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103 HEMATOLOGIA CLÍNICA Unidade III 7 MECANISMOS DA HEMOSTASIA E COAGULAÇÃO DO SANGUE Imagine que um indivíduo está manuseando uma faca e faz um corte superficial em um dos dedos da mão. A sequência de eventos posterior ao corte vai terminar quando o tecido for restabelecido, o que levará alguns dias. Para efeitos didáticos, a hemostasia é dividida em três fases: a hemostasia primária, que ocorre logo após a lesão do vaso e leva à formação de um tampão instável que pode ser destruído com o fluxo sanguíneo; a hemostasia secundária, que compreende a formação da rede de fibrina, ou seja, o coágulo é mais consistente; e a fibrinólise, que permite a destruição do coágulo para que este não permaneça mais tempo do que o necessário. Hemostasia primária ↓ Hemostasia secundária ↓ Fibrinólise Figura 66 – Etapas da hemostasia Quando o endotélio vascular está íntegro, as plaquetas não aderem ao vaso, por isso o sangue mantém a fluidez e não há formação de trombos. Entretanto, quando há uma lesão, ocorre vasocontrição e exposição do colágeno, o que favorece uma série de reações na plaqueta que culminam com a adesão, ativação, agregação e formação da rede de fibrina. A plaqueta apresenta vários receptores de adesão, entre estes, o complexo glicoproteico Ib que se liga ao fator de Von Willebrand (FvW). A ligação entre o complexo Ib e o FvW favorece a adesão das plaquetas circulantes na superfície vascular. O FvW funciona como um adaptador entre a plaqueta e o colágeno exposto do subendotélio. A falta desse fator, como ocorre na doença de Von Willebrand, acarreta hemorragias recorrentes, como veremos mais adiante. A adesão plaquetária induz modificações que desencadeiam a ativação plaquetária associada às modificações no citoesqueleto, lançamento de pseudópodes, secreção de grânulos e expressão das glicoproteínas GPIIb/IIIa. A ativação plaquetária ocorre por meio de fatores que se ligam aos receptores da membrana plaquetária, entre eles: ADP, trombina, epinefrina, tromboxano, colágeno e o fator de ativação plaquetária (PAF). A ligação do fator agonista ao receptor ativa uma proteína G que via fosfolipase C e trifosfato de inositol (IP3) gera aumento de cálcio iônico, estímulo de fosfolipase A2 e liberação de ácido araquidônico na membrana da plaqueta. 104 Unidade III Esse ácido é substrato para as enzimas cicloxigenases (COX1 e COX2), que produzem prostaglandinas. A enzima tromboxano sintetase age sobre a prostaglandina e produz tromboxano A2, que é um potente agregador plaquetário e vasoconstritor. Durante a ativação, as plaquetas secretam o conteúdo dos grânulos densos (ATP, GTP, ADP, cálcio, tromboxano e serotonina) e a ligação ocorre pela ligação entre o fibrinogênio à glicoproteína IIb-IIIa. O fibrinogênio está solúvel no plasma e a GPIIb-IIIa se liga ao fibrinogênio. Essa reação é autocatalítica e resulta na formação de um tampão denominado tampão homeostático primário. Plaqueta ativada Fosfolípideos de membrana Ácido aracdônico Fosfolipase Cicloxigenase Tromboxano sintetase Endoperóxidos cíclicos (PGG2/PGH2) Tromboxano A2 Vasoconstrição favorece a agregação plaquetária Figura 67 – Efeitos o tromboxano A2 na hemostasia De modo oposto, o endotélio vascular produz prostaciclina PGI2, que atua como potente vasodilatador e inibidor da agregação plaquetária. A produção de PGI2, em condições fisiológicas, é pequena, mas agentes como a trombina favorecem a liberação de maiores quantidades de PGI2. Célula endotelial Fosfolípideos de membrana Ácido aracdônico Fosfolipase Cicloxigenase Prostaciclina sintetase Endoperóxidos cíclicos (PGH2) Prostaciclina (PGI2) Vasodilatação inibe a agregação plaquetária Figura 68 – Efeitos da prostaciclina PGI2 na hemostasia A hemostasia secundária foi descrita em 1964, por Macfarlane, Davie e Ratnoff, como um modelo de cascata de coagulação, pois os fatores que estão na forma inativa são ativados e catalisam a ativação do fator seguinte. A cascata foi classicamente descrita pelas vias extrínseca, intrínseca e comum, mas sabe-se que não ocorre de forma independente e paralela, e o produto final é a rede de fibrina, que forma o tampão homeostático secundário. Observe que a cascata é composta por fatores solúveis que são proteínas numeradas em algarismo romano de I a XIII, em ordem de descobrimento e não por ordem de ativação. Todos os componentes da via intrínseca estão presentes no sangue e, para que ocorra a via extrínseca, é necessária a participação do fator tecidual (FT). A via intrínseca é desencadeada quando o fator XII é ativado pelo contato com uma superfície de carga negativa, por exemplo, o colágeno subendotelial exposto na lesão. Esse processo requer também pré-calicreína (serinoprotease) e cininogênio de alto peso molecular (HMWK ou high molecular weight kinogen), que é um cofator não enzimático. O fator XII ativado ativa o fator XI que, na sequência, ativa o fator IX. O fator IX ativado, na presença de fator VIII ativado por traços de trombina e na presença de íons cálcio, ativa o fator X da cascata. Já a via extrínseca, é ativada de modo mais simples, a partir do fator tecidual (tromboplastina tecidual) liberado dos tecidos lesados, que forma um complexo com o fator VII, mediado por íons cálcio. Este 105 HEMATOLOGIA CLÍNICA complexo age sobre o fator X, ativando-o e desencadeando a geração de trombina e, posteriormente, a conversão de fibrinogênio em rede de fibrina. XIIa XIa HMWK IXa VIIa Xa Va IIa Trombina Ia Rede de fibrina Ia Rede de fibrina estável XIIa XII VIIa VII Ca+2 (fator IV) Fator tecidual (fator III) HMWK cininogênio Complexo do fator VIII Complexo do fator VI Via comum Via extrínsecaVia intrínseca II Protrombina I Fibrinogênio X Va Ca+2 FP3 FP3 Ca+2 (fator IV) XII XI IX VIII Figura 69 – Vias da cascata da coagulação: intrínseca, extrínseca e comum Adaptada de: Rodrigues (2012, p. 225). Apesar de o modelo de cascata de coagulação ter sido amplamente empregado para o estudo da coagulação, ele não é suficiente para o entendimento de algumas situações in vivo. Acreditava-se que a via intrínseca era mais importante que a extrínseca em virtude da gravidade das manifestações hemorrágicas nos pacientes que não produzem fatores VIII ou IX. Entretanto, indivíduos que não produzem fator XI têm hemorragia leve e a falta de fatores XII, pré-calicreína e cininogênio de alto peso molecular não ocasionam quadro hemorrágico. Entretanto, a falta de fator VII provoca quadro hemorrágico grave. Atualmente, são considerados relevantes os fatores dependentes de vitamina K (II, VII, IX e X), associados aos cofatores (V e VIII), presentes em uma membrana que tem fosfolipídeos. Dessa forma, a coagulação pode ser explicada em três fases: iniciação, amplificação e propagação. Na fase de iniciação, após a lesão, as células do endotélio vascular expressam o fator tecidual. O fator tecidual ativa o fator VII. O complexo FT/VIIa ativa do fator X e fator IX. O fator Xa ativa o fator V e, assim, se forma o complexo protombinase (Xa/Va). Caso o fator Xa permaneça na superfície celular, 106 Unidade III juntamente com o fator Va, eles convertem uma pequena quantidade de protrombina em trombina, que é essencial para a próxima fase, de amplificação. Durante a amplificação, que ocorre na superfície das plaquetas, a trombina formada na fase anterior realiza quatro funções: ativa as plaquetas, ativa o fator V na superfície das plaquetas e forma o fator Va, dissocia o complexo VIII:FvW e ativa o fator XI na superfície das plaquetas formando o fator IX ativado. O FvW livre participa da adesão e agregação plaquetária. A seguir ocorre a fase de propagação, que requer os fatores ativados Va, VIIIa e IXa. Na fase de propagação, ocorre a produção dos complexos tenases e protrombinases. O complexo tenase é formado pelo fator VIIIa e fator IX que se unem ao fator Va e formam o complexo protrombinase. O complexo protrombinase incrementa substancialmentea produção de trombina que converte o fibrinogênio em fibrina e também ativa o fator estabilizador da fibrina, o fator XIII. X II IIa V Va IX IXa IX IXa X II IIa Plaqueta ativada Complexo protrombinase Fase de iniciação Fase de amplificação Fase de propagação Complexo tenase I Fibrinogênio Ia Fibrina Plaqueta ativada IIa XI V XIa IXa VIIIa Va VIIIa VIIIaFcW FcW Xa Xa Va Va VIIa VIIa VIIaTF TF TF Figura 70 – Fases do novo modelo de cascata de coagulação: iniciação, propagação e amplificação Adaptada de: Rodrigues (2012, p. 227). Em um indivíduo saudável, a coagulação, os mecanismos antitrombóticos naturais e a fibrinólise devem ocorrer em equilíbrio, garantindo o fluxo sanguíneo. Se houver um desequilíbrio entre estes eventos, o indivíduo pode apresentar patologias como a formação de trombos ou sangramentos, por exemplo. A fibrinólise é realizada pelos componentes inibidor da via do fator tecidual (TFPI), sistema trombobodulina, proteína C, proteína S e antitrombina III. 107 HEMATOLOGIA CLÍNICA O fator tecidual (TFPI) é um inibidor de protease plasmático sintetizado pelo endotélio vascular. Esse fator inibe o fator Xa e o complexo formado entre TFPI/Xa se torna um potente inibidor do fator tecidual (FT)/ fator VIIa. TFPI/Xa Inibição Fator tecidual/VIIIa Figura 71 – Participação do inibidor da via do fator tecidual O endotélio vascular também expressa a proteína trombomodulina, a qual se liga à trombina. Essa ligação resulta em mudanças na trombina, que adquire nova função, a de ativar a proteína C no plasma. A proteína C ativada degrada os fatores VIIIa e Va, que formam os complexos tenase e protrombinase, respectivamente. E a proteína S participa como cofator da proteína C ativada. Trombina Trombomodulina Célula endotelial Proteína C Inibição Inibição Va VIIIa Proteína C ativada + Proteína S Figura 72 – Via da proteína C/proteína S Já a ação da antitrombina III (AT III) é essencial na fibrinólise provocando a inativação da trombina e dos fatores IXa, Xa, XIa e XIIa. A AT III é um inibidor de protease plasmático e, quando a heparina está presente, a AT III sofre uma modificação conformacional que inibe a trombina de forma rápida e irreversível. 108 Unidade III XIIa - - - - - XIa IXa Xa IIa Trombina Ia Rede de fibrina HMWK cininogênio Antitrombina III II Protrombina I Fibrinogênio X XII XI IX Figura 73 – Ação da antitrombina III na fibrinólise Saiba mais A heparina é um anticoagulante composto por uma mistura de polímeros, extraída das vísceras de animais. Sua ação consiste na interação com a antitrombina III e seu uso profilático e terapêutico ganhou destaque durante a pandemia do novo coronavírus (covid-19). Estudos verificaram que pacientes com Sars-CoV-2 apresentavam valores menores de antitrombina e risco aumentado de coagulação disseminada. Assim, o uso da heparina tem como objetivo diminuir a formação de coágulos no sangue, uma vez que potencializa em mil vezes a ação da antitrombina. Vale a pena ler a matéria no site: TANG, N. et al. Anticoagulante para redução de mortes em casos graves de COVID-19. Canal Ciência, 12 abr. 2020. Disponível em: https://cutt.ly/JmvUJxw. Acesso em: 26 jul. 2021. Outro sistema importante que garante a fibrinólise é o sistema plasminogênio/plasmina. O plasminogênio pode ser ativado fisiologicamente por ativador do plasminogênio do tipo tecidual (t-PA, de tissue-type plasminogen activator) e o ativador do plasminogênio do tipo uroquinase (u-PA, de urokinase-type plasminogen activator). A plasmina degrada não somente a fibrina, mas também o fibrinogênio, fator V e fator VIII. Quando a plasmina age sobre a fibrina, são formados os produtos de degradação da fibrina (PDFs), que são removidos da circulação pelo sistema retículo endotelial do baço e pelo fígado, mas, se a 109 HEMATOLOGIA CLÍNICA produção for maior que a remoção, o acúmulo de PDFs pode alterar a ação das plaquetas e inibir a coagulação. Por outro lado, o sistema fibrinolítico pode ser inibido por ativadores do plasminogênio, a partir da ação dos inibidores específicos (PAIs, de plasminogen activator inhibitors), sendo o PAI-1 o principal inibidor que age diretamente sobre a plasmina. Plasmina Inibidor do fator de ativação do plasminogênio Inibidores da plasmina (PAI1) Produtos de degradação da fibrina (PDFs) Ativadores do plasminogênio (t-PA, u-PA) Células endoteliais vasculares lesadas Plasminogênio Fibrina Figura 74 – Fibrinólise 7.1 Testes laboratoriais para diagnóstico das alterações da hemostasia e coagulação Os testes para avaliação da hemostasia e coagulação são solicitados em diversas situações, por exemplo, na avaliação pré-cirúrgica, na investigação de hemorragias, no monitoramento do uso de anticoagulantes ou, ainda, na investigação de distúrbios da coagulação. O paciente que apresenta alguma manifestação de sangramento ou trombos é submetido a testes de triagem, ou seja, que detectam tanto a hemostasia primária quanto a cascata da coagulação. Após a avaliação dos resultados, testes mais específicos são solicitados. Abordaremos, a seguir, os principais testes utilizados para o diagnóstico das patologias que envolvem a hemostasia. É importante que o paciente informe, no momento de realização dos exames, todos os medicamentos de que faz uso, sobretudo antiagregantes plaquetários como o ácido acetilsalicílico (Aspirina®, AAS®, Melhoral® etc). O ideal seria que o paciente não faça uso desses medicamentos antes da realização dos exames, mas, muitas vezes, não é possível a suspensão do medicamento e, por esse motivo, é importante reportar o uso ao laboratório (LORENZI, 2006). • Hemograma: é importante a análise de todas as linhagens celulares. O paciente pode apresentar alteração plaquetária ou anemia com perdas sanguíneas, acompanhada de plaquetopenia, presença de células neoplásicas, como no caso de leucemias. Normalmente, é o primeiro exame a ser solicitado. Na realização do hemograma, caso o equipamento registre plaquetopenia, deve-se realizar um esfregaço sanguíneo e analisá-lo ao microscópio. A presença de agregados plaquetários e plaquetas aderidas à superfície de neutrófilos evidencia o satelitismo plaquetário e consequente 110 Unidade III pseudotrombocitopenia, ou seja, a falsa diminuição do número de plaquetas. Isso ocorre no sangue de alguns indivíduos e é provocado pelo anticoagulante EDTA. Assim, uma nova coleta de sangue deve ser solicitada, em tubo contendo citrato (tubo tampa azul) para contagem do número de plaquetas, uma vez que o citrato não provoca o fenômeno de satelitismo plaquetário (DUSSE; VIEIRA; CARVALHO, 2004). Figura 75 – Satelitismo plaquetário Fonte: Dusse, Vieira e Carvalho (2004, p. 323). • Contagem de plaquetas: geralmente, o paciente está internado e apresenta plaquetopenia, que é monitorada continuamente, até mais de uma vez ao dia pelo clínico, por isso, apenas a contagem de plaquetas é solicitada. As contagens muito baixas de plaquetas, por exemplo, menores que 70.000/mm3 são confirmadas em câmara de Neubauer. Vale ressaltar que cada laboratório tem um procedimento padrão para o número de plaquetas a partir do qual a contagem é feita manualmente. • Tempo de sangramento: esse exame deixou de ser feito em muitos laboratórios por apresentar muitas variações na execução. Atualmente, o conjunto de exames solicitados, por exemplo, no pré-operatório, consiste em contagem de plaquetas, tempo de protrombina e tempo de tromboplastina parcial ativada. Por ter sido muito tempo utilizado, vamos descrever o teste que mede o tempo necessário para a hemostasia de uma pequena incisão realizada na superfície do antebraço (até 3 mm de profundidade). Com o auxílio de um esfigmomanômetro, no braço do paciente (mesmo braço da punção), aplicar uma pressão de 40 mmHg, que é mantida durante todo o teste. Fazer uma incisão no antebraço do paciente com o auxílio de um molde (denominado template) e cronometraro tempo de sangramento. O sangue do ferimento deve ser absorvido com um papel de filtro a cada 30 segundos. O valor de referência é de 2 a 8 minutos. O tempo de sangramento pode estar aumentado em pacientes que fazem uso de medicamentos como o ácido acetilsalicílico ou, ainda, em pacientes com trombocitopenia, fragilidade capilar, portadores de doença de Von Willebrand, entre outros. 111 HEMATOLOGIA CLÍNICA • Prova do laço: também conhecida como prova do torniquete ou teste de fragilidade capilar. Esse teste permite avaliar a fragilidade capilar, como ocorre, por exemplo, em pacientes com suspeita de arboviroses (dengue, Zika, chikungunya). Deve-se aferir a pressão arterial do paciente e determinar a pressão média entre a pressão máxima e mínima. Na sequência, desenha-se um quadrado (2,5 x 2,5 cm) no antebraço do paciente. Aplica-se a pressão média obtida e os pontinhos vermelhos (caso presentes) devem ser contados. Em adultos, o teste é positivo quando houver, no mínimo, 20 petéquias (pontinhos vermelhos) em adultos ou, no mínimo, 10 em crianças. • Tempo de coagulação (TC): teste em desuso também, deixou de ser realizado pelos grandes laboratórios. Consiste na leitura visual da coagulação do sangue, que é coletado em seringa sem anticoagulante, e transferido para um tubo de ensaio, mantido a 37 °C. Após 4 minutos de incubação, inicia-se a inspeção visual, que é repetida a cada 30 segundos. O tubo é colocado na horizontal, se o sangue escorrer, a coagulação não está completa. Quando o coágulo não se desprende do fundo do tubo, o tempo de coagulação é anotado. Avalia-se, desse modo, alterações dependentes dos fatores XII, XI, IX, VIII, X, V, II e I. Os valores de referência variam de 5 a 15 minutos. • Teste de agregação plaquetária: avalia-se a resposta à adição de agentes agregantes – adrenalina, colágeno, ristocetina e adenosina (ADP). A leitura da agregação é feita em um equipamento denominado agregômetro, que tem cubetas dentro das quais o plasma rico em plaquetas é adicionado juntamente com o agente agregante. O teste é indicado para investigação de alterações plaquetárias qualitativas. Na doença de Von Wilebrand e na doença de Bernard Soulier, a agregação plaquetária, após a adição de ristocetina, está anormal. Na trombastenia de Glazmann, a agregação plaquetária está diminuída, exceto pela adição de ristocetina. • Tempo de tromboplastina parcial ativado (TTPA): é o tempo gasto para que ocorra a coagulação do plasma após a adição de um ativador (por exemplo, o caolim) e do reagente cefalina. Esse teste avalia a via intrínseca da coagulação pela adição da cefalina, que age como o substituto plaquetário e de cálcio ao plasma do paciente. A cefalina substitui o fosfolipídio da membrana plaquetária. A mistura é incubada a 37 °C para ativação, em seguida, adiciona-se cloreto de cálcio para que ocorra a recalcificação (substitui o citrato) e formação do coágulo. A reação é feita em coagulômetro que usa sistema fotométrico para detecção. O TTPa está aumentado quando o paciente apresentar deficiência dos fatores da via intrínseca (XII, XI, IX e VII) e de fatores da via comum (X, V, II e I). Pacientes com hemofilias A e B, deficiência de vitamina K, hepatopatias e em uso de anticoagulantes apresentam TTPa aumentado. O valor de referência de TTPa em um indivíduo saudável varia entre 24 e 40 segundos. • Tempo de protrombina (TP ou TAP): avalia o tempo de coagulação do sangue após a recalcificação (adição de cloreto de cálcio) do plasma coletado em citrato. É avaliada a via extrínseca e a via comum, portanto, são considerados os fatores: VII, X, V, II e o fibrinogênio. O TP está prolongado nos casos de deficiência isolada ou conjunta dos fatores citados. Como os fatores VII, X e II são dependentes de vitamina K, o TP é utilizado no monitoramento terapêutico de pacientes que fazem uso de anticoagulantes com dicumarínicos e quando há suspeita de carência de vitamina K. 112 Unidade III Antigamente, utilizavam-se reagentes de origem humana e, posteriormente, de origem animal, o que provocava variação nos resultados. Para resolver esse problema, os resultados foram normatizados, sendo expressos em RNI (relação normatizada internacional). O RNI é calculado considerando-se a média do valor normal de TP (definida por um laboratório de referência) e o índice internacional de sensibilidade (IIS), que é específico de cada reagente utilizado. O RNI é usado para monitorar os pacientes que usam anticoagulantes orais. O valor de referência do TP está entre 10 e 14 segundos. O RNI varia entre 0,8 e 1. Caso o paciente esteja fazendo uso de anticoagulantes orais, o valor deve estar entre 2 e 3. Exemplo de aplicação Um paciente faz uso de varfarina. Ele realizou o exame de TP e o resultado do RNI foi de 4,3. Nesse caso, o clínico vai solicitar que a dose de varfarina seja diminuída ou aumentada? • Tempo de trombina (TT): avalia o tempo de formação da fibrina em um plasma coletado em citrato após a adição de trombina. A trombina favorece a transformação de fibrinogênio em fibrina. É solicitado com o paciente que apresenta aumento de TP e TTPa, pois, nesse caso, a suspeita está na deficiência de fatores da via comum, isto é, fator X, V, II (trombina) e I (fibrinogênio). O TT pode estar aumentado caso o fibrinogênio esteja em quantidade diminuída (afibrogenemia) ou não estiver funcional (disfibrinogenemia). Outra causa importante de aumento de TT é o uso de heparina na coagulação intravascular disseminada (CIVD). • Dosagem de fibrinogênio: exame realizado por turbidimetria ou colorimetria. Valores normais de fibrinogênio estão entre 200 a 400mg/dL. Verifica-se aumento do fibrinogênio em pacientes com risco de trombose, inflamações e neoplasias, sendo o responsável pelo aumento da velocidade de hemossedimentação. • Detecção de produtos de degradação da fibrina (PDF) e D dímeros (DD): a fibrina formada pela coagulação é degradada pelo sistema fibrinolítico em produtos de degradação de fibrina (PDF) precoces e tardios. Os fragmentos precoces são inicialmente grandes (350 a 2.000kDa), mas, posteriormente, são reduzidos em fragmentos pequenos (240kDa), que são denominados dímeros D (DD). Os testes de quantificação de DD são mais sensíveis que os métodos de detecção de PDF. Os DD são marcadores de ativação da coagulação e da fibrinólise. Está precocemente aumentado sempre que ocorre formação de coágulo de fibrina intravascular. Vejamos na figura a seguir o mecanismo de formação dos DD. 113 HEMATOLOGIA CLÍNICA Fibrinogênio ↓ Fibrina solúvel ↓ Fibrina insolúvel ↓ PDF ↓ Dímeros D (DD) PDF Trombina Plasmina Figura 76 – Formação de produtos de degradação da fibrina (PDF) e dímeros D (DD) Os DD encontram-se elevados em pacientes com quadros de trombose venosa profunda (TVP), coagulação intravascular disseminada (CIVD), embolia pulmonar (EP), gestação, alguns casos de câncer e o pós-operatório. Na TVP, ocorre a formação de um coágulo em alguma veia das pernas, por exemplo, durante uma viagem muito longa, na qual o indivíduo passa muito tempo sem se movimentar adequadamente. A degradação do coágulo gera fragmentos que atingem o coração. O coágulo pode, então, atingir a circulação pulmonar e o trombo pode obstruir uma artéria, provocando a embolia pulmonar. Durante a pandemia de covid-19, em 2020, verificou-se que os pacientes hospitalizados em estados mais graves apresentavam valores mais elevados de produtos de degradação de fibrina (FDP) e de dímero-D (DD). Estudos mostraram que os pacientes que evoluíram a óbito apresentaram, em relação aos sobreviventes, valores de dímeros-D mais elevados, maior TP, menor quantidade de fibrinogênio e de plaquetas. A grande liberação de citocinas, chamada de tempestade de citocinas, gera lesão endotelial e exposição do fator tecidual, que gera grande quantidade de fibrina e evolução para a CIVD. A formação de grande quantidade de fibrina ativa o sistema fibrinolítico e, consequentemente, maisdímeros-D são gerados. • Dosagem da antitrombina III: a antitrombina III inibe a ação dos fatores ativados XIIa, XIa, IXa e Xa, evitando assim a coagulação excessiva. Pacientes podem apresentar deficiência de antitrombina na forma hereditária, que é rara ou adquirida. A forma adquirida está associada às condições, tais como: coagulação intravascular disseminada (CID), doença hepática, câncer e síndrome nefrótica, entre outras. Valores diminuídos estão associados à hipercoagulabilidade do sangue e risco aumentado de trombose venosa. • Pesquisa de anticorpos antiplaquetários: pesquisa os anticorpos antiplaquetários, geralmente do tipo IgG, que ficam aderidos à membrana plaquetária. Costuma ser solicitado em pacientes que apresentam suspeita de púrpuras plaquetopênicas imunológicas, que levam à destruição das plaquetas. Gestantes podem transmitir anticorpos antiplaquetas, para o feto através da placenta. 114 Unidade III Alguns medicamentos podem aderir à superfície da plaqueta e provocar o aumento de imunoglobulinas na membrana da plaqueta. Ou, ainda, podem estar presentes em pacientes que foram aloimunizados por receberem muitos hemocomponentes (pacientes em tratamento para leucemia, por exemplo). Para esses pacientes politransfundidos, pode ser necessária a transfusão de plaquetas compatíveis, por isso, é importante não apenas a detecção como também a identificação do anticorpo presente. Uma vez identificado o anticorpo presente e realizada a genotipagem plaquetária, é possível a transfusão de plaquetas compatíveis para o paciente. A detecção dos anticorpos antiplaquetas é feita por citometria de fluxo, pela técnica denominada PIFT (de indirect platelet immunofluorescence test) e a identificação do anticorpo é realizada pela técnica de MAIPA (de monoclonal antibody immobilization of platelet antigen). Observação Para a realização dos testes de PIFT e MAIPA, utiliza-se um painel de plaquetas previamente genotipadas. As plaquetas são congeladas em nitrogênio líquido e utilizadas no momento do teste contra o soro dos pacientes. 7.2 Distúrbios da hemostasia e da coagulação A investigação dos distúrbios da hemostasia pode ocorrer após um sangramento espontâneo e excessivo, após uma extração dentária ou cirurgia, por exemplo. Outras vezes pode ser necessária diante de uma anormalidade laboratorial antes de o paciente ser submetido a uma cirurgia. É importante o histórico familiar do paciente, por exemplo, para saber se parentes já manifestaram os mesmos sintomas, se há queixa de sangramento nas articulações ou hematomas musculares. A partir dos sinais e sintomas reportados na anamnese, é possível classificar o distúrbio em primário (vasos sanguíneos e plaquetas) ou secundário (cascata da coagulação) e, consequentemente, direcionar os exames para o diagnóstico. O aparecimento de petéquias ou equimoses (placas) e sangramento das mucosas são característicos dos distúrbios primários, e os sangramentos musculares e articulares, geralmente, indicam alterações na cascata da coagulação. Verifica-se também que os distúrbios congênitos (hemofilia e doença de Von Willebrand) se manifestam na infância e estão relacionados a um único elemento da coagulação, ou seja, à deficiência de um fator da coagulação ou das plaquetas. O aparecimento de defeitos adquiridos é mais comum na idade adulta. Dessa maneira, vamos reunir os distúrbios da hemostasia e coagulação em três grupos: coagulopatias, púrpuras e tromboses. 115 HEMATOLOGIA CLÍNICA 7.2.1 Coagulopatias Caracterizam-se por hemorragias de grande extensão que afetam os músculos e as articulações. Podem ser do tipo hereditária ou adquirida. Entre os tipos hereditários, os mais comuns são as hemofilias e a doença de Von Willebrand. As hemofilias dos tipos A e B ocorrem por deficiência dos fatores VIII e IX, respectivamente, sendo a forma A (70 a 85% dos casos) mais comum que a B (15 a 30% dos casos). Existe ainda a hemofilia tipo C, denominada síndrome de Rosenthal, decorrente da falta do fator XI. Nesse último caso, a forma da doença é mais branda em comparação com as outras formas, epistaxes e hematomas ocorrem, mas são menos frequentes, assim como a hemartrose e o sangramento espontâneo. A hemofilia está associada ao cromossomo X, e a herança pode apresentar probabilidades diferentes. A prole de um casal no qual o pai é hemofílico e a mãe é normal resulta em 100% dos filhos normais e 100% das filhas portadoras. Mãe não portadora do gene para hemofilia XX Filho normal XY Filho normal XY Filha portadora do gene para hemofilia XX Filha portadora do gene para hemofilia XX Pai hemofílico XY Figura 77 – Herança da hemofilia. Pai hemofílico e mãe portadora do gene para hemofilia Já no caso da prole de uma mãe portadora com um pai normal, 50% das filhas têm chance de serem portadoras e 50% de chance de os filhos serem hemofílicos. Observa-se que a doença pode não se manifestar na geração imediatamente seguinte à de parentes hemofílicos. 116 Unidade III Mãe portadora do gene para hemofilia XX Filho normal XY Filha hemofílica XX Filho hemofílico XY Filha portadora do gene para hemofilia XX Pai hemofílico XY Figura 78 – Herança da hemofilia. Pai hemofílico e mãe portadora do gene para hemofilia A quantidade de fator VIII nas mulheres portadoras pode variar, isso ocorre pela inativação de um dos cromossomos X no início da via embrionária. A inativação é aleatória e pode ocorrer de afetar o cromossomo X, que tem um gene normal. Portanto, o cromossomo ativo é o que expressa o gene hemofílico (Xh). Nessas situações, a mulher portadora tem 50% do fator VIII no plasma. As portadoras podem ser normais ou hemofílicas. Nas mulheres portadoras, os níveis de fator VIII, geralmente, estão entre 30 a 50U/dL (o valor de referência é de 50 a 180U/dL). E nos homens hemofílicos, os níveis variam de acordo com a gravidade da doença, que pode se manifestar na forma grave (FVIII < 1%), moderada (FVIII entre 1 e 5%) ou leve (FVIII entre 5 a 40%). Pode ocorrer também de o paciente apresentar níveis elevados (próximos de 30U/dL), mas a doença ser grave, pois o fator não é funcional. A hemofilia pode se manifestar nas mulheres quando o pai é hemofílico e a mãe é portadora. Os filhos têm 50% de chance de serem normais e as filhas serão heterozigóticas (XhX) ou homozigóticas (XhXh). Geralmente, na forma homozigótica, ocorre morte intrauterina. Os pacientes hemofílicos apresentam sangramento prolongado após uma extração dentária, cirurgia ou corte. O sangramento nos músculos, articulações ou órgãos internos pode agravar o quadro. O sintoma mais comum é a hemartrose (sangramento na articulação), que pode causar lesão osteoarticular irreversível e levar à invalidez. Nos casos em que a atividade do fator VIII:C é menor que 1%, a preocupação maior é a possibilidade de sangramento no sistema nervoso central, levando a óbito. O diagnóstico do paciente hemofílico é feito a partir dos exames reportados a seguir: 117 HEMATOLOGIA CLÍNICA Quadro 14 – Testes laboratoriais para diagnóstico de hemofilia Teste laboratorial Resultado Tempo de coagulação (TC) Aumentado Tempo de protrombina Normal Tempo de trombina Normal Tempo de tromboplastina parcial ativado (TTPA) Aumentado (corrigido pela adição de plasma normal) Dosagem dos fatores VIII:C ou IX Diminuída Número de plaquetas Normal Fonte: Naoum e Bonini-Domingos (2016). O tratamento pode ser preventivo, por exemplo, antes de uma extração dentária, broncoscopia, punção lombar, cirurgia, endoscopia ou para corrigir uma hemorragia. Algumas opções de tratamento são: • Concentrado de FVIII. • Concentrado de FIX. • Concentrado de complexo protrombínico (CCP): contém os fatores II, VII, IX e X. É utilizado quando os concentrados de fatores isolados não estão disponíveis ou em pacientes com anticorpos contra o FVIII. • Concentrado de complexo protrombínico ativado: semelhante ao anterior, mas os fatores estão ativados. Indicado para pacientescom elevado título de inibidores. • Plasma fresco congelado. • DDAVP (1-desamino-8-D-arginina vasopressina): é um análogo sintético do hormônio antidiurético. É utilizado em pacientes com hemofilia A leve, para tratamento de epistaxe e pequenos traumas. • Ácido tranexâmico: utilizada como adjuvante nos sangramentos de mucosas. Vale ressaltar que o ácido acetilsalicílico é contraindicado para pacientes hemofílicos por inibição da formação de tromboxano A2 (agregante plaquetário). Os analgésicos indicados nesses casos são o paracetamol, que pode ser associado à codeína (se necessário) ou, ainda, o dextropropoxifeno para adultos. Os anti-inflamatórios, como ibuprofeno e naproxeno, podem ser utilizados, com recomendação médica e por tempo limitado, assim como os inibidores de COX-2. 118 Unidade III Uma complicação que pode surgir é a formação de anticorpos (inibidores) contra os fatores que estão sendo administrados para o tratamento. Estima-se que 2% a 5% dos pacientes com hemofilia B e 15% a 20% dos pacientes com hemofilia A desenvolvem inibidores. Na maioria dos casos, os inibidores são gerados nos primeiros 50 dias de tratamento com o fator de coagulação e cerca de 74% dos inibidores se desenvolvem na primeira década de vida. Essa situação é evidenciada quando o paciente apresenta sangramentos mesmo realizando a profilaxia. O título do inibidor pode ser determinado em laboratório (expresso em UB, isto é, unidades Bethesda) e são classificados em inibidores de baixa resposta (título do inibidor permanece abaixo de 5UB/mL de plasma) e inibidores de alta resposta (título superior ou igual a 5UB/mL). Os pacientes que apresentam título de alta resposta representam metade dos casos e necessitam da medicação denominada by-pass, que tem a propriedade de estimular a coagulação do sangue mesmo na presença de inibidores. As medicações utilizadas atualmente com essa finalidade são comercialmente conhecidas como FEIBA® e NovoSeven®. Já a doença de Von Willebrad (DvW) é a doença hemorrágica mais prevalente e afeta 1% da população mundial, resultado de um defeito quantitativo e/ou qualitativo do FvW. A DvW pode ser adquirida, sendo secundária às neoplasias e doenças autoimunes, porém é a forma mais rara. A forma mais comum da DvW tem caráter hereditário autossômico. Verifica-se comprometimento da hemostasia primária, pois o FvW participa da adesão plaquetária e há prejuízo da hemostasia secundária, uma vez que o FvW regula a liberação do FVIII:C. Lembrete O FvW é uma glicoproteína produzida por megacariócitos, plaquetas e células endoteliais. No plasma faz a ponte entre a glicoproteína Ib/IX (presente na membrana das plaquetas) e o vaso lesado. E também liga e transporta o fator VIII:C, impedindo a degradação deste no plasma. No plasma, a protease ADAMTS13 (disintegrin-like and metalloprotease with trombospondin type 1 motifs) cliva multímeros de FvW e, assim, cessa a formação do tampão homeostático. A falta dessa protease causa uma doença denominada púrpura trombocitopênica trombótica. A DvW é classificada em tipos 1, 2 e 3. No tipo 1, há diminuição parcial do FvW; no tipo 2, o distúrbio é qualitativo; e no tipo 3, ocorre defeito quantitativo total, sendo a forma mais grave. As deficiências qualitativas foram subclassificadas em 2A, 2B, 2M e 2N. • Tipo 2A: defeito qualitativo pela ausência de multímeros de alto peso molecular do FvW. • Tipo 2B: afinidade aumentada para a GPI. A adesão das plaquetas está alterada e há diminuição da quantidade de FvW livre. 119 HEMATOLOGIA CLÍNICA • Tipo 2M: a função plaquetária é deficiente, mas não é causado pela ausência de multímeros de alto peso molecular do FvW. • Tipo 2N: iminuição da afinidade do FvW ao FVIII. Os pacientes apresentam equimoses, epistaxe, gengivorragia, e as mulheres apresentam menorragia. Os pacientes do tipo 3 apresentam sangramento espontâneo, geralmente nos músculos e nas articulações. O diagnóstico da DvW pode ser dividido em três etapas: testes de triagem, confirmatórios e complementares. • Testes de triagem: número de plaquetas, tempo de sangramento e TTPa. • Testes confirmatórios: atividade do fator VIII (FVIII:C), antígeno do fator de Von Willebrand (FvW:Ag), atividade de co-fator de ristocetina (FvW:RCo) e capacidade de ligação do FvW ao colágeno (FvW:CB). • Testes complementares: aglutinação plaquetária induzida pela ristocetina (RIPA), padrão multimérico do FvW, capacidade de ligação ao FVIII (FvW: FVIIIB), aglutinação plaquetária induzida pela botroetina, FvW intraplaquetário, propeptídeo do FvW (FvW:AgII) e subunidades do FvW. O quadro a seguir resume alguns resultados que podem ser evidenciados nos testes solicitados. Quadro 15 – Testes laboratoriais na investigação da doença de Von Willebrand Teste laboratorial Resultado Número de plaquetas Normal Tempo de sangramento Aumentado TP Normal Teste de agregação plaquetária na presença de ristoetina Diminuída TTPa Aumentado FVIII:C e FVIII:Ag Diminuídos Adaptado de: Naoum e Bonini-Domingos (2016). O tratamento do tipo I da doença de DvW é feito com DDAVP, que aumenta a concentração dos fatores VIII:C e FvW do plasma. Os casos graves de sangramento do tipo 2 e 3 se beneficiam do uso de crioprecipitado de fator VIII/FvW, o que eleva imediatamente o o fator VIII:vW e corrige o tempo de sangramento pelo período de 2 a 6 horas, a elevação máxima para o fator VIII:C é obtida após 48 horas. Os pacientes do tipo 3 podem desenvolver anticorpos contra o FvW e, nesse caso, outras opções terapêuticas devem ser iniciadas. 120 Unidade III 7.2.2 Púrpuras Outro grupo de distúrbios que se caracterizam por hemorragias na pele ou nas mucosas são as púrpuras, que recebem esse nome devido ao aparecimento de manchas e placas de cor roxa. As manchas ocorrem devido ao extravasamento de sangue e são indolores. Outras vezes, dependendo da gravidade dos sintomas, pode haver sangramentos (nasal, trato urinário, intestinal ou gengiva). Pode ocorrer também de o paciente não apresentar sintomas e não haver necessidade de tratamento. Entretanto, quando o paciente precisar de tratamento, são utilizados medicamentos que induzem o aumento das plaquetas no sangue e outros para controle dos sintomas. A Classificação Internacional de Doenças (CID-10) (MEDICINA NET, [s.d.]) considera os seguintes tipos de púrpura: trombocitopênica imune, trombocitopênica trombótica, fulminante, reumatoide, outras púrpuras não trombocitopênicas. Quanto à existência de alteração ou não do número de plaquetas, as púrpuras podem ser não trombocitopênicas (não há alteração da contagem de plaquetas no sangue) ou trombocitopênicas (número de plaquetas abaixo de 150.000/mm3 no hemograma). Os principais tipos de púrpuras trombocitopênicas são: • Púrpura trombocitopênica idiopática (PTI). • Púrpura tromobocitopênica trombótica (PTT). Já os principais tipos de púrpuras não trombocitopênicas são: • Púrpura de Henoch-Schönlen. • Púrpura fulminante. • Púrpura simples. • Púrpura senil. Quais são as causas de púrpuras? Vejamos algumas: • Fragilidade dos vasos sanguíneos. • Fármacos que alteram a função plaquetária. • Tratamento com esteroides. • Infecções virais e bacterianas: dengue e HIV. 121 HEMATOLOGIA CLÍNICA • Doenças autoimunes: lúpus, vasculites, síndrome hemolítica-urêmica e hipotireoidismo. • Hepatopatias. Vejamos algumas características dos principais tipos de púrpuras: • Púrpura trombocitopênica idiopática (PTI): doença autoimune, sem causa conhecida e ocorre em indivíduos que não têm doença que afeta as plaquetas. O paciente apresenta número de plaquetas menor que 100.000/mm3, sem alterações das demais linhagens celulares. Não há exame para confirmação da PTI e outras doenças devem ser descartadas. Em crianças, geralmente, ocorre após infecção viral e a resolução é espontânea. Já em adultos, o tratamento é feito com corticoides e imunoglobulina intravenosa. A remoção do baço pode ser indicada nos casos graves que persistem pormais de 6 semanas. • Púrpura tromobocitopênica trombótica (PTT): doença rara e grave, caracterizada pela formação de pequenos trombos que impedem o fluxo de sangue para órgãos vitais. Pode ser adquirida e se manifesta após tratamento com imunossupressores, infecções ou doenças autoimunes, mas, na maioria dos casos, é uma doença autoimune, na qual ocorre produção de anticorpos contra a enzima ADAMTS-13 e, consequentemente, há coagulação inadequada das plaquetas (o que acarreta na diminuição da contagem plaquetária). Os sintomas surgem repentinamente e causam complicações que podem ser fatais. O tratamento é realizado com corticoides e plasmaférese (o plasma é removido com auxílio de uma máquina e as células sanguíneas devolvidas ao paciente). FvW clivado ADAMTS-13 ADAMTS-13 Agregação plaquetária A) Função normal B) Função trombocitopênica trombótica FvW não clivado pela ADAMTS-13 Célula endotelial Célula endotelial Sítio de ligação Sítio de ligação Secreção do FvW pelos corpos de Weibel Secreção do FvW pelos corpos de Weibel Figura 79 – (A) Clivagem do fator de Von Willebrand (FvW) pela ADAMTS-13; (B) Ausência de atividade da ADANTS-13 provocando agregação plaquetária • Púrpura de Henoch-Schönlen: púrpura vascular que se caracteriza pela presença obrigatória de uma púrpura palpável e, pelo menos, um dos sintomas a seguir: dor nas articulações, dor abdominal 122 Unidade III difusa, comprometimento renal (hematúria e/ou proteinúria), biópsia com vasculite e depósito de IgA ou glomerulonefrite com depósito de IgA. A causa é desconhecida, entretanto, vacinação, medicamentos e infecções (especialmente o estreptococo beta-hemolítico) costumam anteceder o aparecimento dos sinais. Acomete principalmente crianças menores dos 10 anos, que apresentam manchas vermelhas pelo corpo (principalmente, nas pernas), febre, dor abdominal e nas pernas. Os sintomas duram entre 1 e 2 semanas e, normalmente, requer repouso e acompanhamento do quadro, sem necessidade de tratamento, exceto uso de medicação para as dores. Em caso de evolução da doença, a principal preocupação é o comprometimento da função renal. • Púrpura fulminante: acomete, sobretudo, os recém-nascidos, devido à falta de proteínas da coagulação (principalmente a falta de proteína C), o que favorece a formação de trombos. A manifestação clínica ocorre poucas horas após o nascimento e causa infarto hemorrágico na pele (as manchas vermelhas se tornam negras pela necrose da pele). Trata-se de uma emergência neonatal e a intervenção deve ser imediata a partir da transfusão de plasma fresco congelado. • Púrpura simples: são manchas vermelhas na pele de causa desconhecida. Os hematomas podem estar presentes nos braços, glúteos e coxas. Não há sangramento anormal, apenas os hematomas frequentes. O uso de corticoides ou exposição solar pode aumentar o risco de púrpura simples. Não há necessidade de tratamento. • Púrpura senil: geralmente, acomete idosos e caracteriza-se pelo aparecimento de manchas roxas devido ao aumento da fragilidade vascular, que ocorre pela lesão do tecido conjuntivo. Essa lesão pode ocorrer em razão do envelhecimento e uso de fármacos (corticoides, clopidrogel, varfarina e aspirina), que podem exacerbar as manchas. Não há necessidade de tratamento. Figura 80 – Pele de paciente que apresenta púrpura senil Disponível em: https://cutt.ly/4mwlAYJ. Acesso em: 3 jan. 2021. 123 HEMATOLOGIA CLÍNICA 7.2.3 Tromboses Trombose é formação de um trombo (coágulo) na luz de um vaso venoso ou arterial. A trombose venosa prejudica a circulação das veias, ou seja, a que realiza o transporte de sangue deixa o oxigênio nos tecidos e retorna para os pulmões. Já a trombose arterial compromete a circulação que transporta o sangue rico em oxigênio dos pulmões para os tecidos. As tromboses arteriais são mais comuns na população mundial e são a principal causa de morte também, pois ocorrem principalmente pela formação de placas de ateroma, resultantes do acúmulo de colesterol na camada íntima das artérias. A lesão que ocorre na parede arterial é acompanhada de depósito de LDL-colesterol e migração de plaquetas que liberam o fator de crescimento derivado de plaqueta (PDGF) (platelet-derived growth factor). Esse fator é mitogênico, ou seja, favorece a proliferação de células musculares lisas na camada íntima dos vasos, o que diminui a luz do vaso. As consequências dependem da localização do trombo e podem ser o infarto do miocárdio, os acidentes vasculares (popularmente conhecidos como derrames) e a doença arterial obstrutiva crônica, que provoca a diminuição do fluxo sanguíneo nas extremidades dos membros inferiores. E quais são os fatores de risco para a trombose arterial? Diabetes, obesidade, fumo, estresse, hipertensão arterial e dislipidemias. Já nas tromboses venosas, os fatores predisponentes são fluxo sanguíneo lento, ativação local dos fatores de coagulação e lesão do endotélio. Fragmentos podem se desprender do trombo e provocar a embolia. Quando a liberação desses fragmentos ocorre em veia periférica ou nas cavidades direitas do coração, a consequência é a embolia pulmonar. E quando o desprendimento ocorre nas cavidades atrial ou ventricular esquerdas, o trombo pode se alojar na circulação cerebral ou renal. As tromboses venosas ocorrem com menor frequência em relação às arteriais e afetam sobretudo os membros inferiores. Os fatores de risco para o desenvolvimento das tromboses venosas são: longos períodos de imobilização (viagens ou internações), obesidade, fumo, mutações genéticas (fator V Leiden, gene da protrombina, genes das proteínas C, S e da antitrombina) e presença de anticorpos antifosfolípides. Vale a pena abordarmos a questão do risco aumentado de trombose venosa e arterial provocado pelo uso de contraceptivos hormonais (sobretudo os que apresentam maior quantidade de estrogênio na composição em relação à progesterona), uma vez que essas drogas são usadas por um grande número de mulheres. O etinilestradiol pode interagir com os receptores estrogênicos das células endoteliais dos vasos sanguíneos e ativar a coagulação. Ocorre também aumento dos fatores de coagulação (XIII, XII, X, IX, VIII, VII e fibrinogênio) e diminuição dos inibidores (proteína C e S). Dosagens acima de 50 mcg estão associadas ao aumento em duas vezes o risco de trombose venosa, quando comparadas às concentrações menores. O diagnóstico diferencial entre trombose arterial ou venosa é importante, pois a conduta terapêutica difere. O tratamento das tromboses arteriais é realizado com antiagregantes plaquetários e, no caso de tromboses venosas, utilizam-se os anticoagulantes. Os antiagregantes plaquetários mais usados são o ácido acetilsalicílico (AAS), o dipiridamol, a sulfinpirazona, a hidroxicloroquina, o clofibrate e a ticlopidina. O AAS continua sendo o antiagregante 124 Unidade III plaquetário mais utilizado e a recomendação, de acordo com a Sociedade Brasileira de Cardiologia (PIELGAS, 2015), é de administração nos pacientes com infarto agudo do miocárdio, com máxima brevidade, após o diagnóstico, na dose de 160 a 325 mg (a mastigação favorece a absorção) e a terapia deve ser realizada initerruptamente na dose de 100 mg diária. O mecanismo de ação do AAS é a inibição da enzima ciclooxigenase que reduz a produção de tromboxano A2, um potente agregante plaquetário. Para o tratamento das tromboses venosas, são utilizados a heparina e os anticoagulantes orais. A heparina potencializa o efeito da antitrombina III e pode ser utilizada na forma não fracionada (HNF) por via endovenosa (doses terapêuticas) ou a heparina de baixo peso molecular (HBPM), por via subcutânea (dose profilática). Verifica-se coagulação sanguínea 4 a 5 horas após a injeção. E pode ser utilizada em gestantes uma vez que não atravessa a placenta e também não é secretada no leite materno (ÁVILA, 2010). Lembrete O controle das doses de heparina deve ser realizado pelo tempo de tromboplastina parcialativado (TTPA). Outra classe de medicamentos utilizados no tratamento das tromboses são os agentes trombolíticos, cuja função é converter o plasminogênio em plasmina, que realiza a fibrinólise. O mecanismo fisiológico que desfaz o trombo é autolimitado por mecanismos contrarreguladores: inibidor do ativador de plasminogênio (PAI-1) e a2-antiplasmina. O próprio endotélio vascular produz continuamente dois fibrinolíticos: ativador do plasminogênio tecidual (tPA ou alteplase) e uroquinase. A utilização dos agentes fibrinolíticos possibilitou a diminuição da mortalidade por infarto agudo do miocárdio, embolia pulmonar e acidente cerebral isquêmico, pois possibilita a lise do trombo em um período de 2 a 3 horas. As três gerações de fibrinolíticos disponíveis são, respectivamente, estreptoquinase, alteplase e tenecteplase. Plasmina PAI-1 Inibidor do ativador do plasminogênio a2-antiplasmina Produtos de degradação da fibrina (PDFs) Agentes trombolíticos (estreptoquinase, alteplase e tenecteplase) Plasminogênio Fibrina Figura 81 – Mecanismo de ação dos agentes fibrinolíticos 125 HEMATOLOGIA CLÍNICA Saiba mais Para aprofundar o seu estudo sobre os fibrinolíticos, leia o artigo “Fibrinolíticos: indicações e tratamento das complicações hemorrágicas”. BARUZZI, A. C. A.; STEFANINI, E.; MANZO, G. Fibrinolíticos: indicações e tratamento das complicações hemorrágicas. Rev. Soc. Cardiol. Estado de São Paulo, n. 4, v. 28, p. 421-427, 2018. Disponível em: https://tinyurl.com/dyybafmk. Acesso em: 2 ago. 2021. 8 IMUNO-HEMATOLOGIA A imuno-hematologia é uma especialidade dentro da hemoterapia que estuda os antígenos presentes nas hemácias, os anticorpos correspondentes a eles, o que possibilita as transfusões de sangue. Neste tópico, vamos estudar os princípios da imuno-hematologia, o ciclo do sangue, desde a doação até a transfusão dos hemocomponentes no receptor. Veremos os critérios de elegibilidade de doação de sangue, os testes que são realizados na amostra de sangue do doador (identificação dos antígenos e anticorpos nas hemácias e sorologia para várias patologias). Também serão estudadas as etapas de processamento do sangue, que permitem a obtenção de diferentes produtos (concentrado de hemácias, plasma, plaquetas, entre outros), o armazenamento, as indicações para transfusão, os exames realizados no paciente que vai receber o sangue. E, também, serão apresentados setores da hemoterapia nos quais o farmacêutico pode atuar como parte da equipe profissional do banco de sangue, como é o caso do setor de criopreservação de células-tronco para o transplante de medula óssea. Desde a transfusão feita braço a braço até as primeiras bem-sucedidas, muitas descobertas marcaram a história da hemoterapia, por exemplo, os estudos sobre os grupos sanguíneos, o desenvolvimento dos sistemas de coleta e das soluções anticoagulantes. A partir de então, surgiram os bancos de sangue e a preocupação com a proteção do doador e do receptor de sangue. Em 1980, foi criado o Programa Nacional de Sangue e Hemocomponentes (Pró-Sangue), que teve como um de seus objetivos regularizar a hemoterapia no Brasil (JUNQUEIRA; ROSENBLIT; HAMERSCHLAK, 2005). Várias atividades são desempenhadas pelo banco de sangue, desde a coleta do sangue até a liberação do hemocomponente, e foram denominadas como ciclo do sangue. O sangue total e os hemocomponentes obtidos são produtos biológicos que podem ser utilizados e estão dispensados de registro da Anvisa. Diferentemente dos hemoderivados que são produzidos na indústria, a partir de plasma proveniente das doações de sangue. Tanto o serviço de hemoterapia como a indústria de hemoderivados são locais de atuação de profissionais da saúde, incluindo médicos, enfermeiros, técnicos em enfermagem, farmacêuticos, biomédicos e biólogos. 126 Unidade III De acordo com o Ministério da Saúde, no Brasil existem cerca de 32 hemocentros e mais de 2 mil serviços de hemoterapia (BRASIL, 2020). O profissional da área de hemoterapia está em constante atualização técnica e científica diante dos diversos desafios epidemiológicos, entre eles os agentes infeciosos emergentes e reemergentes. Observação Agentes emergentes são aqueles que surgem como um novo problema de saúde, por exemplo, o vírus HIV, o vírus da hepatite C e a encefalite espongiforme (doença da vaca louca). E agentes reemergentes indicam agentes que já existiam, mas passaram a apresentar mudança de comportamento e voltaram a representar ameaça à saúde humana, por exemplo, o retorno da dengue e da febre amarela. 8.1 Ciclo do sangue Então, vamos conhecer o ciclo do sangue e todos os setores por onde o sangue passa até ser utilizado para a transfusão. Essas são as etapas que vamos estudar a seguir: • Identificação do doador. • Triagem hematológica e clínica. • Doação de sangue. • Testes sorológicos e imuno-hematológicos com as amostras do doador. • Processamento. • Armazenamento. • Preparação para transfusão. • Transfusão. Inicialmente, o doador é cadastrado na recepção e deve atender aos requisitos básicos, tais como, estar em boas condições de saúde, ter idade entre 16 e 69 anos, pesar no mínimo 50 Kg, ter realizado uma refeição leve e apresentar um documento com foto. Em seguida, ocorre a triagem hematológica, pois o doador não pode ter anemia e também apresentar sinais vitais normais, entre estes, a pressão arterial e a temperatura. Feito isso, o entrevistador habilitado (geralmente, médico ou enfermeiro) realiza uma entrevista com o doador, na qual uma série de perguntas são realizadas, no intuito de preservar a saúde do doador e do receptor. Pode ocorrer de o possível candidato apresentar um impedimento temporário ou definitivo, que será criteriosamente avaliado. Veja alguns exemplos de impedimentos no quadro a seguir. 127 HEMATOLOGIA CLÍNICA Quadro 16 – Exemplos de impedimentos temporários e definitivos para doação de sangue Impedimentos temporários Tatuagem e maquiagem definitiva nos últimos 12 meses Ingestão de bebida alcóolica nas últimas 12 horas que antecedem a doação Extração dentária Vacina contra a gripe Situações de exposição ao risco aumentado de doenças sexualmente transmissíveis Infecção pela covid-19 Impedimentos definitivos Uso de drogas ilícitas Portadores de hepatite B e C, AIDS (vírus HIV), HTLV-I e II e doença de Chagas Adaptado de: Pró-Sangue (s.d.). Exemplo de aplicação Um candidato à doação de sangue compareceu ao banco de sangue e, durante a entrevista, foi questionado há quanto tempo havia colocado o piercing no nariz. O candidato informou que havia colocado há cerca de dez dias. Esse candidato poderá doar sangue? Caso o candidato à doação tenha omitido alguma informação durante a entrevista, ele ainda tem a oportunidade de realizar de forma confidencial o voto de autoexclusão. Dessa forma, mesmo que seus exames sorológicos resultem negativos, sua doação será descartada. Uma vez considerado apto, o doador é posicionado em uma cadeira confortável e segura. São coletados tubos de sangue e uma bolsa com cerca de 500 ml de sangue, que contém anticoagulante e permanece em constante agitação. Os tubos de sangue são utilizados para triagem sorológica e para pesquisa do grupo sanguíneo. Finalmente, o doador é orientado a alimentar-se e hidratar-se. Após 15 minutos no local, caso se sinta bem, o doador é liberado. Candidato à doação Identificação na recepção Triagem clínica e hematológica Coleta de tubos e bolsa de sangue Doador recebe alimentação e hidratação Saída Saída Inapto Apto Figura 82 – Etapas da doação de sangue 128 Unidade III Além da doação convencional de sangue, existe a modalidade denominada aférese, que permite a coleta de um ou mais componentes específicos do sangue. Nesse caso, o sangue do doador percorre uma máquina, é centrifugado e o componente de interesse é coletado. Os demais componentes são devolvidos ao doador. O doador por aférese deve atender a alguns critérios, por exemplo, calibrevenoso adequado, disponibilidade de tempo maior (o procedimento tem duração de cerca de uma hora), geralmente, é um doador de repetição (tem sorologia conhecida). Esse tipo de procedimento é utilizado para doação de células-tronco para transplante de medula óssea. A doação por aférese apresenta custo elevado, mas oferece vantagens aos doadores e receptores. Em caso de doação de plaquetas, a perda de hemácias é mínima para o doador e, após três dias, pode realizar nova doação. Para a produção de uma bolsa de plaquetas a partir de doação convencional, são necessárias entre sete a dez doações, o que expõe o paciente a diferentes sorologias e possibilidade aumentada de reação transfusional. E o que acontece depois com os tubos e com a bolsa de sangue? Tubos de sangue Bolsa de sangue Preparao para transfusão Processamento Bolsa liberada Descarte da bolsa Não Sim Coleta Transfusão Armazenamento temporário (quarentena) Exames de imuno-hematologia e sorologia Figura 83 – Ciclo do sangue As amostras dos tubos de sangue serão submetidas a testes sorológicos e imuno-hematológicos, que têm como objetivo tornar a doação de sangue mais segura para os receptores. De acordo com a Resolução RDC n. 153, de 14 de junho de 2004 (ANVISA, 2004), os testes obrigatórios em território brasileiro são hepatite B e C, HTLV I e II, doença de Chagas, sífilis e HIV I e II. Em relação à malária, nas regiões endêmicas com transmissão ativa, o exame parasitológico (microscopia) deve ser realizado. E em regiões endêmicas sem transmissão ativa, recomenda-se o exame sorológico. 129 HEMATOLOGIA CLÍNICA Já os testes imuno-hematológicos incluem tipagem ABO e antígeno D (Rh), pesquisa de D fraco, pesquisa de anticorpos irregulares (PAI), identificação de anticorpos irregulares e teste de solubilidade para hemoglobina S. A classificação dos grupos ABO passou a ser amplamente utilizada a partir da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). A classificação ABO é realizada por provas direta e reversa. Na prova direta, é realizada a pesquisa de antígenos presentes nas hemácias do doador e na prova reversa é feita a pesquisa de anticorpo no soro do doador, que se aglutina ou não com hemácias tipadas A e B, o que é considerado uma contraprova. Deve haver concordância entre as provas para a determinação do resultado. Quadro 17 – Tipagem do sistema ABO: direta e reversa Tipagem direta Tipagem reversa Grupo A anti-B A B anti-A B A e B - AB - anti-A e anti-B O Adaptado de: Control Lab (2005, p. 1). Os anticorpos do sistema ABO aparecem espontaneamente após 3 a 6 meses de idade. O aparecimento desses anticorpos deve-se à ampla distribuição em estruturas da natureza semelhantes aos antígenos A e B presentes nas hemácias a que estamos expostos (GIRELLO; KÜHN, 2016). Em relação à classificação do sistema Rh, o princípio é a pesquisa do antígeno D, presente na membrana da hemácia do doador. Não é realizada a prova reversa, pois não há anticorpos anti-D de ocorrência natural. Na falta de reatividade, a variante D fraco deve ser pesquisada. Estima-se que 0,1 a 1% da população caucasiana tenha o antígeno D fraco. O sistema Rh é o segundo mais importante, em termos transfusionais, depois do ABO, e é o mais complexo dos sistemas. Foi descoberto em 1939 em uma mulher que precisou ser transfundida com o sangue do marido (ABO compatível) após o nascimento de um recém-nascido com anemia hemolítica. A mulher apresentou reação transfusional grave e seu soro reagiu (aglutinou) as hemácias do marido e de outros doadores ABO compatíveis. A situação foi associada aos achados de Landesteiner e Wiener, que observaram a ocorrência de aglutinação entre soro de coelho imunizado com hemácias de macacos Rhesus e cerca de 85% das hemácias humanas. Então, denominaram o antígeno presente nos dois casos como antígeno Rh, pois pensaram se tratar do mesmo antígeno. Mais tarde verificaram que não se tratava do mesmo antígeno, o anticorpo do coelho (heteroanticorpo) recebeu a denominação anti-LW e o anticorpo humano (aloanticorpo), anti-D; mas a nomenclatura do sistema (Rh) permaneceu. Vejamos porque o sistema Rh é complexo. 130 Unidade III A partir dos estudos de biologia molecular, foram identificados que os indivíduos RhD positivos apresentam os genes RHD e RHCE, enquanto indivíduos RhD negativos possuem apenas o gene RHCE. O sistema apresenta um grande número de polimorfismos e codifica mais de 50 antígenos, entretanto, somente a presença ou ausência do antígeno D é obrigatória em doadores de sangue. Esse polimorfismo causa as variações na classificação do sistema Rh e o estudo por biologia molecular deve ser realizado para os casos que requerem esclarecimento; como naqueles de fraca expressão (D fraco) ou na presença de antígeno modificado (D parcial). Mesmo enfraquecido ou parcial, o antígeno RhD pode levar à formação de anticorpos em indivíduos Rh negativos. Além disso, os indivíduos classificados como Rh parcial também podem produzir anti-RhD se expostos ao antígeno RhD. Os antígenos RhD fraco não são identificados por técnicas de aglutinação direta, e sim com o uso de potencializadores ou com reagentes monoclonais. As hemácias contendo D fraco são consideradas Rh positivas e podem provocar aloimunização transfusional ou feto-materna. Os antígenos D parciais são identificados pela falta de um ou mais epítopos da proteína D (GIRELLO; KÜHN, 2016). Vale a pena ressaltar que em virtude da grande miscigenação no nosso país, a diferenciação entre D fraco e D parcial, utilizando-se testes sorológicos, é complexa, pois é possível a presença de mais de um tipo de D fraco em um mesmo indivíduo. Indivíduos que apresentam D parcial e alguns D fracos estão sujeitos às imunizações de anti-D. Desse modo, os testes de biologia molecular pemitem a pesquisa do gene, mas nem sempre resultam na expressão da proteína. Ou seja, há pessoas que expressam o gene RhD, mas não produzem a proteína, são os denominados pseudogenes. Assim, os testes moleculares não devem substituir os sorológicos, mas, sim, serem feitos em conjunto. Apesar de os grupos ABO e Rh serem os mais importantes, devido à alta taxa de imunogenicidade, existem outros sistemas sanguíneos importantes: MNS, P, H, Kid, Kell, Lewis, Duffy, Lutheran e Diego. A classificação e nomenclatura segue um padrão internacional, estabelecido pelos membros da International Society of Blood Transfusion (ISBT) e está em constante atualização (ISBT, [s.d.]). No setor de imuno-hematologia do doador, também é realizada a pesquisa de anticorpos irregulares (PAI). Indivíduos que apresentam anticorpos irregulares não podem ser doadores de sangue. Os anticorpos irregulares não são esperados e estão presentes em uma pequena parcela da população, podendo ter origem natural ou imune. No caso dos irregulares imunes, são gerados a partir da interação do indivíduo com antígenos desconhecidos, por exemplo, através de transfusões e/ou gestação. Quando presentes no soro do doador, os anticorpos irregulares podem originar reações hemolíticas se transfundidos em receptores que apresentam antígenos correlacionados. Esse tipo de sensibilização antígeno-anticorpo ocorre, principalmente, em pacientes politransfundidos, com anemia falciforme e anemia talassêmica, em que se tem aumento do risco de aloimunização pelas bolsas de sangue por isogrupos diferentes (CARVALHO, 2008). 131 HEMATOLOGIA CLÍNICA A legislação brasileira obriga a realização da pesquisa de anticorpos irregulares (PAI) em amostras de doadores de sangue, mas não há a obrigatoriedade de ser realizada a identificação de anticorpos irregulares (IAI). Entretanto, ambos os testes devem ser realizados nos pacientes que precisam de transfusão. E como a PAI e a IAI são realizadas? A PAI é realizada utilizando-se o teste da antiglobulina humana indireta (Coombs). E na IAI, hemácias com perfis antigênicos conhecidos contendo os principais antígenos de grupo sanguíneo; entre estes: D, C, E, c, e, M,N, S, s, P1, Le a, Leb, K, k, Fya, Fyb, Jka, Jkb e Dia, são testadas contra o soro do doador (CARVALHO, 2008). É importante esclarecer que em um banco de sangue, além do setor de imuno-hematologia do doador, existe o setor que realiza os testes pré-transfusionais com a amostra do paciente, pois as reações transfusionais podem ser graves e fatais, como no caso de uma transfusão de hemocomponente incompatível. Quando o paciente apresenta um anticorpo clinicamente significativo e houver a necessidade de transfusão, uma bolsa com fenótipo compatível deve ser selecionada. Os antígenos que mais causam reações transfusionais são os do sistema Rh (D, C, c, E, e), Kell (K1), Kidd (Jka, Jkb) e Duffy (Fya e Fyb). Enquanto são realizados exames com as amostras de sangue do doador, a bolsa é processada e armazenada (quarentena) até que os resultados obtidos permitam que seja liberada para a transfusão. Vamos acompanhar o que ocorre com a bolsa de sangue no setor denominado processamento. Nesse setor, a bolsa é submetida a várias centrifugações refrigeradas para evitar contaminações e extrações dos componentes de interesse, que são concentrado de hemácias, concentrado de plaquetas, crioprecipitado e plasma fresco. Figura 84 – Bolsa de doação de sangue após centrifugação Fonte: Colsan (2019, p. 13). 132 Unidade III Após a centrifugação inicial da bolsa de sangue, as hemácias ficam depositadas no fundo, na parte de cima, se forma a camada leucoplaquetária (conhecida por buffy-coat) e, finalmente, a camada líquida de plasma com plaquetas dispersas (plasma rico de plaquetas ou PRP). Tudo é feito em sistema fechado, ou seja, sem contato com o meio externo. Concentrado de hemácias (CH) Sangue total He m oc om po ne nt es Plasma fresco congelado (PFC) Plasma rico em plaquetas (PRP) Concentrado de plaquetas (CP) Crioprecipitado (CRIO) Plasma simples (PS) HemoderivadosConcentrado de fatores de coagulação GlobulinasAlbuminaGlobulinasAlbumina Figura 85 – Hemocomponentes e hemoderivados obtidos a partir da doação de sangue total Adaptada de: Brasil (2015, p. 18). E por quanto tempo os hemocomponentes podem ficar armazenados? O tempo de armazenamento depende da solução anticoagulante-preservadora e aditiva utilizada. A validade do sangue coletado em solução de CPDA-1 (ácido cítrico, citrato de sódio, fosfato de sódio, dextrose e adenina) é de 35 dias, mas pode ser de 42 dias após a adição de solução SAG-M (soro fisiológico, adenina, glicose e manitol). A bolsa de concentrado de hemácias fica com volume entre 220 e 280 ml e o hematócrito pode variar entre 65 e 80% (na ausência de aditivo) e entre 50 a 70% (na presença de aditivo). Pode ser que alguns procedimentos especiais sejam necessários antes da transfusão, por exemplo, a desleucocitação (utilização de filtro para remoção de leucócitos) ou desplamatização (lavagem com salina fisiológica). A obtenção do concentrado de plaquetas a partir da doação de sangue total pode ser feita por dois métodos distintos (depende do tipo de bolsa). A primeira possibilidade é a centrifugação do sangue em duas etapas. Na primeira centrifugação, obtém-se o PRP e na segunda centrifugação (feita em velocidade mais alta) é obtido o concentrado de plaquetas. Outro modo de obtenção é a partir do uso de bolsas do tipo top and bottom, ou seja, o sangue é centrifugado, o plasma sobrenadante é transferido para outra bolsa pela parte de cima (top) e o concentrado de hemácias é removido pela parte de baixo (bottom) da bolsa. Assim, o que permanece 133 HEMATOLOGIA CLÍNICA na bolsa é a camada leucoplaquetária que pode ser agrupado com outras bolsas, que é novamente centrifugado, formando um pool plaquetário. Esse método diminui em 90% a quantidade de leucócitos na bolsa (COLSAN, 2019). Lembrete Conforme mencionado, as plaquetas podem ser obtidas por plaquetaférese. Nesse modo, a coleta pode ser simples ou dupla, o que otimiza a quantidade de coletas unitárias de sangue total, que seriam necessárias. Além de minimizar os riscos transfusionais para o receptor. O plasma fresco congelado (PFC) é a parte líquida (sem células) do sangue obtida por centrifugação da bolsa de sangue. O plasma também pode ser obtido por aférese. O plasma contém água, proteínas, globulinas e fatores de coagulação, entre outros. Ele deve ser congelado em até 8 horas após a coleta e mantido em temperatura inferior a -20 °C por até 1 ano (COLSAN, 2019). A partir do PFC, pode ser gerado o plasma isento de crioprecipitado (PIC). Ainda pode ser produzido o plasma comum (não fresco, normal ou simples) (PC), que é o plasma congelado, mas que não atendeu aos critérios técnicos necessários para ser considerado um PFC, ou ainda, é aquele obtido a partir da transformação de um PFC, ou de um plasma fresco de 24 horas (obtido de uma bolsa de sangue por centrifugação e congelado entre 8 e 24 horas após a coleta) ou de um PIC, cujo período de validade expirou. O PC é armazenado em temperatura igual ou inferior a -20 °C e tem validade de 5 anos a partir da coleta da bolsa de sangue. O crioprecipitado (CRIO) é obtido a partir do plasma e contém fator VIII, fator de Von Willebrand, fibrinogênio, fator XIII e fibronectina. Essas proteínas são insolúveis entre 1 a 6 °C, assim, para a obtenção do crioprecipitado, a unidade de plasma fresco é descongelada à temperatura de 1 a 6 °C, o plasma sobrenadante é removido e a proteína precipitada permanece no volume de 10 a 15 ml do plasma. A bolsa contendo esse volume é congelada, no prazo de 1 hora, e a validade é de 1 ano (COLSAN, 2019). Vejamos na tabela a seguir as condições de armazenamento dos hemocomponentes supracitados. Tabela 4 – Temperatura de armazenamento dos hemocomponentes Hemocomponente Temperatura de armazenamento Concentrado de hemácias 2 a 6 °C Concentrado de plaquetas 22 °C e sob agitação Plasma e crioprecipitado -20 °C Fonte: Colsan (2019, p. 11). 134 Unidade III 8.2 Transfusão de sangue Uma vez entendido o que ocorre com a bolsa de sangue até que esteja pronta para transfusão, vamos conhecer o processo de transfusão: os testes necessários para liberação do hemocomponente, as reações transfusionais e as indicações para transfusão de hemocomponentes. A transfusão de hemocomponentes é uma prática terapêutica utilizada em situações programadas, por exemplo, em caso de cirurgia, casos não urgentes (que podem aguardar 24 horas) ou em emergência clínica, como no caso de hemorragia, em que o paciente corre risco de evoluir a óbito. É importante ressaltar que o procedimento envolve riscos imediatos e tardios. Os efeitos indesejáveis não imunológicos incluem transmissão de doenças, sobrecarga volêmica, infecção bacteriana, reações metabólicas e hipotermia. E as reações imunológicas envolvem reações alérgicas, reação febril não hemolítica, a lesão pulmonar associada à transfusão (de transfusion-related acute lung injury – TRALI), a doença do enxerto contra o hospedeiro (DECH), a aloimunização e a reação hemolítica imune. Assim, para que a transfusão ocorra em segurança, os serviços de hemoterapia devem atender às normas técnicas da Portaria n. 158, de 2016. Mas imagine uma situação de emergência, em que não há tempo para a classificação ABO e Rh do paciente. Qual concentrado de hemácias deve ser liberado? Deve ser liberada uma bolsa de concentrado de hemácias do grupo O negativo. Em caso de falta de unidade negativas, unidades O positivas podem ser utilizadas, salvo o atendimento de mulheres em idade fértil e crianças, para as quais as unidades RhD positivas devem sempre ser utilizadas (BORDIN; LANGHI JÚNIOR; COVAS, 2018). As etapas listadas a seguir são necessárias para a liberação do hemocomponente para transfusão. • Requisição médica de transfusão. • Amostra de sangue do paciente (receptor). • Tipagem ABO/Rh da amostra do receptor (para concentrado de hemácias). • Pesquisa de anticorpos regulares do receptor (validade de 72 horas). • Confirmação da tipagem ABO/Rh do hemocomponente.• Seleção do hemocomponente. • Realização da prova de compatibilidade. • Identificação e liberação do hemocomponente. • Transfusão. Em caso de transfusão de hemácias, é necessária a prova de compatibilidade, que tem como finalidade garantir que as hemácias transfundidas não sejam destruídas pelo receptor. A prova de compatibilidade deve ser realizada para cada bolsa de concentrado de hemácias que o paciente recebe. 135 HEMATOLOGIA CLÍNICA Quadro 18 – Compatibilidade ABO e RhD para transfusão de hemácias ABO/RhD do paciente Hemácias compatíveis O+ O+/O- A+ A+/A- B+ B+/B- AB+ AB+/O+/A+/B+/AB-/O-/A-/B- O- O- A+ A- B- B+ AB- B-/O-/A-/B- Fonte: Bonequini Júnior e Garcia (2017, p. 20). Na ausência de aglutinação, o teste indica que o paciente não apresenta anticorpos irregulares contra os antígenos das hemácias presentes na bolsa. Em caso de reação positiva, quando o teste é realizado à temperatura ambiente, verifica-se a presença de anticorpos IgM. E reação positiva a 37 °C indica a presença de anticorpos IgM e/ou IgG. Os anticorpos IgM e IgG são de importância transfusional e quando positivos, indicam a necessidade de seleção de hemácias negativas para o antígeno determinado (GIRELLO; KÜHN, 2016). No momento da transfusão, o hemocomponente é transportado em caixa térmica com controle de temperatura até o local (quarto do hospital ou sala de transfusão ambulatorial) onde o paciente se encontra. O tempo entre o transporte e a instalação do hemocomponente não deve ultrapassar 30 minutos. Os dados do paciente e da unidade a ser transfundida devem ser verificados. Os sinais vitais (temperatura, pressão arterial e pulso) e a necessidade de medicação do paciente são avaliados e então o hemocomponente é instalado. O profissional que instalou o hemocomponente (geralmente, enfermeiros) deve permanecer nos primeiros 15 minutos junto ao paciente e observar se ocorrem reações transfusionais. Caso o paciente apresente qualquer alteração que seja indício de reação transfusional, a infusão do hemocomponente deve ser interrompida. Ao término da transfusão, os sinais vitais e a necessidade de medicação devem ser reavaliados. E qual é o tempo de infusão dos hemocomponentes? Vejamos na tabela a seguir. Tabela 5 – Tempo de infusão de hemocomponentes Hemocomponente Tempo de infusão Concentrado de hemácias 1 a 2 horas Plasma fresco 1 hora Concentrado de plaquetas 30 a 45 minutos Crioprecipitado 30 a 45 minutos Fonte: Colsan (2019, p. 41). 136 Unidade III E quais são as reações transfusionais que podem ocorrer? As reações transfusionais podem ser de natureza imediata ou tardia. As reações imediatas são aquelas verificadas até 24 horas após a transfusão e incluem reação hemolítica, febre, alergia, contaminação bacteriana, edema pulmonar não cardiogênico (TRALI), hemólise não imune e reação hipotensiva. E as reações tardias são aquelas que ocorrem após 24 horas de transfusão: reação hemolítica tardia, hepatite B e C, infecção por HIV, doença de Chagas, sífilis, malária, infecção por HTLV-I e HTLV-II e aparecimento de anticorpos (FABRON JÚNIOR; LOPES; BORDIN, 2007). A febre pode indicar a presença de anticorpos contra os antígenos HLA do leucócitos e plaquetas do doador e, ainda, sinalizar contaminação bacteriana ou hemólise. A hemólise pode ser do tipo intravascular ou extravascular. Quando ocorre a reação hemolítica intravascular, o paciente geralmente apresenta, também, hipotensão, náuseas e sensação de morte iminente. A principal causa é a incompatibilidade ABO decorrente de erros (pré-transfusionais ou no momento da instalação da bolsa) que devem ser notificados e investigados. E diante um quadro de reação hemolítica extravascular, o paciente apresenta febre e dor lombar ou abdominal. A condição de TRALI está associada à lesão pulmonar aguda que ocorre entre 2 a 6 horas após a infusão do hemocomponente e está ligada à presença de anticorpos anti-HLA (antígeno leucocitário humano) e anti-HNA (antígeno neutrofílico humano), sobretudo no plasma, que concentra os anticorpos. Os anticorpos se ligam aos antígenos dos leucócitos do paciente e desencadeiam reação pulmonar grave com extravasamento de líquidos para os alvéolos, que pode ser fatal. Os anticorpos anti-HLA e anti-HNA são mais encontados em doadoras multíparas, que são frequentemente imunizadas durante gestação. Por esse motivo, alguns bancos de sangue, no Brasil, descartam o plasma de doadoras do sexo feminino, mas estes podem ser utilizados para a fabricação de hemoderivados (produtos farmacêuticos industrializados) (FABRON JÚNIOR; LOPES; BORDIN, 2007). Historicamente, desde 2006, a Associação Americana De Bancos De Sangue (AABB) já recomendava a adoção de medidas para redução do risco de TRALI pelos serviços de hemoterapia. Em 2007, o serviço de hemoterapia do Canadá, denominado de Canadian Blood Service, adotou a utilização de plasma congelado e concentrado de plaquetas por aférese apenas de doadores do sexo masculino e mulheres sem histórico de gestação. No Brasil, medidas da Anvisa, a partir de 2010, definiram que doadores do sexo masculino e mulheres com histórico de até duas doações podem ser considerados de baixo risco para o desenvolvimento de TRALI. De maneira geral, diante de reações transfusionais, a transfusão é interrompida, os sinais vitais do paciente são avaliados e as medicações e equipamentos necessários devem ser providenciados para atendimento emergencial. Diante do exposto, verifica-se que o ato transfusional, apesar de bem estabelecido como modalidade terapêutica, é um procedimento que oferece riscos ao paciente e, por isso, deve ser indicado em situações 137 HEMATOLOGIA CLÍNICA cujo benefício supera tais riscos. Vejamos algumas indicações para transfusão, lembrando que cada serviço de hemoterapia tem seus protocolos transfusionais. O objetivo da transfusão de concentrado de hemácias é melhorar a liberação de oxigênio, ou seja, comum nos casos de anemias. Nos casos de anemia aguda, a transfusão é avaliada de acordo com a velocidade de instalação do quadro, sendo indicada para os casos de hemoglobina abaixo de 7 g/dl. Vale ressaltar que existem subgrupos, por exemplo, pacientes cardiopatas ou urêmicos, para os quais os valores desejados de hemoglobina diferem em caso de anemia. O objetivo, de maneira geral, é atingir valores de hemoglobina entre 7 e 9 g/dl. Em caso de anemia crônica (talassemias, anemia falciforme e demais hemoglobinopatias), a causa deve ser identificada e a transfusão é indicada quando há risco de vida. Nesses casos, a transfusão não está associada ao nível de hemoglobina, mas aos sinais e sintomas do paciente (CHAMONE; NOVARETTI; DORLHIAC-LLACER, 2001). O transporte de oxigênio também pode estar afetado pela hipovolemia. As manifestações clínicas decorrentes dessa condição foram classificadas por Baskett, em 1990. Das categorias listadas no quadro a seguir, a transfusão está indicada nas classes III e IV. Quadro 19 – Classificação de Baskett Classificação de Baskett para hipovolemia Hemorragia classe I: perda de até 15% do volume sanguíneo Hemorragia classe II: perda sanguínea de 15 a 30% Hemorragia classe III: perda de 30 a 40% Hemorragia classe IV: perda maior que 40% Fonte: Hospital Sírio-Libanês (2010, p. 24-25). O concentrado de hemácias pode ainda ser deleucocitado, irradiado ou lavado, dependendo da necessidade do paciente. Esses procedimentos especiais evitam reações transfusionais importantes. O concentrado de hemácias deleucocitado é filtrado para remoção dos leucócitos e é indicado para politransfundidos, doentes renais crônicos, pacientes com anemias hereditárias, candidatos a transplante e transplantados de medula óssea e órgãos sólidos, entre outros. A remoção de leucócitos previne a exposição do paciente aos leucócitos do doador. O concentrado de hemácias lavadas, que é obtido após lavagem com solução isotônica para remoção de plasma, é indicado nas reações transfusionais alérgicas graves e para
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