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0 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA CENTRO DE ESTUDOS INTERDISCIPLINARES DA ANTIGUIDADE CADERNOS DO CEIA No. 1 - 2008 EXPERIÊNCIAS POLITEÍSTAS Alexandre Carneiro Cerqueira Lima Adriene Baron Tacla (ORGANIZADORES) Niterói - 2008 1 Copyrigth2008: Todos os direitos desta edição reservados ao Centro de Estudos da Antiguidade (CEIA), da Universidade Federal Fluminense (UFF). Capa: Górgona – VI século a. C. – Museu de Siracusa/ Contra-capa: Perseu combatendo as Górgonas – VI século a. C. (http://www.pixelteca.com.br/apuentes/grecia/medusa/html) Diagramação: Prof. Ms. José Roberto Paiva LIMA, Alexandre Carneiro Cerqueira, TACLA, Adriene Baron (org) Experiências Politeístas. Cadernos do CEIA. Ano 1 No 1 Niterói: Centro de Estudos de Antiguidade – CEIA – da Universidade Federal Fluminense (UFF), 2008. 176 pp. ISSN 1981-6782 CDD 930 Palavras-chave: 1 – História; 2 – Politeísmo; 3 – Cultos; 4 – Divindades Cadernos do CEIA Publicação Semestral do Centro de Estudos Interdisciplinares da Antiguidade Universidade Federal Fluminense CEIA – Instituto de Letras e Instituto de Ciências Humanas e Filosofia Campus do Gragoatá, Bloco C, sala 310 São Domingos – Niterói – Cep: 24.210-350 Tel: (21) 2629-2603 Página na rede mundial de computadores: http://www.ceiauff.rg9.net Correio eletrônico: ceiauff@yahoo.com.br 2 ISSN 1981-6782 CADERNOS DO CEIA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA CENTRO DE ESTUDOS INTERDISCIPLINARES DA ANTIGUIDADE EDITORES RESPONSÁVEIS Dr. Ciro Flamarion Santana Cardoso – UFF Dra. Silvia Damasceno – UFF Dr. Alexandre Carneiro Cerqueira Lima – UFF CONSELHO EDITORIAL Dra. Adriane Silva Duarte – USP Dra. Claudia Beltrão da Rosa – UNIRIO Dr. Fabio de Souza Lessa – UFRJ Dra. Glória Braga Onelley – UFF Dra. Maria de Fátima de Sousa e Silva – Universidade de Coimbra Dra. Sonia Rebel de Araújo – UFF CONSELHO CONSULTIVO Dr. André Domingos dos Santos Alonso – UFF Dra. Adriene Baron Tacla – CEIA/UFF Ms. Manuel Rolph de Viveiros Cabeceiras – UFF Dr. Marcelo Aparecido Rede - UFF Dra. Maria Bernadete de Carvalho Rocha – UFF Dra. Maria Regina Candido – UERJ Ms. José Roberto de Paiva Gomes – NEA/UERJ 3 SUMÁRIO Editorial 4 A religiosidade celta: politeísmo “naturalista”? 8 Adriene Baron Tacla As espacialidades transitadas por Ártemis em Corinto 29 Alexandre Carneiro Cerqueira Lima O mar e os pescadores: deuses, medos e ambivalências 41 Ana Lívia Bomfim Vieira Jogos e festas no Alto Império romano: alegria, sacralidade e 52 identidade Ana Teresa Marques Gonçalves O Politeísmo dos antigos egípcios sob o Reino Novo 63 (1530-1069 a.C.) Considerações em torno de religio em suas manifestações 77 literárias Claudia Beltrão da Rosa Tornar-se atleta: práticas esportivas ritualizadas entre os 89 gregos antigos Fábio de Souza Lessa Monoteísmo na Babilônia? Considerações acerca da mitologia 106 de Marduk Marcelo Rede Religião e o politeísmo entre os gregos 128 Maria Regina Candido Usos iconográficos do monumento funerário em Atenas Clássica 137 Marta Mega de Andrade Rituais divinatórios na República Romana 149 Regina Maria da Cunha Bustamante Politeísmo no Asno de Ouro de Apuleio 166 Sonia Rebel de Araújo 4 EDITORIAL A CRIAÇÃO DE UM TÓPOS DIALÓGICO Alexandre Carneiro Cerqueira Lima Adriene Baron Tacla (CEIA – UFF) O Centro de Estudos da Antiguidade (CEIA), sediado na Universidade Federal Fluminense (UFF), desde a sua criação em 1998, sempre teve a preocupação de agregar profissionais de distintas áreas e de diferentes centros de pesquisas e universidades, reunindo, pois, historiadores, arqueólogos, lingüistas e filólogos que trabalham com as sociedades da Antiguidade oriental e ocidental. Todos os anos o CEIA promove a Jornada de Estudos da Antiguidade, um evento que permite divulgar trabalhos de professores e de pesquisadores sobre sociedades antigas no Brasil. Além da Jornada, o CEIA organiza regularmente mini-cursos e possui grupos de estudos voltados para a discussão de várias temáticas, tais como: cristianismo, escravidão, sociedades egípcia e celtas, e politeísmo. Atualmente o CEIA pretende divulgar sua produção e suas pesquisas por meio dos Cadernos do CEIA, uma publicação semestral, que, na forma de números temáticos, objetiva reunir profissionais de diversas áreas (sobretudo História, Letras e Arqueologia) para debater questões atuais e apresentar à comunidade acadêmica seus trabalhos acerca das sociedades antigas. Desta forma, egiptólogos, assiriólogos, helenistas, latinistas e celticistas terão nos Cadernos mais um espaço para divulgarem suas pesquisas. O presente Caderno trata de pesquisas de historiadores interessados pelas experiências religiosas dos politeísmos antigos. A discussão em torno deste tema surgiu a partir da organização do grupo de estudos de politeísmo no CEIA, em novembro de 2006, por Professores e Pesquisadores 5 interessados em compreender as manifestações religiosas de sociedades politeístas antigas. A publicação deste Caderno consiste na materialização de um esforço da equipe de Professores e de Pesquisadores filiados ao CEIA. Quando escolhemos a temática dos politeísmos antigos estávamos interessados em criar um espaço aberto e profícuo, baseado em distintas visões e abordagens. Tivemos como inspiração a experiência dos helenistas Jean- Pierre Vernant e Marcel Detienne, que organizaram o Centro Louis Gernet, cuja grande marca residia na diversidade, na interdisciplinaridade e nos estudos comparados. De modo que, uma plêiade de estudiosos participava dos encontros, discussões e pesquisas coletivas desse grupo (1). Vernant e Detienne tinham a convicção de que o trabalho em equipe possibilitaria a criação de um locus privilegiado de trocas e de contribuições recíprocas, marcando bem o aspecto dialógico, da troca baseada na diferença. Detienne advoga em sua obra Les Grecs et Nous a necessidade de se criar um saber compartilhado. Historiadores e antropólogos podem, juntos, trabalhar em parceria – um ajudando o outro com o objetivo de melhor compreender uma dada questão. Daí, Detienne falar em comparatismo experimental e construtivo (2). Os pesquisadores podem convergir seus olhares com o intuito de compreender o maior número de produções culturais. A equipe composta por especialistas ao longo dos anos deve trabalhar transitando entre as sociedades e as manifestações culturais, procurando sempre estabelecer noções ou categorias de análise. Assim, o primeiro Caderno do CEIA – Experiências Politeístas, tem o propósito de criar um tópos de discussão, trazendo a religiosidade e as formas de ritualização para o centro do debate acerca das sociedades antigas no ocidente e no oriente próximo. Com Experiências Politeístas, visamos abordar as formas como diferentes sociedades antigas vivenciaram a relação com o sagrado. Das práticas às crenças, 6 nosso interesse reside na compreensão das formas de religiosidade e de experiência ritual, isto é, na diversidade da ação humana em contextos rituais, a multiplicidade de seus significados, usos e implicações na vida em sociedade. Para tanto, é preciso que, primeiramente, nos afastemos da noção de irracionalidade, por tanto tempo atribuída ao âmbito do ritual e do religioso, e que, ancorada no dualismo sagrado-profano (3), pressupõe ser o ritual ligado tão somente ao simbólico, ao místico e ao sobrenatural. Dentro da arqueologia, como destacam J. Brück e R.D. Whitehouse (4), essa visão racionalista moderna instaurou a noção de que ritual era tudo o que não tinha uma “função” prática específica e que, por conseguinte, não podia ser logicamente explicado.No entanto, ao contrário, os achados arqueológicos e a documentação textual das mais diversas sociedades antigas demonstram haver uma profunda ligação entre religiosidade, ritual e vida quotidiana; donde não se trata tão somente de distinguir diferentes esferas funcionais, mas sim de compreender que “os saberes ritual e religioso são (...) construídos das mesmas condições materiais que a vida quotidiana” (5). Da mesma forma, novas abordagens antropológicas sobre ritual têm chamado a atenção de historiadores e arqueólogos para a necessidade de compreender que ritual e prática, ou ritual e racionalidade, não são opostos. Ao contrário, ritual é prática e possui uma racionalidade intrínseca. Trabalhos como os de C. Bell e C. Humphrey e J. Laidlaw (6) mostram-nos que a ação/prática ritual implica hábitos fixos, mímesis e rotinas estabelecidas aprendidas na experiência ritual, mas também envolve, igualmente, comprometimento, racionalidade, improviso e inovação. Isso abre novas frentes de análise e interpretação da prática ritual e das formas de religiosidade, destacando, sobretudo, a ação e a experiência humanas; o que permite ao pesquisador ir além dos aspectos simbólicos e culturais dos rituais. 7 Isto posto, devemos destacar que os trabalhos, aqui, reunidos apresentam manifestações múltiplas das experiências religiosas dos homens da Antigüidade, estudadas por profissionais oriundos de diferentes instituições e, por conseguinte, com distintos olhares e abordagens. O lugar social heterogêneo e plural deste grupo de historiadores contribui para termos análises e abordagens fecundas e distintas sobre a temática levantada (7). NOTAS (1) VERNANT, J.-P. Entre Mythe et Politique. Paris: Seuil, 1996, p. 45. (2) DETIENNE, M. Les Grecs et Nous: une Anthropologie Comparée de la Grèce Ancienne. Paris: Perrin, 2005, p. 22. (3) cf. BELL, C. Ritual Theory, Ritual Practice. New York/ Oxford: Oxford University Press, 1992, passim; BRÜCK, J. Ritual and Rationality: Some Problems of Interpretation in European Archaeology. European Journal of Archaeology, 2 (3), 2004, pp. 313-344. (4) WHITEHOUSE, R.D. Ritual Objects - Archaeological Joke or Neglected Evidence? In: WILKINS, J.B. (ed.) Approaches to the Study of Ritual. London: Accordia Research Institute University of London, 1996, pp. 9-30. (5) BARRETT, J.C. Towards an Archaeology of Ritual. In: GARWOOD, P. et al. (eds.). Sacred and Profane: Proceedings of a Conference on Archaeology, Ritual and Religion. Oxford: Oxford Committee for Archaeology, v. 32, 1991, p.6. (6) Humphrey, C. and Laidlaw, J. The Archetypal Actions of Ritual: A Theory of Ritual Illustrated by the Jain Rite of Worship. Oxford: Clarendon Press, Oxford studies in social and cultural anthropology, 1994. (7) Segundo Michel de Certeau: “Toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção sócio-econômico, político e cultural. (...) Ela está, pois, submetida a imposições, ligada a privilégios, enraizada em uma particularidade. É em função deste lugar que se instauram os métodos, que se delineia uma topografia de interesses, que os documentos e as questões, que lhe serão propostas, se organizam.” DE CERTEAU, M. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982, pp. 66-67. 8 A RELIGIOSIDADE CELTA: POLITEÍSMO “NATURALISTA”? (1) Adriene Baron Tacla (CEIA/UFF e BRATHAIR) Resumo: O presente artigo discute a relação da religiosidade das populações ditas “Celtas” e a “Natureza”, apontando a necessidade de revermos a conceituação e propondo a perspectiva de uma paisagem vivida marcada pela relação entre “homem” e “ambiente”. Para tanto, nosso argumento considerará, principalmente, os relatos antigos e as interpretações antropológicas relativas ao tema de animismo. Palavras-chave: Idade do Ferro, Natureza, religiosidade Abstract: This paper discusses the relationship between the religiosity of the so-called ‘Celtic’ populations and Nature, showing the necessity to revise concepts and supporting the perspective of a lived landscape marked by the interaction between ‘man’ and ‘environment’. In order to achieve that, my argument will take into consideration the ancient sources on the Celts and anthropological interpretations regarding animism. Keywords: Iron Age, Nature, religiosity Introdução Quando falamos de religiosidade na proto-história Européia, lembramo-nos, primeiramente, dos relatos dos autores antigos descrevendo rituais, oferendas e sacrifícios feitos a céu aberto em “locais naturais” pelos celtas antigos. Esses relatos nos lembram dos achados de depósitos em lagos, rios e pântanos (2); o que leva a uma imediata equação entre “religiosidade proto-histórica” e “Natureza”, que tem fascinado, em igual medida, pesquisadores e leigos. A maioria dos estudiosos interpreta os achados de depósitos em “locais naturais” e as referências greco-latinas acerca dos rituais das populações celtas como expressão e evidência de uma “religião naturalista”, que é baseada na 9 crença de sacralidade enraizada na Natureza e no uso de “lugares naturais” como locais de culto. No entanto, como veremos abaixo, esse conceito é inapropriado para compreender esta sorte de prática religiosa. Primeiramente, porque ele supõe uma divisão, para não dizer uma hierarquia, de religiões de acordo com seu nível de complexidade, envolvendo a relação entre lugares a céu aberto e o uso ou não de santuários cobertos ou templos. Segundo, esse conceito perpetua a visão dos autores antigos que percebiam essas sociedades como “bárbaros primitivos”. Tais relatos podem ser enganosos, porquanto criam a impressão de que tratava-se de uma religiosidade “não corrompida” pela sociedade, isto é, não afetada pela exploração política, por conflitos de interesse ou pela vida econômica nas comunidades praticantes. As populações ditas “bárbaras” são representadas pelos autores greco-romanos em meio a um panorama de terras distantes e próximas, de inimigos e aliados, moldado pelo fascínio por hábitos e culturas diferentes, bem como pelo medo e o terror despertados por sua diferença e potencial hostilidade. Como destacamos em outra ocasião, “os helenos hierarquizavam os bárbaros por uma série de variáveis que incluiriam: não falar o grego, não possuir os valores e costumes helênicos. Conforme nos aponta Kristeva (1994: 58), aos olhos dos helenos haveria, outrossim, uma distinção entre ‘bárbaros bons’ e ‘maus’, designando, respectivamente, aqueles que eram aliados e, portanto, poderiam adotar a cultura helênica, e os que eram inimigos e, por conseguinte, permaneceriam distantes da civilização” (TACLA, 2001: 32). Os celtas, como parte dessas populações bárbaras, eram considerados, ao mesmo tempo, com a possibilidade de contato (e comércio) e de guerra ou invasão. Vários autores tratam dos celtas antigos – sua estrutura sócio-política, religião, hábitos, guerra e etc. (3) – geralmente, citando-os como o pitoresco, o 10 exótico e o bizarro de terras estrangeiras. A maior parte desta documentação consiste de fragmentos ou referências isoladas constantes de narrativas históricas e/ou geográficas mais amplas. Tais referências são, em sua maioria, acerca da Gália e da Bretanha e poucas são as fontes anteriores ao século IVº a.C. As primeiras referências são predominantemente baseadas em relatos históricos e geográficos dos primeiros périplos (manuais de viagens dos primeiros exploradores do ocidente). Dos séculos IV e III a.C., há várias informações de que vêm de outros périplos ou narrativas históricas, geográficas e/ou etnográficas. Porém, grande parte dos relatos se concentra no período compreendido do século II a.C. ao século I d.C. Assim, sendo, temos que tratam essas fontes de uma vasta gama de populações celtas de diversos períodos e regiões, fornecendo-nos o que poderíamos chamar de um panorama pan-céltico. Aqui,um tal panorama, ao invés de obstáculo ou empecilho, se nos apresenta como vantagem, posto que nos revelam constantes (e transformações) tanto nas visões acerca dessas populações, quanto na relação dos celtas e com a Natureza. Destarte, nos deteremos, neste trabalho, nos aspectos que ligam essas populações à Natureza nos relatos greco- latinos a fim de compreender o que fundamenta a interpretação de “religião naturalista” e demonstrar a necessidade de revermos a conceituação, defendendo a perspectiva de uma paisagem vivida marcada pela relação entre “homem” e “ambiente”. Devemos, aqui, destacar que, por questões de espaço, não poderemos nos deter sobre as tradições da historiografia, geografia e etnografia antigas, limitando-nos, apenas, a pontuar algumas breves observações a esse respeito. No entanto, é preciso apontar que esses gêneros literários estiveram profundamente ligados, de tal modo que era prática corrente começar um trabalho etnográfico delineando e descrevendo a 11 região habitada pela população em questão, especialmente porque havia, por parte desses autores, a concepção de que as características e condições da região e do território habitados definiriam o caráter e a natureza da população (haja vista os relatos de César sobre a floresta Hercinia (B Gall, VI.25) e de Diodoro da Sicília (V.25.1-2) sobre o clima na “Céltica”). Caráter e religiosidade celtas na documentação clássica A documentação clássica enfatiza vários aspectos que mostram uma ligação entre as populações da Europa Centro Ocidental e o “selvagem”, a “Natureza”: sua aparência, caráter, comportamento, rituais e crenças religiosas. Essa ligação, se por um lado os afasta do âmbito da “cultura, do “mundo civilizado” greco-romano, por outro os define como um tipo muito particular dentro do espectro de bárbaros, estando os celtas entre o bárbaro mais próximo (helenizado) e o mais afastado (o desconhecido, que representa a alteridade total). Uma tal percepção deu lugar a três imagens dos celtas que prevalecem nos relatos antigos: o “bárbaro amigável”, o “ bárbaro destemido e temível” e o “nobre selvagem”. O celta como “bárbaro amigável” é aquele que aparece nas primeiras referências, a saber: Hecateu de Mileto (4) (Steph. Byz., FGrH1A≠1, frags. 54-56), Hilmico de Cartago (5) (Avienus, Ora Maritima, 114-119, 380-389, 411-416) e Heródoto (II.33, IV.49). Hecateu e Hilmico, que se inserem na primeira tradição geográfica e etnográfica dos périplos, mapeiam as populações célticas em contato com helenos e cartagineses, assinalando, pois, populações helenizadas (a exemplo do sul da França) e/ou com quem tinham relações comerciais. Heródoto também apresenta os celtas como não muito distantes dos helenos. Contudo, a interpretação da diferença das populações célticas mudou substancialmente durante os períodos helenístico e romano. Autores como Platão (Leis 1.637d-e), Aristóteles (Eth. Nic. III.7.6-7 [1115]; Eth. Eud. 3.1.25 12 [1229b]) e Éforo (Estrabão IV.4.6) apresentam os celtas como seres exóticos, bem como sendo a antítese dos helenos, isto é, povos dominados por grandes emoções e destemperança (6). Durante os séculos IV e III a.C., largamente em virtude das migrações célticas e das invasões de Delfos e Roma, as populações célticas começaram a ser representadas pelos autores greco-latinos como belicosas e temíveis (7); características que eram enfatizadas pelas práticas de sacrifícios humanos e pelo culto das cabeças cortadas. Essas características e hábitos, em oposição aos padrões do “mundo civilizado” greco-romano, colocavam essas populações no domínio do selvagem, isto é, no “mundo natural”. Os modelos das tradições historiográficas e etnográficas de Heródoto e Tucídides são mantidos durante os períodos helenístico e romano, como no caso de Políbio, que seguiu os princípios básicos do modelo de Tucídides, para quem a escrita da história se baseava no testemunho ocular (cf. MILLAR, 1964: 7). Para Políbio, os celtas representavam o caos em oposição à ordem e civilização romana; o que se deve sobremaneira ao evento da invasão e saque de Roma em 390 a.C. Contudo, referências detalhadas sobre os celtas só começam com o que Tierney (1960) chamou de “tradição Possidônia”. Segundo ele, a etnografia de Possidônio acerca dos celtas era a base para os relatos de Ateneu, Diodoro da Sicília, César e Estrabão. Ateneu seria, em verdade, a principal fonte dessa tradição, posto que é o único a dar os números dos extratos retirados de Possidônio (cf. CLARKE, 1999: 132- 133). Por outro lado, desde o séc. XIX, Diodoro é considerado como um “copista”, devido a sua “fidelidade” às fontes (SACKS 1994); o que tem sido combatido por pesquisas recentes, a exemplo de Sacks e de Yarrow (2000), que mostram a criatividade do autor na produção de seu texto, inserindo suas próprias idéias e crenças, especialmente no que concerne à política e história romanas. Porém, no que tange a suas 13 menções acerca dos celtas, temos que Diodoro se baseou largamente em Possidônio a ponto de suas passagens casarem com as de Ateneu. O mesmo, contudo, não pode ser dito a respeito de César e Estrabão. Como Nash (1976: 114-115) demonstra, Tierney não levou em conta a verdadeira e original contribuição desses dois autores, nem tampouco reconheceu que o trabalho de César era completamente distinto dos demais, sobretudo porque, ao contrário de Ateneu e Diodoro, e apesar de César provavelmente ter tido conhecimento do trabalho de Possidônio, ele também foi testemunha ocular e, por conseguinte, certamente incluiu suas próprias visões e explicações acerca dos gauleses. Mais do que isso, Tierney não leva em consideração a relevância do período de produção dessas obras. A maior parte das informações mencionadas por tais autores provavelmente não estavam disponíveis para Possidônio e sem o texto dele na íntegra é verdadeiramente impossível certificar a extensão da influência de seus escritos. Ademais, como tais autores provavelmente leram Possidônio, eles também leram Homero, Hecateu e Heródoto dentre outros autores que eram parte da educação e do conhecimento da época. Isso significa que não havia a tradição de um só indivíduo, mas uma base de formação cultural e educacional que definia as identidades helena e romana frente a bárbaros e estrangeiros e que, juntamente com as experiências e percepções desses autores, fundamentava seus escritos sobre o “Outro”. Crítica similar pode ser feita à hipótese de uma “tradição Alexandrina” levantada por Chadwick (1999). Defende ela que essa tradição, constituída por Timeu, Timógenes e Polistor, juntamente com autores da Escola de Alexandria (principalmente Plínio o Velho, Pompônio Mela, Lucano e Amiano Marcelino) teria cunhado uma visão muito distinta das populações celtas, em particular de sua religião. Não eram os celtas retratados como bárbaros temíveis ou 14 violentos, mas como pitorescos tanto por suas crenças religiosas/filosóficas quanto por sua relação estreita com a Natureza. Isso certamente implicou uma seleção de características que, para Chadwick, era principalmente explicada por uma tradição literária. Contudo, embora todos esses autores seguissem idéias estóicas, uma tal seleção seguia, acima de tudo, os propósitos e objetivos de cada um desses autores. Dentre todos eles, Plínio o Velho é certamente o autor mais interessado na relação entre religião e Natureza, porquanto a noção estóica de poder criativo da Natureza se encontra profundamente arraigada em seu trabalho. Em contraste, as menções de Lucano aos bosques sagrados gauleses não eram guiadas por seu fascínio por essas “crenças selvagens”. Ao contrário, de seu relato emergem críticas aos ritos bárbaros (cf. Luc. I.450-458). Amiano Marcelino, ao invés, citando Timógenes ao se referir aos gauleses, se aproxima mais da tradição etnográfica de Tácito, estando ele preocupadoem explicar a natureza de tais bárbaros. Chadwick (1999: 30) acreditava que, devido ao período em que ele escreveu, o trabalho de Tácito diferia daquele da tradição Alexandrina. Seus Anais e Histórias seriam claramente inspirados pela tradição histórica de Tucídides, enquanto que sua Germânia seguiria a tradição etnográfica, bem como a abordagem periegética de Hecateu (RIVES, 1999: 11-21). Nos Anais, as referências aos celtas estão no contexto das campanhas romanas na Bretanha, ou seja, no contexto de conquista e dominação de populações “selvagens”. Ao passo que a Germânia, procura não só descrever as populações germânicas, mas explicar o fracasso da conquista da Germânia pelos romanos. Assim, traça ele a imagem dos germanos, não como uma mera oposição aos romanos, mas como populações “primitivas” corajosas e belicosas, selvagens, impulsivas e sem limites ou leis; o que contrasta sobremaneira com a imagem que ele traça dos celtas. 15 Como podemos ver, até o IVº século a.C., foram eles vistos de forma os celtas foram vistos pelos helenos uma sorte de bárbaro mais próximo da cultura, com quem se podia conviver e negociar e, por conseguinte, também era passível de ser civilizado. Nos séculos IV-III a.C., firmou-se a visão de belicosidade e destemperança das populações celtas; características essas reforçadas por sua atuação como mercenários e as invasões e saques de Delfos e Roma, bem como pelas observações de Possidônio acerca do culto das cabeças cortadas e dos sacrifícios humanos. A visão de seu valor guerreiro também foi enfatizada ao longo da conquista romana da Gália e da Bretanha; o que também servia para enaltecer o valor e as vitórias de Roma. Após o séc. I d.C., surge a visão deste bárbaro como o “nobre selvagem” mais próximo da Natureza e, por conseguinte, distante da corrupção do “mundo civilizado”. Essa visão primitivista, juntamente com os relatos acerca dos lugares de culto celtas, é que contribuiu sobremaneira para a construção da visão da religiosidade celta como “naturalista”. Da nomenclatura de santuários e lugares sagrados Nos relatos greco-latinos, vários termos são usados para nomear os lugares de culto célticos. Em latim, encontramos: locus consecratus, lucus, nemus, fanum, adytum, aedes e templum. Locus consecratus é um termo relativamente impreciso que designa locais sagrados em geral, enquanto que lucus é usado em referência a santuários limitados por um bosque, de modo a aludir não a um “local natural”, mas a uma paisagem criada que “reproduz” uma paisagem sagrada (BRUNEAUX, 1996: 60). Nemus também significa um bosque sagrado, uma clareira ou uma lareira sagrada, enquanto que fanum se refere a um lugar sagrado que tem seus limites demarcados por um fosso. Adytum, derivado do termo grego ádyton, é o santuário mais interior de um templo, ao qual é vetada a entrada de outros que não os sacerdotes. Aedes é um 16 templo, uma construção simples sem qualquer subdivisão, enquanto templum consiste em um amplo e impressionante edifício consagrado pelos adivinhos aos deuses. Em grego, o vocabulário para lugares sagrados é um tanto vasto, com o léxico principal consistindo em: témenos, hierón, naós, bóthros, sekós, álsos, hérkos and anáktoron. Os três primeiros termos são, de fato, mais freqüentemente usados para identificar santuários dentro do mundo helênico. O termo témenos aparece, tal qual seu cognato latino templum, para nomear um lugar consagrado aos deuses. Originalmente, “ témenos é uma porção do território [que] depois se torna um espaço reservado/consagrado a uma divindade” (CASEVITZ, 1984: 86). Ele se aplica a cercamentos sagrados delimitados por cercas, fossos ou muros. Hierón, por outro lado, apesar de freqüentemente usado para designar um edifício/templo, pode designar um “lugar sagrado” em seu sentido mais geral, sendo, por conseguinte, utilizado para remeter a vários tipos de santuários (BRUNEAUX, 1996: 61; CASEVITZ, 1984: 86). Naós, porém, sempre se refere a templos e edifícios sagrados; “é ‘a residência pessoal’ da divindade, que está presente por sua estátua” (CASEVITZ, 1984: 87). Bóthros, ao invés, é um poço ou uma cova ritual para deposição de oferendas (PIGGOTT, 1978: 37-38), enquanto sekós (8), tal qual témenos, corresponde a um cercamento sagrado (ROUVERET, 2000: 47). Contudo, séka indica lugares devotados ao culto do herói (CASEVITZ, 1984: 94; WEBSTER, 1995: 446). Alguns termos, tais como álsos e hérkos pertencem especificamente a áreas florestadas. Álsos é uma mata ou bosque que contém uma fonte ou curso d’água, enquanto hérkos, originalmente uma área florestada, quando usado juntamente com hierón significa um cercamento sagrado (CASEVITZ, 1984: 93). Finalmente, anáktoron é “o lugar dos deuses, onde são celebrados os mistérios” (CASEVITZ, 1984: 95). Acrescentando-se a isso, há o vocábulo galo-bretão nemeton, que é amplamente encontrado na toponímia e na 17 epigrafia da Gália, Bretanha e Galácia (PIGGOTT, 1978: 37; WEBSTER, 1995: 448). Nemeton, cognato do termo grego nemos (significando “pasto arborizado” ou “clareira numa floresta”) e do termo latino nemus (ALDHOUSE-GREEN, 2000: 9; PIGGOTT, 1978: 37), e tal como locus consecratus, é visto como um termo razoavelmente impreciso, posto que designa lugares sagrados em geral. Nem todos esses termos eram usados para se referir aos lugares sagrados célticos. O vocabulário empregado pelos autores gregos para descrever santuários gauleses se restringe tão somente a: témenos, hierón e sekós. Estrabão (III.4.16) menciona a performance de rituais a céu-aberto por celtiberos em frente a suas casas, enquanto que, para as tribos gaulesas, ele (IV.1.13, IV.4.6) enfatiza a importância de lagos e ilhas como sítios rituais que coexistiram com construções por ele nomeadas como sekós e hierón. Devemos, porém, ressaltar que ilhas, de fato, aparecem no texto de Estrabão como teméne que possuíam hierá, onde se faziam os rituais. Diodoro da Sicília (V, 27.4) também menciona a dedicação de oferendas votivas em hierá e teméne, e Dio Cássio (LXII.7), ao mencionar os sacrifícios de prisioneiros romanos em um bosque de Andate pelos bretões, também usa hierá. O uso seletivo de tais vocábulos revela a existência de diferentes tipos de lugares sagrados consistindo em áreas claramente demarcadas, algumas delas que talvez tivessem um altar ou construção no centro. O termo hierón é empregado tanto em seu sentido geral (de modo a designar ao mesmo tempo um templo ou uma característica geográfica tal como um lago ou uma caverna), quanto em seu sentido mais específico de uma área sagrada dentro de um témenos. Inversamente, sekós é usado por Estrabão (IV.1.13) para designar um tipo específico de santuário, reconhecido por Possidônio como consagrado ao culto dos ancestrais. 18 Entre os autores latinos, Bruneaux (1996: 60) argumenta que há a tendência a usar os termos mais vagos, como locus consecratus e lucus, posto que em sua visão a nomenclatura de edifícios sagrados implica um caráter monumental que, a seu ver, provavelmente pareceria inapropriado para descrever os lugares sagrados dos bárbaros. Todavia, uma outra razão pode ser que eles não aludiam a nenhum edifício, mas a locais na paisagem. César, por exemplo, usa locus consecratus tanto ao mencionar o encontro druídico anual no território dos carnutos (B Gall. VI, 15) quanto para se referir aos lugares onde os gauleses faziam seus rituais após uma vitória (B Gall. VI, 17). Isso não significa que não houvesse edifícios sagrados, mas sim que os lugares sagrados em questão correspondiam a formas geográficas. Muitas formas geográficas aparecem como lugares sagrados nas fontes clássicas. Plínio, o Velho, (HN. XVI. CXIII.250), por exemplo, aponta que os sacerdotes – druidas – receberam seu nome de drús (9) (termo grego que significa carvalho) e que as árvores e plantas, como o carvalho e o visco,tinham um significado sagrado, sendo, portanto, objeto de culto da população. Outros autores como Tácito (Ann. XIX.30) e Lucano (I.452-454) também se referem à sacralidade de florestas, matas e bosques. Alguns deles, como no caso do bosque sagrado perto de Massalía (Luc. III.411-412), eram igualmente relacionados a contextos aquático, em particular fontes, que eram usadas para práticas rituais com deposição. Por outro lado, Pompônio Mela (III, 2.18-19) menciona o uso de cavernas e vales de montanhas isoladas para o aprendizado druídico, bem como a existência de um oráculo numa ilha na Bretanha Francesa, que era dedicado a uma divindade gaulesa em Sena, no mar bretão em frente à margem de Ossimiano (Pompon. III.6.48). Assim, os léxicos grego e latino empregados para designar os lugares sagrados célticos não só assinalam a existência de diferentes tipos de santuários, mas, acima de 19 tudo, mostram uma ligação ente “locais na natureza” e o mundo sobrenatural. Piggott (1978) demonstrou vários paralelos entre os vestígios arqueológicos de lugares sagrados célticos e os termos témenos, bóthros, fanum e templum. Por exemplo, estruturas arqueológicas que podem ser classificadas como teméne são muito comuns tanto nas Ilhas Britânicas (cercamentos sagrados quadrados, oblongos ou circulares) e na Europa Central (os chamados Viereckschanzen (10) (PIGGOTT, 1978: 49-51). Bóthroi, por outro lado, são bem representados por fossos votivos como aqueles de Holzhausen, enquanto que fana e templa podem ser atribuídos a vários exemplos de construções em madeira no interior de cercamentos sagrados. De fato, esses também podem se aplicar a conjunção hierón-témenos. Como apontado por vários outros scholars, como Wait (1980), Webster (1995) e Bruneaux (1996), os achados arqueológicos apóiam a maioria dessas interpretações. Animismo ou “religião naturalista”? Vários autores antigos, em particular os escritores estóicos (como vimos acima), apresentam uma “visão primitivista” dos celtas (PIGGOTT, 1996: 91-99), que são por eles idealizados como populações primitivas puras, geralmente representadas como pertencendo a um passado perfeito, idealizado, mitológico, comumente referido como “a Idade do Ouro”, posto que eles eram entendidos como sendo livres da corrupção do “mundo civilizado”, tendo uma vida mais simples e, por conseguinte, estando mais próximos da Natureza e das divindades. Essa tradição literária clássica acabou, portanto, por criar a interpretação amplamente difundida de uma “religião natural” dos celtas. Primeiro, porque seus santuários eram localizados em rios, fontes, ilhas, pântanos, brejos, bosques, florestas, montanhas ou cavernas. Segundo, porque faziam eles largos oferecimentos de sacrifícios e ricas oferendas aos deuses nesses locais. 20 Uma tal configuração levou muitos estudiosos a basear seu entendimento acerca das práticas religiosas da Idade do Ferro no conceito de uma “religião natural”. Permeado por uma visão evolucionista e aceitando a perspectiva dada pelos relatos greco-latinos, tal conceito presume a existência de uma forma de religião “primitiva”, que é apresentada como uma forma simples de religiosidade que era relacionada a supostas sociedades primordiais e, por conseguinte, teriam precedido a religião de posteriores sociedades “civilizadas” (cf. FRAZER, 1926: 14). Miranda Green, por exemplo, afirma que os celtas possuíam uma “... rica e variada tradição religiosa (...) [que] se deve largamente ao animismo essencial que parece ter sustentado a religião celta, a crença de que toda parte do mundo natural, todo traço da paisagem, era imbuído de qualidades sagradas, possuído por um espírito” e indo mais além, ela considera que “a percepção de espíritos na paisagem é amplamente demonstrada pelos nomes de deuses em dedicações epigráficas do período romano-céltico...” (GREEN, 1995: 465-466 – tradução e grifo nossos). Diante dessas afirmações, devemos nos perguntar: 1) se estamos, realmente, diante de uma religiosidade animista em seu sentido original; 2) se a associação de dedicações aos deuses a “locais naturais” verdadeiramente consiste na crença dos deuses residindo na paisagem; e 3) como podemos compreender essa relação homem-ambiente. Tylor, apesar de não ter sido o primeiro a usar o termo animismo, é geralmente considerado seu criador. Entende ele que a forma mínima e primordial de religião seria “... a crença em seres espirituais” (1920, vol.1: 424). Essa crença, que ele classifica como animismo (p.425), seria própria de sociedades mais “primitivas” (no seu dizer), seria um desenvolvimento da “Religião Natural” (p.427), constituindo a primeira forma de religião. Para essa forma de religião, vida, mente, alma, espírito 21 e fantasma consistiriam não em entidades distintas, mas em formas diversas de um mesmo ser (p.435). No caso das sociedades ditas “primitivas”, a alma/espírito possuiria uma forma material (p.457-458), e por não verem elas distinções entre o humano e o animal, consideravam que tanto homens, quanto animais ou seres inanimados possuíam alma (p.469). A visão evolucionista de Tylor, assim como sua concepção de cultura, sobrevivência e animismo foram amplamente criticados) e pode-se inclusive dizer que a definição de Tylor sobre o animismo também não é exatamente precisa e ele mesmo parece reconhecer a dificuldade de explicar e conceituar os complexos fenômenos que essa forma de religiosidade abarcaria (STRINGER, 1999: 546). Mesmo assim, a definição de animismo presente ainda hoje no senso comum, nos dicionários e na academia (salvo raras exceções) se deve a Tylor, sendo, então, o animismo geralmente visto como uma forma simples e “primitiva” de religião. Contudo, autores como Bird-David (1999), Descola (1996) e Viveiros de Castro (1999), dentre outros, têm mostrado a necessidade de se rever o conceito de animismo. Dentro da antropologia das religiões, animismo é o inverso do totemismo, posto que enquanto o totemismo se baseia na dicotomia cultura x natureza, o animismo se fundamenta na profunda relação, e não dissociação, entre natureza e cultura (VIVEIROS DE CASTRO, 1999: 474). Isto, segundo Descola (1996: 89-95), significa que a relação homem-natureza se configura em três sistemas – animismo, totemismo e naturalismo (11), os quais possuem variantes que se fundamentam em três modos relacionais distintos: reciprocidade, predação e proteção. Predação, a seu ver, é mais característico do totemismo, que não pressupõe uma estreita ligação entre seres humanos e não-humanos e, por conseguinte, não exige “ressarcimento” pela vida tirada. Por outro lado, reciprocidade e proteção são próprias do animismo, que implica uma forma de simbiose entre homem e natureza. Desta 22 forma, entende ele que o animismo media a relação entre cultura e natureza, entre o homem e as demais espécies; donde, defende ele, tal como Ingold (1993, 1996) e Viveiros de Castro, a compreensão do animismo não segundo Tylor, mas como uma ontologia ecológica. Em linha de análise correlata, Bird-David (1999) propõe que se fale de animismos (no plural) e que esses sejam entendidos na forma de uma epistemologia relacional. Esta, tal qual a ecologia de Ingold, Descola e Viveiros de Castro, parte da interação do homem com o ambiente, com animais e também em sociedade para compreender sua inserção no mundo. Ambas as teorias tratam de “viver e existir no mundo” (being-in-the-world). Inspiradas na fenomenologia de Heidegger e de Merleau-Ponty, propõem que o cerne da compreensão dessa relação homem-ambiente reside no “ser” e na “experiência”. Neste sentido, a natureza e o ambiente não constituem algo que está “lá fora” e distante do homem. Ao contrário, o ambiente é “...a natureza constituída em relação ao organismo ou pessoa...” que o habita (INGOLD, 1993: 156). Conseqüentemente, é um processo que assume forma na ação davida quotidiana, nas formas de percepção e de construção de uma paisagem vivida. E tal não se aplica somente às comunidades de caçadores-recoletores, mas também a várias sociedades agrárias. Mas o que dizer do animismo entre os celtas? São essas interpretações aplicáveis às sociedades da Idade do Ferro na Europa Centro-Ocidental? E temos dados materiais que as corroborem? Certamente, ao contrário do que Green afirma no trecho que destacamos, a existência de dedicações epigráficas do período romano-céltico em “locais naturais” não representa o reconhecimento de que aquelas divindades habitassem aquele determinado local na paisagem ou que esses locais personificassem essas divindades. Ao invés, isso significa tão somente que certos locais na paisagem, muitos deles, com um 23 histórico de visitas e dedicações desde fins da Idade do Bronze, eram consagrados àquelas divindades. A limitação de dados, porém, nos impede de saber se esses lugares sagrados na paisagem teriam sido sempre consagrados a uma mesma divindade durante todo este período, desde fins do Bronze até o período romano, como por exemplo no caso da Source de La Douix (Borgonha, França). Bruneaux (1993), por outro lado, mostrou-se cético quanto a uma visão animista e crítico quanto à tradicional imagem “naturalista” acerca dos bosques sagrados celtas, porquanto demonstra ele que raras são as evidências de culto às árvores nas Idades do Bronze e do Ferro. Para ele a árvore desempenharia um “papel secundário”, não sendo, pois, objeto central de culto. Aldhouse-Green (2000), ao contrário, argumenta que árvores e postes de madeira representariam focos de culto em sítios rituais da Idade do Ferro. Argumento semelhante também poderia ser levantado (e com mais verossimilhança) acerca da grande formação rochosa do santuário de Heidentor (Baden-Württemberg, Alemanha). Seriam, então, essas árvores, rochas e demais formações geográficas o objeto central de culto? As evidências de que dispomos sobre os depósitos em “locais naturais” e as referências dos autores greco-latinos tanto acerca da relação dos celtas com a natureza e o mundo selvagem quanto das formas de seus santuários (acima mencionadas) não configuram uma religião animista no sentido tradicional tal qual empregado por Miranda Green nos trabalhos que aqui citamos. A nosso ver, estamos diante de fenômenos muito mais complexos, cuja compreensão reside sobretudo nas formas e modos de ritualização, bem como no significado da ritualização nos contextos sócio-políticos. E para tanto, a via de interpretação de uma paisagem vivida se mostra sobremaneira frutífera. 24 NOTAS (1) O presente trabalho desenvolve algumas idéias e discussões levantadas em nossa tese de doutoramento, intitulada “Sacred Sites and Power in West Hallstatt Chiefdoms”, desenvolvida no Instituto de Arqueologia da Universidade de Oxford (Inglaterra), sob orientação de Sir Barry Cunliffe, Professor Emérito de Arqueologia Européia, e financiada pelo CNPq. (2) Para uma análise das formas de deposição, vide TACLA, A.B. Atos de devoção: os depósitos do bronze final ao início de la Tène na Europa centro-ocidental. Phoînix 14, 2008. (no prelo). (3) Levantamentos detalhados das referências greco-latinas acerca dos celtas podem ser encontrados em Freeman (1996, 2002) e Rankin (1987). (4) A obra “Descrição da Terra” de Hecateu, uma narrativa geográfica do périplo do Mar Negro até a Gália, só sobreviveu em fragmentos, como citações em outras obras, principalmente na Ethnica Epitome de Estefano de Bizâncio, mas também em Heródoto, Estabão e Avieno. (5) Principal fonte de Avieno para sua Ora Maritima (cf. FREEMAN, 1996: 16-17). (6) Sauer (1992) argumenta que os celtas aparecem dominados por thymós e akrasía, o que faria deles seres destemperados, irracionais e, por conseguinte, comparáveis aos animais. (7) Sua ferocidade e força na guerra eram geralmente atribuídos à sua atitude destemida diante da morte, apoiada por uma crença na imortalidade da alma (Ammianus Marcelinus (XV.9.8), César (B Gall. VI.14), Diodorus Siculus (V.28); Lucano (I.34); Pompônio Mela (III.2.18-20), Estrabão (IV.4.4)). (8) Segundo Webster (1995: 446), sekós é um termo raro usado por Estrabão (IV.1.13) e Ateneu (IV.152) precisamente ao citar Possidônio. (9) Para uma discussão detalhada do termo “druida” e seus possíveis significados, vide Chadwick (1997: 12-13) e Piggott (1996: 100-101), bem como o Anexo I de LE ROUX, F. et GUYONVARC’H, C.J. Les Druides. Rennes: Editions Ouest-France, 1992, p. 425-432. (10) Essas estruturas geraram muita discussão acerca de seu uso e significado. Desde 1957, com as amplas escavações de Holzhausen (Bavária, Alemanha) por Schwarz, a hipótese de santuário ganhou apoio. Recentes descobertas de Ehningen e Bopfingen (Baden-Württemberg, Alemanha) trouxeram nova luz ao debate, sugerindo, ao invés, sua “função” como fazendas da elite ou centros de assentamento. Contudo, o debate ainda se encontra em aberto, com autores como Wieland propondo uma interpretação alternativa, de centros de assentamento com caráter tanto ritual quanto profano (cf. WIELAND, G. Die spätkeltischen Viereckschanzen in Süddeutschland – Kultanlagen oder Rechteckhöfe? In: HAFFNER, A., BAUER, S. (eds.) Heiligtümer und Opferkulte der Kelten. 25 Stuttgart: Theiss, 1995, p. 85-99; WIELAND, G. Keltische Viereckschanzen: einem Rätsel auf der Spur. Stuttgart: Theiss, 1999). Uma tal proposição, sem sombra de dúvida, vem ao encontro das observações feitas por Bradley (2005) sobre a ritualização em assentamentos. (11) O naturalismo constitui linha filosófica e literária ocidental moderna e não trataremos dele nesse trabalho. ABREVIAÇÕES Ann. – Annals B Gall. – De Bello Gallico Eth. Eud. – Ethica Eudemia Eth. Nic. – Ethica Nicomachea HN – Naturalis Historia Luc. – Lucan Steph. Byz. – Stephanus Byzantius Tac. – Tacitus Documentação Escrita ATHENAEUS The Deipnosophists (Loeb classical library). Translated by Charles Burton Gulick. London/Cambridge, Mass.: Heinemann/Harvard University Press, 1927. CAESAR The Gallic War (Loeb classical library - 72). Translated by H. J. Edwards. London/Cambridge, Mass: Heinemann/Harvard University Press, 1917. DIODORUS SICULUS. 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Mots-clé: espace; divinités; Corinthe No segundo semestre de 2006 ingressamos no Departamento de História da Universidade Federal Fluminense e no Centro de Estudos da Antiguidade (CEIA). No CEIA criamos um grupo de estudos dedicados ao estudo dos politeísmos. Tal grupo é composto por professores, graduandos e pós-graduandos tanto do CEIA-UFF quanto de outras instituições de ensino do Estado do Rio de Janeiro. No ano passado, em novembro de 2007, no I Congresso Internacional de História Antiga e Medieval oferecido pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), proferimos uma conferência a respeito do synoecismo – ato fundador de uma cidade-Estado – e dos cultos em Corinto Baquíade (VII-VII séculos a. C.) Esta pesquisa nos despertou a questão relativa ao processo de formação de Corinto, bem como aos cultos politeístas. Anteriormente, em nossa Tese de Doutorado, já havíamos estudado a prática dos kômoi – procissões catárticas – e as imagens criadas pelos artesãos/ pintores dos dançarinos pançudos (komástai) (LIMA, 2001). Elencamos as divindades e entidades sobrenaturais representadas nos vasos e a produção 30 do corpus imagético. Conseguimos identificar 7 deuses e 4 entidades, a saber: Dionisos, Poseidon, Apolo, Ártemis, Aphrodite, Nereu, Athená, Héracles, Hydra de Lerna, Górgona e esfinge. Em trabalhos anteriores enfocamos os cultos de Aphrodite e de Poseidon (LIMA, 2005). Nos últimos anos, portanto, o estudo das experiências religiosas e, em particular, a adoção do método comparativo nestes trabalhos tem demonstrado uma renovação na produção acadêmica (BRELICH, 2003, 57; DETIENNE, 2008, 19). No que concerne o presente artigo, seguiremos a proposta de Marcel Detienne em buscar identificar as associações das divindades nos diferentes tipos de documentos produzidos em um determinado contexto social. As variáveis das associações divinas nos indicarão os atributos destas divindades e a constituição de espaços diferentes e concomitantes (2000, 81-104). Além da combinação Dionisos – Aphrodite, já por nós trabalhada (2003), no período cypsélida forjou-se a combinação Ártemis – Dionisos. Para darmos conta de compreender tal fenômeno, iremos convergir estudos dedicados á questão do espaço, do sagrado e dos arranjos politeístas de uma dada comunidade e o seu valor social. Nossa proposta consiste em pensar estas escolhas politeístas vinculadas à conjuntura política e econômica dos VII e VI séculos a. C. Corinto passou de um regime dominado por um génos – o dos Baquíades – para um regime tirânico – Cypsélidas. Além dos arranjos politeístas forjadospor estes grupos, percebemos a espacialidade sendo reorganizada, do VIII ao VI século a. C. na pólis (tanto na chôra quanto na ásty). Desde a sua formação (synoecismo), Corinto e os habitantes do Istmo estabeleceram relações de amizade, de troca e de contatos com elementos externos, os estrangeiros. Para intermediar estas relações, os coríntios organizaram seus espaços, seus lugares sagrados com práticas e ritos próprios (ELIADE, 1965, 28). Sabemos que a atividade ritual promove a integração, o fortalecimento de laços sociais e a criação de 31 identidades. Porém, como mostrou Marc Augé, em um momento singular, em um espaço delimitado, ou seja, durante uma prática ritual, o Outro (as alteridades) aflora por meio de um processo de resistência/ renovação e aceitação do outro e de si próprio (AUGÉ, 1998, 19). Os ritos às divindades são necessários para o equilíbrio social e consistem num esforço constante de dirimir as diferenças e os conflitos. Os cultos às divindades e os ritos de hospitalidade (as hiérodoules de Aphrodite, por exemplo) foram promovidos para intermediar as atividades de contatos, quer dizer: da navegação, do comércio e da colonização. Desta forma, elaboramos a seguinte hipótese: a espacialidade e as associações politeístas em Corinto foram forjadas para atenderem a necessidade de reconhecer e de se relacionar com o Outro (outros homens e outros espaços também) em uma nova forma de organização política. Espaços concretos e simbólicos, muitas vezes justapostos, são necessários para viabilizarem os contatos baseados nas diferenças. Diferenças sociais, culturais e religiosas (1). Mencionamos acima, os regimes políticos em Corinto – o dos Baquíades e o dos Cypsélidas – os quais organizaram, junto com outros setores da sociedade, os arranjos politeístas na pólis. Tais associações entre as divindades do panteão e de seus respectivos cultos definiram a ocupação do território. A integração entre espaços rural e urbano foi proporcionada também pela edificação de santuários (DE POLIGNAC, 1996), ou seja, de espaços sagrados onde os cultuadores se encontravam e realizavam seus rituais ocupando e marcando a presença coríntia na proteção e demarcação de fronteiras cívicas. Os cultos dedicados à Poseidon e à Héra, por exemplo, marcaram a ascensão econômica e a hegemonia baquíade nas regiões do Istmo e de Pérachora respectivamente. No centro urbano, os áristoi coríntios provavelmente apoiaram os cultos de Hélios e de Apolo. Os processos de synoecismo e de colonização coríntias podem estar diretamente associados aos rituais praticados nos santuários de Hélios, na Acrocorinto, e 32 no de Apolo, na agorá, no templo da colina (BOOKIDIS, 2003, 248-249). Quando olhamos atentamente para o contexto da tirania percebemos a preocupação, por parte dos dirigentes – Cypsélos e Períandros –, em integrar os espaços, por meio de edificações, de vias, do próprio díolkos (2), e o incremento de cultos nos espaços rural e urbano. Em vários lugares do Istmo, os coríntios irão erigir marcos sagrados com o intuito de garantir a proteção dos deuses. Eles sabiam que transitavam por espacialidades distintas e precisavam justamente destes marcos – santuários e estátuas de deuses – pois entrariam em contato com o estrangeiro, com o navegante e com o comerciante. Personagens estes que representavam novas crenças, novas idéias e uma carga simbólica significativa para o heleno por serem xénoi. Identificamos uma associação peculiar que pode nos ajudar a compreender este fenômeno que produzia ao mesmo tempo a permanência das noções de mancha/ purificação e propiciava o crescimento do território cívico e de novas atividades econômicas. Em um alábastros coríntio encontra-se um komastés dançando para a direita, na face A do vaso; na face B o pintor representou a deusa Ártemis alada segurando dois cisnes. Esse artefato foi encontrado na cidade-Estado de Caere, fato que evidencia os contatos com a cultura etrusca. Este alabastros foi classificado como pertencendo ao Estilo Antigo de pintura coríntia, cerca de 625-600 a. C. Neste objeto podemos constatar três elementos, a saber: o folião – komastés com a explicitação do grotesco; Ártemis alada e os cisnes. Vamos, então, elaborar uma possível leitura para a mensagem com a qual o pintor teria se inspirado ao produzir o desenho no vaso. 33 Representação de Komastés e motivos florais (3) Representação de Ártemis alada, cisnes e motivos florais O komastés encontra-se ladeado, ou melhor, abrigado pelas asas de Ártemis e pelas penas dos rabos dos dois cisnes. A mão esquerda do dançarino está sobre o seu estômago e a da direita em suas nádegas. Há aqui o enfoque no ventre e no baixo corporal. A própria barba do komastés parece ter sido ‘exagerada’ propositadamente pelo pintor, com o intuito de criar uma barba fálica. Neste alábastros os ritos de fertilidade, 34 de fecundidade e de descobertas de novos espaços são reforçados com a presença de Ártemis alada. Ártemis, como lembra Jean-Pierre Vernant, é a Senhora das feras, a agreste e ao mesmo tempo a instrutora, fundamental para a prática da caça (VERNANT, 1991, 109). Além das montanhas, Ártemis estende seus domínios nos pântanos e nas “zonas costeiras onde, entre terra e água, a fronteira é indecisa.” (VERNANT, 1991, 112) Ela é a divindade curótrofa por excelência, cuida das crianças e dos filhotes, ou seja, nutri seres humanos e animais. Ártemis não representa somente a selvageria, ela consegue transitar entre as esferas da selvageria e da cultura. O cisne tem como habitat o lago e o pântano, ele vive em grupo (ARISTÓTELES, História dos Animais, VIII, 12 [597 b]), contudo, os cisnes são pássaros suscetíveis de se devorarem (ARISTÓTELES, História dos Animais, IX, 1 [609 b-610 a]), desta maneira fica marcada uma característica bastante selvagem destes animais. Eles se defendem das águias e à proximidade da morte, entoam um canto lamentoso (ARISTÓTELES. História dos Animais, IX, 12 [615 a]; ESOPO. Fábulas, 174). A partir da caracterização feita por Aristóteles, verificamos que os cisnes, da mesma forma que Ártemis, transitam entre a cultura (vida em grupo) e a selvageria (bestial/devoradores). Os cisnes também marcam os espaços limítrofes – lagos e pântanos. Édouard Will aponta que foram encontrados em outros artefatos coríntios (relevos e placas votivas) a representação de Ártemis ‘alada’ (WILL, 1955, 213-214). Ao representar Ártemis alada, o pintor conota mensagens relativas à vitória, e ao ato de transitar além dos espaços conhecidos. Os motivos florais nos remetem aos perfumes/ odores e à presença do invisível. Portanto, significados que estão de acordo com a conjuntura aqui analisada. A partir da análise deste artefato podemos levantar as seguintes questões: quais são as possíveis espacialidades nas 35 cenas representadas? Podemos perceber associações entre deuses/ entidades nas cenas? Bom, respondendo ao nosso primeiro questionamento, acreditamos que estas imagens nos permitem perceber várias espacialidades justapostas. Interpretamos este artefato por meio de noções sobre espaço trabalhadas por alguns pensadores. Henry Lefebvre, Michel Foucault, Edward Soja e Marc Augé nos ajudaram a melhor compreender a justaposição de espaços e de experiências vividas nestes lugares. Desta forma identificamos espaços concretos e abstratos coabitando em um mesmo lugar. O campo e o espaço rural foram pincelados por meio da representação do folião – o komastés. A passagem por limites e margens, sem esquecer, evidentemente, do espaço relativo ao sagrado valorizados com a presença da deusa. A experiência selvagem foi acentuada com a representação dos animais – os cisnes. Sacralidade, fecundidade e a passagem de fronteiras se encontraram de forma harmoniosa no alábastros que sairia de Corinto para a Etrúria. Sobre a segundaquestão detectamos a associação Dionisos – Ártemis. Divindades que transpassam limites e espaços. Elas são encontradas tanto na chóra quanto na ásty, presentes em bosques, espaços fronteiriços e também no centro, no meio da vida pública. Agora recorreremos aos relatos míticos das duas divindades que circulavam na região do Istmo. Tais relatos irão nos auxiliar a melhor compreender os signos representados no vaso, bem como identificar as principais características dos cultos dionisíaco e da deusa da caça. Reforçaremos neste trabalho que tais cultos praticados em certos espaços permitem aflorar as alteridades, ou seja, o reconhecimento do Outro, sem a perda de identidade. O elo que une os dois deuses na região de Corinto é a pratica da caça e o mito de Actéon. Na versão beócia e assimilada na Ática (EURÍPIDES. As Bacantes, v. 1291), Actéon provoca a ira da deusa da caça Ártemis ao vê-la 36 banhar-se no bosque sagrado. A divindade faz com que o herói pereça sendo devorado por cães. Na versão coríntia, por meio do relato de Plutarco, Actéon é um jovem vigoroso e valoroso (PLUTARCO. Histórias de Amor, II [773d-f]). Ele desperta a paixão entre os homens e um deles, Archías, numa procissão com uma multidão/ turba vai à casa do jovem caçador e tenta seduzi-lo (Actéon – erômenos/ amado – de Archías – erastés, áristos coríntio que pertencia ao génos dos Heráclidas). Tanto Actéon quanto os seus familiares e amigos não aceitam o cortejo amoroso de Archías. O desfecho da história é dramático: Actéon sucumbe na disputa. O pai de Actéon – Mélissos – clama por justiça levando o corpo de seu filho à agorá da cidade, mas recebe em troca somente as lástimas dos coríntios. Durante os Jogos, no Istmo, Mélissos sobe ao templo de Poseidon e invectiva contra os Baquíades. Após invocar os deuses, ele se precipita sobre os rochedos. Depois deste episódio, a seca e a peste abatem a região de Corinto. Para aplacar a cólera de Poseidon e vingar a morte de Actéon, Archías decide deixar Corinto, com uma comitiva, rumo à Sicília onde funda Siracusa. O aristocrata tornou-se um míasma (pessoa manchada por um homicídio) em sua cidade, contaminando a comunidade. Desta forma, uma das opções seria a sua retirada para purificar a mancha que produzira. É interessante notar que Plutarco ambienta seu relato na aldeia (kóme) de Mélissos, no espaço rural de Corinto (Korinthíon chóras). Além disso, o relato traça a interligação de espaços. Da aldeia no espaço rural, o relato segue para agorá e depois para o santuário de Poseidon no Istmo. Eurípides, o tragediógrafo ateniense, em sua peça As bacantes, também indica os diferentes espaços percorridos pelas mulheres delirantes de Tebas. Em um kômos, Agave, possuída pela manía dionisíaca, volta das montanhas segurando a cabeça de seu filho dilacerado (EURÍPIDES. As Bacantes, vv. 1165- 1175). As backaí percorrem a chôra e a ásty em um vai e vem 37 que reforça a interdependência entre o campo e o centro urbano. Caça, kômos, experiências de êxtase circulam por espaços distintos na pólis e podem se encontrar, ou melhor, podem se justapor em um mesmo lugar. O caminho percorrido pelas mênades pode ser comparado ao das ‘meninas ursas’ da região da Ática. Elas vão como meninas para o santuário de Ártemis e voltam como jovens prontas para o casamento, reforçando a relação selvageria/ cultura (THEML, 2005). Ao costurarmos todos os elementos contidos nas cenas do alábastros, bem como nos relatos de Plutarco e de Eurípides, fica explícita a diversidade de experiências acumuladas nestes espaços. Uma determinada manifestação em uma espacialidade cria laços, permite o reconhecimento dos limites e das margens, além de aflorar o contato com o Outro ou com o novo. Seguindo nesta etapa outras pistas iremos voltar nosso olhar para o relato de Pausânias sobre Corinto e o Istmo. O viajante identificou na agorá duas estátuas de Dionisos e uma de Ártemis (4). A praça é um lugar privilegiado no centro urbano. Ela mescla em um só espaço as esferas religiosa, política e comercial (COULET, 1996, 56-58). A agorá pode ser compreendida por meio da expressão és mésos, estudada por Marcel Detienne (1965). Tal termo dá a idéia de centralidade, de esfera, de espaço comum/ público e de reciprocidade. Dionisos, presente na agorá, aparece também no santuário de Deméter e Koré, situado na encosta norte da Acrocorinto. Nancy Bookidis e Richard Stroud encontraram vestígios de artefatos dedicados à divindade do êxtase e do vinho no témenos do santuário (1987, 27). Saindo da área da ásty, Pausânias relata que na estrada direcionada ao porto de Kenchreai – voltado para o Oriente – existia um santuário e um xoanon dedicados à Ártemis (PAUSÂNIAS. Descrição da Grécia, II, 2, 3). Deusa das fronteiras e das margens, Ártemis aparece em Corinto tanto no centro da ásty, bem como nos limites. Ela irá intermediar as relações em um espaço 38 privilegiado da diferença: o porto. O porto, por sua vez, liga-se a um outro espaço repleto de experiências, de representações e bastante simbólico: o mar, no qual Dionisos também circula. Dionisos e Ártemis transitam por diversas espacialidades, na agorá e nas montanhas, por exemplo, eles estão juntos (VIAN, 2003, 515). Os coríntios e estrangeiros de passagem pela região do Istmo e de Corinto iriam ter contato com duas potências divinas impregnadas pelas idéias do contato, do selvagem, do contágio e da epifania. Dionisos – Ártemis simboliza uma associação peculiar. As duas divindades evocam experiências múltiplas praticadas em espaços distintos, opostos e complementares (centro, periferia, urbano, rural). O contato com tais divindades proporcionaria a passagem por estes espaços sem provocar um desequilíbrio na ordem cívica. Ao mesmo tempo, os ritos dedicados a elas afloram a presença do Outro, do Estrangeiro, do Selvagem e do Cidadão. NOTAS (1) A noção de heterotopia, forjada por Michel Foucault, possibilita identificarmos a sobreposição em um mesmo lugar real diversos espaços, diversas espacialidades concretas e abstratas/ simbólicas e as práticas sociais conectadas a elas (FOUCAULT, 1986, 25; SOJA, 1993, 25). Seguindo Foucault e Henry Lefebvre, Edward Soja enxerga a possibilidade de criação de um terceiro espaço, ou seja, do Outro: o conhecido e o desconhecido, as experiências vividas reais e imaginárias, as emoções, os eventos, as escolhas políticas que perpassam questões entre centro e periferia, abstrato e concreto, etc Este terceiro espaço abre a possibilidade ao Outro: a uma rede complexa simbólica, ao clandestino, ao underground (SOJA, 1996, 67). (2) O díolkos era uma passagem terrestre, no Istmo, pela qual as embarcações podiam passar do Golfo Sarônico para o de Corinto. Os arqueólogos atestaram que o díolkos foi edificado durante a tirania de Períandros, cerca de 600 a. C. (SALMON, 1997, 37). (3) Alábastros coríntio encontrado em Caere (Etrúria). Musée du Louvre – E 588 (PAYNE, 1931, no. 382, 285). Early Corinthian Vases, ca. 625-600 a. C. 39 (4) Ártemis Ephésia e xoana de Dionisos – Lysios e Baccheios (PAUSÂNIAS. Descrição da Grécia, II, 2, 6-7). Os xoana foram feitos da madeira da árvore que Penteu escalou (WILL, 1955, 212). Documentação Escrita ARISTOTE. Histoire des Animaux. Tome III. Trad. Pierre Louis. Paris: Les Belles Lettres, 1969. ÉSOPE. Fables. Trad. Émile Chambry. Paris: Les Belles Lettres, 1985. EURÍPIDES. As Bacantes. Trad. Jaa Torrano. São Paulo: Hucitec, 1995. PAUSANIAS. Description of Greece. Books I and II. Trad. W.H.S. Jones Cambridge: Harvard University Press, 1992. PLUTARQUE. Histoires d’Amours. Oeuvres Morales Tome X. Trad. M. Cuvigny. Paris: Les Belles Lettres, 1980. Documentação Material PAYNE, H. Necrocorinthia: a Study of Corinthian Art in the Archaic Period. Oxford: Clarendon Press, 1931. Bibliografia AUGÉ, M. A Guerra dos Sonhos: Exercícios de Etnoficção. Campinas:Papirus, 1998. BOOKIDIS, N. The Sanctuaries at Corinth. In: WILLIAMS II, C.K. and BOOKIDIS, N. (org) Corinth Vol. XX – Corinth, The Centenary 1896- 1996. American School of Classical Studies at Athens, 2003. BRELICH, A. 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Paris: E. de Boccard, 1955. 41 O MAR E OS PESCADORES: DEUSES, MEDOS E AMBIVALÊNCIAS Ana Lívia Bomfim Vieira (UEMA) Resumo: O mar sempre provocou medo e atração e essa ambivalência "contaminou" aqueles que viviam de suas águas, como os pescadores. Pensando nos deuses ligados a pesca podemos identificar esta ambivalência e compreender um pouco mais o status social deste grupo. Palavras-chave: Mar, Deuses, Pescadores Résumé: La mer a toujours provoqué la peur et l'attraction e cette ambivalence a "contaminé" ceux qui vivaient de ses eux, comme les pêcheurs. En pensant aux dieux liés à la pêche nous pouvons identifier cette ambivalence et comprendre un peu plus le statut social de ce groupe. Mots-Clés: La Mer, Dieux, Pêcheurs Desde Homero que o mar é o lugar dos heróis, o percurso a ser desbravado com coragem, astúcia e ajuda dos deuses. Contudo, isto não quer dizer que o medo não estivesse presente. Os gregos sabiam o que um naufrágio representava. Ulysses já temia as tempestades e as mudanças que elas traziam para a cor das águas. Mesmo que o mar tenha estado sempre próximo, ele permanecia um elemento ambivalente, portanto, perigoso. A imagem do mar, irregular, flexível, ora amigável, ora tenebroso carregava um caráter negativo que poderia envolver o corpo social. A ambivalência do mar poderia contaminar os cidadão. Este não seriam mais justos e retos e sim, ardilosos (PLATÃO. As leis: IV, 705a-b). Essa idéia acaba, inclusive, contaminando a vizinhança e os povos do mar, como nos caso dos pescadores, por exemplo. Apresentar o Panteon dedicado à atividade da pesca, portanto, nos permite pensar e compreender melhor o lugar social ocupado pelos pescadores na pólis dos atenienses em particular, mas também a ambivalência ligada às atividades marinhas em geral. As divindades honradas por pescadores, neste caso, aquelas que não possuem um vínculo evidente com o mundo marinho, são 42 muito parecidas com eles. Todas possuem aspectos dúbios ao primeiro olhar. Optamos por ordenar estas divindades primeiro por sexo, começando por Ártemis a única feminina deste grupo. Em seguida, trabalharemos com as divindades masculinas ordenadas por espaço (Hermes, Pan e Príapo que, assim como Ártemis, não são associados imediatamente ao elemento marinho) Deixaremos de fora Glauco, pela especificidade de seu caso (1). Filha de Zeus e Leto, irmã gêmea de Apolo, Ártemis é também a deusa da caça. É a protetora e guardiã de todas as espécies de animais, mas também daqueles que os persegue, o caçador (XENOFONTE. Da caça: V, 34) Seus domínios mais conhecidos são os bosques, florestas e montanhas, mas não só. Eles se estendem desde as fontes e riachos até o mar. Se Ártemis era a deusa de todos os animais e de seus caçadores e se seus domínios incluíam também as águas, nada mais justo que essa deusa fosse adorada também pelos pescadores (ATENEU. Os Deipnosofista: VII, 325a A deusa Ártemis tinha o direito aos primeiros peixes e mesmo quando a pesca não tinha sido boa a regra era respeitada. Sendo a deusa da caça, ela agia como guia para os pescadores (SÉCHAN e LÉVÊQUE. 1966: 356) mas sem se desviar da sua atuação na proteção dos animais e do seu poder fertilizante do qual se beneficiavam os pescadores. Se observarmos atentamente, Ártemis ocupa um lugar aparentemente contraditório. Ela olha e guarda, ao mesmo tempo, caça e caçador. Os locais sagrados são ao mesmo tempo locais de caça, atividade limítrofe entre civilizada e selvagem. Mas são também limítrofes estes locais. A costa, a orla, nem mar, nem terra; as terras alagadas onde não encontramos nem a secura nem a umidade completa (VERNANT 1988: 18). Mas encontramos Ártemis. São estes os locais onde são edificados seus templos e onde pescadores vão lhe render homenagem. A deusa caçadora é ela também ambivalente, protege e pune, autoriza e proíbe. Mas, com esta ambivalência a deusa é a grande reguladora da fronteira entre a cultura e o selvagem, já que sabemos que o pescador transitava entre estes dois espaços. Portanto, Ártemis está presente neste grupo, e era adorada, tanto pelo seu atributo 43 ‘caçador’, como pelo seu poder de regular os espaços proibidos evitando, assim, que o pescador ultrapassasse os limites permitidos atraindo, com isso, a contaminação social. Podemos imaginar o quão significativa seria para os atenienses a imagem de Actéon, por exemplo, punido com a morte pela deusa por ter desrespeitado o seu espaço sagrado. Possivelmente, era uma imagem forte o suficiente para garantir o cuidado de pescadores com os rituais à deusa e atenção para que, neste lugar de trânsito em que eles se encontravam, os limites não fossem esgarçados de tal forma que o retorno à ordem e a cultura se tornassem impossíveis. Um outro aspecto de Ártemis, mencionado por Vernant, nos faz refletir sobre a sua aproximação dos pescadores. Ártemis, assim como Dionísos, era considerada uma divindade estrangeira, Cítia. E os tauros cítios eram conhecidos pelo total desconhecimento das regras de hospitalidade, logo, os estrangeiros eram capturados e degolados em nome da deusa. A deusa, portanto, como seus adoradores, representava o recluso, àquele que se coloca em um lugar de recusa ao contato do outro (EURÍPEDES. Ifigênia em Aulis: .402, 1388). Podemos entender essa reclusão também como social e ela se parece bastante àquela vivida por pescadores. Mas assim como a deusa é assimilada pelos gregos e passa a cuidar para que os perigos da liminaridade não venham à tona, os pescadores, ao realizarem seus ritos, se re-inserem no espaço do civilizado. Limites, fronteiras, margens. Associadas à caça, são estas as características que fazem de Ártemis uma deusa adorada por pescadores. Mais do
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