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Cristina Maranhão PROCESSOS FOTOGRÁFICOS E-book 1 Neste E-Book: INTRODUÇÃO ����������������������������������������������������������� 3 REFLEXÕES SOBRE A FOTOGRAFIA: INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DA IMAGEM �������4 HISTÓRIA DA FOTOGRAFIA: A TÉCNICA QUE PRODUZ O REAL�������������������������������������������12 Momento e condições históricas �������������������������������������������14 Precursores da fotografia �������������������������������������������������������22 CONSIDERAÇÕES FINAIS ����������������������������������� 35 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS & CONSULTADAS �������������������������������������������������������36 2 INTRODUÇÃO Neste módulo, iremos investigar os aspectos iniciais da fotografia. Propomos a você que comece por uma reflexão em relação ao universo da imagem. Como nos relacionamos com o mundo imagético? Essa pergunta pode parecer muito fácil, mas, conforme compreendemos a complexidade da construção das imagens e de como elas se relacionam com o mun- do, fica cada vez mais interessante indagar como essa relação acontece. Assim, na primeira parte, analisaremos os conceitos filosóficos da imagem, e discutiremos a relação entre homem e imagem. Na segunda parte serão apresentadas as condições históricas que permitiram o surgimento da fotogra- fia. Nesse momento, a técnica fotográfica demanda muita pesquisa de diversas áreas. Surge na forma daguerreotipada, um processo lento e muito dife- rente do instantâneo a que estamos acostumados. É a partir dessa forma rudimentar de fotografia que se inicia o desenvolvimento da técnica fotográfica – que revolucionou a representação e o universo das imagens do mundo� 3 REFLEXÕES SOBRE A FOTOGRAFIA: INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DA IMAGEM Neste tópico, vamos compreender como a imagem, de forma geral, está presente em nossas vidas. A partir de reflexões que envolvam o universo da ima- gem, iremos descobrir como ela é importante para nossa relação e experiência com o mundo em que vivemos, e também estudaremos como a relação entre nós e o universo imagético é antigo e norteia nossa forma de estarmos no mundo� Nos dias atuais, falar sobre a imagem pode pare- cer algo banal, afinal de contas, estamos rodeados por elas; seja em formato de propagandas, filmes, revistas ou mesmo nas redes sociais. Além disso, nossos telefones trazem câmeras geralmente de boa qualidade, o que nos permite tirar milhares de foto- grafias e produzir vídeos. Na sequência, já fazermos upload da nossa produção nas redes sociais – tudo isso como num passe de mágica� Produzimos e observamos imagens em demasiado e, de certa forma, esse excesso de imagens experi- mentado hoje em dia proporcionou um afastamento e a perda de compreensão do universo imagético. Portanto, é de extrema relevância nos reconectarmos à nossa capacidade de ler imagens, de decodificar os signos e simbologias presentes nelas; pois é a partir delas que nos relacionamos com o mundo em 4 que vivemos e, dessa forma, construímos a nossa história. A própria história da humanidade pode ser contada a partir de imagens, suas relações e como afetam cada comunidade� Antes de continuarmos, proponho um pequeno exer- cício: acesse a “galeria” do seu telefone celular e verifique quantas imagens você já registrou. Observe quantas dessas fotos são efetivamente interessan- tes, e quantas são imagens repetidas, ou seja, pro- duzidas sem que tenhamos consciência do nosso ato de registrá-las. Acredito que você descobriu que muitas dessas imagens poderiam ser apagadas, pois, com um olhar mais cuidadoso, percebemos que al- gumas não nos dizem nada, ou nem lembramos o que nos motivou a produzir o registro, e podemos até perceber que somente uma ou duas imagens do mesmo tema já seria suficiente. Esse exercício é importante, pois com ele retomamos a consciência de “ver imagens”. Percebemos que, até agora, tiramos muitas fotografias que não nos dizem nada; não nos trazem nenhum sentimento ou mesmo não registram a emoção do momento. Esse é o primeiro passo para nos reconectarmos ao ato de ver imagens. O segundo estágio refere-se a ter conhecimento do universo que as imagens possuem, ou seja, começar a entender conceitos filosóficos da imagem e como a relação entre o homem e a imagem começou e, assim, chegar às tecnologias como registro fotográfico. 5 Podemos observar essa relação entre homem e imagem por dois prismas: o primeiro, e muito usado pelos filósofos da fotografia, é o Mito da Caverna, de Platão – este foi um dos principais filósofos da Grécia Antiga e usava a dialética para argumentar e pensar as questões do mundo. SAIBA MAIS Para saber mais sobre o filósofo Platão e suas rela- ções com outros filósofos da Grécia Antiga, acesse: https://www.youtube.com/watch?v=tL36cKPQzsw� Para encontrar o Mito da Caverna, leia Platão: A República – Livro VII. No Mito da Caverna, Platão descreve uma situação hipotética, na qual alguns homens (prisioneiros) só conheciam o mundo por intermédio de sombras pro- jetadas na parede da caverna que habitavam des- de a infância� Nunca haviam visto o mundo fora da caverna, e toda a relação com as coisas, animais e objetos ocorria através da projeção de suas sombras. Em determinado momento, um desses prisioneiros saiu da caverna e o mundo externo foi revelado a ele, vindo a descobrir que as sombras – que, até en- tão, eram as formas do seu mundo – eram somente simulacros das coisas, dos bichos, da natureza. Ou seja, as sombras não eram os objetos reais, mas uma simulação de sua imagem. Na sequência, esse prisioneiro teria de decidir se retornava à prisão das sombras ou se ficaria na liberdade na vida “real”. 6 Nesse mito, Platão apresenta algumas discussões, entre elas, a política e a liberdade. Porém, nós que es- tudamos imagem usamos essa alegoria para pensar outras questões, tais como o mundo real, se existe a realidade ao construímos imagens (podendo ser pintura, fotografia, cinema), e como o homem se re- laciona com as imagens construídas e seus avatares (simulações). A segunda relação filosófica para começarmos a “ver imagens” são os conceitos de outro filósofo – porém este contemporâneo. Vilém Flusser foi um dos principais pensadores da fotografia e questionou a produção das imagens técnicas, como a fotogra- fia, que produz imagens usando os raios luminosos, que, ao atravessar um conjunto de lentes, projeta uma imagem invertida dentro de uma caixa preta para registrar o mundo – produzindo imagens de um mundo construído a partir do olhar de um ex- pectador. Ou seja, Flusser começa a questionar a fotografia e qualquer imagem que use um aparato tecnológico (podendo ser um pincel, uma fotografia, um holograma, por exemplo) não produz o real, mas constrói uma nova realidade� FIQUE ATENTO A ideia da caixa preta, apresentada pelo filosofo Vilém Flusser, remete à ideia trazida por Platão na Alegoria da Caverna, ou seja, as imagens criadas pelas sombras na parede da caverna e a imagem criada dentro da caixa preta (câmera) referem-se 7 a imagens construídas e não à realidade vivida pelas pessoas. Ambos os autores nos ajudam a pensar como as imagens (fotografias, hologramas, pinturas) são uma maneira que a humanidade en- controu para criar e resolver sua relação com o mundo que a cerca. Outra ideia que o autor apresenta é a capacidade que o homem tem de imaginação, ou seja, nós criamos relações com as imagens e essas se transformam em realidade e podem influenciar e pautar as nossas escolhas e ações. Essa relação é subjetiva, não é racional e, muitas vezes, imbuímos às imagens po- deres mágicos� E, devido essa capacidade subjetiva própria das imagens, nós (a humanidade) utilizamos as construções imagéticas para nos relacionar, repre- sentar e explicar os acontecimentos que nos cercam. Para facilitar a compreensão dessa relação mágica existente nas imagens, vamos pensar em duas situ- ações. A primeira situação apresentada refere-se às pinturas rupestres� 8Figura 1: P i n t u ra R u p e s t re Fo n t e : h t t p s : // w w w. c a n t a b r i a . e s / d o c u m e n t s / 2 1 6 8 9 1 1 / 2 2 4 0 6 6 4 / a l t a m i r a - 2 / 2 8 4 e c 3 a d - 5 e 8 0 - 4 2 8 8 - b 1 0 2 - -2056d78c0c4d?t=1382535369574 Essa é a imagem de um bisão – um tipo de búfalo que os homens pré-históricos caçavam para se ali- mentar� Essas pinturas rupestres nas paredes das cavernas eram, entre outras coisas, a forma de co- municação daquele grupo social. Ao pintar, ou seja, construir uma representação da imagem do bisão, eles criavam uma relação com a caça real e com o momento em que eles iriam enfrentar o animal. De certa forma, a representação da caçada proporcio- nava uma relação mágica entre o acontecimento real e o imaginado e, assim, os homens conseguiam capturar seu alimento, mesmo que as condições fossem adversas. A imagem tornava-se ação, ato concreto do imaginar: imagem + ação� Logo, a imagem ganhava aspectos subjetivos, mági- cos, que proporcionavam força, coragem e a certeza da vitória. A imagem tornou-se, dessa forma, uma 9 simulação da ação real para eles. Para nós, essas pinturas são registros, indícios simbólicos da vida há cerca de 2,5 milhões anos� Já a outra forma de pensar as relações propostas até aqui, da imagem/imaginação e sua potência representativa, é só lembrarmos que a história da humanidade foi toda construída por imagens. Cada período possui sua relação estética; podemos visu- alizar como cada civilização viveu, quais foram suas relações com seus deuses, como moravam, e assim por diante. A partir de registros imagéticos, vivencia- mos cada momento histórico, cada história particular, e não podemos viver sem nos relacionarmos com elas – ou mesmo produzir imagens. Agora, vamos pensar em como a fotografia relacio- na-se com o mundo imagético. Já estudamos que as imagens (de forma generalizada) fazem parte da nossa existência e são responsáveis pela forma como nos relacionamos com as coisas no mundo� Assim, o universo fotográfico também é responsável por construir essa relação do imaginário individual e coletivo. Especialmente por ser uma técnica que já está em uso por cerca de 180 anos e, hoje em dia, é cada vez mais presente em nossas vidas. Nossas relações, desejos, interesses estão armazenados em imagens nas redes sociais e em nuvens virtuais� É importante ressaltar que, se as imagens são si- mulacros do real, as fotografias também são; e po- demos então afirmar que vivemos, neste momento, uma era de imagens não reais, simulacros digitais. 10 Precisamos estar conscientes desse poder que as imagens têm de construir nosso imaginário para, assim, tornarmos novamente consciente o ato de construir imagens, seja uma fotografia, seja uma pintura. Essa retomada de consciência proporcionará maior qualidade na forma de vivenciar e experimentar as imagens no mundo� SAIBA MAIS A discussão das imagens como simulacro do real aparece em Matrix, estrelado por Keanu Reeves (dirigido por Lana e Lilly Wachowski), de 1999. No filme, as personagens descobrem que vivem uma realidade construída e programada, a Matrix, uma simulação do mundo real, onde só é possível se relacionar com aquela realidade moldada. Assim, podemos refletir sobre como as imagens e a vir- tualidade podem moldar nossas ações diárias e construir o nosso mundo visível. 11 HISTÓRIA DA FOTOGRAFIA: A TÉCNICA QUE PRODUZ O REAL Neste tópico, entraremos em contato com a história da fotografia. Já é sabido que a imagem possui uma relação íntima com a humanidade; pois, por meio delas, explicamos e nos relacionamos com a com- plexidade do mundo. Assim, com esse conhecimento prévio, descobriremos como se deu o surgimento da fotografia e todos os acontecimentos que envolvem o seu aparecimento. Esses acontecimentos são va- riados e envolvem diversas áreas – o universo das ciências sociais, com fatos importantes da histó- ria mundial, e o empolgante universo da física e da química. Em 1839, a fotografia foi apresentada para o mun- do como uma técnica que reproduzia fielmente o real� Porém, para esse momento acontecer foram necessários anos de pesquisas de diversos perso- nagens históricos e também a consolidação de um grupo que demonstrasse interesse por essa forma de representação. Quando a técnica fotográfica surgiu, o estilo estéti- co que predominava no universo das imagens era o Realismo. Essa estética, ou movimento artístico, buscava representar o “mundo real” como o artista enxergava. Os temas das pinturas deixaram de lado o sentimentalismo e a subjetividade do movimento 12 romântico para focar a vida ordinária e o homem co- mum. O camponês e as diferenças sociais passaram a ser retratados nas pinturas desse grupo. O mundo real era tema de artistas, escritores e escultores� SAIBA MAIS Para saber mais sobre o movimento artístico conhecido como Realismo, indico o capítulo Revolução Permanente, do livro A história da arte, de Ernst Gombrich (pp. 499-534). E também o site do MASP – Museu de Arte de São Paulo, em que há obras de artistas como Gustave Courbet. Acesse: www.masp.org.br. Assim, com o surgimento da fotografia, as pessoas já estavam acostumadas com temas que buscavam traduzir o mundo real, isto é, o conteúdo das futuras fotografias já era conhecido e esperado pelo público, uma vez que os realistas retratavam as pessoas co- muns em suas pinturas. A fotografia apropriou-se das discussões e dos pilares estéticos do movimento e recebeu o status de ser a única técnica que poderia mostrar a realidade, mudando o rumo dos movimen- tos artísticos e da pintura. Isso aconteceu porque, no início da fotografia – e de certa forma até hoje –, acreditava-se que, por usar um aparato tecnológico, como a máquina fotográfica, não haveria intervenção (interpretação) do homem na confecção da imagem; sendo uma imagem pura- mente técnica. A fotografia encontra uma sociedade 13 que apostava nas novas tecnologias e nas máquinas para construir a representação visível do mundo. Momento e condições históricas Com o surgimento das câmeras fotográficas digi- tais, o ato de tirar uma fotografia se tornou “quase” mecânico� Em muitos casos, nem percebemos e já registramos nossos momentos. Até chegar a essa tecnologia, foram necessários anos de pesquisas nos campos da física e da química para o aparecimento da técnica como a conhecemos hoje� Podemos resumir a mecânica básica da fotografia da seguinte forma: uma caixa preta que tem em uma das superfícies um pequeno orifício. Este deve ser menor do que a ponta de uma agulha. Dentro dessa caixa preta, a luz atravessa o pequeno orifício e pro- jeta na face oposta a imagem do ambiente externo. Essa simples descrição da câmera escura – também conhecida como pinhole – é a base da fotografia. Posteriormente, com avanços tecnológicos, surgiram as lentes e as superfícies fotossensíveis que permiti- ram maior qualidade nas imagens e em sua captura. 14 Figura 2: Câmera escura Fonte: https://upload.wikimedia. org/wikipedia/commons/a/a2/Camera_obscura_1.jpg FIQUE ATENTO Apresentamos aqui a pinhole, como é chamada uma das técnicas fotográficas. Nos dias atuais, ela ainda é bastante utilizada por artistas e fotógrafos em suas investigações estéticas. Como descrito anteriormente, é o princípio básico e mais “cru” da fotografia, já que não precisa de um conjunto ótico (lentes), somente uma caixa e a luz. Para obter a imagem que se forma dentro da caixa é necessário colocar um material fotossensível, isto é, que reaja à luminosidade, imprimindo a imagem na sua superfície. O nome em inglês refere-se ao orifício, que deve ser muito pequeno, como um “buraco de agulha” para que a luz, ao passar, não produza distorções e possamos ter foco na super- fície oposta. Essa caixa preta pode ser de qualquer material: uma lata, uma caixa de sapato, uma caixa de fósforos, ou mesmo o quarto de sua casa. 15 Observaremos agora como as evoluções da caixapreta, das lentes e dos materiais fotossensíveis, aconteceram e quais foram os períodos históricos em que cada uma dessas inovações tecnológicas ocorreu. É importante ficarmos atentos aos aconteci- mentos sociais de cada época – às conjunturas que permitiram que as inovações surgissem e fossem assimiladas ao nosso dia a dia� A câmera escura foi inventada no período do Renascimento Italiano (entre os séculos 15 e 16), por Leonardo da Vinci (1452-1519), que é consi- derado uma das figuras mais importantes do Alto Renascimento, e responsável por quase todas as invenções da humanidade. Suas pesquisas abrangem diversas áreas do conhecimento (anatomia humana, engenharia civil, arquitetura, matemática, física, entre outras) e já foram bastante divulgadas em exposi- ções pelo mundo inteiro, inclusive no Brasil� SAIBA MAIS Para saber mais sobre Leonardo da Vinci, indica- mos dois livros: a biografia do artista, Leonardo da Vinci, de Walter Isaacson; e Da Vinci e Maquiavel, um sonho renascentista, de Roger Masters� A invenção de Da Vinci passou a ser usada pelos pintores do período e dos séculos posteriores, pois permitia que o pintor entrasse na câmera escura e 16 construísse seus esboços, decalcando a imagem criada dentro da caixa preta. Figura 3: Câmera escura com pintor Fonte: https:// en.wikipedia.org/wiki/File:1646_Athanasius_Kircher_-_ Camera_obscura.jpg Assim, estava criada a parte estrutural da fotografia, porém faltava ainda fixar a imagem projetada den- tro da câmera escura. As descobertas referentes aos materiais sensíveis à ação luminosa só aconte- ceram no século seguinte, quando se descobriu as propriedades da prata – que em forma de cristais, ao reagirem à luz, escurecem. REFLITA Durante o Renascimento, ascende na Itália a figura do mecenas, que patrocina os mestres artistas e proporciona uma mudança estrutural do poder social e econômico. A relação entre o clero, os reis e os comerciantes se modifica, aumentando o po- der econômico da última categoria. Na Cidade de 17 Florença, a influência dos bancos aumenta na or- ganização social, e essa nova estrutura é refletida nas escolhas de representação da época. Além das encomendas com temas bíblicos – como os afres- cos da Capela Sistina, no Vaticano; ou a Última Ceia –, são patrocinados diversos retratos dos nobres, ricos comerciantes, e banqueiros. Chamo a atenção para esses fatos, pois nesse período são germinadas mudanças que, nos séculos seguintes, contribuirão para o surgimento e consolidação de uma classe burguesa. E a confecção de retratos por encomenda também será importante para a aceitação da fotografia como técnica. É a partir da encomenda de retratos fotográficos, ou do desejo de adquirir um, que a fotografia irá encantar as pessoas três séculos após o Renascimento e a descoberta da câmera escura� As pesquisas com os sais de prata e a sua proprie- dade fotossensível contribuíram muito para o sur- gimento da técnica fotográfica. Logo, um material que se modificava com a ação luminosa, misturado a emulsões, poderia ser exposto dentro da câmera escura. Dessa forma, o mundo real que passava pelo furo da caixa seria registrado sem a interferência do homem. A ideia de registrar o mundo real através da máquina começava a ser estruturada. As relações econômicas e sociais mudaram mui- to do Renascimento até a consolidação da ideia de registrar o mundo real como ele era visto. Essa não era uma necessidade do homem daquele período, 18 nem mesmo das décadas seguintes� Mas foram as descobertas desses períodos, com as mudanças estruturais e sociais ocorridas no século 18, que con- tribuíram para modificar e forjar no cidadão comum a necessidade de ver o mundo real – ou o que ele considerava ser a realidade� No século 18, as duas principais revoluções ocorridas na Europa foram determinantes para o surgimen- to da fotografia: a Revolução Francesa (1789) e a Revolução Industrial (1760), iniciada na Inglaterra. No primeiro caso, as mudanças dos rumos políticos, com o fim da monarquia absolutista e a implemen- tação dos ideais iluministas, possibilitaram que o homem comum vislumbrasse o desejo de ser repre- sentado. Agora não eram somente os nobres que estavam em destaque, o homem comum, o revolucio- nário, passa a reivindicar um lugar no novo sistema social e político. Essa mudança de paradigma em relação à representação e ao estar no mundo será determinante no desejo de obter um retrato fotográ- fico, após a consolidação da fotografia, quarenta anos mais tarde. O olhar do artista – que antes se relacionava com o Rei –, a partir da revolução, co- meça a descobrir personagens e possibilidades na nova configuração social. Já a Revolução Industrial, devido às características que estudaremos a seguir, foi fundamental para que as pesquisas relacionadas ao que seria conhecido como fotografia surgisse como técnica, além de forçar uma reestruturação social na sociedade in- glesa. Enquanto as mudanças políticas e sociais na 19 França permitiram que as pessoas modificassem a forma de olhar, as alterações inglesas firmaram novas posições dentro das classes sociais que se formavam. A estrutura social inglesa, já conhecida do poder monárquico e herança da estrutura medieval, modifica-se com a implementação das fábricas, e cria a necessidade de obter mão de obra para essa nova atividade. E, assim, surge nesse período uma classe operária, aumentando o poder da burguesia endinheirada. A implantação das fábricas e a produ- ção de seus produtos industriais e manufaturados causa um esvaziamento no campo, favorecendo o êxodo e inflando as cidades. A estrutura social ingle- sa, como a francesa, também se altera e firma novas divisões de classes com interesses próprios, poder aquisitivo, e anseios pelas novas tecnologias que a Era Industrial viria a fornecer. Com as mudanças e a nova estruturação de clas- ses estabelecida pelo rastro da revolução de 1789, e com a consolidação dessas pela industrialização, cria-se uma conjuntura favorável para o surgimento da fotografia, pois ela possui muitas características desse novo momento: é técnica, mecânica e mais democrática� Sabemos que a câmera escura era conhecida e, por mais de dois séculos, já era usada pelos pintores para criar esboços de suas pinturas; e, no século 18, foi aperfeiçoada a qualidade da luz que entrava na caixa, com a adição de um conjunto ótico na extre- midade do furo� 20 Figura 4: Câmera escura com pintor e lente Fonte: https:// pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Camera_Obscura_box18thCen- tury.jpg Se prestarmos atenção, percebemos que a mecânica básica da fotografia já estava toda construída, só faltava descobrir como fixar e obter a imagem que era projetada no fundo da caixa. Essas pesquisas re- lacionadas à fixação da imagem começam a ganhar força nesse período. As características técnicas – que na época enalteciam toda forma de máquina e tudo o que era mecanizado – ganhavam notoriedade em detrimento do fazer manual. Não seria diferente com a possibilidade de reter a imagem do mundo sem a ação do pincel do artista/artesão. E a própria implementação industrial – os avanços tecnológicos da indústria têxtil e as pesquisas na área da química – possibilitou a descoberta de materiais que foram 21 testados pelos precursores da fotografia. Além de essa indústria fornecer matéria-prima para os in- ventores da fotografia, outra descoberta do período industrial que é crucial para a fotografia é o uso do piche, que só seria possível pela nova ordem indus- trial estabelecida� SAIBA MAIS Para saber mais sobre os períodos das revoluções, leia A era das revoluções 1798-1848, de Eric J� Hobsbawm. Precursores da fotografia Para que uma nova invenção seja conhecida do grande público é necessário um longo processo de pesquisa. E, posteriormente, um novo caminho bu- rocrático, a fim de registrar e patentear a invenção, ou seja, as grandes descobertas da humanidade sãoresultado de muito investimento, tanto pessoal quanto dos governos das grandes nações mundiais. Esse processo não foi diferente com a fotografia. Vamos entender como o processo ocorreu e, tam- bém, descobrir algumas personalidades, bem como suas contribuições para o surgimento da fotografia. É preciso recordar que as relações sociais e econô- micas no século 19, época em que fotografia surge, já estavam alteradas pelas mudanças oriundas da Revolução Francesa e da Revolução Industrial. Outro aspecto importante para a fotografia e sua patente 22 são as invenções e usos de produtos de indústrias, como a locomotiva a vapor (1804) e o uso do betume (piche). A “corrida” pela patente da fotografia envolveu es- pecialmente dois países, a França e a Inglaterra. Ambas as nações entraram para a história da foto- grafia como os principais países que tiveram pesqui- sadores em busca da fixação da imagem, que era perseguida por vários inventores, pois muitas de suas atividades seriam facilitadas, caso a alcançassem� É o caso do francês Hercules Florence (1804-1879), que estava no Brasil no século 19, participando da Expedição Langsdorff (1824-1829). Esta catalogou aspectos da fauna, da flora e da cultura do interior do país. Florence participou dessa expedição como cartógrafo e produziu diversos desenhos durante as viagens� E, no esforço por melhorar o processo de impressão dessas imagens e do trabalho que escre- veu sobre elas, conseguiu fixar uma imagem com o uso da câmera escura, em 1833� SAIBA MAIS Para saber mais sobre Hercules Florence e suas pesquisas, acesse: http://brasilianafotografica. bn.br. Contudo, os olhares do mundo e das novas invenções estavam voltados para a Europa. Assim, as descober- tas de Florence ficaram esquecidas durante décadas, até que, no século 20, o historiador e pesquisador 23 Boris Kossoy publicou um trabalho mostrando como o processo fotográfico foi descoberto no Brasil, seis anos antes da sua patente na França. A patente da técnica fotográfica aconteceu na França, em agosto de 1839, apresentada para o mundo na Academia de Ciências, na forma de daguerreótipo. Sua apresentação causou verdadeira comoção por parte dos artistas, críticos de arte e jornalistas. Uns ficaram maravilhados com a nova invenção, outros decretaram o fim da pintura. REFLITA Apesar das mudanças sociais significativas e apa- rentemente benéficas ocorridas no século 18, a substituição do trabalho artesão pelas máquinas não foi uma transição tranquila. A perda de algu- mas funções/trabalhos ocasionou bastante revol- ta e desconfiança. E com a fotografia não seria diferente: sua aparição forçou diversos pintores (retratistas) a mudar de técnica. Outros que não conseguiram se adaptar ao processo fotográfi- co passaram a trabalhar no atelier de fotógrafos como retocadores, colorizando imagens, uma fun- ção menor da que tinham antes do surgimento da fotografia. A técnica patenteada na França chamava-se da- guerreótipo, nome derivado de seu inventor, Louis Jacques Mandé Daguerre (1787-1851). Além de in- ventor, Daguerre foi pintor e iluminador, com grande 24 conhecimento de física. Ele já havia inventado outros processos que usavam a refração da luz para obter imagens em movimento, porém, com o processo e a patente do daguerreótipo, ele passou a ser conhecido como o “pai da fotografia”. Suas pesquisas em torno da fixação da imagem só foram possíveis porque contou com a parceria de ou- tro inventor: Joseph Nicéphore Niépce (1765-1833), que conseguiu fixar uma imagem em um suporte a partir da câmera escura, em 1826. A base dessa imagem era uma placa de estanho revestida de “be- tume branco” (piche), banhado em uma emulsão com nitrato de prata; a fixação foi feita com uma solução que continha alfazema. Essa imagem – a vista de sua janela – demorou mais de oito horas de exposição e não possui boa nitidez. Logo, seu processo não foi patenteado� Figura 5: A vista da janela em Les Gras (1826) Fonte: ht- tps://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:View_from_the_Window_ at_Le_Gras,_Joseph_Nic%C3%A9phore_Ni%C3%A9pce,_un- compressed_UMN_source.png 25 Os avanços que Niépce fez em suas pesquisas au- xiliaram tanto Daguerre que os dois se tornaram só- cios, com contrato assinado. Uma imagem de boa qualidade só seria conseguida pela dupla de pesqui- sadores após alguns ajustes. Primeiro diminuíram o tempo de exposição (cerca de vinte minutos), desco- briram uma forma de transformar a prata em íons de prata e, por fim, alcançaram uma melhor qualidade de fixação, sendo a base do fixador o sal de cozinha. Assim, surgiu a primeira imagem no formato que chamamos hoje da primeira fotografia oficial: Figura 6: O atelier do artista (1837) Fonte: https:// fr.wikipedia.org/wiki/Fichier:Daguerreotype_Daguerre_ Atelier_1837.jpg A fotografia foi apresentada na Academia de Ciências, em Paris, porém, Niépce faleceu antes de ver sua invenção patenteada. E Daguerre recebeu toda a horaria, produzindo uma briga judicial entre 26 os descendentes de seu sócio que só terminaria com um acordo milionário� O processo de produção de um daguerreótipo era bastante complicado� Eram necessários alguns mi- nutos de exposição, o que produzia nas feições dos retratados uma aparência dura e estática. Na cadei- ra nos ateliers fotográficos, existia um suporte que imobilizava a coluna e prendia a nuca do cliente. Isso garantia a imobilidade das pessoas, mas a cadeira lembrava um objeto de tortura. Os primeiros retra- tos em daguerreótipos eram extremamente caros e, por isso, somente as pessoas abastadas – como os membros da aristocracia e a nova classe estabele- cida, a burguesia – podiam pagar por um exemplar. Outra característica do daguerreótipo é que não se produzia cópias. Conforme a luz refletia no retrato, via-se a imagem positiva ou negativa, sendo uma imagem única. As imagens eram guardadas em pequenos estojos de couro ou metal, revestidos de tecido, como joias� Esse formato fomentou uma ca- deia produtiva em torno da produção das imagens daguerreotipadas� 27 Figura 7: Foto feita em daguerreotipo Fonte: https://com- mons.wikimedia.org/wiki/File:Unidentified_woman_c1850_da- guerreotype_by_Southworth_%26_Hawes.jpg 28 Figura 8: Câmara de daguerreotipo Fonte: https:// pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Susse_Fr%C3%A9re_ Daguerreotype_camera_1839.jpg Com a ascensão da nova forma de retrato, sugiram diversos ateliers fotográficos pela cidade de Paris e pelo mundo. A fotografia no formato daguerreoti- pado passa a ser objeto de desejo. Mas, para ficar acessível a todos, surgem novos processos que se assemelhavam ao de Daguerre. Um deles chamava- -se ambrótipo. O princípio era o mesmo, mas com qualidade inferior, em relação à nitidez da imagem. Foi muito difundido nos EUA, durante a Guerra Civil Norte-Americana (1861-1865), e era usado pelas fa- mílias dos soldados como recordação de seu parente que estava na guerra. 29 Figura 9: Ambrótipo da Guerra Civil Americana Fonte: ht- tps://commons.wikimedia.org/wiki/File:Unidentified_African_ American_soldier_in_Union_uniform_with_wife_and_two_dau- ghters.png SAIBA MAIS Para saber mais sobre o ambrótipo e a guerra civil norte-americana, acesse: https://jubiloemancipa- tioncentury.wordpress.com/2012/12/29/colored- -african-american-soldier-and-family-in-civil-war- -era-photo-identified� 30 Outra característica do ambrótipo era a colorização das imagens� Nos ateliers, os assistentes observa- vam a cor da roupa, o tom dos cabelos e olhos para depois pintar sobre a imagem� Figura 10: Ambrótipo de Princesas Leopoldina e Isabel Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Princess_ Isabel_and_Leopoldina_1855_frame_removed.jpg Outro inventor desse período e corrida pela paten- te do processo de fixação da imagem foi o inglês 31 William Henry Fox-Talbot (1800-1877). Mesmo que seu experimento não tenha sido considerado a “pri- meira fotografia”, sua contribuição para o desenvol- vimentoda técnica é imenso� Seu processo inicial consistia em produzir imagens por contato� Emulsionava um papel e colocava uma folha, um galho ou um objeto na superfície, posterior- mente expondo-o ao sol. O papel reagia à emulsão que depois era fixada também com uma solução de sal de cozinha. Figura 11: Processo de Talbot (1860) Fonte: https:// sh.wikipedia.org/wiki/Datoteka:Talbot_Gravur.jpg Já em um segundo momento, ele utilizou a câme- ra escura para produzir uma imagem negativada. Posteriormente, por meio do processo de contato produziu uma cópia positiva. Seu invento foi patente- ado, em 1841, na Academia Real Inglesa e chamado de calótipo� 32 Figura 12: Negativo em calótipo da Abadia de Locock – Henry Talbot (1835) Fonte: https://de.wikipedia.org/wiki/ Datei:Talbot_Erkerfenster.jpg Esses experimentos de Talbot já indicavam duas características da fotografia com as quais temos mais familiaridade: a ideia de um negativo, que pode gerar mais de uma cópia� E isso começa a mostrar que a fotografia possui potencial reprodutível, ou seja, uma técnica que está de acordo com o tempo 33 em que foi criada – o tempo industrial e da produção de produtos seriados� Muitos foram os inventores que buscaram fixar a imagem produzida através da lente e da câmera es- cura. Cada uma das invenções posteriores ao da- guerreótipo contribuiu para o aperfeiçoamento da técnica, diminuindo o tempo de exposição, melho- rando o suporte e as emulsões. Esses inventos aqui mencionados possuem o que de mais primordial a fotografia representa: registrar o mundo visto e a possibilidade de produzir cópias. Não é por coinci- dência que a técnica surgiu na onda da Revolução Industrial – ela é fruto da mecanização do mundo e da seriação dos produtos. 34 CONSIDERAÇÕES FINAIS Chegamos ao final deste módulo, e apresentamos aqui as condições em que a fotografia foi descoberta. Ficou claro que, para a nova tecnologia aparecer no mundo, foram necessárias condições sociais que pudessem reconhecer a descoberta. E isso não foi diferente com a fotografia. A câmera escura era utilizada antes da implementa- ção das indústrias, mas somente naquele momento alguns materiais surgiram e a nova organização so- cial pôde aceitar e compreender a técnica que trazia uma imagem perfeita do mundo� A fotografia surge, então, como a técnica fruto das inovações tecnológicas e seriadas, em uma socie- dade que busca adquirir produtos e aceita que a re- presentação seja produto da máquina. A fotografia é filha da industrialização e é a técnica perfeita para a nova sociedade que se forma. E agora compreen- demos porque ela se adapta tão bem neste nosso mundo veloz e digital – em seu “DNA” encontra-se a velocidade dos novos tempos� 35 Referências Bibliográficas & Consultadas ARAUJO, C. L.; RUFINO, R. H. A fotografia e o urbano: representação, máquina e tempo. INTERCOM� Rio Grande do Norte. Disponível em: http://www.porta- lintercom.org.br/anais/nordeste2017/resumos/R57- 1469-1.pdf� FABRIS, A. 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[Minha Biblioteca] Introdução Reflexões sobre a fotografia: introdução à filosofia da imagem História da fotografia: a técnica que produz o real Momento e condições históricas Precursores da fotografia Considerações finais Referências Bibliográficas & Consultadas
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