Prévia do material em texto
80 Unidade II Unidade II 5 UMA COSTURA ENTRE AS TRAMAS DA ALFABETIZAÇÃO E O LETRAMENTO E A NOVA BNCC Os fios da vida caminham de um lado para outro, avesso e direito, produzindo uma trama. Bordar e sonhar. Às vezes o fio corre leve e solto, outras ele embola, mas ao tomá‑lo em minhas mãos sou autor da história. Eliana Chiavone Delchiaro Figura 48 Quando pensamos na alfabetização como ação de tecer os fios em uma trama, podemos imaginar a experiência artesanal de cada etapa, que compreende o processo de ensinar e aprender a língua materna. O fio simbolizando a vida, o desejo de aprender, a força simbólica do que representa entrar para a cultura letrada. Há muitas combinações com os diversos fios para se chegar à tessitura final: os(as) estudantes, o(a) professor(a), as famílias, os métodos, a escola, a sala de aula, os livros, as dificuldades enfrentadas, a história de cada um, e agora mais um elemento se junta a esses, apontando o que ensinar: a nova Base Nacional Comum Curricular. Da mesma forma que existem princípios que definem como bordar ou tecer, para alfabetizar, as concepções determinam o modo de ensinar. Um deles, comprovado tanto pela pesquisa acadêmica como também pela observação dos professores que ensinam, é que a memorização não conduz crianças e adultos a se alfabetizarem. Sabemos que as concepções de alfabetização são construções históricas e que vêm se modificando em vista de muitas pesquisas realizadas nas últimas décadas e também defendemos as orientações que integram a alfabetização e o letramento. Alfabetizar significa compreender a tecnologia da escrita e as relações entre fonemas e grafemas, uma vez que o sistema é notacional e para tanto é preciso refletir 81 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO sobre esse sistema. Já letramento significa saber usar a língua escrita em práticas sociais. Alfabetizar, num contexto de letramento, exige do professor um trabalho intencional, explícito e sistemático, que conduz crianças, jovens e adultos a estabelecerem as relações entre os sons da língua e suas representações com materiais reais, como literatura, propagandas, poemas ou qualquer outro material do interesse desses envolvidos. Neste sentido, como alfabetizadores, devemos sempre pensar em propor um processo de alfabetização em contexto de letramento, visando contribuir com o desenvolvimento da capacidade leitora e escritora. Mais uma vez reforçamos a importância dos saberes e da formação do professor. Ele deve ajudar as crianças desde cedo a construírem as regras do sistema alfabético, conhecerem suas convenções e, mais do que isso, ampliarem as experiências para que os alfabetizandos possam ler e produzir textos diversificados na sociedade em que vivem. Com isso, vamos reduzir as diferenças e assegurar a formação de sujeitos capazes de criticar e de transformar. Segundo Soares (2016), é preciso alfabetizar com método, o que em suas palavras significa orientar as crianças por meio de procedimentos fundamentados em teorias e princípios que estimulem operações cognitivas e linguísticas progressivamente até chegar a uma leitura e escrita bem‑sucedidas. Conforme dissemos, na tessitura artesanal são necessárias várias combinações de fios, cores, pontos e texturas para se chegar ao produto final, o que se assemelha ao ensino do sistema alfabético. Na produção de um bordado, temos o processo autoral motivado pela criação. O desejo da escrita pelo aprendiz também precisa estar associado ao seu uso social, criando um sentido para esse fazer por meio de práticas de leitura e produções de textos em contextos reais. Alfabetização e letramento, conforme fundamenta Magda Soares (1998), são conceitos distintos e interdependentes que fazem parte do processo de aprendizagem com propriedades que são aprendidas e vinculadas a diferentes suportes textuais que se relacionam aos interesses, necessidades e valores dos estudantes. A defesa de um trabalho sistemático é indispensável, pois a criança não atinge sozinha a compreensão de um sistema com tantas regras como o nosso, para que o processo de alfabetização ocorra em convergência com práticas socioculturais reais de leitura e escrita, e tais práticas precisam ser desenvolvidas na e pela escola. As crianças chegam à escola com várias hipóteses acerca da escrita; elas escutam as palavras globalmente e não por partes, e sobretudo nos dias atuais é preciso levar em consideração que essas crianças têm contato desde muito cedo com diferentes tecnologias e mídias que favorecem modos diversificados de ler o mundo. Em breve você estará numa sala de aula, com um 1º ano do Ensino Fundamental, e vai conviver diariamente com crianças de 6 anos. A criança de 6 anos é curiosa, inquieta, e pode não ser tão pequena em estatura, mas ainda é uma criança. 82 Unidade II Saiba mais Sugerimos a leitura do texto a seguir, que discute a prática curricular em que se alia o jogo ao processo de letramento no 1º ano do Ensino Fundamental da Escola de Aplicação da USP: KISHIMOTO, T. M. et al. Jogo e letramento: crianças de 6 anos no ensino fundamental. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 1, abr. 2011. Disponível em: https://cutt.ly/r9V1iG4. Acesso em: 2 fev. 2023. Você com certeza vai pensar em organizar um trabalho pedagógico para que essas crianças possam aprender mais e melhor. Se como professores temos clareza da função social da escola e sabemos que desejamos cidadãos que participem de forma ativa na sociedade, precisaremos valorizar a escola como espaço de construção e partilha de conhecimento, de encontro social, de respeito à diversidade e também de conflitos, pois o conflito faz parte da vida em sociedade. Será seu objetivo maior realizar um planejamento cuidadoso, voltado às necessidades e interesses dos estudantes, garantindo seus direitos de aprendizagem. A criança de 6 anos encontra‑se entre a Educação Infantil e o Ensino Fundamental; sendo assim, o planejamento deverá garantir e privilegiar propostas que envolvam brincadeiras, movimentos, histórias, produções textuais coletivas, com narração de fatos da comunidade, e uma boa organização dos tempos e espaços em respeito à infância. Não dá para colocar uma criança de 6 anos sentada, fazendo atividades repetitivas, o período todo em que ela fica na escola. O escritor, desenhista e pedagogo Francesco Tonucci, sob o pseudônimo Frato, tem voltado, por meio de seu trabalho artístico, um olhar sensível para a criança. O artista critica a escola, que deixa a criança “enraizada” na carteira escolar em todo o período em que fica por lá, ou, dito de outra forma, a mantém “emparedada” na sala de aula. 83 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO Figura 49 Fonte: Tonucci (1997, p. 155). As crianças precisam sentir‑se incluídas e respeitadas na escola. Embora seja um espaço diferente de sua casa, ele deve ser acolhedor e estimular a vivencia da infância. Tudo isso é possível quando tornamos o espaço um ambiente que ensina. Podemos romper com o modelo das carteiras enfileiradas na sala de aula e flexibilizar seu uso, remanejando as mesas e cadeiras, tendo em vista a proposta a ser desenvolvida. As rodas de história e de conversa devem acontecer sistematicamente. Também é possível ter um canto permanente de livros, revistas e jornais como um convite para o contato com a leitura e escrita, um outro canto de artes com materiais para que as crianças possam se expressar plasticamente e muitas outras possibilidades que estimulem um ambiente alfabetizador que permita às crianças desenvolveram plenamente a autonomia leitora e escrita. Uma organização pedagógica pensada em função das crianças, para e com as crianças, em que ensinar e aprender caminham em dupla mão. Uma escola em que a criança deverá aprender a escrever sem medo de ser criticada ou julgada. O espaço da sala de aula deve ser um lugar com muitos textos e leituras, uma vez que é no contato com a diversidade textual que o estudante vai aprender a gostar de ler e perceber a funçãosocial da leitura e da escrita. Esse sonho é possível e é realizável. Observe a seguir a história do menino Gustavo e o exemplo dado pela sua professora por meio de um trabalho intencional que nos inspira. Você irá gostar. Essa experiência foi escolhida por acreditarmos na importância do uso de diferentes gêneros textuais para crianças em processo de alfabetização e letramento. A narração é de uma situação de aprendizagem vivida por Gustavo, antes de completar 6 anos de idade, numa classe de Educação Infantil. 84 Unidade II Pela narrativa, podemos observar como Gustavo, mesmo sem saber escrever, dominava diferentes e importantes conhecimentos acerca do sistema de escrita, o que lhe conferia um grau de letramento e uma proximidade com a cultura escrita. A história de Gustavo faz parte da trama que estamos construindo. Agora os fios da nossa produção estarão entrelaçados ao significado de conhecimentos linguísticos. Destaque Gustavo, com seus 5 anos recém‑concluídos, demonstrava grande interesse pelos textos escritos e dedicava um tempo significativo da sua rotina diária à tentativa de decifrá‑los. Era habitual brincadeiras de faz de conta, nas quais imitava a leitura de livros ou a escrita de bilhetes, cartas, poemas. Desde os 6 meses de vida, frequentava uma instituição de Educação Infantil cujo trabalho pedagógico enfatizava a formação das crianças como pequenos usuários da linguagem escrita. Neste contexto educativo, a escrita era empregada como mediadora das relações entre adultos e crianças. Em todas as classes, desde o berçário até o chamado Terceiro Período (turmas de crianças de 6 anos de idade), a escrita era empregada para anotar os acontecimentos considerados importantes para o grupo, para dar recados, organizar a rotina, desfrutar um bom texto. Numa das rodas de conversa, situação de aprendizagem que ocorria todos os dias, um colega levou uma reportagem sobre uma cobra que havia engolido um dentista, na região amazônica. Muitas crianças já tinham conhecimento da notícia que havia sido manchete de jornais televisivos e que havia sido veiculada pela imprensa escrita durante os dias anteriores. Depois da leitura feita pela professora, seguiu‑se um debate animado sobre a matéria. Em seguida, a professora provocou uma discussão oral, chamando a atenção sobre a maneira como o texto estava escrito, as diferenças daquele tipo de texto para outros, tais como: os contos de fada, os bilhetes, etc. Depois, solicitou que alguns alunos recontassem oralmente a reportagem, como se fossem os repórteres dos jornais falados. Durante o reconto, a professora ia interpelando as crianças, sugerindo a substituição de palavras ou expressões de acordo com a situação imaginária e o tipo de texto. Por fim, como tarefa para casa, sugeriu que os alunos ditassem para uma pessoa que soubesse ler e escrever a reportagem discutida na roda. Esclareceu, ainda, que deveriam fazê‑lo como se fossem jornalistas e, portanto, destacando a necessidade de respeitarem o estilo do texto a ser escrito. Em casa, Gustavo cumpriu a tarefa exatamente como lhe indicara a professora. Ditou para sua mãe e, enquanto o fazia, de tempos em tempos, pedia para que ela relesse o que havia escrito, indicando a troca de palavras, corrigindo expressões, alterando a ordem das informações, sempre buscando uma adequação em relação à norma culta e ao tipo de texto, no caso uma notícia. 85 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO Vejamos, a seguir, o resultado: Figura 50 Fonte: Maciel, Baptista e Monteiro (2009, p. 32). Saiba mais Leia na íntegra a história de Gustavo, apresentada no livro a seguir. O texto está presente no capítulo 2 da obra, que trata as dimensões da proposta pedagógica para o ensino da língua escrita em classes de crianças de 6 anos. MACIEL, F. I. P.; BAPTISTA, M. C.; MONTEIRO, S. M. (orgs.). A criança de 6 anos, a linguagem escrita e o ensino fundamental de 9 anos: orientações para o trabalho com a linguagem escrita em turmas de crianças de 6 anos de idade. Belo Horizonte: UFMG/FaE/CEALE, 2009. Disponível em: https://cutt.ly/39V4R0q. Acesso em: 2 fev. 2023. 86 Unidade II Exemplo de aplicação Gustavo produziu um bom trabalho de escrita tendo como escriba sua mãe. Uma pergunta que nos ocorre é: Quais foram os conhecimentos linguísticos desenvolvidos pelo Gustavo para chegar nesse nível de produção? Primeiramente, podemos inferir que o conhecimento adquirido por Gustavo é consequência de um trabalho sistemático e intencional de sua professora. A proximidade com diferentes gêneros textuais, a distinção entre eles e o registro diário da linguagem escrita aguçam a curiosidade para aprender a ler e escrever. A criança nasce imersa numa cultura letrada; por esse motivo, não tem sentido não trabalhar com a aprendizagem da língua escrita na Educação Infantil, sobretudo nas camadas mais populares, em que o acesso aos meios escritos é mais restrito. Quanto ao Gustavo, ele não só compreendeu o texto como também foi capaz de escolher os pontos mais importantes a serem explorados, os interpretou e conseguiu sintetizá‑los de forma comunicativa. Ele ainda foi capaz de estabelecer uma relação entre a linguagem oral e a escrita com uso pequeno de expressões orais. Procurou organizar sua produção com as características do gênero (o quê, onde, quando), com dados quantitativos a partir de um fato real. Também estruturou o texto com começo, meio e fim com estratégias próprias de um leitor proficiente. Ele tinha repertório suficiente para o emprego de uma produção textual a partir de uma situação real. Os conhecimentos linguísticos foram desenvolvidos a partir de oportunidades criadas no ambiente de aprendizagem, pois não nascemos com eles. Esse exemplo da trajetória escolar do Gustavo nos ajuda também a refletir sobre as práticas de ensino e as concepções que as fundamentam. Saiba mais Você poderá aprofundar seu conhecimento de gêneros textuais, estrutura e finalidades na Educação Infantil por meio da leitura de: REGO, L. L. Descobrindo a língua escrita antes de aprender a ler: algumas implicações pedagógicas. In: KATO, M. (org.). A concepção da escrita pela criança. Campinas: Pontes, 1988. A professora de Gustavo demostra ter como objetivo desenvolver um leitor e escritor proficiente. Para tanto, o aluno é convidado a participar e deixar de lado a atitude passiva à medida que demostra e prova ser capaz de apresentar soluções reais vinculadas à comunidade em que vive. Dessa forma, o estudante participa e interage, conseguindo veicular argumentos, princípios e valores. 87 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO Ela também nos oferece um modelo de prática em que há um entrelaçamento da alfabetização e do letramento, rompendo com a proposta ainda muito comum nas escolas de que primeiro se alfabetiza e depois trabalha‑se a leitura e a escrita. É necessário iniciar a articulação entre alfabetização e letramento na Educação Infantil, um momento rico do desenvolvimento da criança em que seu cérebro ainda apresenta uma boa plasticidade. Segundo Soares (2016), trabalhar com memória de curto e longo prazo e classificação são competências fundamentais na aprendizagem da língua escrita. Na Educação Infantil, podemos iniciar uma imersão nos diferentes gêneros textuais com um trabalho sistemático de relação som‑grafia. As crianças podem desenvolver estratégias de compreensão leitora à medida que vão interagindo com os textos, suas estruturas e finalidades. Pode‑se desenvolver essa proposta de forma lúdica, explorando músicas, jogos, brincadeiras, leituras de histórias e contos, produção de uma receita culinária, montagem de um brinquedo por meio da leitura e acompanhamento de um manual, entre outras possibilidades. Alguns procedimentos de escrita ajudam as crianças a perceberem características da escrita. Por exemplo, ao ler uma história, evidenciar a direção da escrita, colocando o dedo ao longo das linhas para chamar a atenção das palavras do texto, ou ainda relacionarum texto a sua figura ou comparar palavras em duas listas identificando as semelhantes. Com relação ao letramento, a hora da história deve ser uma rotina para contextualizar gêneros textuais, a exemplo do que fez a professora de Gustavo. Saiba mais Você pode consultar o material indicado a seguir, que discorre sobre estratégias para compreensão leitora: FONTES, M. G; CARDOSO‑MARTINS, C. Efeitos da leitura de histórias no desenvolvimento da linguagem de crianças de nível sócio econômico baixo. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v. 17, n. 1, p. 83‑84, 2004. Disponível em: https://bit.ly/3YR7nvc. Acesso em: 15 mar. 2023. É importante lembrar que as crianças de níveis socioeconômicos mais baixos têm na escola a possibilidade do acesso aos meios da cultura letrada. Quando, por um motivo ou outro, não possuem esse contato ou não se apropriam dele, essas crianças ficam em desvantagem em relação àquelas das classes média e alta. Esse apartheid educacional tem como consequência o fracasso no processo de alfabetização, que se naturalizou e é exclusivo dos meios populares. Cabe à escola criar situações favorecedoras de imersão à cultura escrita, especialmente na Educação Infantil e nos primeiros anos do Ensino Fundamental. Vale lembrar que um dos objetivos de o Ensino Fundamental ter sido ampliado para 9 anos foi permitir o acesso das crianças com 6 anos de idade, uma vez que muitas vezes elas não têm acesso à Educação Infantil, que ainda não é realidade em todo o país, apesar de ser obrigatória para crianças de 4 e 5 anos. 88 Unidade II Entendemos que o(a) professor(a) precisa compreender como a criança aprende em todos os processos de aprendizagem da alfabetização e letramento, e para tanto não deve adotar um único método. Segundo Soares (2016), é necessário que o docente busque uma alfabetização com várias metodologias, entendendo todas as facetas desse processo. Leitura e escrita, para a autora, são dois processos distintos, mas que se desenvolvem simultaneamente. Para ler, o processo é representar por sons os grafemas; para escrever, é transformar os grafemas em sons. É nessa linha que o alfabetizador tem que entender o processo da turma, de cada grupo, de cada criança, para saber criar situações didáticas e de intervenção adequadas. Você, futuro professor, vai precisar compreender os processos simultâneos que ocorrem para conduzir a criança ao processo de aprender a ler e a escrever, entendido como um desenvolvimento cognitivo que caminha junto ao desenvolvimento de muitas operações, entre elas a consciência fonológica e o conhecimento das letras, conforme estudaremos a seguir. Soares (2016) explica que a criança precisa chegar à consciência fonológica das palavras, isto é, saber que o som das palavras é registrado por grafemas. A partir do exposto, vamos estudar mais uma contribuição para o processo de alfabetização: a consciência fonológica. Na sua infância, você brincou de parlendas ou trava‑línguas? Quem lembra dessas brincadeiras? “Lá em cima do piano tem um copo de veneno. Quem bebeu, morreu, o azar foi seu.” “Uni, duni, tê, Salamê, mingue, Um sorvete colorê, O escolhido foi você!” “Suco gelado cabelo arrepiado. Qual é a letra do seu namorado?” 89 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO As publicações das parlendas ou trava‑línguas muitas vezes vêm acompanhadas de imagens que ajudam a criança a atribuir significado ao texto, como nos exemplos a seguir: Figura 51 Fonte: Diadema (s.d., p. 12). Figura 52 Adaptada de: https://cutt.ly/a8grrEc; https://cutt.ly/D8grIbI. Acesso em: 27 fev. 2023. 90 Unidade II Figura 53 Adaptada de: https://cutt.ly/a8grBVw; https://cutt.ly/98gtetA. Acesso em: 27 fev. 2023. Vamos saber qual relação podemos estabelecer entre essas brincadeiras e a consciência fonológica? Todo sujeito quando nasce se apropria da fala. Essa apropriação, ligada ao uso da linguagem falada, se apoia no conhecimento epilinguístico, ou seja, todos, caso não tenham alguma deficiência, aprendem a falar e a usar a língua cotidianamente. Isso quer dizer que somos falantes proficientes. Mas para se apropriar da linguagem de modo mais autônomo e desenvolver plenamente a capacidade leitora e escritora, é preciso desenvolver habilidades metalinguísticas. 5.1 Habilidades metalinguísticas: qual o lugar e a importância da consciência fonológica nas práticas de alfabetização? Bor‑bo‑le‑ti‑nha tá na co‑zi‑nha Fazendo cho‑co‑la‑te para a ma‑dri‑nha Po‑ti‑po‑ti Per‑na de pau O‑lho de vi‑dro E na‑riz de pi‑ca‑pau Pau‑pau 91 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO Figura 54 Disponível em: https://cutt.ly/L8gtLQM. Acesso em: 27 fev. 2023. Você já viu crianças fazendo essa brincadeira? A brincadeira da borboletinha é um tipo de jogo cantado em duplas ou em pequenos grupos. Pode‑se começar brincando como o exercício vocálico, com segmentação das palavras que combinam a cadência sonora das palavras, e depois as crianças brincam sozinhas em diferentes ambientes. O jogo de mãos acompanha a brincadeira. As crianças, de forma lúdica, ilustram uma atividade em que, ao brincar com as palavras, fazem uso da tradição oral e exploram mental e oralmente os pedaços sonoros das palavras. O resgate de textos poéticos da tradição oral, como as parlendas, cantigas e quadrinhas, são propostas que as crianças apreciam, fazem parte da cultura lúdica e contribuem para a exploração dos efeitos sonoros das palavras. Essas atividades podem ser acompanhadas pela escrita das palavras, criando situações que conduzem a criança a uma reflexão sobre a escrita. É uma maneira de usar a própria linguagem e desenvolver um leque de capacidades que envolvem habilidades de consciência metalinguística. E você sabe o que é a consciência metalinguística? Quando a criança ou um indivíduo está exercendo uma atividade metacognitiva, pode‑se dizer que conscientemente está analisando e pensando em algo enquanto objeto de conhecimento. No caso, quando o fazem associando à linguagem oral ou à escrita, dizemos que é uma atividade metalinguística. Dessa forma, Tal reflexão consciente sobre a linguagem pode envolver palavras, partes das palavras, sentenças, características e finalidades dos textos, bem como as intenções dos que estão se comunicando oralmente ou por escrito. Quando reflete sobre os segmentos das palavras, a pessoa está pondo em ação a consciência fonológica (BRASIL, 2013, p. 21). 92 Unidade II Para Soares (2016), a capacidade de tomar a língua como um objeto de reflexão e análise é a habilidade de refletir sobre os aspectos estruturais da língua como uma capacidade essencial à aprendizagem da língua escrita. Quando essa atividade se refere aos pedaços das palavras, a criança está exercitando a consciência fonológica. Lembrete Consciência fonológica refere‑se a um grande conjunto de habilidades para refletir sobre os segmentos sonoros das palavras. Para saber como podemos ajudar os estudantes a pensarem em sua dimensão sonora ao mesmo tempo em que analisam as formas gráficas, vamos estudar um pouco sobre o surgimento e o desenvolvimento do conceito de consciência fonológica. Com isso, iremos entender alguns de seus principais fundamentos. Para tanto, mais uma vez contamos com as pesquisas de Magda Soares (2016; 2022) e Artur Gomes de Morais (2012; 2022). Foi a partir dos anos 1970 que passamos a considerar o reconhecimento da aprendizagem do sistema de escrita a partir dos sons da fala para a compreensão do princípio alfabético. Com isso, os estudos se encaminharam no sentido de se pensar em desenvolver uma percepção sonora das palavras com os aprendizes, o que levou ao desenvolvimento do conceito de consciência fonológica. A consciência fonológica foi inicialmente denominada consciência linguística pelos autores James Kavanagh e Ignatius Mattingly em seu trabalho Language by ear and by eye (A língua pelo ouvido e pelos olhos), de 1972. O título, muito significativo, já um convite à leitura e esclarece, entre outros resultados,o contraste que as crianças apresentam entre falar e escrever. A maioria das crianças fala com mais facilidade e tem em geral dificuldade com a escrita. Essa é umas das principais conclusões do estudo. A dificuldade que a criança enfrenta na aprendizagem da língua escrita, segundo os autores, se dá porque para escrever a criança precisa ter consciência da ação que está executando, o que não ocorre com a fala. O pontapé inicial dado por esses autores multiplicou‑se em muitas outras pesquisas nas relações entre a consciência fonológica a alfabetização, mas a grande maioria delas ocorreu em língua inglesa (SOARES, 2016). No Brasil, os estudos sobre a consciência fonológica iniciaram nos anos 1980 na Universidade Federal de Pernambuco. Eles resultaram em artigos sobre o realismo nominal, um dos aspectos de relação entre a consciência fonológica e a escrita. Os primeiros trabalhos foram de Terezinha Nunes Carraher e Lucia Browne do Rego, em 1981, e Vilma Bezerra, no mesmo ano. Em 1986, temos a dissertação de Artur Gomes de Morais sobre as estratégias fonológicas e visuais na leitura e escrita das palavras. A partir disso, as pesquisas se ampliaram muito, com trabalhos feitos por Maluf, Zanella e Pagnez (2006) e Maluf e Zanella (2011). As pesquisas no geral se referem a diferentes aspectos da consciência fonológica, que envolvem múltiplas habilidades pela complexidade linguística e pelo grau de “consciência” que elas estabelecem (SOARES, 2016, p. 169). 93 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO Vale entender, segundo Soares (2016, p. 170), que a complexidade linguística pode ser compreendida pela dimensão do segmento da fala a que se dirija a atenção a palavra, as rimas e aliterações, as sílabas e os elementos intrassilábicos, os fonemas. A autora esclarece que o termo consciência fonológica é usado para representar todos esses níveis e muito frequentemente se limita a um termo e a um só nível, a consciência fonêmica. Desta feita, quando o interesse está voltado para a alfabetização, é importante sabermos diferenciar cada um desses níveis porque eles contribuem de forma diferenciada em diversas etapas do desenvolvimento. Quanto ao grau de “consciência”, os níveis também se diferenciam pelo segmento da fala. Os estudos revelam que há um continuum que vai se estendendo desde algo mais genérico, que envolve os segmentos fonológicos maiores, até se chegar a segmentos fonológicos menores, indo da consciência da palavra à consciência do fonema. 5.2 Níveis de consciência fonológica para a criança chegar ao princípio alfabético A consciência fonológica se compõe da seguinte forma: Consciência fonêmica A palavra é uma cadeia de sons; segmentos sonoros de palavras podem ser iguais, formando aliterações e rimas As sílabas são constituídas de pequenos sons – os fonemas.A palavra pode ser segmentada em sílabas Consciência silábica Consciência lexical Figura 55 Adaptada de: Soares (2022, p. 77). Consciência da palavra ou consciência lexical A consciência da palavra ou consciência lexical se refere à consciência que a criança adquire quando compreende que a palavra é composta por uma cadeia de sons. No entanto há um caminho a percorrer entre o significado da palavra e o significante (realismo nominal), como você poderá entender a seguir. As crianças pequenas e as não alfabetizadas enfrentam desafios para dissociar a palavra fonológica de seu significado e significante. Conforme Piaget (2005), na obra A representação do mundo pela criança, de 1926, as crianças explicam que todos os nomes representam as características do objeto, fenômeno que recebeu o nome de realismo nominal, como já explicamos em outra seção. 94 Unidade II Observação O conceito do que vem a ser uma palavra para uma criança varia entre os autores. No entanto, eles concordam que o entendimento do conceito da palavra pelas crianças se evidencia durante o processo de alfabetização. Para Ferreiro (2013), é no processo de alfabetização que a criança se obrigará a definir a noção de palavra, para aceitar o que a escrita impõe (letras separadas por espaços em branco). Estudos de Vygotsky de 1934, por sua vez, relacionam a dificuldade da criança em compreender a natureza arbitrária da palavra com a aprendizagem da escrita. Ele exemplifica: para uma criança, o animal se chama vaca porque tem chifres, e a justificativa para bezerro recai nos chifres pequenos. Para a criança, a palavra é parte do objeto. O autor caracteriza essa fase como consciência linguística primitiva. Ele explica em seu livro escrito A pré‑história da língua escrita que a escrita é um simbolismo de segunda ordem, ou seja, que a escrita representa os sons da fala. A criança precisa evoluir do simbolismo de primeira ordem, em que a palavra é associada às características do objeto, para o simbolismo de segunda ordem. Ela precisa ser capaz de perceber que pode desenhar não apenas as coisas, mas também a fala, ou seja, ela precisa perceber que pode escrever os sons da fala (VYGOTSKY, 1984). Por sua vez, Jean Piaget não estudou o realismo nominal sob a perspectiva do desenvolvimento da escrita. O autor realizou um marco referencial teórico muito mais vasto. Já Emília Ferreiro e Ana Teberosky relacionaram o realismo nominal às fases da escrita. As pesquisas no Brasil sobre o realismo nominal e a compreensão do sistema de escrita alfabético enquanto representação dos sons da língua datam do início dos anos 1980, como já explicamos. Em 1981, Carrer e Rego realizaram uma pesquisa que resultou na seguinte conclusão: para o avanço do processo de leitura e escrita, as crianças deveriam superar o realismo nominal. Crianças com dificuldade em leitura mostravam dificuldade em desprender‑se do significado de uma palavra falada ao darem enfoque ao significante em vez da forma sonora da palavra. Exemplificando, palavras grandes significavam coisas grandes e palavras pequenas significavam coisas pequenas. Para as crianças, entre as palavras anãozinho e gigante, a palavra maior é gigante porque gigante é maior. Quando as crianças foram solicitadas a perceber semelhanças nas palavras, o faziam pelo campo semântico. Por exemplo, mamão e sabão não são parecidas porque uma palavra é comida e a outra não é. Por outro lado, as autoras concluíram que o avanço que algumas crianças tiveram no processo de leitura diz respeito ao trabalho simultâneo com a grafia, isto porque elas passam a pensar no significante enquanto aspecto do signo linguístico (CARREHER; REGO apud SOARES, 2016). Essas mesmas conclusões se mantiveram em outros resultados de pesquisas de outros pesquisadores, que concluíram que o realismo nominal é mais acentuado nas crianças menores e que o seu declínio está 95 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO relacionado não só ao aumento de idade, mas ao aumento da consciência fonológica com a aquisição da capacidade em perceber as palavras enquanto uma sequência de sons. Soares (2016, p. 178) sintetiza três conclusões que podem ser inferidas sobre o realismo nominal e as suas implicações para a alfabetização: • O realismo nominal é mais verificado com crianças que estão na Educação Infantil entre os 3 e 5 anos, o que acontece antes ou no momento do processo de alfabetização. • O processo do realismo nominal é superado em parte com o aumento da idade e também depende da habilidade da criança em dissociar significante e significado, isto é, a criança ser capaz de ter foco na cadeia sonora das palavras. • A superação do realismo nominal é ao mesmo tempo condição e consequência do desenvolvimento da sensibilidade das crianças aos constituintes das palavras, por meio da rima, de aliterações e da segmentação das palavras. Vale reafirmar o quanto é fundamental brincar nesse momento, em especial as crianças que estão nas instituições de Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental: brincar de faz de conta, que uma coisa representa outra; cantar músicas da tradição oral repletas de rimas; ler materiaisque têm segmentos sonoros iguais; fazer comparações entre os nomes e suas imagens, uma vez que é no contato sistemático com o sistema alfabético que as crianças poderão avançar na sua compreensão. Consciência de rimas e aliterações É importante conceituar rima e aliteração na perspectiva do desenvolvimento da consciência fonológica. Rima será considerada, no campo pedagógico, a semelhança entre os sons finais das palavras. Já aliteração será entendida como a semelhança entre os sons iniciais. Desde cedo, crianças muito pequenas percebem as rimas e as aliterações, isto porque no convívio familiar e/ou nas instituições da infância são explorados textos com rimas e aliterações, que pertencem ao folclore infantil, como cantigas ninar, cantigas de roda, quadrinhas e trava‑línguas. Essa experiência, mesmo que informal nos primeiros anos de sua vida, provavelmente exerce influência sobre o desenvolvimento da percepção fonológica. No entanto, para que isso ocorra, a criança deve entender a semelhança global da palavra e avançar para uma atenção dirigida para os sons das palavras e o significado dela. Assim entendemos que nas salas de aula o trabalho intencional e lúdico leve as crianças a reconhecer rimas e aliterações e se possível produzi‑las também (SOARES, 2016). A identificação da semelhança de sons para uma progressiva compreensão do princípio alfabético deve acontecer na Educação Infantil e também no 1º ano do Ensino Fundamental de forma lúdica, o que poderá levar à segmentação da cadeia sonora, permitindo que a criança identifique o pedaço sonoro que corresponde à rima ou a sílaba que se repete no início das palavras com aliterações. Se essa atividade for acompanhada pelo registro escrito em que se destacam palavras com o mesmo som inicial ou final, as crianças são introduzidas na compreensão do princípio alfabético: mesmo sons correspondem às 96 Unidade II mesmas letras. Resumindo, as rimas e as aliterações vão conduzir as crianças e a atenção delas para a cadeia sonora das palavras, dissociando‑a do significado e colaborando para a superação do realismo nominal, em que poderão confrontar rimas e aliterações nas suas representações escritas, favorecendo assim a compreensão da relação entre os sons e os grafemas que o representam (SOARES, 2016). Consciência de sílabas ou consciência silábica As crianças desde cedo demonstram um interesse pela segmentação das sílabas. Segundo Ferreiro (2013, p. 168), a sílaba é a unidade mais acessível para a criança. Essa sensibilidade parece ser universal e independente da língua ou do sistema de escrita, como revelam as pesquisas (SOARES, 2016). A consciência silábica possibilita a segmentação da palavra em sílabas e, segundo Ferreiro, introduz a criança no período de fonetização da escrita. A autora explica que nessa fase a criança faz uma série de recortes orais, tratando de buscar a letra mais adequada para cada parte da palavra. O passo seguinte da fonetização é a escrita silábica, em que a criança recorta oralmente as palavras em sílabas e já compreende que a escrita representa os sons das palavras, que estão representados por letras. Assim a criança começa a escrever silabicamente (FERREIRO, 2014 apud SOARES, 2016). Lembrete Fonetização significa o período em que a criança passa a compreender que as palavras são formadas por sílabas e que essas sílabas representam sons. Se inicia na fase silábica e culmina na fase alfabética. Consciência fonêmica A consciência fonêmica é o momento em que as crianças identificam fonemas nas sílabas e os representam por letras. Até chegar nessa fase, as crianças passam por etapas progressivas da escrita como um sistema de representação dos sons da fala. Ao chegar à consciência fonêmica, a criança se torna capaz de relacionar fonemas e letras e de escrever foneticamente, além de acrescentar algumas regras e irregularidades ortográficas básicas. Nesse momento, o nome da letra é outro recurso interessante e necessário para a criança ir conhecendo o alfabeto, relacionando‑o com seu nome e de seus colegas, mas é preciso cuidado, pois o nome das letras em nosso alfabeto é diferente do som que elas representam, com exceção das vogais. Os autores aqui apresentados não se opõem à apresentação das letras às crianças (embora isso não deva ser feito pela soletração e tampouco pela memorização). Só para termos uma ideia, o G, do ponto de vista fonológico, significa G + E. Seguindo nessa linha, a letra K, cujo nome é igual à sílaba CA, apresenta casos semelhantes. Estaria resolvida a questão se as crianças decorassem os nomes das letras? A resposta é não, porque não é suficiente. De toda forma, contribui bastante realizar atividades com os estudantes não alfabetizados para perceber pedaços sonoros parecidos das palavras. Por exemplo: Macaco é parecido com Marina, ambos começam com Ma. A criança precisa fazer uma análise mental para compreender a variação de posição das partes sonoras – começo, meio e fim – que ocorrem no 97 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO interior de uma palavra. Esses exercícios fonêmicos são realizados pelas crianças sempre que se deparam com boas situações de leitura e escrita. Pautando‑se nas práticas socioculturais reais de leitura e escrita, elas vão aprofundando suas reflexões sobre o sistema de escrita, inclusive do ponto de vista fonêmico. A esse respeito, os estudos de Morais (2022, p. 51) apresentam também as diversas habilidades metalinguísticas que foram identificadas como consciência fonológica e se diferenciam claramente quanto à: • Unidade sonora, que se torna um objeto de reflexão, podendo ser um fonema, uma palavra inteira dentro da outra ou um elemento intrassilábico contendo um ou mais fonemas. • Posição, que significa ter a percepção se a unidade sonora ocupa diferentes posições dentro da palavra (no início, no meio ou no final). Os estudos mostram que para as crianças é mais fácil identificar as palavras no início, depois no final das palavras e por último no meio. • Operação cognitiva, que são as operações que o indivíduo realiza ao refletir sobre as unidades sonoras. As habilidades elencadas pelo autor desencadeiam operações para o aprendiz desenvolver e são uma boa orientação para o docente adotar em sala de aula na elaboração de práticas de ensino. Observe que a sequência de operações tem complexidade, chegando a proposições interessantes para a fase da consciência fonêmica, sobretudo a partir do item 6. 1) Identificar palavras com unidades iguais (sílabas, fonemas, rimas). 2) Produzir (isto é, dizer em voz alta) palavras com a mesma unidade (sílaba, fonema, rima) de uma palavra ouvida. 3) Identificar ou produzir palavras maiores ou menores que outras. 4) Segmentar palavras em unidades (sílabas ou fonemas). 5) Contar quantas unidades (sílabas ou fonemas) uma palavra contêm. 6) Sintetizar unidades (sílabas ou fonemas) para formar uma palavra. 7) Adicionar, substituir ou subtrair uma unidade (sílaba ou fonema) de uma palavra ouvida. 8) Isolar a sílaba ou o fonema inicial (ou final) de uma palavra. 9) Inverter a ordem de unidades de uma palavra – por exemplo, substituindo a sílaba ou o fonema inicial por aquele(a) que aparece ao final. Pode‑se verificar, a partir dessas possibilidades listadas, que a unidade sonora e a sua posição fazem variar o nível de dificuldade e o tipo de operação que vai implicar em maior e menor dificuldade para o 98 Unidade II aprendiz. O autor diz também que o nível de dificuldade vai ficando maior em função do tamanho das palavras, dos fonemas envolvidos e do tipo de estrutura silábicas (MORAIS, 2022). Vejamos alguns exemplos apresentados por Morais (2012): • Dizer que a palavra computador é maior que a palavra casa, porque ca‑sa tem só dois pedaços e a com‑pu‑ta‑dor tem quatro. • Identificar, entre quatro palavras (palito, morango, parede e cavalo), que as palavras palito e parede começam parecidas, porque “é pa e pa”. • Identificar que as palavras vela evaso são as que começam parecido (quando apresentadas junto às palavras mato e roda), porque “começam com /va/ e /ve/”. • Falar a palavra chuveiro, quando solicitado a dizer uma palavra que terminasse parecida com a palavra coqueiro, explicando que “ambas terminam com /eiro/. • Identificar que, no interior da palavra tucano, temos outras palavras: cano, tu, tuca. Mamão Casa Lampião Luva Sacola Fivela Galho Sapato Galinha Tucano Repolho Soldado Figura 56 – Cartela do jogo “Palavra dentro da palavra” Adaptada de: Brasil (2013). 99 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO Como vimos, os níveis de consciência fonológica são necessários para a aprendizagem do SEA. Eles ajudam a criança a ter foco na sonoridade das palavras, dissociando‑as do realismo nominal, mas vale um alerta indicado por Soares e confirmado por Morais (2012): o trabalho com a consciência fonológica é importante, mas quando dissociado de situações de leitura e escrita significativas não é suficiente, porque em níveis iniciais, em que a criança não atingiu o princípio alfabético, ela tem ainda um caminho pela frente até chegar na fragmentação da palavra e sua representação gráfica até chegar ao fonema. Dessa forma, Morais (2012), em concordância com Ferreiro (2003), defende a importância de realizar um trabalho de notação com as crianças, uma vez que esse registro facilita o desenvolvimento da consciência fonológica para que elas comecem a perceber as letras como unidades mais estáveis até chegar às unidades abstratas, que são os fonemas. Defende‑se com isso a importância de se explorar as partes orais ao lado da escrita desde as etapas iniciais do processo de alfabetização, uma vez que as crianças se beneficiam da presença da escrita enquanto refletem sobre seus segmentos orais. Morais (2022) nos faz uma observação importante sobre a redução da consciência fonológica à consciência fonêmica, uma vez que nada justifica ensinar às crianças os fonemas isolados ou fazê‑las decorar as sílabas, porque é um esforço cognitivo desnecessário que não garante a aprendizagem do código linguístico. O que ela necessita saber é sobre os processos de formação das palavras. Você, um adulto alfabetizado, terá com certeza dificuldade para pronunciar um a um os fonemas de uma palavra. Os fonemas são as unidades menores da fala, que são representados pelas letras de uma língua alfabética. Separar esses sons e categorizá‑los de forma a explicar como as palavras são escritas é o que denominamos de consciência fonêmica. Imagine‑se realizando a representação fonêmica de chocolate, que tem 9 letras e 8 fonemas: /s^/ /o/ /c/ /o/ /l/ /a/ /t/ /i/. Com certeza você terá dificuldade para pronunciar e contar os pedaços segmentando‑os um a um. Explicando de outra forma, esse tipo de operação é sem sentido e artificial para os aprendizes. Vale lembrar que essa operação tem significado para os estudantes dos cursos de Letras, Fonoaudiologia e Psicopedagogia, pois trata‑se de aprendizagem vinculada a objetivos próprios e direcionada a adultos completamente alfabetizados. O sistema de escrita alfabético é bastante complexo e os aprendizes precisaram reconstruí‑lo em suas mentes. Este sistema notacional, da mesma forma que a matemática e a música, também possui características e regras próprias, e é necessário aprender suas propriedades para se alcançar uma escrita alfabética. Já vimos que há uma quantidade de operações mentais que ocorrem concomitantemente ao processo de alfabetização. Segue uma versão elaborada por Morais (2012, p. 51) de algumas propriedades do nosso sistema de escrita alfabética: 100 Unidade II 1. Escreve‑se com letras, que não podem ser inventadas, que têm um repertório finito e que são diferentes de números e de outros símbolos. 2. As letras têm formatos fixos e pequenas variações produzem mudanças em sua identidade identidade (p, q, b, d), embora uma letra assuma formatos variados (P, p, P, p). 3. A ordem das letras no interior da palavra não pode ser mudada. 4. Uma letra pode se repetir no interior de uma palavra e em diferentes palavras, ao mesmo tempo em que distintas palavras compartilham as mesmas letras. 5. Nem todas as letras podem ocupar certas posições no interior das palavras e nem todas as letras podem vir juntas de quaisquer outras. 6. As letras notam ou substituem a pauta sonora das palavras que pronunciamos e nunca levam em conta as características físicas ou funcionais dos referentes que substituem. 7. As letras notam segmentos sonoros menores que as sílabas orais que pronunciamos. 8. As letras têm valores sonoros fixos, apesar de muitas terem mais de um valor sonoro e certos sons poderem ser notados com mais de uma letra. 9. Além de letras, na escrita de palavras, usam‑se, também, algumas marcas (acentos) que podem modificar a tonicidade ou o som das letras ou sílabas onde aparecem. 10. As sílabas podem variar quanto às combinações entre consoantes e vogais (CV, CCV, CVV, CVC, V, VC, VCC, CCVCC...), mas a estrutura predominante no português é a sílaba CV (consoante – vogal), e todas as sílabas do português contêm, ao menos, uma vogal. Como você pode ver, as regras apresentadas exigem um exercício reflexivo por parte do aprendiz, mediado pela ação intencional, planejada e acompanhada pelo(a) professor(a). Por esse motivo, não tem sentido ficar realizando atividades de coordenação motora ou de discriminação visual ou auditiva. Precisam ser organizadas situações de aprendizagem significativa, que façam sentido para os estudantes e que contribuam para que eles pensem sobre o sistema de escrita, e possam fazer associações com seus conhecimentos prévios, uma vez que essa escrita não é um código e sim um sistema de registro, de representação, de notação. 101 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO Pense sobre os fundamentos. Eles são princípios necessários para um professor alfabetizador. Figura 57 Disponível em: https://cutt.ly/Z8go6WE. Acesso em: 27 fev. 2023. O caminho do processo de alfabetização é longo e desafiador. Por isso, cabe ao professor um trabalho consciente e muita formação continuada. É função dos docentes auxiliar as crianças a pensarem nas palavras no que se refere tanto à sua dimensão sonora quanto à sua escrita, pois a compreensão do alfabeto precisa de diversas operações mentais, entre elas o reconhecimento da representação gráfica da língua e a aquisição da consciência fonológica. Ficamos, portanto, com a reflexão sobre a língua escrita como um processo de conceitualização da escrita pela criança, em sua progressiva construção do princípio alfabético e, ao mesmo tempo, estimulado pelo processo da consciência fonológica e seus níveis. 5.3 As relações entre a consciência fonológica e o aprendizado da escrita alfabética Para atingir a base alfabética, a criança vai vivenciando etapas que estão associadas ao seu desenvolvimento integral e também a oportunidades no seu ambiente escolar e familiar. É um processo que se inicia com a consciência da segmentação das palavras em sílabas, saber representá‑las com letras, num primeiro momento com quaisquer letras, mas em número correspondente à quantidade de sílabas da palavra, em seguida saber usar uma letra (grafema) que corresponda a um dos fonemas da sílaba, até a condição de escrever alfabeticamente (SOARES, 2016). A escrita alfabética é a fase de aquisição do sistema de escrita. A partir desse ponto, há ainda um longo caminho para o desenvolvimento da competência leitora e escritora. A criança, antes de chegar a essa fase, passa por uma transição em que tem como preocupação relacionar fonemas e grafemas, e muitas vezes, ao exercitar a escrita, não escreve convencionalmente. Por isso, o trabalho com a ortografia só deve ser desenvolvido mais sistematicamente a partir do momento em que a criança chegou à hipótese 102 Unidade II alfabética. A partir do contato com textos e produções, já melhora sua confiança sobre o que é a escrita e demonstra saber o que ela representa e comorepresenta. No entanto, devemos tomar cuidado para não considerar alfabetizada a criança alfabética. Tendo atingido o nível alfabético, ela ainda tem um logo caminho a vivenciar. Já sabe sobre os aspectos conceituais do SEA, mas vai precisar aprender sobre as convenções que se referem às relações entre o som e a grafia, como a ortografia. Vejamos o que diz Morais (2012, p. 65): A criança recém‑chegada a uma hipótese alfabética ainda acredita no princípio alfabético, isto é, ela pensa que prevalece a lógica originalmente idealizada para o sistema, segundo a qual cada letra deveria equivaler a um (único) som e cada som deveria ser notado por uma única letra. Assim, ao colocar uma letra para cada som, tal como pronuncia as palavras, ela tende a pensar que seus problemas de escrita estão resolvidos. Esse engano não pode atingir também os professores e elaboradores de política públicas de alfabetização. Sim, não podemos confundir “ter alcançado uma hipótese alfabética de escrita” com “estar alfabetizado”. As crianças que se encaminham para o princípio alfabético precisam conhecer as letras, segundo Soares (2016, p. 213), porque elas são fundamentais para a compreensão do princípio alfabético. O processo, como já vimos nas fases da escrita, é progressivo, e o princípio alfabético é o momento em que a criança é capaz de fazer uma conexão entre letras e fonemas, tornando‑se capaz de identificar fonemas em palavras e sílabas. Esse processo ela não faz sozinha; ela precisa ser estimulada, “alimentada” e acompanhada pelo docente, que irá criar oportunidades com atividades de consciência fonológica, registros de palavras, histórias, poemas com rimas e aliterações e um trabalho sistemático com diversos gêneros textuais. Saiba mais Observe o trabalho desenvolvido em Lagoa Santa, sob a coordenação de Magda Soares, sobre como as crianças pensam a escrita: ALFALETRAR – Três desenvolvimentos: psicogenético, conhecimento das letras e consciência fonológica. 2017. 1 vídeo (10 min). Publicado pelo canal Nova Escola. Disponível em: https://bit.ly/3TinZe5. Acesso em: 16 mar. 2023. O vídeo a seguir aborda a transição da fase silábico‑alfabética para a alfabética. Verifique a importância do acompanhamento do professor: ALFALETRAR – Ciclo Básico 1º e 2º anos: alguns procedimentos didáticos. 2017. 1 vídeo (16 min). Publicado pelo canal Nova Escola. Disponível em: https://bit.ly/2AzkSX4. Acesso em: 16 mar. 2023. 103 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO Observe a produção a seguir: Figura 58 Fonte: Brasil (2003, p. 142). O texto escrito por Rodrigo é um exemplo de escrita alfabética e revela a necessidade de intervenções didáticas pelo professor(a). Há palavras sem segmentação da escrita (OSOL), há questões ortográficas a serem resolvidas, paragrafação, acentuação, pontuação, entre outros aspectos da análise linguística que serão gradativamente desenvolvidos no decorrer da trajetória escolar, ou seja, o respectivo avanço do aprendiz vai depender de outras atividades escritas acompanhadas do exercício oral ao lado do educador. Como já refletimos, a compreensão do princípio alfabético envolve várias operações cognitivas. O indivíduo terá que refazer em sua mente as relações entre o todo (palavra) falado e o todo (palavra) escrito, respeitando a lógica termo a termo. No momento da transição para a escrita alfabética, as crianças acessam a consciência fonêmica, uma etapa especial para elas e uma mudança radical, já que agora elas passam a ler e também a ler o que elas escrevem e a observar as lacunas existentes nas palavras, e o desafio está em como supri‑las dentro da cadeia sonora. Será uma relação recíproca e de interação entre a consciência fonêmica e a aprendizagem da escrita alfabética. A representação dos fonemas por letras vai gradativamente tornando visíveis as palavras sonoras, e o caminho é a percepção fonêmica, que, por sua vez, como explica Soares, leva à compreensão das relações entre fonemas e letras. Quando você, futuro professor, for explorar com as crianças, em sala de aula, atividades em que elas deverão preencher a lacuna – ou seja, completar o nome de cada figura, como no exemplo a seguir –, é interessante solicitar a elas que completem a figura com a letra, e não com o fonema. Como o fonema é abstrato e não pronunciável, ao solicitar que o aprendiz coloque a letra, na verdade solicitará que identifique o fonema que falta e o represente com a letra que a ele corresponde (SOARES, 2022). 104 Unidade II O B O E AO Ã O O R O O U E I AO M I A Figura 59 Adaptada de: https://cutt.ly/H8gaSvG; https://cutt.ly/r8gaJt2; https://cutt.ly/K8gaNWw; https://cutt.ly/j8WdMlC; https://cutt.ly/b8ganGH. Acesso em: 27 fev. 2023. Nesse momento de consolidação do princípio alfabético, os aprendizes precisam: produzir palavras a partir de um determinado som; identificar o fonema inicial de uma palavra; entender o que acontece em caso de exclusão de um fonema; e compreender como os fonemas se juntam ou ainda como se separam e o que acontece quando falta algum fonema na escrita de uma palavra. Assim, acreditamos que o trabalho com jogos e textos poéticos da tradição oral são recursos valiosos na exploração dos efeitos sonoros ao lado do trabalho do registro das palavras e textos. Por exemplo, na ordem das rimas, as crianças podem perceber recursos linguísticos por meio de poemas e canções ou por brincadeiras que relacionam nomes próprios a nomes de objetos. Atividades que investem no agrupamento de palavras que rimam a partir de figuras ou baseadas em completar as rimas, além de serem divertidas para as crianças, auxiliam a pensar nos sons das palavras. Assim, a exploração de textos poéticos e da tradição oral se mostra mais uma possibilidade didática que pode motivar as crianças por serem conhecidos do seu repertório cultural e de brincadeiras como quadrinhas, músicas, cantigas, parlendas, trava‑línguas, entre outras. Encontramos no livro Sistema de escrita alfabética, de Artur Gomes de Morais (2012, p. 94‑98), um relato da professora Marlene, desenvolvido em 2009 numa escola da rede pública de Recife. O trabalho dessa professora ilustra muito bem a proposta lúdica e de resgate cultural que foi desenvolvida com o reconhecimento da escrita de palavras de músicas, por meio da exploração oral. A proposta se inicia 105 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO com a turma e a professora brincando no pátio da escola ao som da música “O pião entrou na roda” e a representando por movimentos ritmados. De volta para a sala aula, a letra da música é escrita num cartaz afixado na parede, e por um diálogo com a turma, a professora inicia um trabalho de identificação das palavras, utilizando as rimas da música. Depois dessa exploração, as crianças desenharam figuras que começavam com a sílaba pi de pião. Morais salienta que essa atividade é um exemplo muito interessante e prazeroso de ensinar e que não recai na tradicional repetição sem sentido do “ba‑be‑bi‑bo‑bu”. A professora mobilizou seus aprendizes a pensarem em palavras parecidas com o pi de pião, palavra que estava visível no cartaz, e com isso favoreceu a observação da notação escrita na relação sonora. Esse exemplo é uma inspiração na utilização de textos poéticos da tradição oral, uma vez que as crianças já conhecem o texto de memória, estabelecem relação entre o que está sendo falado e escrito, podem acompanhar a letra das canções com o dedinho sobre o material escrito e ainda percebem que o que se pronuncia com a boca pode ser escrito, mesmo que inicialmente não saibam escrever. Além disso, as crianças que já sabem escrever passam a pensar em quais letras podem usar ao escrever certas palavras. Saiba mais Observe alguns exemplos de jogos que contribuem para o desenvolvimento da consciência fonológica. Lembramos que os jogos apresentados são indicados para crianças em diferentes fases da escrita. Selecionamos alguns materiais que você pode acessar gratuitamente. CARVALHO, A. B. G.; PESSOA,C. A. S. (orgs.). Catálogo de jogos interdisciplinares do ciclo de alfabetização. Recife: Ed. UFPE, 2019. Disponível em: https://cutt.ly/T3ercR8. Acesso em: 6 fev. 2023. LIMA, J. M. et al. (org.). Catálogo divertido: jogos para alfabetizar. Recife: Ed. UFPE, 2018. Disponível em: https://cutt.ly/58gkwGI. Acesso em: 27 fev. 2023. BRANDÃO, A. C. P. A. et al. Jogos de alfabetização: manual didático e 10 jogos para você levar para a sala de aula!. São Paulo: Nova Escola, 2020. Disponível em: https://cutt.ly/X3epZY4. Acesso em: 6 fev. 2023. Há também um conjunto de jogos criados pelo Programa de Alfabetização da Idade Certa (Pnaic) que ficam disponibilizados com livre e fácil acesso na plataforma do MEC. Disponível em: https://cutt.ly/q3eyinQ. Acesso em: 6 fev. 2023. 106 Unidade II Quando você estiver atuando na escola, vivenciando o cotidiano da sala de aula, terá crianças em diferentes fases. Agrupá‑las de forma produtiva é uma boa possibilidade para troca e avanços de todos os envolvidos, uma vez que conduzir aqueles que enfrentam dificuldades pode alcançar resultados e também proporciona a estabilização dos que estão mais avançados, sem contar o benefício da convivência e o respeito às diferenças. Os jogos fonológicos do CEEL (Centro de Estudos em Educação e Linguagem) foram concebidos, segundo Morais (2012), para os alfabetizandos vivenciarem situações lúdicas em que podem brincar com as palavras e passar a compreender as relações entre as partes, alcançando ganhos significativos durante o processo de alfabetização. Segue um quadro apresentado no livro Jogos de alfabetização (BRANDÃO et al., 2020) em que são indicados dez tipos de jogos com seus nomes e seus objetivos. É necessário que você saiba escolher os jogos que melhor possam atender aos objetivos que pretende atingir com os estudantes e entender o nível de exigência de cada um deles. Vale salientar que esse trabalho precisa entrar na rotina, no dia a dia da sala de aula. Insistimos com essa proposta sistemática e intencional, porque essa é uma maneira de a criança ter continuidade e regularidade na relação com o sistema alfabético. O autor oferece ao professor muitas orientações importantes, entre elas a de que o jogo não ensina sozinho, pois necessita da mediação do docente. É necessário, por exemplo, lembrar os aprendizes de contar os pedaços sonoros com os dedinhos da mão, uma ação concreta, porém facilitadora, ou ainda chamar a atenção deles para as rimas e aliterações. Outra dica importante é estabelecer um pré‑acordo entre os participantes quanto aos nomes das figuras para não criar equívocos na hora de jogar. As figuras devem ser apresentadas aos estudantes, e deve‑se definir coletivamente nomes comuns para todos. Outra sugestão valiosa é variar os integrantes dos grupos que participam dos jogos, permitindo ajustar os diferentes níveis das crianças, e, por fim, contar com a criatividade do(a) professor(a) na criação de variações dentro dos próprios jogos, tendo em vista as necessidades e interesses da turma. 107 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO Listagem dos jogos e suas finalidades: Quadro 4 Tipo de jogo Objetivos Jogos Jogos de análise fonológica Compreender que, para aprender a escrever, é preciso refletir sobre os sons e não apenas sobre os significados das palavras Compreender que as palavras são formadas por unidades sonoras menores Desenvolver a consciência fonológica, por meio da exploração dos sons iniciais das palavras (aliteração) ou finais (rimas) Comparar as palavras quanto às semelhanças e diferenças sonoras Perceber que palavras diferentes possuem partes sonoras iguais Identificar a sílaba como unidade fonológica Segmentar palavras em sílabas Comparar palavras quanto ao tamanho, por meio da contagem do número de sílabas Bingo dos sons iniciais Caça rimas Dado sonoro Trinca mágica Batalha de palavras Jogos para reflexão sobre os princípios do sistema alfabético Compreender que a escrita nota (representa) a pauta sonora, embora nem todas as propriedades da fala possam ser representadas pela escrita Conhecer as letras do alfabeto e seus nomes Compreender que as palavras são compostas por sílabas e que é preciso registrar cada uma delas Compreender que as sílabas são formadas por unidades menores Compreender que a cada fonema corresponde uma letra ou conjunto de letras (dígrafos), embora tais correspondências não sejam perfeitas, pois são regidas também pela norma ortográfica Compreender que as sílabas variam quanto a composição e número de letras Compreender que, em cada sílaba, há ao menos uma vogal Compreender que a ordem em que os fonemas são pronunciados corresponde à ordem em que as letras são registradas no papel, obedecendo, geralmente, ao sentido esquerda‑direita Comparar palavras quanto às semelhanças gráficas e sonoras, às letras utilizadas e à ordem de aparição delas Mais uma Troca letras Bingo da letra inicial Palavra dentro de palavra Jogos para consolidação das correspondências grafofônicas Consolidar as correspondências grafofônicas, conhecendo todas as letras e suas correspondências sonoras Ler e escrever palavras com fluência, mobilizando, com rapidez, o repertório de correspondências grafofônicas já construído Quem escreve sou eu Fonte: Brandão et al. (2020). A seguir, reproduzimos alguns jogos. Jogo 1: Batalha de palavras Esse jogo tem como objetivo compreender as palavras compostas por unidades sonoras menores, identificar a sílaba como unidade fonológica, segmentar palavras em sílabas e compará‑las quanto ao número de sílabas. É indicado para os estudantes que precisam perceber que a palavra é constituída de significado e tem uma sequência sonora. Sugestões: é interessante o professor explicar aos estudantes as regras do jogo, e todos devem aceitá‑las para uma melhor interação e familiarização desse gênero textual. Eles deverão compreender que precisam contar as sílabas das palavras. Caso o professor considere necessário, poderá, nas primeiras partidas, fazer grupos com a participação de crianças que já saibam segmentar as palavras para auxiliar aquelas que não sabem. 108 Unidade II Como jogar: • Número de jogadores: 2 jogadores ou 2 duplas. • Materiais: 30 fichas com figuras cujos nomes variam quanto ao número de sílabas. • Objetivo do jogo: vence o jogo quem tiver mais fichas ao final. Regras: • As fichas devem ser distribuídas igualmente entre os dois jogadores. Estes as organizam de forma que fiquem com as faces viradas para baixo, uma em cima da outra, formando um monte. • O primeiro jogador desvira a primeira ficha de seu montinho ao mesmo tempo em que o seu adversário também desvira uma ficha do montinho dele. • O jogador que desvirar a ficha cuja palavra contiver maior quantidade de sílabas ganha a sua ficha e a ficha desvirada por seu adversário. • Se duas palavras coincidirem quanto ao número de sílabas, cada jogador deve desvirar mais uma ficha do seu montinho até que haja uma diferença quanto ao número de sílabas. Nesse caso, o jogador que desvirar a ficha cuja palavra tiver maior número de sílabas leva todas as fichas desviradas na jogada. • O vencedor será quem, ao final do jogo, conseguir ficar com o maior número de fichas. Repertório de palavras usadas no jogo: Quadro 5 Helicóptero Rinoceronte Televisão Computador Mamadeira Borboleta Dinossauro Abacaxi Bicicleta Dentadura Elefante Panela Janela Vassoura Formiga Avião Sapato Igreja Galo Pinto Bola Casa Leão Peixe Livro Sapo Pá Mão Flor Pé 109 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO Saiba mais Você pode conferir as cartelas do jogo, caso tenha interesse em confeccioná‑lo, nas páginas 23 a 33 da obra: BRANDÃO, A. C. P. A. et al. Jogos de alfabetização: manual didático e 10 jogos para você levar para a sala de aula!. São Paulo: Nova Escola, 2020. Disponível em: https://cutt.ly/X3epZY4. Acesso em: 6 fev. 2023. Esse jogo é interessante para os aprendizes que considerem que cada sílaba deve ser escrita com uma letra. Aocomparar com palavras do jogo, eles poderão refletir que no geral temos mais letras do que sílabas nas palavras. Jogo 2: Jogo do barquinho O jogo do barquinho é um velho conhecido dos professores. Organiza‑se uma roda com a turma, e um barquinho de papel ou mesmo de brinquedo deve circular pelo participantes. O comando é: “Lá vai um barquinho carregando a palavra maçã”. A criança seguinte da roda deve dizer “Lá vai um barquinho carregando o macaco”. A orientação é buscar palavras que comecem com ma. Sucessivamente, o barquinho vai passando pelas crianças, que devem falar palavras que comecem com ma, nesse caso. Aquele que errar paga “uma prenda” e o jogo continua até o(a) professor(a) perceber que um bom número de palavras já foi explorado, quando pode então dar início a outra sílaba. Esse jogo tem como objetivo explorar os sons iniciais, mas pode sofrer alterações para sons finais. Jogo 3: Forca Um jogo tradicional que faz muito sucesso entre as crianças, em especial aquelas que já estão alfabéticos. O jogo da forca tem como proposta os participantes adivinharem uma palavra definida pelo adversário, dizendo uma letra de cada vez. Para cada letra errada, uma parte do corpo de um boneco é desenhada na “forca” e, na hipótese de o corpo ser completado antes de formar a palavra, o jogador é “enforcado” e perde a partida. Regras: dois ou mais integrantes formando grupos. O participante ou o grupo define a palavra que vai ser usada e faz o número de tracinhos correspondentes a cada letra da palavra. Esse registro pode ser feito na lousa ou em folha de Kraft afixada em um mural. O adversário diz uma letra e, se estiver certa, o colega coloca a letra no seu respectivo lugar na palavra (se houver repetições de letra, deve colocar todas); se estiver errada, desenha uma parte do corpo na “forca” (cabeça, tronco, um braço, outro braço, uma perna, outra perna, mãos, pés – os participantes decidem quais partes do corpo valem). O ganhador será o aluno que pensou na palavra, se o corpo for formado antes que o adversário acerte a palavra, ou será o participante que está adivinhando, se ele conseguir formar a palavra antes que o corpo todo seja desenhado. 110 Unidade II Exemplo de atividade: forca com os nomes dos alunos e alunas da turma. O professor sorteia o nome de uma das crianças da turma e coloca no quadro os tracinhos com a quantidade de letras referentes ao nome da criança. Os alunos dizem as letras que acreditam que compõem aquele nome. Estando corretas, o professor escreve no quadro. Se estiver errada, ele desenha uma parte do corpo do boneco na forca. Uma variação pode ser a escrita de nomes de objetos que estão na sala de aula. Outra variação é, em vez de se trabalhar com letras, trabalhar com sílabas. Jogo 4: Pega palavras Esse jogo tem como objetivo formar o maior número de palavras. São três jogadores. São necessários um dado, varetas coloridas e saquinhos nas cores das varetas contendo diferentes sílabas. Regras: os jogadores lançam o dado, e aquele que tirar o número maior será o primeiro a jogar. O feixe de varetas é jogado ao acaso, e a primeira criança tenta pegar uma vareta. A cor da vareta que for retirada por ela indicará a cor do saquinho em que ela deve pegar uma sílaba, sem olhar. O jogador guarda a sílaba retirada do saquinho virada para baixo e aguarda a próxima vez de jogar. O jogador seguinte tenta pegar uma vareta e o mesmo procedimento é seguido por ele. Cada jogador tira apenas uma vareta por vez. Se, nessa tentativa, ele mover alguma vareta do feixe, ele perde a jogada, ou seja, não leva nenhuma vareta e, portanto, também não pega uma sílaba do saquinho. A cada vareta retirada, os jogadores vão acumulando sílabas com as quais tentarão formar palavras. O jogo termina quando acabarem as varetas, e vence quem formar o maior número de palavras com as sílabas que foi acumulando durante o jogo (LIMA et al. 2018). Esse jogo busca estimular a percepção de que as vogais estão presentes em todas as sílabas, desenvolver a percepção de que as sílabas variam na sua composição, entender que palavras diferentes podem compartilhar as mesmas sílabas e, por fim, desenvolver conhecimentos sobre as correspondências grafofônicas e a formação de novas palavras. Vale lembrar que para as crianças que estão em níveis iniciais do processo de alfabetização do sistema de escrita, é interessante o professor organizar grupos produtivos, de modo que tenham crianças de níveis diferentes que possam se apoiar na formação das palavras. Os combinados prévios para o jogo podem variar. Por exemplo, os jogadores podem retirar varetas do feixe até mexer em algumas delas, e não apenas retirar uma de cada vez, e pode‑se também aumentar o número de saquinhos e oferecer mais possibilidades de formação de palavras. Ao final da partida, o professor pode pedir que as palavras formadas no jogo sejam registradas no caderno. A partir daí, pode conduzir um trabalho de exploração das palavras de forma coletiva. É possível, por exemplo, explorar a quantidade de sílabas e letras das palavras, notar quais são as palavras maiores e menores, fazer uma lista de palavras (oralmente ou por escrito) que tenham a mesma sílaba inicial de uma determinada palavra formada no jogo etc. (LIMA et al., 2018). 111 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO 5.4 Como trabalhar com parlendas, trava‑línguas e ditados populares? Figura 60 Fonte: Rosa e Dubeux (2018, capa). O livro Abriu‑se a biblioteca: mitos, rimas, imagens, monstros, gente e bichos, de Rosa e Dubeux (2018), apresenta a literatura na escola e na comunidade. Possui nove capítulos, dos quais dois apresentam um aporte teórico e os demais oferecem vivências e práticas pedagógicas para gêneros textuais, assim como sequências didáticas na perspectiva da literatura. Indicamos especialmente o quarto capítulo, a partir da página 66, que aborda os poemas da tradição oral que fazem parte da cultura poética infantil e que, devido ao jogo repetitivo das palavras e sons com rimas e aliterações, vem ao encontro da proposta do trabalho com a consciência fonológica. A sequência didática chama‑se “Curtição Oral, essa onda é bem legal” e tem como objetivo explorar as adivinhas, parlendas, quadrinhas, entre outras, para que as 112 Unidade II crianças possam usufruir do repertório que faz parte da cultura local e como prática oral e escrita nas salas de alfabetização. A poesia joga com as palavras e as rimas, tem ritmo, retrata sonhos, desejos e emoções, provocando sensações de prazer e ludicidade. Segundo as autoras, as adivinhas são textos enigmáticos, estruturados em termos de perguntas e respostas, que acabam atraindo e divertindo as crianças. As parlendas são um conjunto de palavras organizadas em versos que podem rimar ou não, mas no geral são acompanhadas de atividades como jogos, movimentos corporais ou brincadeiras. E por último, as quadrinhas são composições curtas que rimam no segundo e quarto versos, em geral são modinhas e a grande maioria de origem lusitana, assim como os provérbios, que tratam temas variados, como amor, saudade, religião e humor. A sequência didática a seguir foi planejada para sete momentos, como uma prática de letramento com recursos didáticos e estratégias de mediação de leitura: provocações, mobilizações, interações, oralizações e produção escrita. 1º momento Corresponde ao primeiro contato com os gêneros da sequência e consiste nos levantamentos de conhecimentos prévios das crianças. A sala foi organizada com cantinhos de leituras compostos por livros contendo o gênero adivinhas. Trata‑se de um convite para a exploração das obras, para olhar as capas, folhear e conversar. 2º momento A proposta para essa etapa foi a visita à biblioteca comunitária, já que os alunos foram convidados a entender seu funcionamento e conhecerem o acervo. Nessa etapa os estudantes participaram de contação de histórias como A casa sonolenta, de Audrey Wood, e A árvore generosa, de Shel Silverstein.Também vivenciaram brincadeiras com fantoches que exploraram adivinhas. 3º momento Nessa etapa foi retomada a experiência vivida na biblioteca. Naquela aula o professor da turma iniciou brincadeiras de adivinhas e para isso utilizou os livros Você Sabia?, de Zuleika de Felice Murrie, e Folclore brasileiro infantil, de Celia Ruiz Ibáñez. Ao ler as adivinhas, o educador contextualizou o gênero textual e suas características e perguntou se os estudantes as conheciam. Depois da troca de informações, os livros foram disponibilizados para as crianças e incluídos outros para exploração e leitura. Ainda foram incorporados os seguintes livros: O livro das adivinhas, de Antônio Mota, Não tem cabeça nem pé, você sabe o que é?, de Miriam Portela, e Escuta só...O que é? O que é?, de Lenice Gomes. Ainda nesse dia, o docente fez a identificação de brinquedos que foram trazidos pela turma (boneca, carrinho, bola, pião, iô‑iô), registrou esses nomes na lousa e iniciou a votação dos preferidos. Anotou ao lado de cada brinquedo a quantidade de votos. Após essa contextualização, organizou a turma em 113 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO quatro grupos para a produção de adivinhas com o nome do brinquedo mais votado pela turma. O professor auxiliou os estudantes nos ajustes dos textos, os quais foram socializados e registrados em um cartaz afixado na parede da sala de aula. Seguem as produções das crianças: Figura 61 Fonte: Rosa e Dubeux (2018, p. 77). 4º momento Nesse dia a aula começou com a apresentação dos livros Folclore brasileiro infantil, de Celia Ruiz Ibañez, O armazém do folclore, de Ricardo Azevedo, e Turma da Mônica: folclore brasileiro, de Mauricio de Sousa. O professor da turma perguntou se os alunos conheciam parlendas a fim de levantar os conhecimentos prévios e introduzir novo conhecimento. Eles disseram não conhecer e deu‑se início à explicação do professor, que colocou na lousa as parlendas “Um dois, feijão com arroz” e “Hoje é domingo”. Essas duas parlendas foram exploradas com crianças a partir de seus gostos e interesses. Após o intervalo, a turma escolheu, a partir da proposta do professor, produzir uma nova parlenda que fosse uma continuação de “Um dois, feijão com arroz”. Vejam como ficou interessante: 114 Unidade II Figura 62 Fonte: Rosa e Dubeux (2018, p. 79). 5º momento O professor começa a aula com a leitura do poema “Nome e história”, de Edilsete Franco dos Reis, para trabalhar o gênero quadrinhas. Nesse dia, a proposta era brincar de quadrinhas, e o professor trouxe outras para “alimentar” a turma. Ele também levou material fotocopiado para distribuir aos estudantes retirado do site http://www.suapesquisa.com/folclorebrasi‑leiro/quadrinhas_populares.htm. Acesso em: 16 mar. 2022. Em seguida, dividiu a turma em dois grupos, que exploraram duas “caixas mágicas” repletas de quadrinhas e foram convidados a ler e a trocar os textos. Após o intervalo, o docente realizou um sarau de quadrinhas e os alunos foram avaliando os textos como engraçado, bonito, divertido etc. 6º momento A aula teve início com uma roda de conversa em que as crianças contaram com foi a experiência de ler em casa as quadrinhas para seus familiares. Um livro foi introduzido para mais um proposta: Folk‑lore pernambucano: subsídios para a história da poesia popular em Pernambuco, de F. A. Pereira da Costa. O livro apresentado foi explorado pela turma por meio de uma visitante que, ao final do dia, 115 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO apresentou a versão musicada do poema “O menino e o rio”, de Manoel de Barros, para puro deleite. Os alunos gostaram, acompanharam se balançando e pediram uma segunda apresentação. Saiba mais Leia a obra a seguir. Trata‑se do melhor documento sobre o folclore brasileiro e abrange quase todo o repertório popular, com superstições, poesias, parlendas, brinquedos infantis, quadras e outros. PEREIRA DA COSTA, F. A. Folk‑lore pernambucano: subsídios para a história da poesia popular em Pernambuco. Recife: Arquivo Público Estadual, 1974. 7º momento A sequência foi finalizada com a organização dos materiais produzidos e lidos entre a turma. Nesse momento, alguns alunos já sabiam quadrinhas e parlendas de cor. Essa sequência didática mostra a ação intencional e o planejamento cuidadoso do professor, considerando os saberes prévios dos estudantes e introduzindo novos conhecimentos contextualizados de forma lúdica, motivadora, com estratégias de leitura e vivências com textos reais. Cada gênero teve sua exploração própria, sendo incentivado com um amplo repertório de livros e materiais para que os alunos tivessem contato com a escrita, deleite, risos e brincadeiras. Apreciar a cultura popular levou a reconhecer as rimas e aliterações das tradições orais. Os estudantes, enquanto ouvintes participativos, tiveram o momento da criação de produções autorais a partir dos gêneros trabalhados. Foi uma prática de letramento entrelaçada de exercícios de consciência fonológica bastante adequada para crianças alfabéticas. A indicação do projeto Trilhas da Natura é uma oportunidade para você, futuro professor, conhecer esse material que é rico em sugestões e está de acordo com os pressupostos apresentados neste livro‑texto. Ele apresenta um caderno de jogos interessantes e lúdicos que contribuem para a reflexão do SEA. A seguir, apresentaremos informações sobre o Programa e um jogo desse caderno. 116 Unidade II Projeto Trilhas da Natura Figura 63 Fonte: Brasil (2011, capa). O Instituto Natura desenvolve o Programa Crer para Ver com a proposta de contribuir para a melhoria da qualidade da educação pública no Brasil. Nesse contexto, desenvolveu em parceria com a Comunidade Educativa (Cedac), organização da sociedade civil de interesse público, o projeto Trilhas, visando dar apoio e formação para professores e diretores. O MEC, tendo avaliado esse projeto, concluiu que a metodologia e as estratégias desenvolvidas estão alinhadas às diretrizes propostas. Desta forma, sugerimos a leitura dos cadernos que contribuirão para ampliar seu repertório de atividades que tratam sobre o desenvolvimento da leitura e escrita e oralidade das crianças de 6 anos. O caderno apresenta um conjunto de jogos que promovem o desenvolvimento das crianças de 6 anos que estão em processo de alfabetização. Eles são um convite à participação ativa, lúdica, uma vez que, ao jogar, elas exploram, refletem, perguntam, participam, fazem descobertas e são incentivadas a conviver socialmente, o que pode trazer muitos benefícios para o seu desenvolvimento integral. O jogo escolhido para ilustrar o projeto Trilhas foi “Que brinquedo é esse?” (BRASIL, 2011, p. 28‑29). É um jogo que tem como objetivo encontrar o nome de um conjunto de brinquedos correspondente à imagem sorteada. Para tanto, é necessário analisar a escrita desses nomes a partir das sequências sonoras. Os estudantes devem mobilizar o conhecimento que têm das letras e podem contar com ajuda das palavras da escrita do próprio nome e dos nomes dos colegas. As listagens dos nomes da chamada ou dos aniversariantes do mês afixados nos murais da sala de aula favorecem o conhecimento das letras, pois são com frequência utilizadas. 117 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO O jogo pode ter até quatro participantes. Como material, são necessários 16 cartões com imagens de brinquedos e 16 cartões com seus respectivos nomes. O objetivo do jogo é encontrar o maior número de tiras que correspondam aos nomes dos brinquedos. Preparação: devem‑se formar os grupos, colocar os cartões com as imagens viradas para baixo, formando um montinho, e distribuir na mesa, virados para cima, as tiras (cartões) com o nome dos brinquedos. Sorteia‑se quem dará início ao jogo. O primeiro a jogar vira o cartão com a imagem do brinquedo e assim que identificar o nome correspondente, se estiver correto, pega para si ambos os cartões. Caso não tenha acertado, passa a vez para o próximo. Segue‑se o jogo até que não haja mais cartõese tiras na mesa. Nesse jogo, vale a dica de se trabalhar os nomes das imagens entre todos os estudantes antes de se iniciar a partida. Consideramos importante ajudar a criança a pensar na sonoridade dos nomes e procurar associá‑los às letras com pistas que ajudem a identificar seus nomes – por exemplo, a sugestão das letras que são parecidas com seu nome ou dos colegas. Nesse sentido, o professor pode ajudar com perguntas que favoreçam a reflexão. Por exemplo: • Como se chama esse brinquedo da imagem? • Com que letra vocês acham que ela começa? E como termina? Os questionamentos vão ajudá‑los nos conflitos que possam ter quando encontrarem palavras como bola, boneca, corda e peteca, que possuem os mesmos sons inicias e finais. Mesmo antes de dominar o conhecimento do sistema de escrita alfabético, as crianças já utilizam essas pistas para localizar a palavra buscada e descartar as demais. Quanto maior a frequência dessas atividades, maiores são as chances de a criança encontrar os pares dos cartões com as tiras. Os agrupamentos produtivos possibilitam a troca de saberes e o avanço no conhecimento. Como pudemos ler, o conjunto de atividades e jogos sugeridos é uma fonte de inspiração para você, possivelmente um futuro professor alfabetizador, e ao mesmo tempo um desafio para auxiliar as crianças a pensar a relação entre a linguagem oral e escrita de maneira lúdica, significativa e contextualizada. Soares (2022) explica que ao realizar jogos e brincadeiras com rimas, o objetivo do(a) professor(a) é explorar a consciência fonológica, evidenciando os sons da rima e as palavras que a representam. Cabe a ele saber escolher o tipo de rima mais associada aos objetivos que se quer alcançar, uma vez que há diferentes tipos de rimas – por exemplo, as consoantes e assonantes. Assim, reforçamos que o(a) professor(a) deve estabelecer uma rotina de observação da turma para lançar mão de um planejamento efetivo. Mais uma vez consideramos oportuno recorrer às palavras de Morais (2012) sobre a diferença em se trabalhar a consciência fonológica e os métodos fônicos, pois pudemos verificar nos exemplos apresentados como é possível explorar a relação sonora com a escrita de forma prazerosa e sem fazer uso de treinamentos exaustivos ou ficar repetindo os sons dos fonemas aleatoriamente. Os jogos de 118 Unidade II consciência fonológica não podem ser confundidos com os treinamentos de sons dos fonemas com repetições sonoras exaustivas somadas a falsos textos submetendo os aprendizes a situações sem significado algum para eles. A partir das reflexões apresentadas, se impõe a necessidade de pensar em metodologias para alfabetizar. Acreditamos que a psicogênese da escrita, o letramento e a consciência fonológica podem dialogar no processo de aquisição da língua escrita durante o processo de aprendizagem. Ao lado desses pilares ainda se alinham alguns princípios que integram o conjunto, tais como saber que a escrita é um sistema notacional e não um código, conseguir diferenciar e justificar a abordagem construtivista da empirista e reconhecer o sistema de escrita como um objeto de conhecimento. Esses fundamentos definem por quais metodologias o(a) professor(a) deve optar em sua prática cotidiana. Observe na figura a seguir quantas aprendizagens o estudante precisa realizar para compreender o sistema de escrita alfabético. Ao se apropriar da escrita alfabética o estudante aprende: Que a palavra oral é uma cadeia sonora independente de seu significado e pode ser segmentada em pequenas unidades. Que cada uma dessas pequenas unidades sonoras da palavra é representada por formas visuais especificadas, as letras. Que o sistema de escrita representa o significante das palavras, não o significado das palavras. A associar significantes a significados (ler) e a representar significados com significantes (escrever). Figura 64 Adaptada de: Soares (2022,). Os aprendizes não chegam a todas essas aprendizagens sozinhos. O ensino sistemático da relação fonema‑grafema envolve um processo de apropriação da “tecnologia da escrita”, como o desenvolvimento de várias habilidades como ler, interpretar e produzir textos. Assim, a mediação pedagógica deve acompanhar os diferentes níveis de desenvolvimento que cada criança vivencia num processo que 119 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO tem dupla mão, já que desenvolvimento e aprendizagem estão conectados. A aprendizagem deve ser estimulada pelo docente no processo de desenvolvimento da criança nas suas diferentes etapas. Em função da mediação, o aprendiz vai se apropriando de informações necessárias sobre a escrita para reelaborar suas hipóteses e conhecimentos prévios até chegar a um novo conhecimento, ou seja, essas aprendizagens impulsionam o desenvolvimento. Desenvolvimento e aprendizagem são interdependentes, e o mesmo pode ser dito sobre alfabetização e letramento, em que o eixo comum é o texto: texto como ponto de partida para quem inicia o processo e texto como ponto de chegada para quem já compreendeu o sistema de escrita alfabética. Parafraseando Soares (2022), seria artificial ensinar a criança a falar ensinando os fonemas e reunindo‑os em sílabas até ela chegar a palavras para o uso no convívio em sociedade, como também seria artificial levá‑las a aprender a escrita excluídas do seu uso social, ou seja, aprendemos a ler para decifrar o mundo, e o texto é o eixo central do processo de alfabetização. A criança adquire a fala naturalmente no convívio com seus pares, sem necessidade de um ensino formal; já a escrita é uma construção social, uma invenção cultural que exige aprendizagem. Argumentos não faltam para você desenvolver um trabalho em que alfabetização e letramento possam fazer parte de uma escolha fundamentada no ensino dos estudantes. Não temos a pretensão de elaborar um guia ou uma receita mirabolante, mas, como vimos, existem princípios que não podemos nos furtar a reconhecer como essenciais na formação de um leitor competente. Esperamos que você possa juntar‑se ao conjunto de educadores que desejam diminuir a exclusão e apostar na formação de um cidadão capaz de ler o mundo, porque não basta aprender a ler e escrever, é necessário interpretar e produzir textos. Dentro dessa perspectiva, temos um convite a fazer: venha pensar na reinvenção do processo de alfabetização, adotando o alfabetizar letrando ou o alfaletrar, como bem define Magda Soares (2022). 6 A NOVA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR (BNCC) E AS RELAÇÕES COM A ALFABETIZAÇÃO E O LETRAMENTO Você já fez uma leitura da nova BNCC (BRASIL, 2018)? Sabia que ela propõe que os estudantes estejam alfabetizados ao final do 2º ano do Ensino Fundamental? Para não perder o fio da meada, vamos retomar o início da unidade II. Os fios que conduzem o processo de alfabetização têm fibras variadas. O fio letramento é orgânico, produz um ponto firme e depois que fura o material se junta à trama e o transpassa de tal forma, que depois de furada nunca mais será a mesma, isso porque o desejo por conhecer novos fios de texturas e gêneros foi despertado. Já o fio consciência fonológica é sonoro e responsável por desvelar formas e posições de cada letra que imprimem um desenho mágico e musical à trama. E por fim temos o fio tempo, delicado e singular, que precisa ser respeitado e ao mesmo tempo muito cuidado. O fio tempo se move com ritmo próprio e cada ponto por ele produzido precisa ser vivido e experienciado em cada fase. Às vezes ele pode ficar tensionado, mas como a costura é continua e construída, ele vai chegar ao produto final de forma potente e cheio de significação. 120 Unidade II Observação A expressão fio da meada significa perder o rumo da conversa ou a linha de raciocínio. Ela surgiu na Revolução Industrial, quando máquinas para fazer tecidos com a manipulação humana começaram a ser usadas. Essas máquinas tinham um suporte para o rolo de fios (meada). A responsabilidade do operário era a de pegar a ponta do fio (o fioda meada) e colocar na posição que a máquina começava a puxar o rolo e fabricar o tecido. Tal função exigia concentração porque o orifício que a máquina usava para puxar o fio era bastante pequeno. Acontece que os rolos passavam um a um a uma velocidade considerável e às vezes o operário perdia o fio da meada por falta de concentração, por cansaço (devido às exaustivas jornadas de trabalho) ou por ficar fazendo mexericos da vida alheia com seus companheiros de trabalho, tanto que os dicionários associam a palavra meada tanto a fios quanto a mexericos. A metáfora da costura dos fios que envolve o processo de alfabetização é um convite para pensar de que forma podemos amarrar todas as tendências e abordagens estudadas, aliando os indicadores propostos na BNCC para a Educação Infantil e o Ensino Fundamental nos anos iniciais no que se refere à alfabetização e ao letramento. Como dissemos, pela nova BNCC os estudantes devem estar alfabetizados ao final do 2º ano do Ensino Fundamental. A educação é um direito que está garantido no artigo 22 da LDB (Lei n. 9.394/96), assegurando que a escola é obrigatória e tem papel fundamental na formação das crianças de modo que possam ter vida ativa em todas as esferas da sociedade. Dentro dos direitos estabelecidos nessa lei, o artigo 32 define como prioritário o ensino da leitura e da escrita. Esse artigo aponta o Ensino Fundamental como obrigatório e gratuito em escola pública, com duração de 9 anos, devendo ser iniciado aos 6 anos de idade. Observe que a inserção da criança aos 6 anos de idade é uma ação propositiva, que garante o direito do acesso ao domínio da leitura e da escrita mais cedo, atingindo um número significativo de crianças que não estavam na escola. Medidas como essa no âmbito nacional precisam ser efetivadas para tentarmos superar o fracasso da alfabetização. Outra ação importante presente na BNCC foi a indicação para que os alunos estejam alfabetizados até o 2º ano do Ensino Fundamental. Isso porque, embora os estudantes tenham direitos de aprendizagem garantidos legalmente, já refletimos que nem todas as regiões do Brasil oferecem as condições objetivas necessárias à educação de qualidade social, assim, a luta pela melhoria não é só do professor, mas de toda a sociedade. Vamos saber mais sobre a BNCC e os direitos de aprendizagem? A Base é um documento normativo oficial, o nosso mais recente indicador curricular, que define os conteúdos essenciais para todos os alunos nas três etapas da Educação Básica, de modo que tenham 121 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento. A Base não é um currículo; como o nome diz, ela é a base. A BNCC não determina como ensinar, mas o que ensinar. A Base enfatiza competências que devem ser desenvolvidas nos estudantes, sendo entendida como a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho. Ao definir essas competências, a BNCC reconhece que a “educação deve afirmar valores e estimular ações que contribuam para a transformação da sociedade, tornando‑a mais humana, socialmente justa e, também, voltada para a preservação da natureza” (BRASIL, 2018), mostrando‑se também alinhada à Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). Pode‑se observar que o conceito de competência nada tem a ver com a ideia de formação de um cidadão para o mercado de trabalho. O que a BNCC propõe é o desenvolvimento integral dos estudantes incluindo todas as dimensões (cognitivas, efetivas, emocionais, sociais e culturais). Outra questão importante apresentada é o rompimento com a aquisição de um conhecimento fragmentado e desvinculado da prática, pois não há mais sentido em acumular o conhecimento. Ele precisa ser útil para a vida em sociedade e promover atitudes e valores universais, associadas aos direitos humanos, consciência coletiva e respeito ao meio ambiente. Por fim, ela nos deixa uma responsabilidade, que é organizar os currículos e as práticas escolares. A Base propõe indicadores, orienta a elaboração de propostas curriculares e deixa para os educadores e a comunidade escolar a responsabilidade de pensar numa organização curricular humana coerente com as necessidades do mundo em que vivemos. Exemplo de aplicação As perguntas que ficam são: Que seres humanos precisamos formar? Quais são os saberes necessários para se em viver em sociedade neste século XXI? A responsabilidade da educação é da sociedade e a escola não pode ficar só nesse projeto. Para que você possa entender a composição da BNCC, observe a imagem a seguir, que apresenta uma visão geral de sua estrutura e as dez competências gerais para as três etapas da Educação Básica: 122 Unidade II Figura 65 Disponível em: https://cutt.ly/q3rVKVF. Acesso em: 6 fev. 2023. 123 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO Apresentamos a seguir as dez competências propostas pela BNCC para que sejam garantidos o desenvolvimento e a aprendizagem dos estudantes da Educação Básica: Quadro 6 Competência Palavras‑chave 1. Valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos sobre o mundo físico, social, cultural e digital para entender e explicar a realidade, continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva Conhecimento 2. Exercitar a curiosidade intelectual e recorrer à abordagem própria das ciências, incluindo a investigação, a reflexão, a análise crítica, a imaginação e a criatividade, para investigar causas, elaborar e testar hipóteses, formular e resolver problemas e criar soluções (inclusive tecnológicas) com base nos conhecimentos das diferentes áreas Pensamento científico, crítico e criativo 3. Valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais, e também participar de práticas diversificadas da produção artístico‑cultural Repertório cultural 4. Utilizar diferentes linguagens – verbal (oral ou visual‑motora, como Libras, e escrita), corporal, visual, sonora e digital –, bem como conhecimentos das linguagens artística, matemática e científica, para se expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos e produzir sentidos que levem ao entendimento mútuo Comunicação 5. Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva Cultura digital 6. Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais, apropriar‑se de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e de seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade Trabalho e projeto de vida 7. Argumentar com base em fatos, dados e informações confiáveis, para formular, negociar e defender ideias, pontos de vista e decisões comuns que respeitem e promovam os direitos humanos, a consciência socioambiental e o consumo responsável em âmbito local, regional e global, com posicionamento ético em relação ao cuidado de si mesmo, dos outros e do planeta Argumentação 8. Conhecer‑se, apreciar‑se e cuidar de sua saúde física e emocional, compreendendo‑se na diversidade humana e reconhecendo suas emoções e as dos outros, com autocrítica e capacidade para lidar com elas Autoconhecimento e autocuidado 9. Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo‑se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes,identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza Empatia e cooperação 10. Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação, tomando decisões com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários Responsabilidade e cidadania Adaptado de: Brasil (2018). A BNCC, ao indicar competências a serem desenvolvidas, vem reforçar o direito de aprendizagem instituído em outros documentos legais, tais como a Constituição Federal, a LDB, as Diretrizes Curriculares e o Plano Nacional de Educação. Essas intenções se materializam nos currículos, os quais expressam um conjunto de decisões que vão adequar a proposta da BNCC à realidade local, levando‑se em consideração a autonomia das redes de ensino e o contato com os alunos, famílias e comunidade. Pretende‑se, ao desenvolver as dez competências, que elas venham a assegurar ao longo do processo de aprendizagem e desenvolvimento dos estudantes uma formação integral humana que vise à construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva. 124 Unidade II 6.1 Educação Infantil Na primeira etapa da Educação Básica, de acordo com os eixos estruturantes da Educação Infantil (interações e brincadeiras), devem ser assegurados seis direitos de aprendizagem e desenvolvimento, para que as crianças tenham condições de aprender e se desenvolver. Isto porque o desenvolvimento não é um processo natural, ele é alavancado pelas interações, brincadeiras e processos educacionais intencionais que impulsionam o desenvolvimento, a partir de uma relação dialética entre desenvolvimento e aprendizagem. Trazendo alguns exemplos, a criança tem o direito a conviver – o que parece bastante óbvio –; no entanto, o que a BNCC propõe é o direito a aprender a conviver com outras crianças de diferentes idades e com adultos, num ambiente social que não a sua casa. Há regras que ela aprenderá a respeitar, e ela vai vivenciar a empatia e aprender a tolerância e a inclusão. Com relação a brincar, também pode parecer fácil cumprir esse direito. Como seria assegurar o direito a aprender a brincar? Com variados brinquedos, em cantinhos diversificados, com brinquedos de madeira ou naturais, em ambientes externos e internos, em grupos ou individualmente. E aprender a participar? Pode parecer que não há novidade nisso, mas é dando voz à criança para que se manifeste, inclusive sobre o planejamento da aula, pois ser protagonista também é fazer parte, é realizar escolhas. A Base propõe o direito de aprender a participar ativamente, o que é uma grande novidade por permitir que a criança faça escolhas, até mesmo na organização do tempo didático e dos materiais a serem explorados, ao realizar assembleias com pequenos representantes de turmas. Aprender a expressar‑se também pode parecer fácil. No entanto, como fazer com que aprendam a se expressar de forma crítica, dialógica, fazendo uso de diferentes linguagens? Como se vê, em todos esses exemplos de direitos estamos exercitando as dez competências propostas pela BNCC. Direitos de aprendizagem Aprender a Conviver Brincar Participar Explorar Expressar Conhecer‑se Figura 66 Adaptada de: Brasil (2018). 125 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO Considerando os direitos de aprendizagem e desenvolvimento, a BNCC estabelece cinco campos de experiências, a partir dos quais as crianças podem aprender e se desenvolver. São eles: O eu, o outro e o nós Corpo, gestos e movimentos Traços, sons, cores e formas Escuta, fala, pensamento e imaginação Espaços, tempos, quantidades, relações e transformações Figura 67 Os campos de experiências constituem um arranjo curricular que acolhe as situações e as experiências concretas da vida cotidiana das crianças e seus saberes, entrelaçando‑os aos conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural. Essa estrutura tem como foco a criança, quebrando a lógica da organização de conteúdos em áreas de conhecimento e colocando os conteúdos curriculares na perspectiva da criança. Os campos integram as relações afetivas, o conhecimento de si mesmo e do outro, as explorações dos objetos e espaços, a linguagem, as normas, as interações, a cultura, a criança, a literatura, a música, a plástica. A função essencial das instituições de Educação Infantil é garantir socialização, cuidado e educação, o que se dá no cotidiano escolar por meio da interação entre as crianças, entre elas e objetos diversos, entre elas e o meio ambiente e o seu entorno, entre as crianças e os adultos etc. Em cada campo de experiências são definidos objetivos de aprendizagem e desenvolvimento organizados em três grupos por faixa etária. Quadro 7 – Objetivos de aprendizagem e desenvolvimento organizados em três grupos por faixa etária Bebês Crianças bem pequenas Crianças pequenas (0–1A6M) (1A7M–3A11M) (4A–5A11M) Adaptado de: Brasil (2018). Os campos de experiências são situações e oportunidades para as crianças que ganham sentido para a compreensão e conhecimento de mundo. Eles estão organizados por faixa etária, respeitando as singularidades de cada etapa. Exemplificando, como pode ser rica a experiência de um bebê! Todos os dias ele tem uma experiência inaugural com o mundo, ao tocar a água fria ou quente, quando experimenta diferentes sabores, ao identificar sons externos. São experiências que trazem encantamento para quem 126 Unidade II acompanha e tem um olhar atento e aberto. Desta forma, as oportunidades criadas no ambiente e nas interações vão favorecer o desvelamento do mundo e a construção da subjetividade e da identidade. Os campos não isolados se conectam e as experiências que as crianças vivem sempre extrapolam os limites e os objetivos propostos pelo professor, pois a criança tem uma forma diferente de interpretar o mundo. Vale a pena citar que o foco da Educação Infantil não está preso à produção do conhecimento conceitual, formal, e sim à experiência, ou seja, espera‑se que a criança possa interagir no ambiente com as pessoas e progressivamente vá ampliando seu conhecimento de mundo e se aproximando do conhecimento historicamente construído pela humanidade. A título de exemplo, não é incomum observarmos um plano de aula da Educação Infantil organizado pelo professor com o objetivo formal de fazer a criança nomear as cores primárias. A tarefa que o plano propõe é pintar com as cores primárias, uma atividade mecânica destituída de participação e criatividade, em que um registro no papel parece ser o certificado de aprendizagem. A Base propõe romper com esse modelo escolarizante. O que se espera é a criação de situações lúdicas e regulares, ou seja, frequentes e que garantam acesso a tintas, riscantes e corantes naturais, para que as crianças possam experimentar as diferentes cores em contextos reais. O uso do ateliê de artes não pode ser um evento realizado uma vez por mês, ele precisa estar presente na rotina semanal para que a criança conheça as cores e todas as suas nuances, misturas e usos. Teríamos muito a abordar sobre os campos de experiências; no entanto, o que mais vai atender nosso foco de interesse é o campo da escuta, fala, pensamento e imaginação. A alfabetização é um dilema na Educação Infantil. Desde pequena a criança experimenta o contato com a linguagem. Sua manifestação é o choro, que estabelece uma comunicação com as pessoas que cuidam do bebê. Facilmente, as pessoas que cuidam dele conseguem diferenciar o choro que representa fome, sono, cólica ou manha. As primeiras formas de interação do bebê são os movimentos do seu corpo, o olhar, a postura corporal, o sorriso e outros recursos vocais, que ganham sentido com a interpretação do outro. Outra maneira de comunicação é o gesto: a criança aponta com o dedinho seus desejos e interesses, e nessa experiência vai se apropriando da cultura, aprendendo a língua e o modo de olhar, e progressivamente vai ampliando seu vocabulário e demais recursos de expressão. Na Educação Infantil,é importante promover experiências nas quais as crianças possam falar e ouvir, ampliando sua participação na cultura oral, uma vez que a escuta de histórias nas rodas de conversas e nas interações com as múltiplas linguagens criam o sentimento de pertencimento a um coletivo e constituem ao mesmo tempo sujeitos sociais. Um desafio se refere à alfabetização. Há defensores da ideia de que não se deve alfabetizar na Educação Infantil, chegando a extremos em que educadores dizem ser possível realizar o letramento sem letras (SOARES, 2010). Para a autora, não há sentido em marcar uma data para essa aproximação. Esse campo de tensão sobre a alfabetização na Educação Infantil se refere à sistematização da escrita, ou seja, trazer para essa etapa todo o processo técnico que envolve a alfabetização. Há experiências que podem e devem acontecer antes desse processo, conforme indica a Base (BRASIL, 2018). 127 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO A BNCC da Educação Infantil organiza o que ensinar no campo de experiências escuta, fala, pensamento e imaginação e apresenta aos professores indicadores para que eles possam explorar já com os bebês, crianças bem pequenas e pequenas. Desde muito cedo, a criança manifesta curiosidade com relação à cultura escrita, por exemplo, ao ouvir e acompanhar a leitura de textos que circulam na família, na comunidade e na escola e observar como os adultos fazem uso dos diferentes gêneros textuais nas práticas sociais. As experiências com literatura propostas na escola contribuem para o gosto pela leitura, o estímulo à imaginação e a ampliação do conhecimento de mundo. Mais ainda, no contato com textos escritos, as crianças vão construindo hipóteses sobre a escrita, e nos desenhos, rabiscos e garatujas já começam a testá‑los com as oportunidades criadas. Estes são os primeiros registros da escrita: escritas espontâneas, não convencionais, mas que já indicam uma comunicação e uma representação da língua. Não é objeto de conhecimento da Educação Infantil o estudo da língua portuguesa. Segundo Soares (2010), há um mau entendimento do que seria trabalhar com a língua escrita na Educação Infantil, ou seja, associa‑se aprender a língua com uma disciplina formal, uma tarefa que tiraria da criança a brincadeira, quando isso pode ser feito de forma lúdica, com grande prazer e interesse. A criança lida com livros, com letras, com sons, com atividades que envolvem o seu nome, com consciência fonológica para aprender os sons, o que é importantíssimo para aprender a escrever posteriormente. Apresentamos a seguir alguns objetivos de aprendizagem no campo de experiências escuta, fala, pensamento e imaginação que estão associados ao letramento: Quadro 8 – Objetivos de aprendizagem e desenvolvimento organizados em três grupos por faixa etária Bebês (0–1A6M) Crianças bem pequenas (1A7M–3A11M) Crianças pequenas (4A–5A11M) Conhecer e manipular materiais impressos e audiovisuais em diferentes portadores (livro, revista, gibi, jornal, cartaz, CD, tablet etc.) Criar e contar histórias oralmente, com base em imagens ou temas sugeridos Produzir suas próprias histórias orais e escritas (escrita espontânea), em situações com função social significativa Participar de situações de escuta de textos em diferentes gêneros textuais (poemas, fábulas, contos, receitas, quadrinhos, anúncios etc.) Manusear diferentes portadores textuais, demonstrando reconhecer seus usos sociais Levantar hipóteses sobre gêneros textuais veiculados em portadores conhecidos, recorrendo a estratégias de observação gráfica e/ou de leitura Reconhecer elementos das ilustrações de histórias, apontando‑os, a pedido do adulto‑leitor Formular e responder perguntas sobre fatos da história narrada, identificando cenários, personagens e principais acontecimentos Recontar histórias ouvidas e planejar coletivamente roteiros de vídeos e de encenações, definindo os contextos, os personagens e a estrutura da história Adaptado de: Brasil (2018). Renovamos as interpretações inadequadas sobre o letramento na infância. Há uma discussão de quando e como se começar as práticas de letramento que estariam desrespeitando o direito de viver a infância. Conforme informam Sanches e Toquetão (2019), algumas escolas de Educação Infantil sofreram um processo de limpeza de traços de língua escrita, e nessas instituições só é permitido à criança pintar e desenhar. No entanto, sabemos que isso é praticamente impossível, pois além de viver imersa numa 128 Unidade II cultura letrada, ela ainda conta com os avanços da tecnologia e o uso de múltiplos modos de expressão e de comunicação. Os multiletramentos que envolvem os princípios de pluralidade cultural e de diversidade de linguagens estão fortemente presentes no cotidiano das crianças. Como reforçam as autoras, as crianças não se comunicam só com palavras, pois usam gestos, sinais e imagens que configuram a multimodalidade na comunicação. Como se pode ver, a BNCC aponta o caminho que conduzirá a criança para a reflexão sobre o sistema alfabético. Quando ela propõe as brincadeiras com poemas, parlendas e jogos cantados, são passos para a apropriação dos sons da língua, num rico exercício de consciência fonológica. O conto e o reconto de histórias, que devem ser frequentes, são exemplos de prática de letramento que enriquecem o vocabulário e proporcionam o desenvolvimento de habilidades de compreensão de texto. É no contexto da significação de diferentes gêneros textuais que a criança que está na Educação Infantil dá os primeiros passos para a inserção na escrita. Dessa forma, as crianças poderão viver experiências com situações reais de escrita e leitura nas práticas do cotidiano, sempre de forma lúdica e prazerosa. 6.2 Ensino Fundamental Nos anos iniciais, a BNCC prevê a valorização de situações lúdicas de aprendizagem para a articulação com as experiências vivenciadas na Educação Infantil. Há uma transição a ser respeitada, e esse processo deve prever uma progressiva sistematização de experiências quanto ao desenvolvimento, pelos alunos, de novas formas de relação com o mundo, novas possibilidades de ler e formular hipóteses sobre os fenômenos, de testá‑los e refutá‑los e de elaborar conclusões, em uma atitude ativa na construção do conhecimento. Nesse período da vida, as crianças estão vivendo importantes mudanças em seu processo de desenvolvimento, que repercutem em suas relações consigo mesmas e com os outros (BRASIL, 2018). Nesse sentido, a BNCC propõe o estímulo do pensamento lógico, criativo e crítico, bem como sua capacidade de perguntar, argumentar, interagir e ampliar a sua compreensão de mundo. Isso significa que ao longo do Ensino Fundamental a progressão de conhecimentos ocorre pela consolidação das aprendizagens anteriores e pela ampliação das práticas de linguagem e experiência estética e intercultural das crianças, considerando tanto seus interesses e suas expectativas quanto o que ainda precisam aprender. A organização da BNCC se dá por áreas de conhecimento e componente curricular: • Linguagens: Língua Portuguesa, Arte, Educação Física. • Ciência da Natureza: Ciências. • Ciências Humanas: História e Geografia. 129 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO • Matemática. • Ensino Religioso. A seguir, apresentaremos as competências específicas da área de linguagens: • Compreender as linguagens como construção humana, histórica, social e cultural, de natureza dinâmica, reconhecendo‑as e valorizando‑as como formas de significação da realidade e expressão de subjetividades e identidades sociais e culturais. • Conhecer e explorar diversas práticas de linguagem (artísticas, corporais e linguísticas) em diferentes campos da atividade humana para continuar aprendendo, ampliar suas possibilidades de participação na vida social e colaborar para a construção de uma sociedade mais justa, democrática e inclusiva. • Utilizar diferentes linguagens – verbal (oral ou visual‑motora, como Libras, e escrita),corporal, visual, sonora e digital –, para se expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos e produzir sentidos que levem ao diálogo, à resolução de conflitos e à cooperação (BRASIL, 2018). Ainda de acordo com a BNCC (BRASIL, 2018), as competências específicas dessa área têm o reflexo das dez competências gerais que devem ser promovidas ao longo do Ensino Fundamental e que têm papel essencial na formação integral dos estudantes. Uma coisa que muda bastante com a Base se refere à alfabetização: toda criança deve estar alfabetizada até o final do 2º ano do Ensino Fundamental. Antes, de acordo com o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic), esse prazo era até o 3º ano. Dessa forma, os dois primeiros anos do Ensino Fundamental se voltam especificamente para a alfabetização. Soares (2022) explica que o ciclo de alfabetização e letramento pode ser considerado para a criança que frequenta as instituições de Educação Infantil, dos 5 aos 7 anos ou no máximo 8. Isso equivale a dizer que ela está entre a pré‑escola e o 2º ano do Ensino Fundamental, o que vem ao encontro das orientações legais. No entanto, entendemos que isso se torna um tempo muito curto para as crianças que não passam pela Educação Infantil, considerando o seu desenvolvimento cognitivo e linguístico. Desta forma, reiteramos a necessidade da universalização da Educação Infantil para as crianças brasileiras. Segundo a BNCC (BRASIL, 2018), nesse período de alfabetização as crianças devem desenvolver as seguintes competências e habilidades: • compreender diferenças entre escrita e outras formas gráficas (outros sistemas de representação); • dominar as convenções gráficas (letra maiúscula, minúscula, cursiva e script); • conhecer o alfabeto; 130 Unidade II • compreender a natureza alfabética do nosso sistema de escrita, • dominar as relações entre grafemas e fonemas; • saber decodificar palavras e textos escritos; • saber ler, reconhecendo globalmente as palavras. A partir disso, o foco nos dois primeiros anos do Ensino Fundamental é o processo de alfabetização com um conjunto de práticas que favoreçam a aprendizagem da leitura e da escrita. Para tanto, devem ser aprofundadas as experiências já iniciadas com a língua oral e escrita. No eixo da Oralidade aprofundam‑se o conhecimento da língua oral, as características de interações discursivas e as estratégias de fala e escuta. Por sua vez, no eixo Análise Linguística – Semiótica sistematiza‑se a alfabetização, especialmente nos dois primeiros anos, ao se observar as regularidades e a análise do funcionamento da língua. Já no eixo Leitura e Escuta amplia‑se o letramento por meio de progressiva incorporação de estratégias de leitura em textos de nível de complexidade crescente. Por fim, no Eixo Produção de Textos também há uma crescente complexidade na produção de textos de diferentes gêneros textuais. As práticas iniciadas na Educação Infantil, tais como cantar, recitar, brincar de jogos de regras e de games e relatar experiências, continuam presentes, afinal, essa criança só tem 7 anos de idade. O lúdico e a fantasia devem estar presentes, assim como é necessário preservar práticas de letramento, conforme vimos na história de Gustavo, com a diferença que essa criança já pode escrever. Alguns autores, entre eles Liberali e Toquetão (2017), tecem uma crítica à BNCC ao antecipar a idade do processo de alfabetização do Ensino Fundamental. Com a pressão do tempo para finalizar o processo somada às avaliações externas, observa‑se nas salas de aula do Ensino Fundamental a volta de exercícios de coordenação motora, discriminação visual, reconhecimento e cópia de letras e sílabas sem nenhum uso funcional da língua escrita. Os índices de brasileiros que não estão alfabetizados seguem altos e preocupantes, e as pesquisas têm apontado a grande dificuldade que se apresenta nos processos de alfabetização que envolvem a complexidade do processo de aprender e também de ensinar. Segundo Sanches e Toquetão (2019), é necessário investir em formação docente e articular as múltiplas facetas desse complexo processo de aquisição da leitura e escrita que envolve perspectivas psicológicas, psicolinguísticas, sociolinguísticas e linguísticas. De toda forma, o que fica evidente é que precisamos de um direcionamento conceitual mais vigoroso, com políticas públicas cujo interesse seja formar professores capazes de sustentar concepções que atendam a formação de um leitor fluente, crítico e capaz de transformar a sociedade em que vive. Por outro lado, esse é um projeto de nação. A sociedade precisa acolher nossos desafios para juntos lutarmos por condições dignas de ensinar e aprender. O direito ao acesso à educação está garantido em diferentes documentos legais, uma vez que preconizam a igualdade, a diversidade e a equidade do acesso e a permanência na educação. Sem acesso, o direito a 131 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO uma educação com qualidade social não se concretiza. Dessa forma, no que se refere à escola, é preciso criar um ambiente acolhedor e de respeito aos estudantes para evitar situações que possam provocar abandono ou evasão. Sabemos que os dois anos de pandemia de Covid causada pelo novo coronavírus (SARS‑CoV‑2) provocaram um alto índice de evasão e regressão no desenvolvimento integral dos aprendizes. Os dados apresentados revelam a diferença entre crianças brancas e crianças pretas e pardas. Os percentuais de crianças pretas e pardas de 6 e 7 anos de idade que não sabiam ler e escrever passaram de 28,8% e 28,2% em 2019 para 47,4% e 44,5% em 2021, sendo que entre as crianças brancas o aumento foi de 20,3% para 35,1% no mesmo período. Outra diferença diz respeito às crianças residentes nos domicílios mais pobres e mais ricos do país. Entre as crianças mais pobres que não sabiam ler e escrever, os índices tiveram um aumento de 33,6% para 51% no período entre 2019 e 2021. Para as mais ricas, encontramos também um aumento, no entanto, menor: de 11,4% para 16,6% (AUMENTA..., 2022). As sequelas da pandemia precisam ser combatidas com políticas de recuperação para não comprometer essas crianças ao aumentar o risco de reprovação, abandono e/ou evasão escolar. Nesse sentido, é preciso fazer valer o foco principal da BNCC para alfabetização, isto é, o término do processo de alfabetização para o 2º ano. As redes estão se adaptando para atender esse formato, e com os impactos da pandemia serão necessários ajustes na elaboração dos currículos e no processo de transição entre a Educação Infantil e o Ensino Fundamental. Sob esse ponto de vista, entendemos que esse deverá ser o foco de políticas educacionais na retomada das aulas e nos anos posteriores à pandemia, para que os estudantes sigam estudando e possamos diminuir as expressivas desigualdades sociais. A BNCC reconhece duas frentes quanto à especificidade da alfabetização: a primeira, a partir das práticas sociais de leitura e escrita, sendo o texto a centralidade dessa ação pedagógica, o que confirmamos nos estudos de Magda Soares, e a segunda, que reforça o planejamento e as atividades pedagógicas que estimulem os estudantes a refletir sobre os sistemas de escrita, o que vem ao encontro dos autores apresentados no livro‑texto. Quanto a como ensinar, sabemos que não é o foco da BNCC; entretanto, ela se refere a: selecionar e aplicar metodologias e estratégias didático‑pedagógicas diversificadas, recorrendo a ritmos diferenciados e a conteúdos complementares, se necessário, para trabalhar com as necessidades de diferentes grupos de alunos, suas famílias e cultura de origem, suas comunidades, seus grupos de socialização (BRASIL, 2018, p. 17). Como se pode observar, a BNCC não está fazendo a defesa de um método específico e nem a imposição de uma abordagem, e sim a garantia de autonomia das redes, reforçando o respeito à diversidade social e cultural e a inclusão de todos(as). Outro ponto fundamental a quese reporta a BNCC, em sua página 25, diz respeito à formação docente, no que se refere tanto à formação inicial, o que já vem ocorrendo com a publicação de diretrizes para a formação de professores, quanto à importância da formação continuada em serviço e fora dela. Ambas devem buscar conhecimentos específicos para o professor alfabetizador que está em formação 132 Unidade II inicial e também para aqueles que necessitam, em sua prática, aprofundar seus saberes, uma vez que a Base entende a alfabetização como um processo complexo para o domínio do sistema de escrita pelos estudantes. O texto da BNCC apresenta um destaque para o multiletramento, conteúdo a ser explorado na próxima unidade deste livro‑texto. A ampliação do uso da tecnologia em ambientes digitais, bem como de textos multissemióticos e multimodais, alterou as práticas de linguagem na nossa sociedade. Dessa forma, cabe aos educadores construírem o conceito de multiletramento para os estudantes, levando‑se em consideração os aspectos éticos, políticos e estéticos. Neste texto, procuramos estabelecer os vínculos acerca da tríade BNCC, alfabetização e letramento. Como você pode observar, essa não é uma trama fácil, ela envolve múltiplas dimensões e correlações complexas que precisam ser analisadas e discutidas por aqueles que atuarão como professores alfabetizadores de crianças, jovens e adultos. Sendo assim, a intenção aqui foi a de trazer à tona os principais aspectos que compõem tal tríade, explicitando algumas das dimensões que não podem ser desconsideradas na prática pedagógica daqueles que atuam no campo da alfabetização. Por fim, queremos deixar dois conteúdos elaborados por Magda Soares para você analisar. O primeiro mostra aos alfabetizadores(as) o desenvolvimento do ciclo de alfabetização e letramento que pode ser alinhado ao trabalho didático do docente. O segundo propõe metas em continuidade de ação pedagógica que expressam as habilidades e conhecimentos a serem desenvolvidas para a apropriação do sistema alfabético de escrita pelos aprendizes. Entendemos que eles são direitos de aprendizagem, mesmo não sendo a expressão utilizada pela BNCC, mas que em nosso entendimento garantem aos aprendizes o direito à educação com a qualidade social que tanto almejamos. Ciclo de alfabetização e letramento Le itu ra , i nt er pr et aç ão e p ro du çã o de te xt os Pré‑escola 1º 2º 3º 4º 5º Consciência grafofonêmica Consciência silábica Conhecimento das letras Conhecimento das relações fonema‑grafema Fase pré‑fonológica MBFABV FAMB GAIA GLATIA GLATINA GELATINA Escrita com letras Silábica sem valor sonoro Silábica com valor sonoro Silábico‑ alfabética Alfabética OrtográficaGaratuja Figura 68 Fonte: Soares (2022, p. 137). 133 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO A autora demonstra nessa imagem, como ela mesma explica, a coexistência e a correlação entre a conceitualização da escrita (processo em que a criança vai formulando os conceitos da língua de forma progressiva e depende de material escrito), o desenvolvimento da consciência fonológica e conhecimento das letras. Ela estruturou essa figura posicionando as setas de forma que indiquem como a criança se apropria do SEA ao mesmo tempo em que convive com os usos da escrita. As linhas pontilhadas verticalmente se referem ao tempo necessário para que a criança se alfabetize, o qual, segundo a autora, vai dos 5 aos 7 ou 8 anos, sendo representado na Educação Básica da pré‑escola ao 3º ano do Ensino Fundamental. Isso, comparado à realidade, é condizente com as escolas públicas e privadas, e essa correlação de certa forma justifica as disposições legais. A autora ressalta que há algumas crianças mais avançadas e outras com ritmo mais lento. Podemos dizer que as crianças do século XXI estão mais expostas à cultura letrada, o que acaba ampliando o interesse e a curiosidade pela leitura e pela escrita. O guia com metas de aprendizagem foi desenvolvido para os alfabetizadores. Ele contempla o desenvolvimento de diferentes indicadores que se inter‑relacionam e favorecem a compreensão do princípio alfabético. O quadro que mostraremos a seguir complementa a figura que acabamos de apresentar, abordando as metas organizadas em continuidade e as habilidades e conhecimentos que devem ser desenvolvidos para alfabetizar as crianças de modo contínuo e progressivo. As metas apresentadas são um direcionamento para o professor na elaboração do planejamento e da organização didática cotidiana. Quadro 9 – Metas: continuidade Habilidades e conhecimentos Apropriação do sistema alfabético de escrita Pré‑Escola 1º ano 2º ano 3º ano Conhecimento das letras e do alfabeto Discriminar letras de traçado semelhante – maiúsculas de imprensa Discriminar letras de traçado semelhante – minúsculas de imprensa Identificar letras maiúsculas de imprensa ouvindo seu nome Identificar letras maiúsculas de imprensa em palavras ouvindo seu nome Escrever letras maiúsculas de imprensa ouvindo seu nome Escrever letras minúsculas de imprensa ouvindo seu nome Relacionar letras maiúsculas com letras minúsculas correspondentes (letras de imprensa) Relacionar palavra em maiúscula com sua versão minúscula (letras de imprensa) Conhecer a ordem alfabética Listar palavras em ordem alfabética com base na primeira letra no 1º ano, nas duas primeiras letras no 2º ano e nas três primeiras letras no 3º ano Consciência fonológica Identificar número de sílabas em palavra ouvida Identificar palavras que começam com a mesma sílaba Identificar palavras que rimam 134 Unidade II Habilidades e conhecimentos Apropriação do sistema alfabético de escrita Pré‑Escola 1º ano 2º ano 3º ano Consciência fonêmica Identificar em conjunto de palavras aquelas que se diferenciam apenas por fonema inicial ou apenas medial Completar palavra com fonema‑letra ou medial Localizar em quadro de dupla entrada, sílabas que se igualam ou se diferenciam pela relação fonema‑grafema Escrever palavras de forma silábica sem valor sonoro e em seguida com valor sonoro Escrever o próprio nome e o nome de familiares e colegas Escrever espontaneamente (escrita inventada) Escrever palavras de forma alfabética Escrever corretamente sílabas com vogal nasal Escrever corretamente palavras que contenham os dígrafos lh e nh Escrever corretamente palavras em que os fonemas /k/e/g/ são representados por qu e gu em função da vogal que se segue ao fonema Escrever corretamente palavras com r brando, r intervocálico, r forte e duplicado como rr Escrever corretamente palavras com s intervocálico, s no início da palavra e duplicado como ss intervocálico Escrever corretamente palavras com sílabas CV, CCV, CVC, V (oral ou nasal) Relacionar palavras em letras de imprensa com sua versão cursiva Transcrever em cursiva palavra em letra de imprensa Leitura de palavras Identificar, em fichas, o próprio nome e nome dos colegas Reconhecer o número de palavras em frases Identificar uma mesma palavra escrita com diferentes fontes Identificar determinada palavra em um texto Ler corretamente palavras com sílabas com a letra R ou a letra S intervocálicas, iniciais ou duplicadas Ler palavras formadas por sílabas com CV, CCV, CVC, V (oral ou nasal) e com os dígrafos lh, nh, gu, qu Fonte: Soares (2022, p. 141). Alfabetizar em um contexto de letramento é um trabalho complexo que não pode se pautar em um rol de “receitas prontas”. Muito pelo contrário: exige que o professor assuma sua atividade profissional como um intelectual. Assim como em um bordado, que em um lado apresenta um lindo desenho, repleto de harmonia, beleza e suavidade, ele comporta também um avesso, repleto de linhas soltas, muitos nós, uma confusão de tramas que são necessárias para que se possa evidenciar toda a beleza de um trabalho. No caso do professor alfabetizador, um verdadeiro artesanato intelectual precisa ser empreendido na tarefa de alfabetizar. 135 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTOResumo Esta unidade apresentou dois focos principais: o papel das habilidades metalinguísticas e sua importância para a alfabetização e a nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) nas relações com alfabetização e letramento. Todo sujeito quando nasce se apropria da fala. Essa apropriação, ligada ao uso da linguagem falada, se apoia no conhecimento epilinguístico, ou seja, todos, caso não tenham alguma deficiência, aprendem a falar e a usar a língua cotidianamente, o que quer dizer que somos falantes proficientes. Mas para se apropriar da linguagem de modo mais autônomo e desenvolver plenamente a capacidade leitora e escritora, é preciso desenvolver habilidades metalinguísticas. Essas habilidades se refletem quando uma criança conscientemente pensa sobre a linguagem e envolve as palavras, parte delas ou as sentenças. Com isso, ela está colocando em prática a consciência fonológica. A consciência fonológica é a capacidade de tomar a língua como objeto de reflexão e análise, é a habilidade de refletir sobre os aspectos estruturais da língua como uma capacidade essencial à aprendizagem da língua escrita. A partir das pesquisas de Magda Soares (2016), estudamos os diferentes aspectos da consciência fonológica que envolvem múltiplas habilidades pela complexidade linguística e pelo grau de “consciência” que elas estabelecem. Podemos dizer que há uma hierarquia no desenvolvimento da consciência fonológica que caminha junto à estrutura da palavra: a criança revela conhecer rimas e aliterações antes de alcançar a consciência da sílaba e revela a consciência das sílabas antes de alcançar a consciência fonêmica. A autora organiza os seguintes níveis de consciência fonológica: a consciência da palavra ou consciência lexical, a consciência de rimas e aliterações ao lado da consciência de sílabas ou consciência silábica e a consciência fonêmica. Apresentamos um conjunto de atividades práticas que contribuem para o desenvolvimento da consciência fonológica, como a exploração de textos poéticos e da tradição oral, tais como as quadrinhas, musicas, cantigas, parlendas e trava‑línguas, com múltiplas possiblidades para brincar, cantar e explorar o texto escrito ao mesmo tempo que a oralidade. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento normativo oficial, o mais recente indicador curricular, que define os conteúdos essenciais para todos os alunos nas três etapas da Educação Básica, de modo que 136 Unidade II tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento. A Base não é um currículo e não determina como ensinar, mas o que ensinar. A BNCC reconhece duas frentes de especificidade da alfabetização: a primeira, a partir das práticas sociais de leitura e escrita, sendo o texto a centralidade dessa ação pedagógica, e a segunda, que reforça o planejamento e atividades pedagógicas que estimulem os estudantes a refletir sobre os sistemas de escrita, o que vem ao encontro dos autores apresentados no livro‑texto. 137 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO Exercícios Questão 1. Leia o texto da imagem a seguir: Figura 69 Disponível em: https://cutt.ly/Z3pfgjU. Acesso em: 7 fev. 2023. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) tem como referência algumas competências gerais. Pensando nessas competências, analise as afirmativas a seguir. I – Exercitar a curiosidade intelectual e utilizar a abordagem própria das ciências, compreendendo a investigação, a reflexão, a análise crítica, a imaginação e a criatividade a fim de investigar causas, elaborar e testar hipóteses, formular e resolver problemas e criar soluções (inclusive tecnológicas) com base nos conhecimentos das várias áreas do conhecimento. II – Empregar as diferentes linguagens (verbal, corporal, visual, sonora e digital) e os conhecimentos das linguagens artística, matemática e científica para se expressar e compartilhar informações, experiências, ideias e sentimentos em contextos distintos e produzir sentidos que levem ao entendimento mútuo. III – Valorizar as diversas manifestações artísticas e culturais locais e mundiais e, também, participar de práticas diversificadas da produção artístico‑cultural. 138 Unidade II IV – Conhecer‑se, apreciar‑se e cuidar de sua saúde física e emocional, compreendendo‑se na diversidade humana e reconhecendo suas emoções e as emoções dos outros, com autocrítica e capacidade para lidar com elas. São competências gerais da BNCC as apresentadas em: A) I, II e III, apenas. B) II e III, apenas. C) I, II e IV, apenas. D) I e II, apenas. E) I, II, III e IV. Resposta correta: alternativa E. Análise da questão As competências gerais da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) são as que seguem: 1. Valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos sobre o mundo físico, social, cultural e digital para entender e explicar a realidade, continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva. 2. Exercitar a curiosidade intelectual e recorrer à abordagem própria das ciências, incluindo a investigação, a reflexão, a análise crítica, a imaginação e a criatividade para investigar causas, elaborar e testar hipóteses, formular e resolver problemas e criar soluções (inclusive tecnológicas) com base nos conhecimentos das diferentes áreas. 3. Valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais, e, também, participar de práticas diversificadas da produção artístico‑cultural. 4. Utilizar diferentes linguagens – verbal (oral ou visual‑motora, como Libras, e escrita), corporal, visual, sonora e digital –, bem como conhecimentos das linguagens artística, matemática e científica, para se expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos e produzir sentidos que levem ao entendimento mútuo. 5. Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva. 139 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO 6. Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar‑se de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade. 7. Argumentar com base em fatos, dados e informações confiáveis, para formular, negociar e defender ideias, pontos de vista e decisões comuns que respeitem e promovam os direitos humanos, a consciência socioambiental e o consumo responsável em âmbito local, regional e global, com posicionamento ético em relação ao cuidado de si mesmo, dos outros e do planeta. 8. Conhecer‑se, apreciar‑se e cuidar de sua saúde física e emocional, compreendendo‑se na diversidade humana e reconhecendo suas emoções e as dos outros, com autocrítica e capacidade para lidar com elas. 9. Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo‑se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza. 10. Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação, tomando decisões com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários. Disponível em: https://cutt.ly/Z3pfgjU. Acesso em: 7 fev. 2023. Questão 2. Leia o texto a seguir: Alfabetização e consciência fonológica: como trabalhá‑las? A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) defende o trabalho com a consciência fonológica. Veja como aliá‑lo às práticas sociais de leitura e escrita O desafio que a Base Nacional ComumCurricular (BNCC) traz para o professor é o de aprender a articular as diferentes facetas da apropriação da língua escrita. Isso significa aliar o trabalho com as práticas sociais de leitura e escrita com momentos de aprendizagem do sistema de escrita alfabética. Como fazer isso na prática? Há escolas que já seguem por esse caminho. “O texto é o ponto central e, com base nele, consigo definir meus conteúdos. Mas não deixo de lado a letra ou a questão sonora, que são importantes também”, conta Ana Lúcia Pinto Antunes, professora da EEI Padre Quinha, em Petrópolis (RJ). 140 Unidade II A centralidade do texto está indicada na Base. “É importante que fique claro ao docente que texto não é pretexto para análise da língua, mas contexto, pois pode favorecer a alfabetização, colaborando para a compreensão de conteúdos linguísticos”, explica Liane Castro de Araújo, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia. Sendo assim, é preciso ter intencionalidade na escolha. Essas opções serão mais ricas quanto maior for o repertório do professor quanto aos diversos gêneros textuais, especialmente a literatura infantil, mas não exclusivamente. Para isso, o docente pode considerar as culturas infantis tradicionais e contemporâneas, as brincadeiras da tradição oral e as situações lúdicas. Ana Lúcia gosta de levar parlendas, cantigas e trava‑línguas para a turma. “Com base nesses textos, cujas finalidades são brincar com a língua, os alunos conseguem refletir sobre o que se diz e o que se escreve e, ao criarem repertório, podem elaborar novos textos inspirados naqueles que conheceram”, conta a professora. Outra opção é utilizar jogos fonológicos. Um dos utilizados por Ana Lúcia é um jogo de trincas, no qual são distribuídas várias imagens. A proposta é reunir três em que as palavras que representam a imagem terminem com o mesmo som, como gato, rato e mato. Primeiro, a professora divide a turma em grupos para estimular a colaboração entre eles. Um dos critérios para definir quem irá jogar com quem pode ser colocar uma criança que tenha maior familiaridade com brincadeiras da tradição oral e, portanto, está mais acostumada a prestar atenção na sonoridade das palavras, com outra que não tenha tanta, indica Liane. Durante a atividade, Ana Lúcia reserva um tempo para as crianças pensarem em como irão agrupar as trincas. Ela, então, percorre a sala e faz intervenções apenas quando um grupo está com dificuldade. Em geral, a primeira pergunta é: qual o critério que vocês utilizaram para escolher as trincas? Às vezes, os alunos se concentram na imagem e separam todos os animais, por exemplo. Aí ela relembra que a ideia do jogo é prestar atenção no som das palavras, em como elas terminam. É muito comum também eles privilegiarem as palavras que começam com a mesma letra. Neste caso, ela pontua: Ótimo, mas, desta vez, quero que pensem no final da palavra. E pode exemplificar: aqui temos feijão e macarrão, o que é parecido no som delas? Qual outra imagem também tem som semelhante? Não há regras para as intervenções, mas o professor deve dosar para manter um equilíbrio entre a questão pedagógica e o lúdico. “Já vi docente que interrompe toda hora para sistematizar questões trazidas na brincadeira. Não dá para interferir sempre, pois se corre o risco de perder a característica de jogo. A função lúdica tem de ser garantida”, explica Liane. Depois que as crianças brincaram, Ana Lúcia propõe momentos de reflexão incluindo a escrita para ampliar a possibilidade de análise já presente no oral. “Se fizer só o jogo, ficarei apenas no campo fonológico. Mas, em geral, quero que eles façam a ligação entre fonema e grafema, que compreendam o que cada som representa”, explica. Para sistematizar o aprendizado, as estratégias podem variar conforme a turma, o tempo disponível e o propósito. No caso do jogo de trincas, podem ser: pedir para as crianças indicarem quais trincas elas agruparam, perguntar como se escreve cada palavra e anotar no quadro; pegar o alfabeto móvel e pedir para os grupos 141 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO montarem as palavras na mesa; ter uma série de tirinhas, já prontas, com as palavras utilizadas no jogo, convidar as crianças a apontar onde estão aquelas correspondentes às imagens da trinca que ela formou e colocar cada tira junto da imagem que ela representa, entre outras. O importante é a conversa que ocorre durante esse processo. A professora pode questionar: vamos olhar essas três palavras que estão juntas, o que elas têm de parecido? Essa começa com uma letra e essa com outra, mas o final é sempre o mesmo? Que outras palavras vocês conhecem que também terminam com essas letras? O objetivo é conduzir os alunos a refletir sobre a correspondência entre o oral e o escrito e levá‑los a reconhecer como surgem as rimas, além de ampliar o vocabulário. “É um momento importante também para eu avaliar o desenvolvimento da aprendizagem deles”, completa Ana. Para Liane, essa é uma ótima maneira de explorar a dimensão sonora da língua e apresentar as letras aos alunos. “Os jogos incidem sobre os aspectos fonológicos e notacionais da língua. Portanto, a reflexão linguística não vem como aquisição mecânica, uma vez que o jogo por si só é uma prática cultural e serve como contexto para a análise da língua. Adultos jogam palavra cruzada, forca, entre outros”, conclui a especialista. Adaptado de: https://cutt.ly/a3pfmMD. Acesso em: 7 fev. 2023. Com base na leitura, avalie as afirmativas: I – Uma das palavras‑chave na escolha do texto para a análise da língua é intencionalidade. II – O uso de jogos fonológicos com crianças que estão na fase de alfabetização é um recurso desestimulado pela Base Nacional Curricular Comum (BNCC). III – A prática de atividade lúdicas apropriadas, que explorem as dimensões fonológica e notacional da língua, auxilia os alunos a exercerem a reflexão linguística. É correto o que se afirma em: A) I, apenas. B) III, apenas. C) II e III, apenas. D) I e III, apenas. E) I, II e III. Resposta correta: alternativa D. 142 Unidade II Análise das afirmativas I – Afirmativa correta. Justificativa: segundo o artigo do enunciado, “a centralidade do texto está indicada na Base”. De acordo com Liane Castro de Araújo, “é importante que fique claro ao docente que texto não é pretexto para análise da língua, mas contexto, pois pode favorecer a alfabetização, colaborando para a compreensão de conteúdos linguísticos”. Logo, “é preciso ter intencionalidade na escolha”. E as “opções serão mais ricas quanto maior for o repertório do professor quanto aos diversos gêneros textuais, especialmente a literatura infantil, mas não exclusivamente”. II – Afirmativa incorreta. Justificativa: o próprio subtítulo do texto do enunciado contraria o que é dito na afirmativa ao colocar que “a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) defende o trabalho com a consciência fonológica”. Além disso, durante o desenvolvimento do texto, observamos o depoimento de uma docente que usa jogos fonológicos de forma positiva com suas turmas de alunos. III – Afirmativa correta. Justificativa: segundo o artigo do enunciado, a prática de atividades lúdicas apropriadas, que explorem as dimensões fonológica e notacional da língua, “é uma ótima maneira de explorar a dimensão sonora da língua e apresentar as letras aos alunos”. Para Araújo, “os jogos incidem sobre os aspectos fonológicos e notacionais da língua” e, assim, “a reflexão linguística não vem como aquisição mecânica, uma vez que o jogo por si só é uma prática cultural e serve como contexto para a análise da língua”.