Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
ESTUDOS DE LITERATURA – DRAMA Debbie Mello Noble O teatro norte-americano no século XX Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Descrever a situação social e a produção cultural norte-americana na metade do século XX. Analisar obras dos dramaturgos Arthur Miller e Tennessee Williams. Reconhecer o impacto dos circuitos alternativos na literatura dramática. Introdução Neste capítulo, você conhecerá um pouco da produção cultural norte- -americana no contexto do pós-II Guerra Mundial, ou seja, a partir da segunda metade do século XX. A Segunda Grande Guerra foi ainda mais violenta do que a primeira, envolvendo armas nucleares, destruindo cidades inteiras e dizimando populações. O horror da guerra teve im- pacto diferente na pluralidade de manifestações artísticas da época, pois algumas formas de arte levavam o espectador ao escape dessa realidade por meio do entretenimento, ao passo que outros artistas colocavam o pós-Guerra em destaque em suas obras. Nos Estados Unidos, grandes nomes da dramaturgia, como Tennessee Williams e Arthur Miller, passam a ser mais conhecidos pelo público em geral. Suas personagens representam, muitas vezes, a decadência e a falência da sociedade pós-Guerra, como a representante da elite decadente do Sul dos Estados Unidos, Blanche Dubois, de “Um bonde chamado Desejo”, ou o caixeiro-viajante Willy Loman, personagem de Arthur Miller que se encontra em uma crise em que enfrenta o desem- prego e um drama familiar em um mundo em que seus valores não fazem mais sentido. Além disso, você verá, neste capítulo, que há um circuito alternativo de grande importância que começa a ter destaque no século XX e que produz grande impacto na dramaturgia norte-americana. A produção cultural norte-americana pós-II Guerra Com o fi m da II Guerra Mundial, os Estados Unidos começam a emergir como uma das grandes potências econômicas e culturais do mundo. Você já ouviu falar nos “Anos Dourados”? A partir dos anos que sucederam a II Guerra (1945-1970), considera-se que os Estados Unidos viveram uma era “de ouro”, ou seja, um período de prosperidade econômica, com o crescimento dos índices de empregabilidade, por exemplo. No entanto, o outro lado desta era de ouro, segundo Grigoletto (2014), foi o aumento da concentração de renda nas mãos de poucos e, proporcionalmente, o aumento das desigualdades sociais. Os movimentos contra a segregação racial e a luta por igualdade entre negros e brancos tomava conta da sociedade americana, com importantes conquistas a partir do final da década de 50. Martin Luther King é um dos líderes dessa luta pelos direitos civis dos negros. Além disso, desde o fim da II Guerra (1945), a chamada “Guerra Fria” colocou Estados Unidos e URSS em disputas estratégicas, que, dentre outras consequências, dividiu a Alemanha com o muro de Berlim em Alemanha Ocidental e Oriental, cada lado representando econômica e culturalmente o país que o dominava. A Guerra Fria, apesar de não ter confrontos bélicos diretos, colocou o mundo em tensão justamente pela iminência dos conflitos. Nos Estados Unidos, a Guerra Fria gerou a desconfiança e a perseguição em relação a possíveis comunistas no País, situação denominada como “Ma- cartismo”, em alusão ao senador que promoveu essas perseguições, Joseph McCarthy, da qual muitos artistas foram alvo, como Arthur Miller, um dos dramaturgos que você conhecerá a seguir. Com essas perseguições, os artistas precisavam, muitas vezes, adaptar suas obras para se enquadrar nas exigências do governo. Nesse contexto, muitos artistas europeus haviam migrado para os Estados Unidos durante e após a II Guerra, tornando-o um centro cultural eferves- cente, principalmente na música, com o jazz, e no cinema, com os filmes O teatro norte-americano no século XX2 de Hollywood. Assim, o campo artístico reflete o contexto social daquele momento: a pluralidade de expressões artísticas que expressavam ou buscavam escapar do horror da guerra, do holocausto e dos conflitos eminentes. Nesse sentido, os musicais de Hollywood, muito em voga a partir dos anos 40, eram uma forma de produção artística mais “escapista”, uma vez que produziam uma atmosfera de encantamento e entretenimento. Para compreender melhor a arte no período pós-II Guerra Mundial, leia o artigo Arte no pós-II Guerra – O adormecer da razão gera monstros, de Mirian Nogueira Tavares, disponível no link a seguir: https://goo.gl/2gdc3K No entanto, o recente horror da guerra não deixa de ser expressado pelos artistas. Nas artes plásticas, surge a noção de “expressionismo abstrato”, cunhada pelo crítico Harold Rosenberg em 1952. O termo estava ligado ao movimento comum a vários artistas, principalmente radicados em Nova Iorque, que se expressavam por meio da arte abstrata, afetados pelas van- guardas europeias (Surrealismo, Expressionismo, Cubismo), valorizando a expressão do inconsciente e produzindo uma arte que recusava os estilos e técnicas tradicionais e se posicionava criticamente em relação à sociedade. Era a maneira que os artistas daquela época conseguiam expressar os sen- timentos e as tensões geradas pela Guerra Fria e pelos conflitos daquele momento no país. 3O teatro norte-americano no século XX Conheça dois pintores que se enquadram no estilo expressionista abstrato. Arshile Gorky (1904-1948), armênio, considerado um dos primeiros expressionistas abs- tratos, foi um mediador entre as vanguardas europeias e os artistas norte-americanos. Figura 1. “The Liver is The Cock’s Comb”, Arshile Gorky (1944). Fonte: neftali/Shutterstock.com. Jackson Pollock (1912-1956), norte-americano, promove uma mudança em sua prática que altera a pintura: “[...] retira a tela do cavalete, colocando-a no solo. Sobre ela, a tinta é gotejada e/ou atirada ao ritmo do gesto do artista, que gira sobre o quadro ou se posta sobre ele [...]” (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL DE ARTE E CULTURA BRASILEIRAS, 2019, documento on-line). Figura 2. “Convergence”, de Jackson Pollock (1952). Fonte: neftali/Shutterstock.com. O teatro norte-americano no século XX4 No teatro, dois nomes surgem para transformar e marcar a história do teatro norte-americano: Tennessee Williams (1911-1983) e Arthur Miller (1915-2005). A seguir, você conhecerá um pouco mais sobre as obras desses dramaturgos e as importantes transformações artísticas que trouxeram para a época. O teatro norte-americano pós-II Guerra Conforme você viu anteriormente, o contexto pós-II Guerra Mundial nos Estados Unidos era de tensão mascarada pela ideia dos Anos Dourados. Nessa conjuntura, o teatro de até então era marcado por encenações voltadas ao entretenimento, como os musicais da Broadway, por exemplo, que, na década de 40 e 50, estreou grandes musicais – como My Fair Lady, que foi adaptado para o cinema em 1964. Os musicais daquele momento trouxeram “[...] grandes inovações coreográfi cas, técnicas e cenográfi cas que seriam prontamente absorvidas pelo cinema [...]” (BETTI, 2018, documento on-line). Segundo Betti (2018), o teatro até aquele momento não traduzia nem o impacto da guerra e dos conflitos sociais, nem o “impacto subjetivo” das transformações da sociedade americana. Por esse motivo, Tennessee Williams e Arthur Miller são considerados os grandes nomes da dramaturgia norte- -americana da segunda metade do século XX, pois ambos conseguiram de- senvolver um teatro que representava em soluções formais e na expressão da subjetividade a sociedade da época. Você verá, a seguir, quais foram essas contribuições. Tennessee Williams Tennessee Williams é o pseudônimo de Thomas Lanier Williams III, que nasceu nos Estados Unidos, em 1911, e faleceu em 1983. Ele escreveu poe- sia, romance e conto, porém teve destaque por suas obras teatrais. Escreveu inúmeras peças de teatro, sendo algumas delas escritas em um só ato. Suas peças mais conhecidas são: “Um bonde chamado Desejo” (1948), que ganhou adaptaçãode grande sucesso para o cinema, e “Rosa Tatuada” (1951), pela qual ganhou o prêmio Tony de Teatro. O autor ganhou o Prêmio Pulitzer de Teatro por “Um bonde chamado Desejo” e, posteriormente, por “Gata em telhado de zinco quente” (1955), que também foi adaptada para o cinema. 5O teatro norte-americano no século XX Tennessee Williams demorou a ser reconhecido por sua escrita: trabalhou para se sus- tentar enquanto escrevia. Participou de um concurso de dramaturgia em Nova Iorque, para o qual enviou quatro peças com um só ato cada, as quais foram publicadas anos depois com o título American Blues. Neste concurso, Tennessee Williams foi premiado com US$ 100 e chamou a atenção de um agente de Hollywood, o qual lhe contratou como roteirista por seis meses na Metro Goldwyn Mayer. Seu primeiro sucesso foi a peça The Glass Menagerie (no Brasil, À margem da vida), que estreou em 1944, em Chicago, e, devido ao sucesso, estreou na Broadway no ano seguinte. Foi adaptada para o cinema três vezes. Fonte: Dirami (2014). De acordo com Betti (2018), a dramaturgia de Tennessee destacou-se pelos elementos inovadores que ele inseriu em suas peças, como o fluxo narrativo e de memória. Suas peças possuem uma linguagem poética, mas não deixam de lado a crítica à sociedade norte-americana, muitas vezes representada nos dramas familiares. Para Silva (2005, documento on-line): Mesmo quando a família aparece no material representado, não é ela, ne- cessariamente, que está em foco, e sim as distorções que são produzidas em seu interior pelo sistema ideológico dominante, pela ideologia do sucesso e do consumo [...]. Conheça melhor a peça Um bonde chamado Desejo. A peça inicia-se com Blanche Dubois chegando a Nova Orleans, rumo à casa da irmã Stella e do cunhado Stanley Kowalski, por um bonde elétrico cujo nome é “Desejo”. As roupas de Blanche, cheias de pompa, são completamente deslocadas do ambiente urbano, além disso, ela traz um baú de joias e quinquilharias. Logo nas primeiras cenas, é possível perceber que ela tenta se controlar em relação ao álcool. Sua relação com a irmã é de completa dominação sobre Stella. Há uma atração sugerida entre Blache e o cunhado, porém, durante toda a peça, há uma irritação de Stanley com a presença da hóspede e a constatação, por parte de Blanche, de que ele não estaria à sua altura, que, por seus modos rudes, seria como um “animal”. As razões que levam Blanche à casa da irmã – a qual reside no subúrbio, onde os limites entre vizinhos não são delimitados – são relativas à perda da propriedade no sul, a fazenda Belle Rêve, a qual é reivindicada por Stanley. Por conta disso, Stanley mexe nos papéis de Blanche, lendo até mesmo suas cartas de amor. O teatro norte-americano no século XX6 Stanley trabalha em uma fábrica e frequentemente agride sua mulher, Stella. Em uma das noites em que Stanley joga pôquer com os amigos, Blanche conhece Mitch, amigo de Stanley, e o seduz, sob uma imagem de pureza, e os dois começam um relacionamento. A certo ponto, Blanche conta sua história a Mitch: havia sido casada, mas descobrira que seu marido tinha um caso homossexual. Após essa descoberta, o marido teria se suicidado. No entanto, Stanley descobre a verdade sobre Blanche e a desmascara para Mitch e Stella: Blanche tinha sido demitida da escola em que trabalhava por se envolver sexu- almente com um aluno de 17 anos. Depois disso, morou em um hotel conhecido pela prostituição, recebendo homens. Mitch se revolta e vai até Blanche para humilhá-la, ao passo que Stella não se preocupa com a veracidade ou não da história, e tem um acesso de raiva pela crueldade do marido, que agiu para estragar o romance entre Blanche e Mitch. Por fim, a tensão sexual entre Blanche e Stanley, observada durante toda a peça, culmina no estupro de Blanche, que, a partir de então, afunda-se em crises mentais. Ao final da trama, um médico é chamado para levá-la a um hospital psiquiátrico. Blanche resiste e começa a se debater. O médico a ajuda com gentileza, o que a leva à fantasia e a faz aceitar ser tomada nos braços por ele, dizendo a clássica frase da peça: “Eu sempre dependi da gentileza de estranhos”. Fonte: Alvez (2016, documento on-line). A partir dessa breve resenha da peça, você pode compreender algumas características apontadas nas obras do dramaturgo. Por exemplo, a questão do desejo, apontada por Silva (2005), como uma temática frequente na obra de Ten- nessee Williams. O desejo, presente na peça que você conheceu anteriormente, é abordado, para além do desejo amoroso, como “[...] uma resposta à repressão puritana do patriarcado protestante [...]” (SILVA, 2005, documento on-line). Segundo Silva (2005), Tennessee também retrata os estereótipos dos Estados Unidos: Blanche representa a vaidade e os últimos resquícios de refinamento da mulher do sul, uma sociedade falida, cuja decadência leva a personagem ao delírio e ao final de loucura. Mitch, por sua vez, “representa o norte-americano comum e sem imaginação”, um falso herói que representa o fracasso social. Para Felix (2010, p. 642), o personagem de Stanley e o embate entre ele e Blanche marcam a polaridade dos tipos que cada um deles representa: “En- quanto Blanche pertence ao universo das grandes e decadentes plantações sulistas e atua como um veículo no qual o passado norte-americano de século XIX é revivido [...]”, Stanley marca a imagem: [...] da nova América, do imigrante e do homem da cidade. [...] é ele aquele que, dentro do seu grupo, encontra-se dotado das qualidades ou habilidades necessárias para vencer no mundo pós-industrializado”. Além disso, diante de Blanche, ele “assevera sua masculinidade e sua falta de refinamento; e, onde não pode dominar sexualmente, ele recorre à violência (FELIX, 2010, p. 642). 7O teatro norte-americano no século XX Segundo Carlson (1997, p. 390), Tennessee Williams acreditava na possi- bilidade de uma tragédia moderna por meio da piedade com que o espectador olharia para os personagens em sua afirmação da dignidade humana por meio da “[...] escolha deliberada de certos valores morais com os quais decidem viver [...]”. Nesse sentido, o homem moderno teria tanta dificuldade em demonstrar e admitir seus sentimentos, que a possibilidade da tragédia moderna estaria em agir sobre ele pelo menos no período de duração desse mundo “atemporal e emocional da peça”. Arthur Miller Arthur Asher Miller foi um dramaturgo nascido em 1915 e falecido em 2005, com 89 anos. Ao lado de Tennessee Williams, ele fi gura como um dos maiores dramaturgos norte-americanos. Algumas peças do dramaturgo são: “Panorama visto da ponte” (1955), “Depois da queda” (1964), e suas peças mais conhecidas são “A morte de um caixeiro-viajante” (1949) e “As bruxas de Salém” (1953). O autor recebeu os maiores prêmios do teatro norte-americano: por “A morte de um caixeiro-viajante”, Miller recebeu um Pulitzer, um prêmio do Círculo dos Críticos de Nova Iorque e três Prêmios Tony. O autor começa a escrever por volta dos anos 1940, mas é após a II Guerra que passa a produzir mais e a ficar mais conhecido, principalmente por conta das temáticas sociais que suas peças tocam. Segundo Gomes (2008), o drama- turgo vivenciou os principais conflitos sociais da sociedade norte-americana de sua época, como a Crise de 1929 e, posteriormente, a prosperidade con- seguida por meio da Guerra. Além disso, Miller participou dos movimentos socialistas, sendo perseguido na “caça às bruxas” Macartista, que você já viu anteriormente. Esses fatos vivenciados refletiram nas obras do autor, como bem aponta Gomes (2008, p. 08): Em Todos eram meus filhos, escrita imediatamente após a II Guerra Mundial, o autor pondera sobre o alto preço da vitória norte-americana, denunciando como o enriquecimento conseqüente da guerra se deu à custa de sacrifícios humanos. Em A morte do caixeiro-viajante, Miller observa os males do ca- pitalismo e suas implicações severas para a degradação do meio sociale da experiência individual. As bruxas de Salém, um drama histórico enquadrando o conhecido episódio das caças às bruxas, ocorrida em Salém no ano de 1692, é também uma representação alegórica da opressão e perseguição política vivenciada pelo próprio autor durante o McCarthysmo O teatro norte-americano no século XX8 Essa representação do meio social em suas obras pode configurar uma dimensão trágica das peças, conforme diversos teóricos defendem. O próprio dramaturgo defende a possibilidade de uma tragédia moderna, acreditando que o sentimento trágico é suscitado nos espectadores por meio de um herói e seu empenho em trocar sua vida pela dignidade. Nesse sentido, Miller (1976) defende o homem comum como herói trágico. Segundo Carlson (1997, p. 390), “[...] o desejo de justificar a própria existência e buscar a autorrealização é sentido pelo homem comum com a mesma intensidade [...]”. Muitos teóricos consideram “A morte de um caixeiro-viajante” como a maior realização da proposta de Arthur Miller sobre a tragédia, conforme você viu anteriormente. Veja, na cena da obra a seguir, a personagem Linda explicando aos filhos a real situação financeira e profissional do pai, Willy Loman, o “caixeiro” anunciado no título: LINDA – Um homem comum pode ficar tão cansado quanto um grande homem. Agora em março vai fazer trinta e seis anos que ele trabalha para essa companhia, para a qual ele abriu novos mercados em lugares de que nunca ninguém tinha ouvido falar, e agora, na velhice, eles cortam o salário. HAPPY (indignado) – Eu não sabia disso, mamãe! LINDA – Você nunca perguntou, meu querido! Agora que você apanha em outro lugar o dinheiro de que precisa, você não se preocupa mais com ele. Há dois meses que seu pai trabalha só ga- nhando comissão, como um principiante, como um desconhecido! BIFF – Esses canalhas ingratos! LINDA – Serão piores que os próprios filhos dele? Quando ele era jovem e trazia novos negócios para a companhia, todo mundo vivia contente. Mas agora os seus velhos amigos, os velhos compradores que gostavam dele e sempre encontravam um jeito de arranjar um pedido, estão todos mortos ou aposentados. Ele costumava fazer seis, sete visitas diárias em Boston. Agora ele tira os mostruários do carro, traz de volta, tira de novo e está exausto. Agora, em vez de andar, ele fala. Dirige por mais de mil quilômetros, e quando chega a seu destino, ninguém mais o conhece e ninguém lhe dá as 9O teatro norte-americano no século XX boas-vindas. E o que é que passa pela cabeça de um homem que viaja mais mil quilômetros voltando para casa, sem ter ganho um tostão? Por que é que não pode falar sozinho? Por quê? Se ele tem que pedir emprestado a Charley cinqüenta dólares toda semana e fingir para mim que é o pagamento dele? Até quando isso pode continuar assim? Até quando? Você compreende agora por que eu sento aqui e espero? E você vem me dizer que ele não tem caráter! Um homem que trabalhou todos os dias de sua vida para você? Quando é que ele vai receber uma medalha por isso? Fonte: Miller (1976, p. 325). Na breve resenha a seguir, Poppelaars (2017) analisa o enredo da peça: Willy Loman, protagonista da peça “A Morte de um caixeiro-viajante” (1949), é um vendedor fracassado de idade madura. Ele tem problemas financeiros, vive em uma casa caindo aos pedaços e o carro está constantemente quebrado. Ele é demitido, sofre de delírios e seu casamento com Linda já viu melhores dias, pois, ele traiu a sua esposa. Seus filhos também fracassaram. Happy, o filho primogênito, é um mero funcionário, e Biff, o filho mais velho, é um ladrão que passou uma temporada na prisão. No final da peça, Willy se suicida. Mas, acontece o insólito: um homem comum, de baixo prestígio e fracassado como Willy Loman, torna-se um herói trágico. Para compreender melhor a relação entre o conceito de tragédia e a peça A morte de um caixeiro-viajante, de Arthur Miller, leia na íntegra o artigo “O sofrimento do homem comum: o herói trágico e tragicidade em A morte de um caixeiro-viajante, de Arthur Miller”, de Poppelaars (2017), disponível no link a seguir: https://goo.gl/CQWnfA Para Rabelo (2018), nesta peça, o protagonista Willy Loman não é apresen- tado como o herói da tragédia segundo os moldes aristotélicos, pois não se trata de uma pessoa bem-nascida. O protagonista é um cidadão comum, que possui inúmeros defeitos, e que representa as frustrações da classe média americana. O teatro norte-americano no século XX10 Para a audiência contemporânea, sua queda equivaleria à queda de Édipo para a audiência grega da Antiguidade. O fracasso de um cidadão como Willy significa o fracasso de todo um modo de estruturação da sociedade, assim como as desgraças de Édipo significam a desgraça de todo o reino de Tebas. Talvez mesmo se poderia dizer que o caso de Willy é mais trágico, pois se um novo rei poderia tomar o poder e restabelecer a ordem no estado antigo, na organização contemporânea não há sucessores capazes de recriar a ordem de coisas estabelecida nem condições que o permitam (RABELO, 2014, documento on-line). Assim, segundo Rabelo (2018), ao morrer, Loman representa a degra- dação da sociedade da época, e acrescenta que, “Se há algum consolo, é a conscientização de Biff, o filho do caixeiro-viajante, depositário do legado de esperanças e sonhos do pai, que no final percebe a tolice e o vazio dessas esperanças e desses sonhos, afirmando que não cometerá os mesmos erros de seu pai [...]” Rabelo (2018, documento on-line). Os circuitos alternativos A produção cultural norte-americana no pós-Guerra se caracterizou também pela proliferação de uma cena cultural alternativa em relação à Broadway e aos grandes espetáculos. No fi m dos anos 40, surge o Living Theatre. Posteriormente, inúmeras outras companhias e casas de espetáculos do circuito denominado Off-Broadway e Off-Off-Broadway multiplicam-se por Nova Iorque. Espetáculos Off-Broadway Inicialmente, o circuito denominado Off-Broadway designava as casas de espetáculos que se encontravam fora do eixo de localização da Broadway. Em seguida, passou a designar também as peças e os autores que não se encaixavam no circuito Broadway, isto é, que não eram tão comerciais, constituindo-se em um circuito de teatro alternativo. A autora Betti (2018, documento on-line) conta que, alguns anos depois, “[...] essa designação deixou de associar-se à localização física para referir-se à capacidade das plateias desses novos teatros, que não excediam o número máximo de 500 lugares [...]”. O teatro Off-Broadway, atualmente, não está ligado a uma oposição à Broadway, mas a uma plateia menor, o que permite algumas experimentações que, posteriormente, podem ser incorporadas em espetáculos da Broadway ou, até mesmo, ingressar no circuito Broadway. 11O teatro norte-americano no século XX O musical Hair, que estreou no Off-Broadway na década de 1960, posteriormente foi incorporado ao circuito Broadway, fazendo muito sucesso em grandes teatros da Broadway e, inclusive, ganhando adaptações cinematográficas. O Living Theatre Fundado em 1947 por Judith Malina e Julian Beck, o Living Theatre tinha como inspiração tanto o teatro épico de Bertold Brecht e Erwin Piscator quanto o teatro da crueldade de Antonin Artaud. A companhia, que fazia um teatro experimental, valorizando as possibilidades plásticas e focado no corpo do ator, não teve muita atenção à época de seu surgimento, mas, posteriormente, durante os anos 60 e 70, operou uma revolução na arte norte-americana e mundial. Isso porque as décadas de 60 e 70 são marcadas pela contracultura, o que torna o Living o grupo mais importante daquele momento, especialmente por não se identifi carem como uma companhia teatral organizada, mas sim como um grupo espontâneo de pessoas que buscavam unifi car o viver com o fazer teatro. Na prática, a forma como o Living fazia teatro era por meio da criação coletiva, ou seja, sem a hierarquização dos grupos tradicionaisde teatro. Isso levava à criação por meio do improviso, onde cada ator sentia e experimentava a ação de forma espontânea, sem texto. Nesse ponto, apresenta-se o impacto do Manifesto da Crueldade, de Artaud, nas bases do Living. Nesse processo, era preciso um novo público, que não mais se colocasse como mero consumidor de teatro, mas que se dispusesse a dialogar com o espetáculo. “Paradise Now” é um espetáculo sem texto, de criação coletiva, em que se nota a influência de Artaud. Para Mostaço e Carli, nesta peça os atores dançam, cantam, entoam mantras e a ação se dá no encontro e na participação do público, realizando um “[...] novo apelo à responsabilidade do espectador [...] Após sucessivos espetáculos que terminam por serem dolorosos, febris e agonizantes, Paradise Now é a perspectiva de que novas realidades são possíveis [...]” (MOSTAÇO; CARLI, 2009, p. 114). O teatro norte-americano no século XX12 A importância do Living Theatre, ainda hoje em atividade, se dá na recon- figuração da representação como ação, ou seja, com foco nos movimentos do corpo, no gesto, no corpo parado, no silêncio, enfim, na experimentação. Além disso, a junção entre vida e teatro se expressa na unificação entre fazer arte e prática política, o que pode ser resumido na célebre frase de Julian Beck, um dos fundadores do Living: “É preciso entrar para o teatro através do mundo [...]” (BECK apud ZAMBELLI, 2015, documento on-line). Espetáculos Off-Off-Broadway Ao fi m dos anos 1960 e durante a década de 1970, o crescente aumento dos aluguéis faz diversos artistas de Nova Iorque passarem a procurar estúdios, lofts, galpões e espaços em geral onde pudessem realizar seus espetáculos. Surge um circuito alternativo “[...] em relação não apenas à Broadway, mas ao próprio Off Broadway: tratava-se do Off-Off Broadway, conceito que surge para designar as pequenas salas de espetáculo localizadas em garagens, pubs e cafés do East Village e de Tribeca [...]” (BETTI, 2018, documento on-line). Este circuito Off-Off sediou importantes transformações cênicas daquele período, por permitir, ainda mais fortemente que o circuito Off-Broadway, a experimentação levada a um nível extremo e a atenção de um público menor e com outras demandas. Atualmente, os locais onde os espetáculos do circuito Off-Off-Broadway são apresentados comportam, geralmente, até 100 pessoas. ALVEZ, M. G. C. Um bonde chamado desejo: a “coisa freudiana” como trajetória de lei- tura. Revista Leitura Flutuante, São Paulo, v. 8, n. 2, p. 24-35, 2016. Disponível em: https:// revistas.pucsp.br/index.php/leituraflutuante/article/view/30190. Acesso em: 31 jan. 2019. BETTI, M. S. Breve panorama da prosa teatral. Revista Cult, n. 135, 22 mar. 2018. Dis- ponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/breve-panorama-da-prosa-teatral/. Acesso em: 09 fev. 2019. CARLSON, M. Teorias do teatro: estudo histórico-crítico, dos gregos à atualidade. São Paulo: Unesp, 1997. DIRAMI, V. Tennessee Williams: dos palcos para as telas de cinema. 2014. Disponível em: http://obviousmag.org/archives/2013/08/tennessee_williams_dos_palcos_para_as_te- las_de_cin.html. Acesso em: 10 fev. 2019. 13O teatro norte-americano no século XX ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL DE ARTE E CULTURA BRASILEIRAS. São Paulo: Itaú Cultural, 2019. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo3785/ex- pressionismo-abstrato. Acesso em: 09 fev. 2019. FELIX, J. C Representações e estereótipos em Um Bonde Chamado Desejo: conflito entre passado e presente na construção de identidades na literatura e cinema do pós-guerra. In: COLÓQUIO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS, 2., 2010, Assis. Anais [...]. Assis: UNESP, 2010. Disponível em: http://www.assis.unesp.br/Home/PosGraduacao/ Letras/ColoquioLetras/josecarlos.pdf. Acesso em: 10 fev. 2019. GOMES, S. M. O papel do contexto social na formação do conflito trágico em A morte do caixeiro viajante. 2008. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Paraíba, João Pessoa, 2008. Disponível em: http://www.cchla.ufpb.br/ppgl/wp-content/uplo- ads/2012/11/images_pdf_Sara.pdf. Acesso em: 209 fev. 2019. GRIGOLETTO, M. F. Transformações nos anos dourados: o desenvolvimento do precariado. 2014. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Ciências Econômicas) – Univer- sidade Estadual de Campinas, Campinas, 2014. MILLER, A. A morte do Caixeiro-Viajante. São Paulo: Abril S.A. Cultural e Industrial, 1976. MOSTAÇO, E.; CARLI, T. A. No limite do teatro: criação coletiva no Living Theater e no Asdrúbal Trouxe o Trombone. DAPesquisa, Florianópolis, v. 4, n. 6, p. 112-117, 2009. POPPELAARS, A. G. M. O sofrimento do homem comum: o herói trágico e tragicidade em a morte de um caixeiro-viajante de Arthur Miller. Revista Labirinto, Porto Velho, ano 17, v. 27, p. 126-145, jul./dez. 2017. RABELO, A. P. O século XX e a tragédia do homem comum. Revista Cerrados, Brasília, v. 27, n. 46, 2018. Disponível em: http://periodicos.unb.br/index.php/cerrados/article/ view/19636. Acesso em: 09 fev. 2019. SILVA, L. Memória histórica na dramaturgia de Tennessee Williams. Fênix: Revista de História e Estudos Culturais, v. 2, ano II, n. 3, jul./set. 2005. Disponível em: http://www. revistafenix.pro.br/PDF4/Artigo%2002%20-%20Lajosy%20Silva.pdf. Acesso em: 09 fev. 2019. ZAMBELLI, B. Living Theatre: liberdade, anarquismo e revolta levam ao paraíso. 2015. Disponível em: http://www.aescotilha.com.br/teatro/em-cena/living-theatre-liberdade- -anarquismo-e-revolta-levam-ao-paraiso/. Acesso em: 09 fev. 2019. Leitura recomendada TAVARES, M. N. Arte no pós-II guerra: o adormecer da razão gera monstros. 2014. Disponí- vel em: https://wsimag.com/pt/arte/9696-arte-no-pos-ii-guerra. Acesso em: 10 fev. 2019. O teatro norte-americano no século XX14
Compartilhar