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@anab_rs | Ana Beatriz Rodrigues 1 Área Rural INTRODUÇÃO As populações do campo e da floresta são caracterizadas por povos e comunidades que têm seus modos de vida produção e reprodução social relacionados predominantemente com a terra. Neste contexto estão os camponeses, sejam eles agricultores familiares, trabalhadores rurais assentados ou acampados, assalariados e temporários que residam ou não no campo. Estão ainda as comunidades tradicionais, como as ribeirinhas, quilombolas e as que habitam ou usam reservas extrativistas em áreas florestais ou aquáticas e ainda as populações atingidas por barragens, entre outras. A prática da medicina rural, portanto, exige habilidades e recursos diversos, além de imprimir às características da atenção primária à saúde (APS) peculiaridades próprias. Isso assume maior importância em países como o Brasil, que tem grandes áreas rurais e enormes distâncias, relativo baixo índice de desenvolvimento em algumas áreas e grande desigualdade social. DEFINIÇÃO O conceito de rural é altamente variável entre as nações. “Rural” é considerada a área externa ao perímetro urbano de um distrito e está definida pelo arbítrio dos poderes municipais, o que é influenciado por seus interesses fiscais e frequentemente não acompanha as modificações históricas. Uma proposta nesse sentido sugere que se repense a ruralidade brasileira com base na combinação da densidade demográfica e do tamanho populacional. Sendo assim, seriam considerados de pequeno porte os municípios que apresentam simultaneamente menos de 50 mil habitantes e menos de 80 hab/km2. A partir desses critérios, concluir-se-ia que 90% do território brasileiro, 80% de seus municípios e 30% de sua população (o dobro, portanto, que nos dados oficiais) são essencialmente rurais. Outra proposta seria a de dividir as regiões em relação à sua integração com a cidade, podendo-se agrupá-las assim: − Zonas economicamente integradas: zonas rurais prósperas, geralmente próximas de um centro urbano ao qual se integram por uma rede de comunicações bem desenvolvida, combinando as melhores vantagens da vida no campo e na cidade, e aproveitando economias de escala e de aglomeração, com demanda e oferta diversificadas de emprego. − Zonas rurais intermediárias: são zonas tradicionalmente desenvolvidas com base em um setor agrícola próspero e nas atividades a ele associadas; são, em geral, afastadas de centros urbanos, mas com infraestrutura de transporte suficiente para ter acesso a eles; são zonas em processo de integração econômica, em que as novas atividades (indústria, comércio, turismo) começam a transformar a estrutura do emprego. − Zonas rurais isoladas: possuem uma população dispersa e localizam-se em áreas periféricas bem afastadas de centros urbanos (p. ex., montanhas e ilhas); a infraestrutura e os serviços locais são precários, a produção é tradicional (agricultura e pequeno artesanato local) e as rendas e a qualificação da mão de obra são bastante baixas. Não havendo uma definição universal de rural e sendo de pouca utilidade para os nossos fins buscar entre as existentes qual seria a melhor, destaca-se a importância da noção de que o rural não deve ser definido exclusivamente por oposição às cidades, mas sim por si só e na sua relação com elas. Importa destacar de forma resumida: − Rural não é sinônimo de agrícola nem tem exclusividade sobre este. − Rural é multissetorial (pluriatividade) e multifuncional (função produtiva, ambiental, ecológica, social). − As áreas rurais têm densidade populacional relativamente baixa. − Não há um isolamento absoluto entre os espaços rurais e as áreas urbanas. DEFASAGEM RURAL-URBANA EM RELAÇÃO À SAÚDE Existe, mundialmente, uma defasagem de profissionais de saúde em zonas rurais e remotas. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) revelam que, apesar de cerca de metade da população mundial habitar zonas rurais, só 24% dos médicos trabalham nessas áreas. Em relação à amamentação, apesar de ser historicamente mais frequente e mais prolongada nas zonas rurais, sua prática não vem aumentando tanto quanto nas zonas urbanas, em resposta às campanhas de estímulo. As taxas @anab_rs | Ana Beatriz Rodrigues 2 de má nutrição e doenças relacionadas a deficiências de nutrientes também são relatadas. A deficiência de vitamina A, por exemplo, cada vez mais rara nas grandes cidades, ainda é descrita com alguma frequência em comunidades rurais e remotas. A prevalência de tabagismo, apesar de estar diminuindo ao longo do tempo, também é maior na zona rural, independentemente do gênero. Em relação às doenças crônico-degenerativas, está demonstrado que as populações rurais brasileiras recebem menos diagnósticos de diabetes e têm menos acesso a ações simples diagnósticas, como medir a pressão arterial e a glicemia sanguínea. Os diabéticos e hipertensos têm menos acesso também à avaliação oftalmológica, a exames e à avaliação especializada, quando necessário, embora aparentemente tenham melhor acesso a internações hospitalares. Pode-se constatar, por outro lado, que alguns municípios com os mais altos índices de qualidade de vida ou de desenvolvimento humano são predominantemente rurais. A ocupação agrícola, mesmo nas regiões mais fortemente rurais, pode estar em queda, mas algumas regiões rurais fazem parte das zonas mais dinâmicas de vários países. Muitas vezes, elas criam mais possibilidades de novos empregos do que a economia tomada em seu conjunto. A pluriatividade é uma característica cada vez mais forte dessas áreas e faz parte de um conjunto de transformações complexas que hoje estão em curso e que apresentam consequências não só para os mercados de trabalho, mas também para as formas de funcionamento das unidades familiares e sua saúde. PRÁTICA DA MEDICINA RURAL Pode-se constatar que alguns problemas de saúde e fatores de risco são mais frequentes em zonas rurais do que em urbanas, como as intoxicações agudas, subagudas e crônicas por agrotóxicos, os acidentes com animais peçonhentos e plantas tóxicas e os acidentes decorrentes de certos riscos ocupacionais. O trabalho das populações rurais costuma estar associado a exposições climáticas, físicas, químicas, orgânicas, além do risco de operações com máquinas específicas, como serras, tratores, etc. O fato de o trabalho ser muitas vezes realizado próximo ou mesmo no próprio local de moradia também está relacionado a risco. O trabalho dos profissionais de saúde também apresenta características distintas, como o relativo isolamento em relação a outros colegas, o que exige o desenvolvimento de certas habilidades: − Interpretação de exames sem laudos de especialista. É frequente a indisponibilidade total ou eventual de especialistas para laudos de eletrocardiogramas, microscopia e radiografias, por exemplo. − Realização de procedimentos que seriam referenciados para outros profissionais em grandes cidades. Muitas pessoas preferem fazer procedimentos cirúrgicos, diagnósticos e terapêuticos em suas próprias localidades, mesmo que disponham de referência apropriada. Não é incomum a recusa a procedimentos se não forem feitos localmente. − Familiaridade com o manejo inicial de emergências. A distância e o tempo entre o primeiro atendimento e o da equipe apropriada para o tratamento definitivo, inclusive de saúde mental e traumas, costumam ser maiores do que em grandes centros. − Ampliação da escala de habilidades em relação ao cuidado das fases do ciclo vital, incluindo atenção à gestante e à sua família, puericultura, puerpério, atenção à saúde da criança e do adolescente, da mulher, do adulto, do idoso e cuidados durante o fim da vida. − Ampliação da escala de habilidades no que diz respeito ao manejo integral e sociofamiliar da pessoa,incluindo competência dialógica intercultural e diálogo com práticas tradicionais. Questões éticas afloram desse estilo de vida e trabalho. O médico rural deve prestar atenção para questões de sigilo e privacidade. Sendo uma parcela de seu convívio social dividida com as pessoas com quem trabalha, nem sempre será fácil separar o que é de conhecimento público e o que é informação profissional. Alguns problemas podem ser ocultados do médico com maior intensidade, como algumas infecções sexualmente transmissíveis, abuso sexual, violência e adicção. Os casos de violência são especialmente complexos pela proximidade e possibilidades de envolvimento do profissional e de sua família, conforme sua interferência seja percebida. ACESSO OU PORTA DE ENTRADA E LONGITUDINALIDADE Nas zonas rurais, o nível primário é ainda mais importante como porta de entrada do sistema de saúde do que nas cidades. Em várias localidades, o posto de saúde é o único ponto próximo de acesso ao sistema de saúde, ou ainda o único serviço de saúde existente. COMO MELHORAR A DEFASAGEM RURAL- URBANA O Working Party on Rural Practice, da Associação Mundial de Médicos de Família (WONCA), estabelece os seguintes princípios para o fortalecimento da medicina rural: − A infraestrutura necessária para a implementação de atenção à saúde integral de áreas rurais, remotas e com dificuldades de acesso deve ser de alta prioridade para os governos nacionais. @anab_rs | Ana Beatriz Rodrigues 3 − A natureza específica da prática rural, incluindo a mais ampla gama de habilidades requerida pelos médicos rurais, deve ser reconhecida pelos governos e organizações profissionais. − O núcleo de competências da prática geral/de família deve ser ampliado pela provisão de habilidades adicionais para a prática rural apropriada especificamente às localidades determinadas. − O status dos médicos rurais deve ser elevado por uma abordagem coordenada que envolva planos de carreira, educação e treinamento, aumento de incentivos e melhora das condições de trabalho. Essas medidas devem ser financiadas e apoiadas pelos governos, comunidades e organizações profissionais, reconhecendo-se o papel vital do médico rural. − O médico rural e outros profissionais de saúde devem auxiliar a comunidade na avaliação, na análise e no desenvolvimento de serviços de saúde que sejam voltados para as necessidades locais, sem deixar de reconhecer a importância da abordagem voltada à pessoa no nível individual. − Os modelos de serviços em saúde rural devem ser avaliados e promovidos em parceria com as comunidades rurais e em cooperação com autoridades de saúde regionais e nacionais. − Os médicos rurais devem adotar a filosofia da APS como chave para a saúde de comunidades rurais. − Deve haver representação feminina em todas as instâncias representativas onde as decisões forem tomadas. Vê-se que esses princípios se compatibilizam completamente com os que vêm norteando a criação e a ampliação da especialidade MFC no Brasil. Parece necessária, contudo, uma mudança na postura da gestão das políticas de interiorização de profissionais de saúde que contemplem essas necessidades como reais prioridades de saúde. A grande defasagem de profissionais entre as áreas rurais e urbanas pode ajudar a explicar as diferenças percebidas nos indicadores de saúde. Tendo em vista a necessidade de se construir um sistema de saúde com equidade, deve-se necessariamente pensar em formas de trabalhar essa desproporção. Diversos estudos realizados em várias partes do mundo podem ajudar a entender melhor essa questão e trabalhar nela. A literatura mostra, como algo importante, que o estabelecimento de políticas voltadas para a interiorização e a retenção de profissionais em áreas rurais e remotas deve ser o objetivo central a ser perseguido, de forma que esta seja uma questão prioritária em planos nacionais de governo. A análise dos fatores que influenciam essa decisão por parte dos profissionais é um passo-chave para a compreensão da complexidade do problema e para guiar possíveis intervenções. A OMS sugere que as abordagens desse problema devam ser realizadas intersetorialmente. Alguns exemplos de recomendações para melhorar a defasagem rural-urbana, que contam com um bom nível de evidência a partir da revisão de estudos ou um forte nível de recomendação por parte da OMS, significando que têm grande chance de serem aplicáveis em diferentes contextos e de possuir baixa probabilidade de causar efeitos prejudiciais, são: − Criar políticas de direcionamento para a admissão de estudantes de origem rural nos cursos da saúde, visto que essa proveniência está relacionada a uma chance maior de trabalhar nessas áreas após a conclusão dos estudos. Entre essas políticas, sugere-se a melhoria da qualidade do ensino primário e secundário nas áreas rurais. Essa medida aumentaria a chance de acesso ao ensino superior de estudantes provenientes de áreas rurais e de difícil acesso em longo prazo. Além disso, o financiamento de bolsas de estudo e o apoio diversificado para os gastos durante os estudos são citados. − Revisar os currículos de forma a incluir tópicos de saúde rural com a finalidade de aumentar a competência dos profissionais para trabalhar nessa realidade, aumentando, assim, sua satisfação e fixação. − Melhorar as condições de vida para profissionais de saúde rurais e suas famílias investindo em infraestrutura e serviços (eletricidade, saneamento, comunicação, escolas, etc.), já que esses fatores têm grande impacto na decisão de trabalhar e permanecer nessas áreas. − Proporcionar um ambiente de trabalho adequado e seguro, incluindo equipamento de proteção, provisões e supervisão de apoio. − Identificar e implementar atividades extras, que facilitem a cooperação entre profissionais de saúde de áreas com mais recursos e aqueles das áreas com menos recursos e, quando possível, instrumentos de telessaúde para locais rurais e remotos. − Desenvolver planos de carreira que estimulem os profissionais rurais a progredirem em termos de experiência, educação e treinamento sem necessidade de deixar suas áreas. @anab_rs | Ana Beatriz Rodrigues 4 − Dar suporte a redes de médicos rurais, associações e periódicos de saúde rural de forma a melhorar o moral e o status dos profissionais que atuam em áreas rurais e a diminuir sua sensação de isolamento. Todas essas recomendações têm efeito limitado se realizadas isoladamente. Sugere-se, então, que sejam combinadas com outras, como as da lista a seguir (tais orientações têm embasamento limitado na literatura e devem ser estudadas em relação às diversas realidades locais): − Estimular a criação de escolas médicas e de outros cursos de saúde fora das capitais. − Promover atividades em áreas rurais durante a graduação. − Criar programas de educação continuada e de desenvolvimento profissional voltados para as necessidades dos trabalhadores rurais. − Aumentar e dar suporte a um espectro mais amplo de ação do profissional, a fim de aumentar sua satisfação em áreas rurais. − Aumentar a diversidade de profissionais da saúde em localidades rurais e remotas. − Assegurar que serviços compulsórios temporários para profissionais de saúde, como os que ocorrem em vários países, sejam acompanhados de suporte apropriado e incentivos. − Oferecer bolsas de estudo em troca de serviço temporário posterior em área rural ou remota. − Oferecer uma ampla gama de incentivos financeiros, como adicionais de distância e dificuldade de acesso, para moradia e transporte, férias pagas, etc. Essas recomendações da OMS estão de acordo com as que o Wonca Working Party on Rural Practice e a Associação Mundial de Médicos vêm manifestando. Em geral, todas elas podem ser adotadas com maior ou menor adaptaçãopara as diversas realidades locais. O Chile apresenta um exemplo de realidade mais ou menos próxima à brasileira, em que há relatos de estratégias bem-sucedidas de políticas estimuladoras de interiorização. Um longo caminho é necessário para que, no Brasil, seja possível diminuir essas diferenças entre as áreas rurais e urbanas, garantindo o princípio constitucional da equidade no sistema de saúde. Algumas ideias apresentadas neste capítulo podem servir como base para políticas públicas nesse sentido e para uma futura produção de conhecimento a respeito da prática da MFC em áreas rurais e de difícil acesso. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA Gusso, Gustavo e outros. Tratado de medicina de família e comunidade - 2 volumes: princípios, formação e prática. Disponível em: Minha Biblioteca, (2ª edição). Grupo A, 2019.
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