utilidade do que os níveis de hemoglobina na avaliação da anemia, visto que ele é calculado, em lugar de ser medido diretamente. Os valores baixos suspeitos da hemoglobina ou do hematócrito serão interpretados com mais facilidade se valores anteriores do mesmo paciente forem conhecidos para comparação. A Organização Mundial da Saúde (OMS) define a anemia como um nível de hemoglobina < 130 g/L (13 g/dL) nos homens e < 120 g/L (12 g/dL) nas mulheres. Hematocrito: Hematócrito é a percentagem de volume ocupada pelos glóbulos vermelhos ou hemácias no volume total de sangue. Os elementos essenciais da eritropoiese – produção de EPO, disponibilidade de ferro, capacidade de proliferação da medula óssea e maturação efetiva dos precursores eritroides – são utilizados para a classificação inicial da anemia (ver adiante). OBJETIVO 1 - ANEMIA MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS DA ANEMIA Sinais e sintomas A anemia é mais frequentemente diagnosticada em exames laboratoriais de rastreamento. Uma situação menos comum é a presença de anemia avançada com seus sinais e sintomas associados. A anemia aguda é causada por perda de sangue ou hemólise.Se a perda de sangue for leve, ocorrerá aumento da liberação de O2 por meio de alterações na curva de dissociação da O2-hemoglobina mediadas por uma redução do pH ou aumento do CO2 (efeito Bohr). Em caso de perda aguda de sangue, a hipovolemia domina o quadro clínico, e tanto o hematócrito quanto os níveis de hemoglobina não refletem o volume de sangue perdido. Surgem sinais de instabilidade vascular com perdas agudas de 10-15% do volume sanguíneo total. Nesses pacientes, o problema não é a anemia, mas a hipotensão e redução da perfusão dos órgãos. Quando ocorre perda súbita de > 30% do volume sanguíneo, o paciente é incapaz de compensar com os mecanismos habituais de contração vascular e alterações do fluxo sanguíneo regional. Ele prefere permanecer deitado, apresentando hipotensão postural e taquicardia. Se a perda de volume sanguíneo for > 40% (i.e., > 2 L no adulto médio), aparecerão sinais de choque hipovolêmico, como confusão, dispneia, sudorese, hipotensão e taquicardia (Cap. 97). Esses pacientes apresentam déficits significativos na perfusão dos órgãos vitais e necessitam de reposição volêmica imediata. Na hemólise aguda, os sinais e sintomas dependem do mecanismo que leva à destruição dos eritrócitos. A hemólise intravascular com liberação de hemoglobina livre pode estar associada à dor lombar aguda, hemoglobina livre no plasma e na urina, bem como insuficiência renal. Os sintomas associados à anemia mais crônica ou gradual dependem da idade do paciente e do suprimento sanguíneo adequado para órgãos cruciais. Os sintomas associados à anemia moderada incluem fadiga, perda da energia, dispneia e taquicardia (particularmente com esforço físico). Todavia, em virtude dos mecanismos compensatórios intrínsecos que influenciam a curva de dissociação da O2- hemoglobina, o início gradual da anemia – particularmente em pacientes jovens – pode não ser acompanhado de sinais ou sintomas, até que a anemia se torne grave (nível de hemoglobina < 70-80 g/L [7-8 g/dL]). Quando a anemia se desenvolve no decorrer de um período de vários dias ou semanas, o volume sanguíneo total apresenta-se normal ou ligeiramente aumentado, e as alterações no débito cardíaco e no fluxo sanguíneo regional ajudam a compensar a perda global da capacidade de transporte de O2. As alterações na posição da curva de dissociação da O2-hemoglobina são responsáveis por parte da resposta compensatória à anemia. Na anemia crônica, verifica-se uma elevação dos níveis intracelulares de 2,3-difosfoglicerato, deslocando a curva de dissociação para a direita e facilitando a liberação de O2. Esse mecanismo compensatório pode manter um suprimento normal de O2 para os tecidos na presença de um déficit de 20 a 30 g/L (2-3 g/dL) na concentração de hemoglobina. Por fim, uma proteção adicional do transporte de O2 para os órgãos vitais é alcançada pelo desvio de sangue de órgãos relativamente ricos em suprimento sanguíneo, particularmente os rins, o intestino e a pele. Certos distúrbios encontram-se comumente associados à anemia. Os estados inflamatórios crônicos (p. ex., infecção, artrite reumatoide, câncer) estão associados à anemia leve a moderada, enquanto os distúrbios linfoproliferativos, como a leucemia linfocítica crônica e determinadas outras neoplasias das células B, podem causar hemólise autoimune. https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788580556346/epub/OEBPS/Text/chapter97.xhtml OBJETIVO 2/3 AVALIAÇÃO LABORATORIAL A Tabela 59-1 fornece uma lista dos exames utilizados na investigação inicial da anemia. O hemograma completo (HC) de rotina é necessário como parte da avaliação e inclui o nível de hemoglobina, o hematócrito e os índices eritrocitários: o volume corpuscular médio (VCM), expresso em fentolitros, a hemoglobina corpuscular média (HCM), em picogramas por célula, e a concentração de hemoglobina corpuscular média (CHCM) por volume de eritrócitos, em gramas por litro (Sistema Internacional). O HCM é o índice menos útil; ele tende a acompanhar o VCM. Os índices eritrocitários são calculados como mostra a Tabela 59-2, e as variações normais da hemoglobina e do hematócrito com a idade são apresentadas na Tabela 59-3. Diversos fatores fisiológicos afetam o hemograma, como idade, sexo, gravidez, tabagismo e altitude. Podem-se observar valores normais altos da hemoglobina em homens e mulheres que vivem em grandes altitudes ou que são fumantes inveterados. As elevações da hemoglobina em decorrência do tabagismo refletem uma compensação normal devido ao deslocamento do O2 pelo CO na ligação à hemoglobina. Outras informações importantes são obtidas com a contagem dos reticulócitos e as determinações do suprimento de ferro, incluindo o nível de ferro sérico, a capacidade total de ligação ao ferro (TIBC; medida indireta do nível de transferrina) e a ferritina sérica. Alterações acentuadas nos índices eritrocitários geralmente refletem distúrbios da maturação ou deficiência de ferro. Uma cuidadosa avaliação do esfregaço de sangue periférico é importante, e os laboratórios clínicos frequentemente fornecem uma descrição da morfologia dos eritrócitos e leucócitos, contagem diferencial e contagem plaquetária. Em pacientes com anemia grave e anormalidades na morfologia dos eritrócitos e/ou contagens baixas dos reticulócitos, o aspirado ou a biópsia de medula óssea podem ajudar a estabelecer o diagnóstico. Outros testes valiosos no diagnóstico de anemias específicas são discutidos nos capítulos que tratam de cada doença. HERITROCITO = HEMACIA Os componentes do HC também ajudam na classificação da anemia. A microcitose reflete-se por um VCM inferior ao normal (< 80), enquanto valores elevados (> 100) indicam macrocitose. A CHCM reflete defeitos na síntese da hemoglobina (hipocromia). Os contadores celulares automáticos descrevem o índice de anisocitose (RDW). O VCM (que representa o pico da curva de distribuição) não é sensível ao aparecimento de pequenas populações de macrócitos ou micrócitos. Um técnico de laboratório experiente é capaz de identificar pequenas populações de células grandes ou pequenas, ou de células hipocrômicas antes do aparecimento de alteração nos índices eritrocitários. Esfregaço de sangue periférico O esfregaço de sangue periférico fornece informações importantes sobre defeitos na produção dos eritrócitos (Cap. 58). Como complemento dos índices eritrocitários, o esfregaço de sangue periférico também revela a presença de variações no tamanho (anisocitose) e na forma (poiquilocitose) das células. Em geral, o grau de anisocitose correlaciona-se com aumento no RDW ou na faixa de tamanho das células. A poiquilocitose sugere um defeito na maturação dos precursores eritroides na medula óssea ou a ocorrência de fragmentação dos eritrócitos circulantes. O esfregaço de sangue periférico também pode revelar a existência de policromasia – eritrócitos ligeiramente maiores do que o normal e que exibem uma cor azul-acinzentada à coloração de Wright- Giemsa. Essas células consistem em reticulócitos liberados prematuramente da medula óssea, e a sua cor revela a presença de quantidades residuais de RNA ribossômico. Essas células aparecem na circulação em resposta à estimulação da EPO ou a alguma lesão estrutural da medula óssea (fibrose, infiltração medular por células malignas, etc.), resultando em sua liberação desordenada pela medula. O aparecimento de eritrócitos nucleados, corpúsculos de Howell-Jolly, células em alvo, células falciformes e outras anormalidades pode fornecer indícios sobre distúrbios específicos . https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788580556346/epub/OEBPS/Text/chapter59.xhtml#tab59-1 https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788580556346/epub/OEBPS/Text/chapter59.xhtml#tab59-2 https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788580556346/epub/OEBPS/Text/chapter59.xhtml#tab59-3 https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788580556346/epub/OEBPS/Text/chapter58.xhtmlReticulócitos são hemácias imaturas. São produzidos pela medula óssea quando as células tronco se diferenciam para formar hemácias. Na classificação inicial da anemia, a contagem de reticulócitos observada é comparada com a resposta esperada dessas células. Em geral, se as respostas da EPO e da medula eritroide à anemia moderada (hemoglobina < 100 g/L [10 g/dL]) estiverem intactas, a taxa de produção dos eritrócitos aumentará 2 a 3 vezes o normal dentro de 10 dias após o início da anemia. Na presença de anemia estabelecida, uma resposta dos reticulócitos inferior a 2 a 3 vezes o normal indica uma resposta inadequada da medula óssea. DEFINIÇÃO E CLASSIFICAÇÃO DA ANEMIA Classificação inicial da anemia A classificação funcional da anemia tem três categorias principais: (1) defeitos na produção medular (hipoproliferação), (2) defeitos na maturação dos eritrócitos (eritropoiese ineficaz) e (3) diminuição da sobrevida dos eritrócitos (perda de sangue/hemólise). Essa classificação é apresentada na Figura 59- 17. Tipicamente, a anemia hipoproliferativa é observada em associação a um baixo índice reticulocítico, juntamente com pouca ou nenhuma alteração na morfologia dos eritrócitos (anemia normocítica normocrômica). Os distúrbios da maturação geralmente exibem um aumento discreto a moderado do índice reticulocítico, acompanhado de índices eritrocitários macrocíticos ou microcíticos. O aumento da destruição dos eritrócitos em consequência de hemólise resulta na elevação de pelo menos 3 vezes o normal do índice reticulocítico, contanto que haja ferro suficiente. Em geral, a anemia por sangramento não resulta em índices de produção maiores que 2,0 a 2,5 vezes o normal, devido às limitações à expansão da medula eritroide pela disponibilidade do ferro . Anemias hipoproliferativas Pelo menos 75% dos casos de anemia são de natureza hipoproliferativa. A anemia hipoproliferativa reflete insuficiência medular absoluta ou relativa, em que a medula eritroide não prolifera apropriadamente para o grau de anemia. A maioria das anemias hipoproliferativas é causada por deficiência leve a moderada de ferro ou inflamação. A anemia hipoproliferativa pode resultar de dano à medula óssea, deficiência de ferro ou estimulação inadequada pela EPO. A última pode refletir a ocorrência de disfunção renal, supressão da síntese da EPO por citocinas https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788580556346/epub/OEBPS/Text/chapter59.xhtml#fig59-17 https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788580556346/epub/OEBPS/Text/chapter59.xhtml#fig59-17 inflamatórias, como a interleucina 1, ou necessidade tecidual reduzida de O2 em consequência de doença metabólica, como o hipotireoidismo. Apenas em certas ocasiões é que a medula óssea se mostra incapaz de produzir eritrócitos em uma taxa normal, e essa situação é mais prevalente em pacientes com insuficiência renal. Com diabetes melito ou mieloma, a deficiência de EPO pode ser mais acentuada do que seria esperado pelo grau de insuficiência renal. Em geral, as anemias hipoproliferativas caracterizam-se pela existência de eritrócitos normocíticos e normocrômicos, embora possam ser observadas células microcíticas e hipocrômicas com deficiência leve de ferro ou doença inflamatória crônica de longa duração. Os testes laboratoriais essenciais para distinguir as várias formas de anemia hipoproliferativa incluem os níveis séricos de ferro e a capacidade de ligação ao ferro, a avaliação das funções renal e da tireoide, a biópsia ou o aspirado de medula óssea para detectar a presença de lesão medular ou doença infiltrativa, e a ferritina sérica para a avaliação das reservas de ferro. A coloração da medula óssea para ferro irá determinar o padrão de distribuição de ferro. Os pacientes com anemia de inflamação aguda ou crônica exibem um padrão distinto de ferro sérico (baixos valores), TIBC (normal ou baixa), porcentagem de saturação da transferrina (baixa) e ferritina sérica (normal ou elevada). Essas alterações nos valores de ferro surgem devido à hepcidina, o hormônio regulador do ferro, que é produzido pelo fígado e que está aumentado na presença de inflamação. Observa-se um padrão distinto de resultados na deficiência de ferro leve a moderada (baixos níveis séricos de ferro, TIBC elevada, baixa porcentagem de saturação da transferrina e níveis séricos baixos de ferritina) A lesão da medula óssea por fármacos, a presença de doença infiltrativa, como leucemia ou linfoma, ou a aplasia medular são diagnosticadas com base na morfologia das células no sangue periférico e na medula óssea. Em caso de doença infiltrativa ou fibrose, é necessária uma biópsia da medula óssea. Distúrbio de maturação A presença de anemia com índice reticulocítico inapropriadamente baixo, macro ou microcitose no esfregaço e índices eritrocitários anormais sugere um distúrbio de maturação. Os distúrbios de maturação dividem-se em duas categorias: defeitos da maturação nuclear, associados à macrocitose, e defeitos da maturação citoplasmática, associados à microcitose e hipocromia, habitualmente em decorrência de defeitos na síntese da hemoglobina. O índice reticulocítico inapropriadamente baixo reflete a eritropoiese ineficaz que ocorre em consequência da destruição dos eritroblastos em desenvolvimento no interior da medula óssea. O exame da medula óssea revela hiperplasia eritroide. Os defeitos da maturação nuclear resultam de deficiência de vitamina B12 ou de ácido fólico, lesão por fármacos ou mielodisplasia. Os fármacos que interferem na síntese do DNA celular, como o metotrexato ou os agentes alquilantes, podem provocar um defeito na maturação nuclear. O álcool isoladamente também é capaz de produzir macrocitose ou grau variável de anemia; contudo essa situação geralmente está associada à deficiência de ácido fólico. As medidas laboratoriais do ácido fólico e da vitamina B12 são fundamentais não apenas para identificar a deficiência da vitamina específica, como também pelo fato de refletirem diferentes mecanismos patogênicos. Os defeitos da maturação citoplasmática resultam da deficiência grave de ferro ou de anormalidades na síntese da globina ou do heme. A deficiência de ferro ocupa uma posição incomum na classificação das anemias. Se a anemia ferropriva for leve a moderada, a proliferação medular eritroide é reduzida, e a anemia é então classificada como hipoproliferativa. Entretanto, se a anemia for grave e prolongada, a medula eritroide se tornará hiperplásica apesar do suprimento inadequado de ferro, sendo a anemia classificada como causada por eritropoiese ineficaz com defeito da maturação citoplasmática. Em ambos os casos, um índice reticulocítico inapropriadamente baixo, a microcitose e a observação de um padrão clássico nos valores do ferro tornam o diagnóstico evidente e permitem diferenciar facilmente a deficiência de ferro de outros defeitos da maturação citoplasmática, como as talassemias. Os defeitos na síntese do heme, diferentemente da síntese da globina, são menos comuns e podem ser adquiridos ou hereditários. Em geral, as anormalidades adquiridas são associadas à mielodisplasia, podem resultar em anemia macrocítica ou microcítica e, com frequência, estão associadas a sobrecarga mitocondrial de ferro. Nesses casos, o ferro é retido pelas mitocôndrias das células eritroides em desenvolvimento, porém não incorporado ao heme. As mitocôndrias incrustadas com ferro circundam o núcleo da célula eritroide, formando um anel. Com base no achado distinto dos chamados sideroblastos em anel na coloração para ferro medular, estabelece-se o diagnóstico de anemia sideroblástica – refletindo quase sempre mielodisplasia. Novamente, os exames dos parâmetros de ferro são úteis no diagnóstico diferencial desses pacientes. Perda de sangue/anemia hemolítica Diferentemente das anemias associadas a um índice reticulocítico inapropriadamente baixo, a hemólise estáassociada a índices de produção de eritrócitos ≥ 2,5 vezes o normal. A eritropoiese estimulada reflete-se no esfregaço periférico pelo aparecimento de número aumentado de macrócitos policromatófilos. Raramente, será indicado o exame da medula óssea se houver um aumento apropriado no índice reticulocítico. Os índices eritrocitários são geralmente normocíticos ou ligeiramente macrocíticos, refletindo o aumento do número de reticulócitos. A perda aguda de sangue não está associada a aumento do índice reticulocítico, devido ao tempo necessário para aumentar a produção de EPO e, subsequentemente, a proliferação medular (Cap. 97). A perda subaguda de sangue pode estar associada à reticulocitose moderada. A anemia da perda sanguínea crônica manifesta-se mais frequentemente na forma de deficiência de ferro do que com um quadro de produção aumentada de eritrócitos. A avaliação da anemia por perda de sangue não costuma ser difícil. A maioria dos problemas surge quando o paciente apresenta aumento no índice de produção dos eritrócitos em decorrência de um episódio de perda aguda de sangue que não foi reconhecido. A causa da anemia e do aumento na produção de eritrócitos pode não ser óbvia. A confirmação de um estado de recuperação pode exigir observação durante um período de 2 a 3 semanas, quando a concentração de hemoglobina deverá aumentar, com queda no índice reticulocítico. A doença hemolítica, embora dramática, está entre as formas menos comuns de anemia. A capacidade de manter um elevado índice reticulocítico reflete a capacidade da medula eritroide de compensar a hemólise e, no caso da hemólise extravascular, a reciclagem eficiente do ferro dos eritrócitos destruídos para sustentar a produção de eritrócitos. Na hemólise intravascular, como a hemoglobinúria paroxística noturna, a perda de ferro pode limitar a resposta da medula. O nível de resposta depende da gravidade da anemia e da natureza da doença subjacente. As hemoglobinopatias, como a anemia falciforme e as talassemias, exibem um quadro misto. O índice reticulocítico pode estar elevado, porém é inapropriadamente baixo para o grau de hiperplasia eritroide medular. As anemias hemolíticas manifestam-se de diferentes maneiras. Algumas surgem subitamente como episódio agudo e autolimitado de hemólise intra ou extravascular, um padrão de apresentação frequentemente observado em pacientes com hemólise autoimune ou com defeitos hereditários da via de Embden-Meyerhof ou a da glutationa redutase. Os pacientes com distúrbios hereditários da hemoglobina ou da membrana dos eritrócitos geralmente apresentam história clínica típica do processo mórbido desde a infância. Os pacientes com doença hemolítica crônica, como a esferocitose hereditária, podem não apresentar anemia, exibindo complicações pelo aumento prolongado da destruição dos eritrócitos, como cálculos biliares sintomáticos ou esplenomegalia. Os pacientes com hemólise crônica também são suscetíveis a crises aplásicas se um processo infeccioso interromper a produção de eritrócitos. O diagnóstico diferencial de um episódio agudo ou crônico de hemólise exige cuidadosa integração entre a história familiar, o padrão de apresentação clínica e – se a doença for congênita ou adquirida – um exame cuidadoso do esfregaço de sangue periférico. O diagnóstico preciso pode requerer exames laboratoriais especializados adicionais, como a eletroforese da hemoglobina ou rastreamento das enzimas eritrocitárias. Os defeitos adquiridos da sobrevida dos eritrócitos com frequência são mediados imunologicamente e exigem um teste da antiglobulina direto https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788580556346/epub/OEBPS/Text/chapter97.xhtml ou indireto, ou título das crioaglutininas para detectar a presença de anticorpos hemolíticos ou de destruição dos eritrócitos mediada pelo complemento. TRATAMENTO Um princípio importante é iniciar o tratamento da anemia leve a moderada só depois do estabelecimento de um diagnóstico específico. Raramente, em uma situação aguda, a anemia pode ser grave a ponto de exigir transfusão de hemácias antes do estabelecimento do diagnóstico. Independentemente de a anemia ser de início agudo ou gradual, a escolha do tratamento apropriado é determinada pela(s) causa(s) documentada(s) da anemia. Com frequência, a etiologia da anemia é multifatorial. Assim, por exemplo, um paciente com artrite reumatoide grave que utilizou anti- inflamatórios pode apresentar anemia hipoproliferativa associada à inflamação crônica, bem como perda crônica de sangue devido à ocorrência de hemorragia digestiva intermitente. Em todas as circunstâncias, é importante avaliar por completo o estado do paciente em relação ao ferro antes e no decorrer do tratamento de qualquer anemia. A transfusão é discutida no Capítulo 109; o tratamento com ferro é discutido no Capítulo 93; o tratamento da anemia megaloblástica é discutido no Capítulo 95; o tratamento de outras entidades é discutido em seus respectivos capítulos (anemia falciforme, Capítulo 94; anemia hemolítica, Capítulo 96; anemia aplásica e mielodisplasia, Capítulo 98). As opções terapêuticas para o tratamento das anemias aumentaram notavelmente nos últimos 30 anos. A terapia com hemocomponentes está disponível e é segura. A EPO recombinante como adjuvante do tratamento da anemia transformou a vida dos pacientes com insuficiência renal crônica submetidos à diálise e reduziu as necessidades de transfusão dos pacientes anêmicos portadores de câncer que estão recebendo quimioterapia. Por fim, os pacientes com distúrbios hereditários da síntese de globina ou mutações no gene da globina, como a anemia falciforme, poderão ser beneficiados com a introdução bem-sucedida da terapia gênica. SANAR CLASSIFICAÇÃO MORFOLÓGICA Essa classificação é utilizada, na prática clínica, associada com a classificação fisiopatológica. Se baseia nos valores do VCM, porém não esclarece a causa da anemia, mas sim o aspecto morfológico dos eritrócitos pre-sentes na circulação. Microcíticas (VCM < 80fl): Diminuição da Hb dentro do eritrócito, o que torna as hemácias hipocrômicas e microcíticas. Geralmente ocorre por diminuição da síntese do grupo heme por deficiência de Ferro. Também ocorre nas talassemias (redução da síntese de globina), nas anemias sideroblásticas (acúmulo de Fe nas mitocôndrias), hemoglobinopatia C (mutação no gene da cadeia globina beta). Macrocíticas (VCM > 100 fl): Hemácias de grande volume e, geralmente, hipercrômicas. Não necessariamente indica anemia. Causada muitas vezes pelo consumo de álcool, quimioterapia ou anemia perniciosa. São divididas em megaloblásticas, decorrentes de deficiência de vit. B12 e/ou ácido fólico, e não megaloblásticas, podendo ser decorrente de reticulocitose ou reticulocitopenia associada à hipotireoidismo, hepatopatia e aplasia de série vermelha. Normocíticas (VCM 80-100 fl): Também são normocrômicas. Corresponde a maioria das anemias de doenças crônicas (que, eventualmente, podem ser microcíticas). Se tiver uma resposta medular inadequada, com reticulócitos baixos na presença de anemia, existe uma doença de base que afeta medula óssea, direta ou indiretamente, porque o normal é esperar por aumento dos reticulócitos, caso a medula esteja funcionando corretamente. Assim, pesquisar por doenças sistêmicas (IRC, doenças da tireoide, hepatopatias). Caso reticulopenia venha acompanhada de leucopenia e plaquetopenia, deve-se suspeitar de doença da medula óssea (aplasia ou infiltração medular). Solicitar mielografia e biópsia de medula. https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788580556346/epub/OEBPS/Text/chapter109.xhtml https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788580556346/epub/OEBPS/Text/chapter93.xhtml https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788580556346/epub/OEBPS/Text/chapter95.xhtml https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788580556346/epub/OEBPS/Text/chapter94.xhtml https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788580556346/epub/OEBPS/Text/chapter96.xhtmlhttps://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788580556346/epub/OEBPS/Text/chapter98.xhtml SE LIGA! POR QUE A RETICULOCITOSE PODE LEVAR A GRANDES MACROCITOSES OU PODE SER NORMOCÍTICA? Porque os reticulócitos são maiores do que as hemácias maduras, mas isso só vai alterar o valor do VCM se a quantidade de reticulócitos no sangue periférico for suficiente para isso. A reticulocitose é como se fosse o mecanismo de compensação do corpo devido a hemólise. A reticulocitose é intensa em anemia hemolítica autoimune. OBJETIVO 4 – DIAG. DIFERENCIAL DAS ANEMIAS. Anemias por deficiência da produção de eritrócitos. Anemia ferropriva Definida como o “estado mais avançado da deficiência de ferro”. A deficiência de ferro instala-se por mecanismos diversos: (1) aumento do consumo, (2) excesso de perda (hemorragias) ou (3) má absorção. Quando o organismo está em balanço negativo de ferro o primeiro evento é a depleção dos estoques de ferro para a produção de hemoglobina. O intestino aumenta a absorção de ferro antes mesmo do desenvolvimento da anemia. A ferritina sérica já se encontra reduzida. A eritropoese nesses indivíduos resulta em células com conteúdo reduzido de hemoglobina, tornando-a hipocrômica e microcítica (observado no esfregaço sanguíneo) e por redução dos índices hematimétricos (VCM < 80 fL e CHCM < 32 g/dL). Além disso, as dosagens de ferro sérico e transferrina saturada de ferro são baixas. A contagem de reticulócitos também é reduzida. A observação do RDW é um importante no diagnóstico diferencial da anemia ferropriva com talassemias. Na anemia ferropriva o RDW está aumentado com os eritroblastos medulares picnóticos e irregulares. Além das manifestações comuns de anemia, na ferropenia podem surgir sintomas menos típicos como glossite atrófica (língua sem papilas gus- ANEMIAS 23 tativas), perversão do apetite, geofagia ou pica (vontade de comer terra e barro), disfagia cervical (síndrome de Plummer-Vinson, que ocorrem mais comumente em mulheres, mais idosas, onde há uma formação de uma membrana entre hipofaringe e o esôfago), coiloníquia, estomatite angular, amenorreia, cabelos finos e quebradiços e diminuição da libido. MEDCURSO A quantidade corporal total de ferro está em torno de 50 mg/kg no homem e 35 mg/kg na mulher. A maior parte (cerca de 70-75%) é encontrada nas hemácias, ligada ao heme da hemoglobina. Uma parcela menor (25%) pode ser encontrada nas proteínas ferritina e hemossiderina, que formam os “compartimentos armazenadores de ferro”, especialmente nas células da mucosa intestinal, e nos macrófagos do baço e medula óssea. O restante (cerca de 2%) fica circulando no plasma, ligado à transferrina sérica. Todas as três (ferritina, hemossiderina e transferrina) são proteínas capazes de ligar o ferro, podendo ser encontradas tanto no plasma quanto no meio intracelular. A apoferritina é uma proteína sintetizada pelo fígado (um “reagente de fase aguda”). Possui uma estrutura geométrica esférica, delimitando uma região central, capaz de armazenar os átomos de ferro. Quando ligada ao ferro, ganha o nome de ferritina. Essa proteína é a principal responsável pelo armazenamento de ferro no organismo: “a ferritina tem a capacidade de armazenar grandes quantidades de ferro e, ainda assim, de manter uma reserva para mais estoque – da mesma forma que armazena, é também capaz de mobilizar rapidamente grandes quantidades desse metal, quando necessário”. A “ferritina” medida no plasma, na verdade, é a apoferritina (molécula sem ferro). Contudo, “ferritina sérica” é o termo mais utilizado. A concentração sérica de ferritina é diretamente proporcional às reservas de ferro no organismo, isto é, quanto maior o acúmulo de ferro, maior será o valor da ferritina sérica. Os níveis normais de ferritina no plasma variam de 20 a 200 ng/ml, sendo a média no homem de 125 ng/ml e, na mulher, de 55 ng/ml. De uma forma geral, cada ng/ml de ferritina sérica corresponde a 10 mg de ferro armazenado (uma ferritina de 100 ng/ml reflete 1.000 mg de ferro nas reservas corporais.). A hemossiderina é um derivado da ferritina após proteólise por enzimas lisossomais. Funciona também como uma proteína “armazenadora de ferro”, porém de liberação muito mais lenta. A transferrina (ou siderofilina) é uma proteína sintetizada pelo fígado responsável pelo transporte do ferro no plasma, agindo como um link entre os principais depósitos teciduais do metal e o setor eritroide da medula óssea. O duodeno e o jejuno proximal são as regiões intestinais responsáveis pela absorção de todo o ferro alimentar. Em pessoas normais, e mesmo na anemia ferropriva, o percentual de ferro absorvido pela mucosa duodenojejunal não ultrapassa 50% do ferro ingerido (na prática, varia entre 10-30%). Esse percentual sofre grande influência: (1) do tipo de alimento que contém ferro; (2) de outros alimentos que podem inibir ou estimular a absorção de ferro; (3) das necessidades do organismo (por exemplo: no estado ferropênico, o percentual de ferro absorvido aumenta, aproximando-se a 50%). Uma dieta normal ocidental contém entre 5-15 mg de ferro por dia. Pessoas de baixa renda costumam consumir quantidades menores. Existem duas formas de ferro proveniente da dieta: (1) forma heme, proveniente de alimentos de origem animal; (2) forma não heme, derivada de alimentos de origem vegetal. Na primeira forma, é a própria molécula de heme que é absorvida pela mucosa intestinal; na forma não heme, é absorvido diretamente o íon ferroso (Fe+2). O heme é liberado das proteínas animais no estômago por ação da pepsina, sendo em seguida absorvido no duodeno. A forma heme é melhor absorvida do que a forma não heme, além de não sofrer nenhuma influência de outras substâncias alimentares. A absorção do ferro não heme é altamente influenciável pelo pH gástrico e pela composição dos alimentos. O pH ácido do estômago promove a conversão do íon férrico (Fe+3) em íon ferroso (Fe+2), aumentando a sua absorção. O ácido ascórbico (vitamina C), por ser um ácido, é um importante agente estimulante da absorção dos sais de ferro. A proteína derivada da carne, por mecanismos desconhecidos, também aumenta a capacidade de absorção dos sais de ferro. Enquanto isso, uma série de substâncias alimentares (especialmente as derivadas de cereais) inibe a absorção devido às suas propriedades quelantes. O ferro dietético, absorvido pelas células da mucosa intestinal, tem dois destinos básicos: (1) ser incorporado pela ferritina presente nas próprias células da mucosa; e (2) ser transportado através da célula intestinal para um transportador na membrana basolateral – a ferroportina – ligando-se, depois, à transferrina plasmática. O ferro absorvido pelas células da mucosa intestinal só será repassado para a transferrina (e daí para todo o organismo) se as necessidades corpóreas desse metal assim determinarem. Caso contrário, ele permanece no interior da célula intestinal, sem ser de fato absorvido, e o processo normal de descamação e renovação celular se encarrega de eliminá-lo. Uma das principais vias de eliminação corpórea de ferro é a via fecal. Mas como o enterócito “sabe” se deve repassar o ferro para a transferrina ou retê-lo para eliminação? A hepcidina, um hormônio sintetizado no fígado, desempenha um papel central na regulação do metabolismo do ferro: ela tem a capacidade de se ligar à ferroportina, inibindo o transporte de ferro pela membrana basolateral do enterócito em direção ao plasma. A hipóxia inibe a sua síntese, ao passo que o ferro e citocinas inflamatórias estimulam sua produção. Pacientes com adenoma hepático também fazem hipersecreção de hepcidina, que resulta em uma anemia refratária à ferroterapia. Das células da mucosa intestinal, o ferro ganha a corrente sanguínea e se distribui para diversos tecidos do corpo, em especial a medula óssea e o fígado. Mas ele não circula entre essescompartimentosem sua forma livre (que é tóxica) – praticamente todo ferro plasmático circula ligado a uma glicoproteína especial: a transferrina (ou siderofilina), que é sintetizada no fígado e tem a capacidade de capturar e transportar duas moléculas de ferro. É através dela que o ferro chega aos precursores eritroides da medula óssea, que possuem grande quantidade de receptores de transferrina em sua membrana. A transferrina plasmática, que incorporou o ferro da mucosa intestinal e o está transportando pelo sangue, atinge receptores nas membranas dos eritroblastos. Nesse processo, ocorre internalização do complexo transferrina-ferro-receptor. O ferro se dissocia do complexo, e a transferrina é exocitada da célula para ser novamente aproveitada, retornando ao sangue. Nesse momento, o ferro incorporado pelas células medulares tem dois destinos básicos: (1) ser armazenado pela ferritina dentro das próprias células da medula e; (2) ser captado pelas mitocôndrias dessas células e introduzido numa protoporfirina, para formar o heme e tomar parte na composição de uma molécula de hemoglobina. Dessa maneira, a medula óssea também é, à semelhança da mucosa intestinal, um importante compartimento “armazenador” de ferro. O ferro, então, passa a fazer parte da estrutura da hemoglobina, circulando junto com as hemácias por cerca de 120 dias. Quando as hemácias se tornam senis, são fagocitadas por macrófagos nos sinusoides do baço. Esses fagócitos rompem a membrana das hemácias, e as moléculas de hemoglobina são dissociadas em globina e heme. O heme recebe a ação da heme-oxigenase, liberando ferro e biliverdina. O ferro reciclado dentro dos macrófagos esplênicos tem dois destinos básicos: (1) ser estocado pela ferritina e hemossiderina dos próprios macrófagos; e (2) ser liberado no plasma, se ligando à transferrina e sendo novamente captado pelos eritroblastos da medula óssea. Aqui, mais uma vez, a hepcidina interfere no metabolismo do ferro, pois pode inibir a liberação de ferro dos macrófagos para a transferrina plasmática, a exemplo do que ocorre nos enterócitos. Assim, o baço também é, à semelhança da mucosa intestinal e da medula óssea, um importante compartimento “armazenador” de ferro. O organismo humano não é capaz de eliminar ativamente o ferro já estocado em seu interior! Anemia megaloblástica A causa mais comum desse tipo de anemia é a carência de folato e/ou cianocobalamina (vit. B12), sendo mais comum a deficiência de folato. O quadro clínico desses pacientes varia desde assintomáticos à sintomas clássicos de anemia associados a anorexia, emagrecimento, alterações do hábito intestinal (diarreia ou constipação), glossite, queilite angular, púrpuras, icterícia leve e hiperpigmentação cutânea. Os quadros severos de deficiência de anemia megaloblástica podem apresentar ainda polineuropatia periférica, com parestesia nos membros inferiores e das mãos, alteração de marcha e alterações esfincterianas. Sintomas do sistema nervoso central, como alucinações, não são comuns, mas só são observadas associadas a deficiência de B12. Anemia de doenças crônicas É a anemia mais comum em pacientes com doença inflamatória crônica ou nos portadores de neoplasia. Comumente normo/normo. Ocorre em doenças sistêmicas de evolução prolongada e é caracterizada pela redução do ferro sérico e da capacidade de ligação do ferro e pela ferritina sérica normal ou aumentada, com presença de estoques de ferro normal (nos macrófagos). A patogênese chave nesse tipo de anemia é a produção de hepcidina pelo fígado, associado a processos infecciosos ou inflamatórios, que impede a absorção de ferro no intestino e aumenta o seu sequestro por macrófagos. Além disso, a hepcidina atua inibindo a liberação de ferro nos seus depósitos (fígado e baço), diminuindo a transferrina e a eritropoetina. HEMOGLOBINOPATIAS São as doenças genéticas mais comuns. Estima-se que 7% da população mundial seja portadora de uma hemoglobinopatia. Consiste, principalmente, em síndromes talassêmicas (α e β) e hemoglobinopatias S, C e E (e suas associações). Talassemias Doença que promove diminuição ou ausência na síntese de cadeias globínicas α e/ou β (α-talassemias e α- talassemias, respectivamente). Os indivíduos homozigóticos para α ou α-talassemias são sintomáticos, enquanto os heterozigotos, em geral, são assintomáticos. Clinicamente são classificadas em major, intermediária ou minor. A talassemia major é grave e necessita de transfusões. A intermediária apresenta anemia, com ou sem esplenomegalia, enquanto minor (ou traço) é assimtomática. Nas α-talassemias ocorre diminuição de cadeias β e excesso de cadeias α. As cadeias de α-globina são instáveis e precipitam no interior dos eritroblastos, o que interfere na maturação. Essa alteração leva à destruição intramedular dos precursores eritrocíticos (eritropoese ineficaz). A degradação dos componentes da cadeia globínica leva à alteração da membrana e à alteração da deformidade celular, o que contribui para o processo hemolítico. A betatalassemia pode ser dividida em dois tipos: (1) β0- talassemias: há ausência total de cadeias beta (ou totalmente não funcionantes); e (2) β1- talassemias: há diminuição da síntese de cadeias beta. • Betatalassemia major ou anemia de Cooley: Geralmente homozigotos β0 β0. Clinicamente, observam- -se palidez acentuada, icterícia, hipodesenvolvimento ponderal e psíquico; hepatoesplenomegalia, alterações ósseas (crânio e face), alterações endócrinas (hipogonadismo), manifestações cardíacas, lesão hepática, hemossiderose (por transfusões repetidas) e colúria. • Alfatalassemia com os quatros genes (α₂ ou β₂) ausentes é incompatível com a vida, ocorrendo hidropsia fetal. • Talassemias por persistência da hemoglobina fetal: A produção de cadeias γ persiste no adulto, formando-se a HbF (α2 γ2). Há apresentações homozigotas e heterozigotas. As primeiras apresentam poliglobulia (a afinidade da HbF pelo oxigênio é maior), enquanto as outras são assintomáticas. Anemia sideroblástica Nesse tipo de anemia ocorre deposição de ferro no interior dos eritroblastos da medula (sideroblastos) decorrente de um defeito na síntese do grupo heme, promovendo uma síntese deficiente de hemoglobina. Essa deposição de ferro ao redor do núcleo da célula forma o que chamamos de sideroblasto “em anel”. O ferro no citoplasma é corado pela reação de Perls. Esse tipo de anemia é hipocrômica e microcítica ou normocrômica, apresentando policromasia. Os achados da medula, como já citados, são os sideroblastos normais e em anel. A anemia sideroblástica pode ser hereditária, adquirida primária (causada pela mielodisplasia por exemplo) e adquirida secundária (causada por doenças como artrite reumatoide, intoxicação por substâncias – álcool, chumbo – e medicamentos como a isoniazida). A hereditária ocorre em indivíduos masculinos, mas é transmitida pelo sexo feminino (ligada ao sexo). OBJETIVO 5 – ANEMIA FALCIFORME INTRODUÇÃO A hemoglobina é fundamental para o transporte normal do oxigênio aos tecidos; também pode ocorrer nos eritrócitos em concentrações tão altas a ponto de alterar a forma, a deformabilidade e a viscosidade dessas células. As hemoglobinopatias são distúrbios que afetam a estrutura, a função ou a produção de hemoglobina. Em geral, essas doenças são hereditárias e sua gravidade varia desde anormalidades laboratoriais assintomáticas até a morte in utero. As diferentes formas podem manifestar-se como eritropoiese ineficaz, anemia hemolítica, eritrocitose, cianose ou complicações vasoclusivas. ESTRUTURA DA HEMOGLOBINA Durante a vida embrionária, fetal e adulta, são produzidas diferentes hemoglobinas (Fig. 94-1). Cada uma consiste em um tetrâmero de cadeias polipeptídicas de globina: um par de cadeias tipo α constituídas por 141 aminoácidos e um par de cadeias tipo β com 146 aminoácidos. A principal hemoglobinado adulto, a HbA, tem a estrutura α2β2. A HbF (α2γ2) predomina durante a maior parte da gestação, e a HbA2 (α2δ2) é uma hemoglobina do adulto de menor importância. As hemoglobinas embrionárias não são consideradas aqui. Cada cadeia de globina engloba um único grupo heme, que consiste em um anel de protoporfirina IX em complexo com um único átomo de ferro no estado ferroso (Fe2+). Cada grupo heme pode se ligar a uma única molécula de oxigênio; por conseguinte, cada molécula de hemoglobina tem a capacidade de transportar até quatro moléculas de oxigênio. Cada cadeia de globina tem uma estrutura secundária altamente helicoidal. Suas estruturas terciárias globulares fazem as superfícies externas serem ricas em aminoácidos polares (hidrofílicos), que aumentam a solubilidade, ao passo que a superfície interna é revestida por grupos apolares, formando uma bolsa hidrofóbica, no interior da qual está inserido o heme. A estrutura quaternária tetramérica da HbA contém dois dímeros αβ. Numerosas interações firmes (i.e., contatos α1β1) mantêm as cadeias α e β juntas. O tetrâmero completo é mantido unido por interfaces (i.e., contatos α1β2) entre a cadeia do tipo α de um dímero e a cadeia não α do outro dímero. O tetrâmero de hemoglobina é altamente solúvel, porém cada cadeia individual de globina é insolúvel. A globina não pareada sofre precipitação, formando inclusões que lesionam a célula e podem desencadear a apoptose. A síntese normal das cadeias de globina é equilibrada, de modo que cada cadeia de globina α ou não α recém-sintetizada apresenta um par disponível para se emparelhar. A solubilidade e a ligação reversível do oxigênio são as propriedades essenciais afetadas nas hemoglobinopatias. Ambas dependem principalmente dos aminoácidos hidrofílicos de superfície, dos aminoácidos hidrofóbicos que revestem a bolsa do heme, de uma histidina essencial na hélice F e dos aminoácidos que formam os pontos de contato α1β1 e α1β2. A ocorrência de mutações nessas regiões estratégicas tende a alterar a afinidade pelo oxigênio ou sua solubilidade. FUNÇÃO DA HEMOGLOBINA Para efetuar o transporte de oxigênio, a hemoglobina deve ligar-se de maneira eficiente ao O2 na pressão parcial de oxigênio (PO2) do alvéolo, retê-lo na circulação e liberá-lo para os tecidos, na PO2 dos leitos capilares teciduais. A aquisição do oxigênio e seu suprimento em uma faixa relativamente estreita de tensões de oxigênio dependem de uma propriedade inerente ao arranjo tetramérico do heme e das subunidades de globina dentro da molécula de hemoglobina, denominada cooperatividade ou interação heme-heme. Em baixas tensões de oxigênio, o tetrâmero de hemoglobina mostra-se totalmente desoxigenado (Fig. 94-2). A ligação ao oxigênio começa lentamente, à medida que aumenta a tensão de O2. Entretanto, tão logo certa quantidade de oxigênio esteja ligada ao tetrâmero, verifica-se um aumento abrupto na inclinação da curva. Assim, as moléculas de hemoglobina que se ligaram ao oxigênio desenvolvem maior afinidade pelo oxigênio, acelerando acentuadamente sua capacidade de se combinar com mais oxigênio. Essa curva de equilíbrio do oxigênio em forma de S (Fig. 94-2), ao longo da qual podem ocorrer quantidades significativas de carga e descarga de oxigênio dentro de uma faixa estreita de tensões de oxigênio, é fisiologicamente mais útil que a curva hiperbólica de alta afinidade dos monômeros individuais. A afinidade pelo oxigênio é modulada por diversos fatores. O efeito Bohr é a capacidade da hemoglobina de liberar mais oxigênio para os tecidos em pH baixo. Surge da ação estabilizadora dos prótons sobre a desoxiemoglobina, que se liga a prótons mais rapidamente que a oxiemoglobina, por ser esta última um ácido mais fraco (Fig. 94-2). Por conseguinte, a hemoglobina tem afinidade mais baixa pelo oxigênio em pH baixo. A principal molécula pequena que altera a afinidade pelo oxigênio nos seres humanos é o 2,3-bisfosfoglicerato (2,3-BPG, anteriormente denominado 2,3-DPG), que diminui a afinidade pelo oxigênio quando ligado à hemoglobina. A HbA tem afinidade razoavelmente https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788580556346/epub/OEBPS/Text/chapter94.xhtml#fig94-1 https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788580556346/epub/OEBPS/Text/chapter94.xhtml#fig94-2 https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788580556346/epub/OEBPS/Text/chapter94.xhtml#fig94-2 https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788580556346/epub/OEBPS/Text/chapter94.xhtml#fig94-2 alta pelo 2,3-BPG. A HbF não se liga ao 2,3-BPG e, por isso, tende a apresentar maior afinidade pelo oxigênio in vivo. A hemoglobina também se liga ao óxido nítrico de modo reversível; essa interação influencia o tônus vascular, porém sua importância clínica não está totalmente elucidada. O transporte adequado de oxigênio depende da estrutura tetramérica das proteínas, do arranjo apropriado dos aminoácidos hidrofílicos e hidrofóbicos e da interação com prótons ou com o 2,3-BPG. CLASSIFICAÇÃO DAS HEMOGLOBINOPATIAS Existem cinco classes principais de hemoglobinopatias (Tab. 94-1). As hemoglobinopatias estruturais ocorrem quando as mutações alteram a sequência dos aminoácidos de uma cadeia da globina, modificando as propriedades fisiológicas das hemoglobinas variantes e causando as anormalidades clínicas típicas. As hemoglobinas variantes de maior relevância clínica sofrem polimerização anormal, como na anemia falciforme, ou exibem alteração de sua solubilidade ou afinidade de ligação pelo oxigênio. As síndromes talassêmicas surgem de mutações que comprometem a produção ou a tradução do mRNA da globina, resultando em biossíntese deficiente das cadeias da globina. As anormalidades clínicas são atribuíveis ao suprimento inadequado de hemoglobina e aos desequilíbrios na produção das cadeias das globinas, ocasionando a destruição prematura dos eritroblastos e eritrócitos. As variantes de hemoglobina talassêmicas combinam características da talassemia (i.e., biossíntese anormal de globinas) e das hemoglobinopatias estruturais (i.e., uma sequência anormal de aminoácidos). A persistência hereditária da hemoglobina fetal (PHHF) caracteriza-se pela síntese dos níveis elevados de hemoglobina fetal na idade adulta. As hemoglobinopatias adquiridas incluem modificações da molécula de hemoglobina por toxinas (p. ex., metemoglobinemia adquirida) e anormalidades clonais da síntese de hemoglobina (p. ex., altos níveis de produção de HbF na pré-leucemia e ocorrência de α-talassemia nos distúrbios mieloproliferativos). HEMOGLOBINAS ESTRUTURALMENTE ANORMAIS SÍNDROMES FALCIFORMES São causadas por uma mutação no gene da β-globina, com modificação do sexto aminoácido, substituindo o ácido glutâmico pela valina. A HbS (α2β2 6 Glu→Val) sofre polimerização reversível quando desoxigenada, formando uma rede gelatinosa de polímeros fibrosos que enrijecem a membrana eritrocitária, aumentam a viscosidade e causam desidratação, em virtude do extravasamento de potássio e influxo de cálcio (Fig. 94-3). Essas alterações também produzem a forma de foice (Fig. 94-4). As células falcêmicas perdem a flexibilidade necessária para atravessar os pequenos capilares. Possuem membranas “viscosas” alteradas, que aderem anormalmente ao endotélio das pequenas vênulas. Essas anormalidades provocam episódios imprevisíveis de vasoclusão microvascular e destruição prematura dos eritrócitos (anemia hemolítica) no fígado e no baço. As células aderentes rígidas causam obstrução dos pequenos capilares e das vênulas, provocando isquemia tecidual, dor aguda e lesão gradual dos órgãos-alvo. Esse componente venoclusivo, em geral, caracteriza a evolução clínica. As manifestações proeminentes consistem em episódios de dor isquêmica (i.e., crises álgicas) e disfunção isquêmica ou infarto franco do baço, do sistema nervoso central (SNC), dos ossos, das articulações, do fígado, dos rins e dos pulmões (Fig. 94-3).FIGURA 94-3 Fisiopatologia da crise falciforme. https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788580556346/epub/OEBPS/Text/chapter94.xhtml#tab94-1 https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788580556346/epub/OEBPS/Text/chapter94.xhtml#fig94-3 https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788580556346/epub/OEBPS/Text/chapter94.xhtml#fig94-4 https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788580556346/epub/OEBPS/Text/chapter94.xhtml#fig94-3 Ocorrem várias síndromes falciformes em consequência da herança da HbS de um dos progenitores e de outra hemoglobinopatia, como β-talassemia ou HbC (α2β2 6 Glu→Lys), do outro progenitor. A doença protótipo, a anemia falciforme, é o estado homozigoto da HbS (Tab. 94-2). Manifestações clínicas da anemia falciforme A maioria dos pacientes com síndromes falcêmicas apresenta anemia hemolítica, com hematócrito de 15 a 30% e reticulocitose significativa. Antigamente, acreditava-se que a anemia exercia efeitos protetores contra a vasoclusão ao reduzir a viscosidade sanguínea. Entretanto, a história natural e os estudos clínicos de terapia farmacológica sugerem que o aumento do hematócrito e a inibição da reticulocitose por feedback podem ser benéficos, mesmo à custa de aumento da viscosidade do sangue. O papel dos reticulócitos aderentes na vasoclusão pode explicar esses efeitos paradoxais. A granulocitose é comum. A contagem dos leucócitos pode flutuar de modo substancial e imprevisível durante e entre episódios álgicos, infecções e outras doenças intercorrentes. Os granulócitos, as plaquetas e as células inflamatórias mononucleares, bem como os mediadores inflamatórios liberados nos locais de vasoclusão, estão sendo cada vez mais reconhecidos como fatores contribuintes essenciais para a iniciação e o agravamento da morbidade associada às crises vasoclusivas. A vasoclusão resulta em múltiplas manifestações. Os episódios intermitentes de vasoclusão em estruturas de tecido conectivo e musculoesqueléticas provocam isquemia, que se manifesta como dor aguda e hipersensibilidade, febre, taquicardia e ansiedade. Esses episódios recorrentes, denominados crises álgicas, constituem a manifestação clínica mais comum. Sua frequência e gravidade variam enormemente. A dor pode surgir em quase qualquer parte do corpo e durar poucas horas até 2 semanas. As crises repetidas que exigem internação (> 3 por ano) estão correlacionadas com redução da sobrevida na idade adulta, sugerindo que esses episódios estejam associados a um acúmulo de lesão crônica dos órgãos-alvo. Os fatores desencadeantes são infecção, febre, exercício excessivo, ansiedade, mudanças abruptas da temperatura, hipoxia ou corantes hipertônicos. Os microinfartos repetidos podem destruir os tecidos que apresentam leitos microvasculares propensos ao afoiçamento. Assim, com frequência, ocorre perda da função esplênica nos primeiros 18 a 36 meses de vida, causando suscetibilidade às infecções, em particular por pneumococos. A obstrução venosa aguda do baço (crise de sequestro esplênico), evento raro no início da infância, pode exigir transfusão de emergência e/ou esplenectomia para impedir a retenção do débito arterial no baço obstruído. A oclusão dos vasos da retina pode provocar hemorragia, neovascularização e descolamentos subsequentes. A necrose papilar renal sempre induz à isostenúria. A necrose renal mais disseminada acarreta insuficiência renal em adultos, constituindo uma causa tardia comum de morte. A isquemia óssea e a articular podem resultar em necrose asséptica, em particular das cabeças do fêmur ou https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788580556346/epub/OEBPS/Text/chapter94.xhtml#tab94-2 úmero, artropatia crônica e suscetibilidade incomum à osteomielite, que pode ser causada por microrganismos como Salmonella, raramente encontrados em outros contextos. A síndrome mão-pé decorre de infartos dolorosos dos dedos e dactilite. O acidente vascular cerebral (AVC) é particularmente comum em crianças; um pequeno subgrupo tende a sofrer episódios repetidos. Ele é menos comum em adultos e, com frequência, é hemorrágico. Uma complicação particularmente dolorosa em homens é o priapismo, devido ao infarto dos tratos venosos de saída do pênis, sendo a impotência permanente uma consequência frequente. As úlceras crônicas de pernas provavelmente surgem por isquemia na circulação distal e infecção secundária. A síndrome torácica aguda constitui uma manifestação distinta, caracterizada por dor torácica, taquipneia, febre, tosse e dessaturação da oxigenação arterial. Pode simular pneumonia, embolia pulmonar, infarto e embolia da medula óssea, isquemia miocárdica ou infarto pulmonar in situ. Acredita-se que a síndrome torácica aguda seja causada por falcização in situ nos pulmões e/ou microêmbolos da medula óssea, produzindo dor e disfunção pulmonar temporária. Com frequência, é difícil, ou mesmo impossível, distinguir a síndrome torácica aguda de outros distúrbios. O infarto pulmonar e a pneumonia são as afecções subjacentes ou concomitantes mais frequentes em pacientes com essa síndrome. Os episódios repetidos de dor torácica aguda estão correlacionados com uma redução da sobrevida. Nos casos agudos, a redução da saturação arterial de oxigênio é especialmente grave, visto que promove o afoiçamento em escala maciça. As crises pulmonares crônicas agudas ou subagudas causam hipertensão pulmonar e cor pulmonale, constituindo uma causa cada vez mais comum de morte à medida que o paciente sobrevive por mais tempo. Um possível papel desempenhado pela HbS plasmática livre na remoção do dióxido de nitrogênio (NO2), elevando, assim, o tônus vascular pulmonar, levou à realização de ensaios clínicos com sildenafila para restaurar os níveis de NO2. Esses estudos foram interrompidos, devido à ocorrência de efeitos adversos. A lesão subaguda e crônica do sistema nervoso central na ausência de AVC franco constitui um fenômeno lamentavelmente comum, que começa no início da infância. As modernas técnicas de exame de imagem funcional demonstraram uma disfunção da circulação, devido a uma provável vasculopatia falciforme do SNC; essas alterações correlacionam-se com uma série de anormalidades cognitivas e comportamentais observadas em crianças e adultos jovens. É importante estar atento para essas alterações frequentemente sutis, visto que elas podem complicar o tratamento clínico ou podem ser interpretadas de maneira incorreta como comportamentos de um “paciente difícil”. As síndromes falciformes são notáveis por sua heterogeneidade clínica. Alguns pacientes permanecem praticamente assintomáticos até a idade adulta ou mesmo no decorrer dela, ao passo que outros sofrem crises repetidas que exigem internação desde o início da infância. Os pacientes com talassemia falciforme e anemia falciforme-HbE tendem a apresentar sintomas semelhantes e ligeiramente mais discretos, talvez devido aos efeitos favoráveis da produção de outras hemoglobinas no eritrócito. A hemoglobinopatia SC, uma das variantes mais comuns da anemia falciforme, com frequência se caracteriza por graus menores de anemia hemolítica e maior tendência ao desenvolvimento de retinopatia, bem como necrose asséptica dos ossos. Entretanto, na maioria dos aspectos, as manifestações clínicas assemelham-se às da anemia falciforme. Na verdade, algumas variantes raras da hemoglobina agravam o fenômeno de afoiçamento. A variabilidade clínica em diferentes pacientes que herdam a mesma mutação causadora de doença (hemoglobina falciforme) fez a anemia falciforme se tornar o foco de esforços para identificar polimorfismos genéticos modificadores em outros genes como possíveis responsáveis pela heterogeneidade. A complexidade dos dados obtidos até o momento diminuiu a expectativa de que a análise ampla de genoma possa produzir perfis individuais capazes de prever a evolução clínica de um paciente. Apesar disso, surgiram vários padrõesinteressantes dessas análises de modificação genética. Por exemplo, os genes que afetam a resposta inflamatória ou a expressão de citocinas parecem candidatos à modificação. Os genes que afetam a regulação da transcrição dos linfócitos podem estar envolvidos. Manifestações clínicas do traço falcêmico O traço falcêmico com frequência é assintomático. A anemia e as crises álgicas são raras. Um sintoma incomum, porém altamente distinto, é a hematúria indolor, que ocorre frequentemente em adolescentes do sexo masculino, talvez em consequência de necrose papilar. A isostenúria é a manifestação mais comum do mesmo processo. Foi relatada descamação das papilas, com obstrução ureteral, assim como casos isolados de falcização maciça ou morte súbita, devido à exposição do indivíduo a grandes altitudes ou extremos de exercício e desidratação. A recomendação é evitar a desidratação ou o estresse físico extremo. Diagnóstico Deve-se suspeitar da presença de síndrome falciforme com base na anemia hemolítica, na morfologia dos eritrócitos (Fig. 94-4) e nos episódios intermitentes de dor isquêmica. O diagnóstico é confirmado por eletroforese da hemoglobina, espectroscopia de massa e testes de falcização, já discutidos. A caracterização minuciosa do exato perfil da hemoglobina do paciente é importante, uma vez que a talassemia falciforme e a doença da hemoglobina SC têm prognósticos ou manifestações clínicas distintos. Em geral, o diagnóstico é estabelecido na infância, mas alguns pacientes, frequentemente com estado heterozigoto composto, só desenvolvem sintomas após o início da puberdade, durante a gravidez ou no início da idade adulta. A determinação do genótipo dos familiares e parceiros potenciais é essencial para o aconselhamento genético. Os detalhes da história da infância estabelecem o prognóstico e a necessidade de terapias agressivas ou experimentais. Os fatores associados ao aumento da morbidade e à redução da sobrevida consistem em mais de três crises por ano que exigem a internação do paciente, neutrofilia crônica, história de sequestro esplênico ou síndrome mão-pé, bem como segundo episódio de síndrome torácica aguda. Os pacientes com história de AVC apresentam maior risco de sofrer episódios repetidos e necessitam de exsanguineotransfusão parcial e de monitoramento particularmente rigoroso, com estimativas do fluxo carotídeo pelo Doppler. Os pacientes com episódios graves ou repetidos de síndrome torácica aguda podem precisar de transfusão pelo resto da vida, com exsanguineotransfusões parciais, se possível. FIGURA 94-4 Anemia falciforme. Os eritrócitos alongados e em forma de crescente, que são vistos nesse esfregaço, representam células circulantes irreversivelmente falcizadas. São também observadas células-alvo e uma hemácia nucleada. TRATAMENTO Síndromes falciformes Os pacientes com síndromes falciformes necessitam de assistência contínua. A familiaridade com o padrão dos sintomas proporciona a melhor defesa contra o uso excessivo do pronto-socorro e de internação e a dependência de narcóticos. Outras medidas preventivas incluem exames regulares com lâmpada de fenda, para monitorar o desenvolvimento de retinopatia, profilaxia apropriada, com antibióticos para os pacientes esplenectomizados durante procedimentos dentários ou outros procedimentos invasivos, e hidratação oral vigorosa durante os períodos de exercício extremo ou sua antecipação, exposição ao calor ou frio, estresse emocional ou infecção. As vacinas contra pneumococos e Haemophilus influenzae são menos eficazes nos indivíduos esplenectomizados. Por conseguinte, os pacientes com anemia falciforme devem ser vacinados no início da vida. O controle das crises álgicas agudas inclui hidratação vigorosa, porém cuidadosa, avaliação completa das causas subjacentes (como infecção) e analgesia agressiva administrada com prescrição permanente e/ou bomba de analgesia controlada pelo paciente (ACP). A morfina (0,1-0,15 mg/kg a cada 3-4 horas) deve ser usada para controlar a dor intensa. A dor óssea também pode responder ao cetorolaco (dose inicial de 30-60 mg; a seguir, 15-30 mg a cada 6-8 horas). A inalação de óxido nitroso pode proporcionar o alívio da dor a curto prazo, mas é preciso ter muita cautela para evitar a hipoxia e a depressão respiratória. O óxido nitroso também aumenta a afinidade pelo O2, reduzindo o transporte de O2 para os tecidos. Seu uso só deve ser efetuado por especialistas. O bloqueio das atividades das moléculas de adesão (p. ex., P-selectina) ou dos mediadores inflamatórios está sendo usado para diminuir a duração das crises e reduzir a dor. Muitas crises podem ser controladas no lar com hidratação e analgesia oral. O uso do pronto-socorro deve ser reservado para os sintomas particularmente graves ou as circunstâncias em que há forte suspeita de outros processos, como infecção. Deve-se administrar oxigênio nasal, quando apropriado, https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788580556346/epub/OEBPS/Text/chapter94.xhtml#fig94-4 para proteger a saturação arterial. A maioria das crises desaparece em 1 a 7 dias. A transfusão sanguínea deve ser reservada para os casos extremos, pois não diminui a duração da crise. Não existem testes definitivos para o diagnóstico da crise álgica aguda. Para um bom controle, é essencial uma abordagem que reconheça o fato de que a maioria dos pacientes que se queixam de sintomas de crise realmente apresenta uma crise ou outro problema clínico importante. A avaliação diagnóstica minuciosa à procura de causas subjacentes é fundamental, embora raramente sejam encontradas. Em adultos, deve-se considerar a possibilidade de necrose asséptica ou artropatia falciforme, em particular se a dor e a imobilidade se tornarem repetidas ou crônicas em um único local. Os anti-inflamatórios não esteroides costumam ser eficazes para a artropatia da anemia falciforme. A síndrome torácica aguda é uma emergência clínica que pode exigir internação em unidade de terapia intensiva. A hidratação deve ser cuidadosamente monitorada para evitar o desenvolvimento de edema pulmonar, e a oxigenoterapia deve ser particularmente vigorosa, para proteger a saturação arterial. A avaliação diagnóstica quanto a pneumonia e embolia pulmonar deve ser minuciosa, visto que podem ocorrer com sintomas atípicos. As intervenções fundamentais incluem transfusão para manter um hematócrito > 30 e exsanguineotransfusão de emergência se houver queda da saturação arterial para < 90%. Como os pacientes com a síndrome falciforme sobrevivem cada vez mais até a quinta e a sexta décadas de vida, a insuficiência renal em estágio terminal e a hipertensão pulmonar estão se tornando causas de morbidade terminal cada vez mais proeminentes. A miocardiopatia falciforme e/ou a doença arterial coronariana prematura podem comprometer a função cardíaca nos anos subsequentes. Os pacientes com anemia falciforme têm recebido transplante de rim, mas, em geral, apresentam aumento na frequência e na gravidade das crises, possivelmente devido a um aumento das infecções em consequência da imunossupressão. O avanço mais significativo no tratamento da anemia falciforme foi a introdução da hidroxiureia como base da terapia para os pacientes com sintomas graves. A hidroxiureia (10-30 mg/kg/dia) aumenta a hemoglobina fetal e também pode exercer efeitos benéficos sobre a hidratação dos eritrócitos, a aderência à parede vascular e a supressão das contagens dos granulócitos e reticulócitos; a dose deve ser titulada para manter uma contagem dos leucócitos entre 5.000 e 8.000 células/μL. Os leucócitos e os reticulócitos podem desempenhar um papel importante na patogênese da crise falciforme, podendo sua supressão ser um importante efeito benéfico da terapia com hidroxiureia. Deve-se considerar o uso da hidroxiureia em pacientes que sofrem episódios repetidos de síndrome torácica aguda ou mais de trêscrises por ano, exigindo internação. A utilidade desse agente na redução da incidência de outras complicações (priapismo, retinopatia) encontra-se em fase de avaliação, assim como os efeitos colaterais em longo prazo. A experiência clínica adquirida é agora suficiente para afirmar que o risco de discrasias da medula óssea ou de outras neoplasias é mínimo. A hidroxiureia oferece amplos benefícios à maioria dos pacientes cuja doença é grave o suficiente para comprometer seu estado funcional e tende a melhorar a sobrevida. Os níveis de HbF aumentam em poucos meses na maioria dos pacientes. O agente antitumoral 5-azacitidina foi o primeiro que demonstrou elevar a HbF. Nunca alcançou uso disseminado devido à preocupação quanto à sua toxicidade aguda e carcinogênese. Contudo, a administração de baixas doses do agente relacionado, a 5-desoxiazacitidina (decitabina), pode elevar os níveis de HbF com toxicidade mais aceitável. O transplante de medula óssea pode proporcionar a cura definitiva, porém sabe-se que é eficaz e seguro apenas em crianças. Ensaios clínicos que estudaram esquemas de condicionamento parcialmente mieloablativos (“minitransplantes”) tendem a sustentar o uso mais disseminado dessa modalidade em pacientes idosos, e seu uso deve ser considerado em adultos com morbidade significativa. Os aspectos do prognóstico que justificam um transplante de medula óssea incluem presença de crises repetidas no início da vida, contagem elevada dos neutrófilos ou desenvolvimento da síndrome mão-pé. As crianças que apresentam risco de AVC podem ser identificadas atualmente mediante o uso de técnicas de ultrassonografia com Doppler. A exsanguineotransfusão profilática parece reduzir significativamente o risco de AVC nessa população. As crianças que sofrem AVC devem ser mantidas durante pelo menos 3 a 5 anos em um programa de exsanguineotransfusão vigorosa, pois o risco de AVC é extremamente alto. A terapia com hidroxiureia pode finalmente suplantar a transfusão crônica indefinida em pacientes que respondem de modo favorável. A terapia gênica para a anemia falciforme está sendo intensamente investigada, mas, até o momento, não há medidas seguras. O desenvolvimento de métodos mais recentes de correção direta de genes in situ (p. ex., nucleases em dedo de zinco ou tecnologia “CRISPR” [repetições palindrômicas curtas regularmente interespaçadas e agrupadas, de clustered regularly interspaced short palindromic repeats]) poderá ter aplicação clínica nesses pacientes. Métodos experimentais de desrepressão da HbF pela manipulação de Bcl11a ou alças de cromatina estão sendo explorados.
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