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1. UMA PALAVRA INTRODUTÓRIA: CONTEXTUALIZANDO A QUESTÃO EM NOSSOS DIAS “A nós nos bastem nossos próprios ais Que a ninguém sua cruz é pequenina. Por pior que seja a situação da China, os nossos calos doem muito mais...”. Mário Quintana A responsabilidade civil talvez se diferencie dos demais institutos jurídicos por se permitir um olhar singular - mais compreensivo e mais contem porâneo - em relação à sociedade e às mudanças que continuamente redefinem os perfis sociais. Em sociedades plurais e complexas, com sistemas jurídicos formados não só por regras, mas funda mentalmente por princípios, e com a progressiva valorização da dimensão existencial das relações jurídicas, a responsabilidade civil experimenta novas funções, e parece vocacionada a traçar linhas de tendência que definirão os próximos passos que nós, socialmente, iremos dar1. ' Acerca da evolução histórica e os múltiplos perfis assumidos pelo instituto através dos séculos: ZOPPINI, Andréa. La pena contratuale. Milano: Giuffrè, 1991, p. 20; VOCI, Pasquale. Risarcimento e pena privata nel diritto romano clássico. Milano: Giuffrè, 1939, p. 2; CANNATA, Carlos Augusto. CANNATA, Carlos Augusto. Delitto e obbligazione. In: lllecito e pena privata in età repubblicana. Napoli: Edizioni Scientfiche Italiane, 1990, p. 25; CENDON, Paolo. Pena privata e responsabilità civile, cit., p. 259; BARATELLA, Maria Grazia. Le pene private. Milano: Giuffrè, 2006, p. 5-12; GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Dott. A. Giuffrè, 1996, p. 39; ALPA, Guido. La responsabilità civile'. parte generale. Milano: Utet, 2010, p. 25; GALGANO, Francesco. II fatto illecito nella storia dei diritto civile, In Studi in onere di George Cian. Milano: CEDAM, 2010. t. I. 1.1. A responsabilidade civil de nossos dias: um edifício em construção “A verdadeira viagem de descobrimento consiste não em buscar cenários novos, mas em ter olhos novos". Marcei Proust Já dissemos em outra oportunidade: a responsa bilidade civil dos nossos dias pode ser comparada a um edifício em construção. Se já temos, de um lado, conceitos e categorias assentados, temos, de outro, espantosa dinâmica social, muita velocidade na transmissão das informações, novos valores sendo incorporados pela sociedade civil, ou pelo menos por parte dela. Nesse sentido, o direito de danos dos nossos dias exige um intérprete mais atento, mais dedicado ao que mora além das aparências. Aliás, a responsabilidade civil talvez seja o instituto que mais se renova a partir de mudan ças sociais. Houve, nas últimas décadas, intensa produção jurisprudencial a respeito do tema - o que permitiu renovar, criativamente, boa parte dos postulados teóricos aplicáveis à disciplina. Após a Segunda Guerra, muitos juristas europeus, sobre tudo alemães e italianos, voltaram suas atenções teóricas para a jurisprudência, afastando-se da redoma conceituai de abstração e conceitualismo puro que por muito tempo marcou os estudos jurídicos, sobretudo na literatura civilística. Podemos dizer que a responsabilidade civil, em boa medida, está sendo recriada pela doutri na e pela jurisprudência. Novas funções surgem, novos campos recebem as luzes da sua atuação. Não exageraríamos, aliás, se afirmássemos, em MANUAL DE DIREITO CIVIL - Cristiano Chaves de Farias • Nelson Rosenvald • Felipe Braga Netto retrospecto histórico, que boa parte das conquistas teóricas (e funcionais) da responsabilidade civil ocorreram não a partir do literalismo legal, mas a partir de construções em certo sentido rebeldes às disposições normativas (foi assim com a teoria do risco, na Europa, nos séculos passados). Evo luímos socialmente nâo só incorporando novos conhecimentos, mas incorporando, sobretudo, novos modos de percepção. Aliás, sabedoria não é o mero conhecimento, mas o uso ético dele. 1.2. Responsabilidade civil: fundamento e crescente objetivação A responsabilidade civil está fundada no princípio do neminem laedere, ou seja, a fórmula, de elaboração romana, que nos recomenda agir de forma a não lesar os direitos de outrem. Quando o dano ocorre - seja moral, material ou estético - busca-se compensar, ainda que parcialmente, o equilíbrio perdido. A responsabi lidade civil centra-se, portanto, na obrigação de indenizar um dano injustamente causado. Aguiar Dias, a propósito, anota que “o mecanismo da responsabilidade civil visa, essencialmente, à recomposição do equilíbrio econômico desfeito ou alterado pelo dano”2. 2 AGUIAR DIAS, José de. Da Responsabilidade Civil. Tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 1954, p. 557. Durante boa parte do século passado, os ju ristas que se dedicavam à responsabilidade civil disputavam qual teoria aplicar aos fatos danosos: a teoria subjetiva ou a teoria objetiva? A teoria subjetiva, clássica, era a que contava com séculos de estrada e tinha o apoio confortador dos Códigos Civis. A teoria objetiva era, de certo modo, uma novidade, mas ganhava crescentemente adeptos (quase sempre na modalidade do risco). O século XXI resolveu a questão. Nem uma nem outra, mas ambas. O direito brasileiro convive sabiamente com ambas as responsabilidades civis: objetiva e subjetiva. Talvez nem se possa dizer que a subje tiva é dominante, como era no passado. Talvez a responsabilidade objetiva tenha passado à frente (só um exemplo: a grande maioria dos contratos que firmamos, hoje, são contratos de consumo. Neles, a responsabilidade civil é, em quase todos os casos, objetiva). Em relação à responsabilidade civil do Estado - que foi tratada na Parte Geral desta obra (a partir do tópico 12, do capítulo 6, Pessoas Jurídicas) - convém lembrar que faz parte da tradição constitucional brasileira (desde 1946) termos na Constituição da República uma norma que preveja a responsabilidade objetiva estatal. Cremos que essa orientação se aplica tanto às ações como às omissões estatais. Aliás, em 2020, o STF, julgando caso que dizia respeito à responsabilidade civil do Estado e seus deveres fiscalizatórios - em caso de comércio clandestino de fogos que causou danos por explosão - explicitamente considerou (no voto do relator para o acórdão, Min. Alexandre de Moraes), que a responsabilidade civil do Estado é objetiva também nas omissões, não só nas ações (STF, RE 136.861, DJe 13/08/2020) A objetivação da responsabilidade civil é uma tendência observável a partir sobretudo de me ados do século passado, sendo possível registrar movimentações nesse sentido ainda mais recuadas no tempo. Passamos da responsabilidade subjeti va, de índole clássica, descansando na sombra da culpa, para técnicas que, aos poucos, passaram a prescindir do elemento subjetivo. Da culpa fomos para a culpa presumida em muitos casos (foi o que aconteceu, legislativa e jurisprudencialmen- te, no século passado, em relação às estradas de ferro). Note-se que estamos, ainda aí, na seara da responsabilidade subjetiva, porquanto a pas sagem da responsabilidade subjetiva para a culpa presumida só altera o ônus probatório relativo à culpa. Na responsabilidade civil clássica, subjetiva, a vítima é que deverá provar a culpa do ofensor. O ônus da prova é dela. Já na culpa presumida, o ordenamento altera o ônus probatório, caben do ao (suposto) ofensor provar que não agiu culposamente. Nos dois casos, entretanto, como se percebe, a discussão gira em torno da culpa. Hoje, a legislação brasileira é farta em hipóteses de responsabilidade objetiva, como ocorre, por exemplo, na legislação ambiental, no transporte de pessoas (aéreo ou terrestre), nas relações entre bancos e clientes, nas relações entre construtoras e adquirentes de unidades residenciais, nas relações entre usuários e planos de saúde, entre muitas outras situações possíveis. A responsabilidade civil atual se põe em per manente processo de abertura e reformulação, renovando-se a partir da renovação que emerge da própria sociedade contemporânea. A experiência jurídica, nessesentido, progressivamente incorpora a ideia do sistema jurídico como um sistema aberto formado por princípios e regras. Escrevemos em outra oportunidade: “O direito dos nossos dias é o direito da ponderação, da reflexão contextuali- zada, do percurso argumentativo. Vivemos numa república de razões e as democracias constitucio nais atuais precisam continuamente se legitimar, de modo contínuo, transparente e dinâmico. A RESPONSABILIDADE CIVIL teoria dos direitos fundamentais, a força normativa dos princípios, a funcionalização dos conceitos e categorias, a priorização das situações existenciais em relação às patrimoniais, a repulsa ao abuso de direito, a progressiva consagração da boa-fé objetiva são algumas das ferramentas teóricas que ajudam a construir a teoria da responsabilidade civil do século XXI”3. 3 FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe; ROSENVALD, Nelson. Novo Tratado de Responsabilidade Civil. 4‘ edição. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 21. 4 LEITE, José Rubens Morato; BELCHIOR, Germana Parente Neiva. Dano ambiental na sociedade de risco: uma visão introdutória. In: Dano ambiental na sociedade de risco. LEITE, José Rubens Morato (Coord). FERREIRA, Heline Silvini; FERREIRA, Maria Leonor (Orgs). São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 13-54, p. 43. 5 Nesse contexto, "o Estado moderno não deve, como no passado, proteger o cidadão tão somente dos ladrões, assassinos e outros malfeitores, mas a sua tarefa de proteção ampliou-se consideravel mente. De fato, as dependências e as interações cada vez maiores do ser humano conduziram não só à ampliação das possibilidades de comunicação mas também a uma ampliação dos perigos aos quais o homem está exposto. O Estado é então obrigado a assumir novas tarefas em matéria de proteção" (FLEINER-GERSTER.Thomas. Teoria Geral do Estado. Trad. Marlene Holzhausen. Revisão técnica Flávia Portella Puschel. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 594). Ver também: GRIMM, Dieter. A função protetiva do Estado. Trad. Eduardo Mendonça. A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Cláudio Pereira de Souza e Daniel Sarmento (Orgs). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 160. 1.3. Dano: um conceito geográfica e temporalmente variável “E enquanto uma chora, outra ri; é a lei do mundo, meu rico senhor; é a perfeição universal. Tudo chorando seria monótono, tudo rindo cansativo”. Machado de Assis Não exageramos ao dizer que a responsabilidade civil, de certo modo, traça um resumo cultural de uma época. Ela reflete aquilo que entendemos por dano. A difícil separação entre o que deve e o que não deve ser reparado ou compensado. O discurso humano nem sempre vê os danos do mesmo modo. Circunstâncias e valores ético-culturais definem o que determinada comunidade enxergará como dano (o permanente desafio de distinguir danos triviais daqueles injustos). Nesse contexto, nas sociedades de risco, há uma constante reavaliação daqueles riscos que são socialmente aceitáveis. Assim, “à medida que a ciência avança, novas descobertas são reveladas, tornando potencialmente nocivas práticas antigas já permitidas”4. Enfim, o que an tes, na linha do tempo, não era indenizável, hoje pode ser. Observamos, no século XXI, a ampliação dos danos indenizáveis. Se não podemos aplaudir todos os chamados novos danos, devemos, por outro lado, louvar a sensibilidade na proteção das situações jurídicas existenciais. Quanto mais o século avança, mais as questões do direito de danos ganham em complexidade. O que décadas ou séculos atrás não era indenizável, hoje pode ser. O conceito de dano indenizável varia no espaço e no tempo (pensemos no direito das famílias: alguém que defendesse, há algumas déca das, indenização por abandono afetivo seria olhado com desconfiado estranhamento; hoje a questão, embora polêmica, é bastante conhecida). O dano injusto ganha autonomia conceituai singular em relação àquilo que seria um dano indenizável no passado - quase sempre era um dano individual e patrimonial. Atualmente indenizam-se danos extrapatrimoniais, danos difusos, chances perdidas, até o interesse das futuras gerações entra na pauta das discussões. Lidamos, hoje, progressivamente, com danos complexos e não lineares. Há outro aspecto que pode ser abordado. Já frisamos anteriormente que nossa (jovem) democracia constitucional precisa refletir sobre os deveres de proteção dos cidadãos, a cargo do Estado5. A proteção dos direitos fundamentais, inclusive contra agressões não estatais, não pode permanecer em nível retórico. É preciso que es tejamos atentos para evitar a reprodução de um velho vício: muita retórica e pouca efetividade. É inegável que certas orientações jurisprudenciais não conferem nenhuma eficácia concreta ao discurso da solidariedade. Não se trata de formular uma orientação fundamentalista do dever do Estado indenizar, mas apenas de reconhecer que estão sendo redefinidos os espaços em relação aos quais a omissão estatal é legítima. Vivemos no Estado dos direitos fundamentais e essa constatação deverá iluminar todos os seto res do direito civil (os diálogos devem existir no direito de família, contratos, sucessões etc). Na responsabilidade civil, por exemplo, o princípio da solidariedade social autoriza novas leituras do nexo causai (o nexo causai não é matemático, naturalís- tico, mas sim imputacional, valorativo). A noção de risco penetra na dimensão jurídica e o que era fortuito externo passa a ser, em muitas situações, fortuito interno (isto é, passa a ser um risco que responsabiliza o responsável pela atividade, ainda que o dano tenha sido praticado por terceiro. É o que ocorre, hoje, por exemplo, com as fraudes bancárias, em relação aos clientes). MANUAL DE DIREITO CIVIL - Cristiano Chaves de Farias • Nelson Rosenvald • Felipe Braga Netto 2. PRINCÍPIOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL 2.1. Princípio da dignidade da pessoa humana A dignidade humana reorienta, normativamen te, o direito civil. O sistema aberto das relações civis-materiais é regido fundamentalmente pela dignidade humana. Princípios e regras devem conduzir a soluções promotoras da dignidade, inclusive através dos conceitos da responsabilidade civil. Em todos os setores civilísticos há incidência das generosas luzes da dignidade. A dignidade é protetiva e promocional. É prote- tiva no sentido de garantir a todo ser humano um tratamento respeitável, não degradante, tutelando a sua integridade psicofísica. É promocional, no sentido de viabilizar as condições de vida para que uma pessoa adquira a sua liberdade e possa proje tar a direção que queira conceder a sua existência. Como tarefa (promoção), dela decorrem deveres concretos de tutela por parte de órgãos estatais, assegurando prestações. Trata-se da dimensão positiva (eficácia ativa) da dignidade humana, cuja função é criar condições que possibilitem o pleno exercício da personalidade humana. Já tratamos do tema, em mais de uma oportu nidade, neste livro, sobretudo no início. Por isso, e por limitações de espaço, e para evitar repetições cansativas para o leitor, remetemos para o que antes ficou dito. Lembremos apenas que são variadas e múltiplas as repercussões da dignidade humana nas dimensões interpretativas da responsabilidade civil. Para ficar num único exemplo, as soluções relativas ao nascituro, atualmente, são fortemente iluminadas pela dignidade humana. O mesmo se diga da decisiva opção pela proteção prioritária dos direitos e interesses existenciais da pessoa humana, e não só daqueles patrimoniais, como no passado, então resguardados com olhar mais generoso. A dignidade não é apenas um valor, um a priori, mas um princípio normativo em permanente processo de construção e desenvolvimento. Não se trata de conceito estático e rígido, mas dinâmico e plural. A dignidade da pessoa humana dialoga bem com a diversidade de valores que caracteriza as democracias constitucionais dos nossos dias6.A 6 Podemos mencionar o direito à diferença, como "perspectiva personalista e não individualista da dignidade da pessoa humana que valorize também a dimensão coletiva do homem" (SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 76). dimensão cultural da dignidade alcança aspectos éticos de grande atualidade. A dimensão histórica do conceito é um convite à avaliação dos chamados “novos danos”. É, também, um vetor para a ponde ração de bens (através da proporcionalidade) como técnica de aferição de danos injustos: várias colisões de princípios envolvem a dignidade humana num dos polos (lembremos, por exemplo, do direito à imagem, de um lado, e o direito da sociedade ao acesso à informação, do outro). 2.2. Princípio da solidariedade social A Constituição Federal de 1988 consagrou um Estado Democrático de Direito funcionalizado à efetivação de direitos fundamentais e, entre os objetivos fundamentais da República, priorizou a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3o, I). Em seguida, concretizou a convocação à fraternidade com a meta de erradicação da pobreza e marginalização, além da redução de desigualdades sociais e regionais (art. 3o, III). Não há dúvida de que a diretriz da solidariedade se converteu em finalidade primordial, além de vetor interpretativo para qualquer ato normativo. Essa atuação promo cional, vazada na procura pela justiça distributiva e igualdade substancial, objetiva superar uma visão egoística do direito. O direito de solidariedade se desvincula, então, de uma mera referência a valores éticos transcen dentes, adquirindo fundamentação e a legitimidade política nas relações sociais concretas, nas quais se articula uma convivência entre o individual e o coletivo, à procura do bem comum. O princípio da solidariedade penetra deci sivamente no direito de danos para promover um giro copernicano na matéria. Talvez o mais significativo em termos de solidariedade seja a passagem de um estado de responsabilidade para outro de corresponsabilidade, no qual todos atuem conjuntamente para a obtenção de certo resultado, estipulando consensos mínimos para rechaçar o que é intolerável. Assim, o foco da responsabilidade civil é deslocado da sanção ao ofensor para a tutela do ofendido. Ao invés de buscar um culpado pela prática de um ilícito danoso - avaliando-se a moral de sua conduta -, quer-se encontrar um responsável pela reparação de danos injustos, mesmo que este não tenha violado um dever de conduta (teoria objetiva), mas simplesmente pela potencialidade de risco inerente à sua atividade ou por outras necessidades de se lhe imputar a obrigação de indenizar (v. g. preposição, titularidade de direitos, confiança etc.). A solidariedade determinará ainda RESPONSABILIDADE CIVIL novas leituras do nexo de causalidade mais abertos a valores, menos naturalistas e mais imputacionais. 2.3. Princípio da prevenção A prevenção é o cerne da responsabilidade civil contemporânea. O que se deu à reparação de danos em termos de protagonismo nos últimos dois séculos, necessariamente se concederá à prevenção daqui por diante. Em outras palavras, se o século XX foi devotado à reparação de danos, o século atual será consagrado à prevenção7. 7 SEGUI, Adela M. Aspectos relevantes de Ia responsabilidad civil moderna. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n. 52, out./dez. 2004, pp. 267-318. 8 Neste sentido Cláudio Scognamiglio assevera que "o ordenamento não pode se mostrar indiferente a respeito da violação de direitos e ao fenômeno de fatos que acarretam graves prejuízos de ordem econômica e social aos sujeitos" SCOGNAMIGLIO, Cláudio. Danno moral e funzione deterrente dellà responsabilità civile. In: Studi in onore di Nicolò Lipari. Milano: Giuffrè, 2008. t. II, p. 2773. Toda pessoa ostenta um dever ex ante de evitar causar um dano injusto, agindo conforme a boa- -fé e adotando comportamentos prudentes para impedir que o dano se produza ou que se reduza a sua magnitude. Ademais, caso o dano já tenha sido produzido, que se evite o seu agravamento (duty to mitigate the own loss). Aliás, As Jornadas de Direito Civil, em 2018, entenderam que “a inde nização não inclui os prejuízos agravados, nem os que poderiam ser evitados ou reduzidos mediante esforço razoável da vítima. Os custos da mitigação devem ser considerados no cálculo da indenização” (Enunciado 629). Na sociedade de riscos, um altivo papel do ordenamento jurídico consiste em induzir, de forma generalizada, comportamentos virtuosos, orientando potenciais ofensores a adotar medidas de segurança a evitar condutas danosas. A tutela inibitória se propaga no direito civil com uma série de instrumentos que permitem prevenir o ilícito antes que o mesmo se produza, sinalizando o compromisso do direito com o desestimulo a comportamentos antijurídicos. O sistema de responsabilidade civil nâo pode manter uma neutralidade perante valores juridica mente relevantes em um dado momento histórico e social8. Vale dizer, todas as perspectivas de proteção efetiva de direitos merecem destaque, através da combinação das funções basilares da responsabili dade civil: punição, precaução e compensação. São muitas e variadas as aplicações possíveis. Por exem plo, o STJ definiu que “o princípio da precaução, aplicável ao caso dos autos, pressupõe a inversão do ônus probatório, transferindo para a concessionária o encargo de provar que sua conduta não ensejou riscos ao meio ambiente e, por consequência, aos pescadores da região” (STJ, Aglnt no AREsp 1.311.669). Repensar hoje a responsabilidade civil significa compreender as exigências econômicas e sociais de um determinado ambiente. “Responsa bilizar” já significou punir, reprimir, culpar; com o advento da teoria do risco, “responsabilizar” se converteu em reparação de danos. Agora, some-se à finalidade compensatória a ideia de responsabi lidade como prevenção de ilícitos9. O princípio da prevenção remete à concepção de justiça aristotélica, pautada na virtude e na ne cessidade do ordenamento introduzir parâmetros de comportamento desejáveis que possam ser gene ralizados. Nesse contexto somente uma concepção de justiça voltada à indução da virtude - leia-se aqui, prevenção - será capaz de convidar os atores sociais à adoção de uma justificativa moral para que todos tenham uma “vida boa”. 2.4. Princípio da reparação integral O princípio da reparação integral busca levar o ofendido ao estado anterior à eclosão do dano injusto, transferindo ao patrimônio do ofensor as consequências do evento lesivo, de forma a con ceder à vítima uma situação semelhante àquela 5 Convém registrar ainda que atualmente se verifica o crescente recur so ao contrato de seguro, valorizando-se o objetivo de compensar o lesado, sem qualquer preocupação de se individuar e culpar o responsável. Podemos ver o fenômeno sob vários ângulos. Há uma crítica, por exemplo, no sentido de que o apelo ao contrato de seguro culmina por criar um inconveniente, a perda da função preventiva da responsabilidade civil (ROPPO, Vincenzo. Dirittto privato. Torino: Giappichelli, 2010, p. 587-588). Em sentido semelhante, a ascensão da imputação objetiva da reparação de danos em seu viés solidarista de máxima proteção às vítimas impôs um arrefecimento do viés moral da responsabilidade civil, pois os danos passaram a ser frequentemente transferidos ao patrimônio de pessoas diversas às dos causadores dos danos. Seja pelo fato de serem responsáveis pelos ofensores - em pregadores, pais, curadores (art. 932, CC) -, ou criarem uma atividade de risco inerente, apta à produção de danos qualitativamente graves ou quantitativamente numerosos (parágrafo único, art. 927, CC), ou mesmo pelo fato de obterem proveito econômico com o exercício de uma atividade econômica (súmula n° 492, STF), determinadas pessoas acabam por suportar a obrigação de indenizar, sem que aesfera jurídica do ofensor seja atingida. Todavia, se na teoria objetiva a responsabilidade civil assume uma função basicamente reparatória, perde ela a sua inerente capacidade de desestimular condutas ilícitas e de dissuadir potenciais agentes à adoção de medidas de redução de riscos, pois o dado da culpa do ofensor é irrelevante para fins de fixação de responsabilidade e atribuição do quantum ressarcitório. De modo geral, nesse raciocínio pouco importa a reprovabilidade da conduta do ofensor, sua fortuna, os ganhos ilícitos obtidos pelo exercício de sua atividade reprovável ou qualquer circunstância que lhe diga respeito. VISINTINI, Giovanna. Cos'è Ia responsabilità civile. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2009, p. 11. Sobre o efeito redistributivo que as regras da responsabilidade civil podem ter: MONATERI, Pier Giuseppe. La responsabilità c/v/fe Torino: UTET Giuridica, 2006, p. 21 -22. MANUAL DE DIREITO CIVIL - Cristiano Chaves de Farias • Nelson Rosenvald • Felipe Braga Netto que detinha10. Raramente a condenação é capaz de preencher a totalidade dos danos sofridos. O Código Civil, art. 944, prevê: “A indenização mede- -se pela extensão do dano.” O dispositivo relaciona a dimensão dos danos sofridos pelo ofendido à respectiva reparação e se distancia de qualquer escopo punitivo, pois na sua hermenêutica literal a reparação se relaciona com os efeitos danosos sobre a vítima, independentemente do dolo ou elevado grau de culpa do ofensor. 10 Paulo de Tarso Sanseverino explica que o fundamento do princípio da reparação integral é a noção de justiça corretiva desenvolvida por Aristóteles - posteriormente designada por Tomás de Aquino como justiça comutativa no sentido de que a obrigação de indenizar os danos tem por objetivo proporcionar uma com pensação àquele que os sofreu em virtude de certos fatos. Aduz que no Código Civil de 2002 a justiça corretiva irrompeu como modo de concretização da igualdade pela diretriz da eticidade, exercendo três funções: (a) reparação da totalidade do dano (função compensatória); (b) vedação do enriquecimento injusti ficado do lesado (função indenitária); (c) avaliação concreta dos prejuízos efetivamente sofridos (função concretizadora), funções estas magnificamente sintetizadas pela doutrina francesa como abrangendo tout le dommage, mais rien que le dommage ("todo o dano, mas não mais que o dano") (SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral: indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 56-57). O princípio se concretiza de duas formas: a priori a reparação será natural, mediante a resti tuição ao ofendido do mesmo bem em substituição ao outro - com a cessação dos efeitos danosos anteriores ao evento -, ou então a reparação se dará em pecúnia, mediante o pagamento de uma indenização que razoavelmente possa equivaler ao interesse lesado. O artigo 947 do Código Civil indica uma coexistência entre os dois sistemas reparatórios: “Se o devedor não puder cumprir a prestação na espécie ajustada, substituir-se-á pelo seu valor, em moeda corrente.” Quer dizer, sempre que a reparação específica se mostrar ex cessivamente onerosa para o ofensor, prevalecerá a indenização em dinheiro, evidentemente sendo delegada ao ofendido a prova quanto à existência e à extensão do dano. Neste passo, a reparação integral se engrandece, em uma visão prospectiva, como bem evidencia o Enunciado n° 456 das Jornadas de Direito Civil, “a expressão ‘dano’ no artigo 944 abrange não só os danos individuais, materiais ou imateriais, mas também os danos sociais, difusos, coletivos e individuais homogêneos”. Isso significa que a dificuldade de quantificação não será barreira para que se implemente uma sanção reparatória que se aproxime na medida do possível dos danos, mes mo que estes possuam natureza metaindividual e que seja necessário somar à indenização in natura 638 uma condenação pecuniária, para que se alcance a reparação integral. Após situar o princípio da reparação integral como aquele em torno do qual se articula o ins tituto da responsabilidade civil, Judith Martins- -Costa11 justifica tal relevo por agregar ao valor fundante desta disciplina, o valor sistemático e o valor dogmático. A reparação integral é de alcance relativamente simples no setor dos danos emergentes patrimoniais, mas a dificuldade de sua avaliação será sentida no cálculo dos lucros cessantes e da condenação pela perda de uma chance. Porém, indiscutivelmente, será no trato dos danos extrapatrimoniais que haverá o maior desafio à valoração da reparação integral, seja pela própria resistência a se conceder equivalência monetária ao maltrato de situações existenciais e que, portanto, não se reduzem à lógica das coisas, como pela própria tendência - mais do que legítima - de se despatrimonializar a reparação dos danos morais pela via de condenações a tutelas específicas (como o direito de resposta, publicação de sentença, retratação etc.), ou mesmo de uma ênfase ao princípio da prevenção pela via do mecanismo da tutela inibitória dos direitos da personalidade, evitando-se a própria consumação do ilícito e a assim, a necessidade de reparação de danos. Ao longo da teoria geral da responsabilidade civil perceberemos que o Código Civil estatuiu importantes exceções ao princípio da reparação integral. Regras de caráter equitativo mitigarão o quantum indenizatório quando o dano injusto for perpetrado por incapazes (Código Civil, art. 928), ou quando a concretude da hipótese demonstrar uma desproporção entre a extensão do dano e o grau de culpa do agente (Código Civil, art. 944, parágrafo único). Convém lembrar que o Código Civil - no art. 206, § 3o, V - prevê que a prescri ção da pretensão de reparação civil ocorre em 3 anos. O STJ já entendeu que o termo “reparação civil” constante do art. 206, § 3o, V deve ser lido de maneira ampla. Desse modo, o prazo prescri cional de 3 anos aplica-se tanto à responsabilidade contratual (Código Civil, arts. 389 a 405) como à extracontratual (Código Civil, arts. 927 a 954). Abrange também o dano material e moral. E aplica-se ainda à responsabilidade civil decorrente do abuso de direito (STJ, REsp 1.281.594). Posteriormente, no entanto, houve mudança de entendimento. O ” MARTINS-COSTA, Judith. In: SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral, Prefácio, p. 5-6. RESPONSABILIDADE CIVIL STJ firmou posição no sentido de ser adequada a distinção dos prazos prescricionais nas responsabi lidades contratual e extracontratual. E, se o prazo na hipótese de responsabilidade extracontratual é de 3 anos, será de 10 anos na hipótese de inadimple mento contratual (STJ, EREsp 1.280.825, Rei. Min. Nancy Andrighi, Segunda Seção, DJe 02/08/2018). Outro aspecto que merece menção: tradi cionalmente a jurisprudência brasileira afirmava que, havendo extravio de bagagem em transporte aéreo deveria ser aplicado o Código de Defesa do Consumidor à hipótese, mesmo diante de voos internacionais. Aplicava-se, portanto, o CDC, e não as convenções e tratados internacionais que estabeleciam tarifas máximas de indenização nesses casos (indenizações tarifadas, com limites máximos, o que esvazia o princípio da reparação integral). Nesse sentido era a jurisprudência. Porém, a partir de 2017, houve mudança de en tendimento a respeito da questão. O STF alterou os rumos da controvérsia (CDC x Convenção de Varsóvia/Montreal), e, por maioria, ao julgar o RE 636.331, entendeu que os conflitos que envolvem extravios de bagagem e atrasos de voos devem ser resolvidos pelas convenções internacionais sobre a matéria que o Brasil ratificou. A tese destaca que “por força do artigo 178 da Constituição Federal, as normas e tratados internacionais limitadoras da responsabilidade das transportadoras aéreas de pas sageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor”.Também o STJ - em adequação ao entendimento do STF - passou a entender em 2018 ser possível a limitação, por legislação internacional, do direito do passageiro à indenização por danos materiais decorrentes de extravio de bagagem (STJ, REsp 673.048). Cabe fazer a seguinte diferenciação (mesmo depois da mudança de orientação): as indenizações por danos morais decorrentes de extravio de bagagem e de atraso de voo internacional não estão submetidas à tarifação prevista na Convenção de Montreal, devendo-se observar, nesses casos, a efetiva repa ração do consumidor preceituada pelo CDC (STJ, REsp 1.842.066). Dessa forma, a indenização de vida aos passageiros em voos internacionais - por atraso de voo ou extravio de bagagem - apenas diz respeito aos danos materiais, não aos morais. Cabe registrar ainda, pela conexão dos temas, que em julgados mais recentes o STJ tem considerado que o atraso ou cancelamento de voo não configura dano moral presumido (in re ipsa) e, por isso, a indenização somente será devida se comprovado algum fato extraordinário (STJ, REsp 1.796.716). 3. AS FUNÇÕES DA RESPONSABILIDADE CIVIL 3.1. A mulfuncionalidade da responsabilidade civil Sabemos - diante da tão conhecida plasticidade da responsabilidade civil - que tratar de suas fun ções é caminhar em terreno pantanoso, sujeito a surpresas, em razão da própria instabilidade social que define nossos dias. Trataremos, brevemente, das funções reparatória, punitiva e precaucional. Veremos que não há um isolamento entre essas três funções. O direito civil se serve funcionalmente de diversas técnicas, havendo mesmo uma interseção entre esses diferentes papéis da responsabilidade civil - cabendo até uma conjugação funcional -, sem, contudo, suprimir a autonomia conceituai de cada uma delas. Aliás, as funções da responsabili dade civil, ao contrário do que poderiamos pensar, não estão, até hoje, suficientemente claras ou bem definidas. André Tunc percebeu isso com clareza, ao afirmar que a responsabilidade civil, resultado de uma evolução quase tão longa quanto à da humanidade, não possui - ao contrário do que poderiamos imaginar - funções bem estabelecidas e definidas12. 12 TUNC, André. Responsabilitè civile. Paris: Econômica, 1989, p. 133; ROSENVALD, Nelson. As funções da Responsabilidade Civil. São Paulo: Atlas, 2013. Maria Celina Bodin de Moraes, abordando a questão do duplo fundamento do sistema jurídico (culpa e risco) no que toca à responsabilidade civil, argutamente destaca:”Este é, notoriamente, um dos maiores problemas por que passa a teoria da responsabilidade civil em nossos dias: com efeito, as múltiplas dúvidas existentes acerca das funções e dos modelos de responsabilidade civil indicam que o instituto ainda não está estabilizado" (MORAES, Maria Celina Bodin de. Risco, solidariedade e responsabilidade objetiva. Revista dos Tribunais, v. 854, dez/2006, pp. 11 -37, p. 16). 3.1.1. Função reparatória “O sábio não se senta para lamentar-se, mas se põe alegremente em sua tarefa de consertar o dano feito.” William Shakespeare Esta é a função clássica e ainda dominante da responsabilidade civil, que por muito tempo eclipsou as demais. A ideia da lesão está no centro da responsabilidade civil e a sua função, consequentemente, é o restabelecimento do equi líbrio econômico-jurídico desfeito por ocasião do fato danoso. Volta-se para o passado, o fato já ocorrido, seja pela forma da reparação pecuniária ou pela reintegração em forma específica, ou seja, pela repristinação da situação existente: v. g. como pela demolição de uma construção, entrega de um MANUAL DE DIREITO CIVIL - Cristiano Chaves de Farias • Nelson Rosenvald • Felipe Braga Netto novo bem em substituição ao destruído ou, na hipótese de ofensa a situações existenciais, por um direito de resposta ou destruição do material pelo qual se perpetua a lesão à imagem ou à privacidade. Quando cogitamos do fundamento reparatório da responsabilidade civil, fazemos referências às razões jurídicas pelas quais alguém será respon sabilizado por um dano, patrimonial ou extrapa- trimonial. Um dano qualificado no caso concreto como um dano injusto. Isto é, injusto no sentido de uma valoração comparativa dos interesses em conflito13. O instituto da responsabilidade civil opera uma espécie de mediação entre interesses em conflito, reagindo a um juízo de desvalor tido como relevante pelo ordenamento14. 13 Francesco Galgano, tratando do dano injusto como"lesão de interesse alheio, merecedor de proteção segundo o ordenamento jurídico", narra que "quem constrói um edifício sobre o próprio terreno lesa o interesse dos vizinhos a fruir de uma visão do panorama, mas não lhes causa um dano injusto. Diverso é o caso de quem constrói em violação ao plano diretor, onde não é possível construir: neste caso, o interesse dos proprietários vizinhos a que não surjam novas construções será juridicamente protegido". In Diritto privato, p. 366. 14 Dl MAJO, Adolfo. Profili delia responsabilità civile, p. 20. 15 Faz-se habitualmente recurso a três formas de tutela: (a) restltutó- ria - voltam-se a reconstituir as condições em que se encontrava o titular do interesse antes da violação, como exigência de uma repristinação ao status quo ante. Por objetivar a restauração de uma situação atingida por uma lesão, apresenta uma vocação de satisfação in natura; (b) ressarcitória - objetiva compensar o lesado pelo prejuízo econômico sofrido. Esta tutela poderá possuir caráter subsidiário em relação à restitutória, onde esta não seja viável, ou mesmo se colocar em relação de complementaridade, quando a restauração da situação originária não elimine por completo o desequilíbrio econômico sofrido pela vítima; (c) satisfativa - a tu tela civil pode não se voltar à restauração de uma dada estrutura de interesses - seja pela via restitutória ou ressarcitória -, mas sobremaneira à satisfação in natura de uma posição subjetiva que restou não atuada, ou defeituosamente atuada (v. g. uma prestação negociai). Neste caso a tutela é satisfativa, uma resposta solidarista ao modelo liberal-individualista da incoercibilidade das obrigações de fazer (MAZZAMUTO, Salvatore; CASTRONOVO, Cario. Manuale di diritto privato europeo, II, p. 766-780). A ofensa ao neminem laedere não se manifes ta apenas em lesões relacionadas à circulação de riquezas (situações subjetivas patrimoniais) e à propriedade, como também ao valor da dignidade da pessoa humana (situações subjetivas existenciais). É uma tutela atípica15. Especificamente quanto ao ressarcimento, este assume a finalidade de neu tralizar as consequências do ilícito. Enquanto a responsabilidade permite imputar um fato danoso a um sujeito, o ressarcimento, por sua vez, permite estabelecer o montante e o modo (ressarcimento pelo equivalente ou pela forma específica) em que se compensará o ofendido. Isso afirma a ideia do dano diferencial, identificado o dano ressarcível na diferença entre a situação patrimonial do lesado no momento seguinte ao ilícito e a situação patrimonial que se verificaria na falta do ilícito. Todavia, a função reparatória não é imune a críticas. As críticas possíveis são muitas16. Pode-se dizer que a tutela ressarcitória intervém para reparar consequências e efeitos de comportamentos ilícitos, mas não se afirma como instrumento de recomposi ção da ordem jurídica violada. O pagamento de uma quantia à vítima poderá reconstituir um valor material, mas não se preordena a tutelar o fundamento ético do ordenamento jurídico. 3.1.2. Função punitiva “A consciência, cedo ou tarde, será o mais severo acusador do culpado”. Benjamin Franklin No campo temático da responsabilidade civil uma das manifestações da passagem do Estado Liberal para o Estado Constitucional é a admissão das sanções punitivas civis. A tutela ressarcitória (in natura ou em pecúnia) atende a uma estru tura jurídica neutra e formal, que na verdade traduz o espírito dolaissez-faire. Ao agir apenas no momento patológico da consumação do dano, nada mais faz do que preservar certos valores clássicos17. É inegável que a função primária da responsabilidade civil contemporânea provavelmen te continuará sendo compensatória, abrangendo o ressarcimento do dano patrimonial e a satisfação dos danos extrapatrimoniais. Todavia, cremos que a função compensatória, isoladamente, é incapaz de explicar a complexa dinâmica da responsabilidade ’6 Para críticas sofisticadas às funções exercidas pela tutela reparatória: R0PP0, Vincenzo. Dirittto privato. Torino: Giappichelli, 2010, p. 585; Di MAJO, Adolfo. II sistema delle tutele nel diritto civile, p. 194. Proto Pisani há décadas já alertava para a fratura entre direito substancial e processual, pelo fato de o processo apenas intervir quando a violação já havia sido consumada (PROTO PISANI, Andréa. I diritti e le tutele: trattato di diritto civile dei consiglio nazionale dei nota- riato. Napoli: Edizione Scientifiche Italiane, 2008, p. 11). O processo podería impedir que a violação prosseguisse, mas não o fato de que a violação ocorra. Portanto, na impossibilidade de se conceder ao titular do direito a mesma utilidade que obteria pela cooperação voluntária do obrigado, restava ao processo a concessão de um equivalente, isto é, o ressarcimento de danos. 17 A outro lado, o Estado comprometido com as transformações sociais e a efetivação de direitos fundamentais percebe que os interesses tutelados no mercado não são apenas os dos empre endedores. Além destes, concorrem interesses de trabalhadores, consumidores e da coletividade em geral, com relação aos bens difusos. A necessidade de conjugar todas essas posições jurídicas impõe que a liberdade de mercado seja, além de liberdade de acesso ao mercado, uma regulação de interesses, segundo a ló gica democrática. A atuação preventiva da pena civil no setor da responsabilidade civil objetiva conciliar a liberdade de competição com a tutela da saúde e segurança dos indivíduos; correção nos comportamentos; transparência nas relações; completa informação a todos os operadores; equidade no tratamento dos destinatários de bens e serviços. RESPONSABILIDADE CIVIL civil. Defendemos a necessidade de o sistema de responsabilidade civil contar com mecanismos capazes de sancionar comportamentos ilícitos, em caráter preventivo e de forma autônoma ao ressarcimento de danos. Há uma perspectiva de operabilidade da responsabilidade civil à luz de uma função dissuasória de ilícitos. Não é possível, no contexto brevemente des crito, reduzir a função da responsabilidade civil somente à finalidade reparatória. Hoje os conflitos sociais ultrapassam a esfera individual para alcançar grupos e coletividades18. Isso implica não apenas em alteração dos pressupostos da responsabilida de civil (objetivação), como na discussão de seu próprio papel. 18 BARCELLONA, Mario. Funzione e struttura delia responsabilità civile. In: Scienza e insegnamento dei diritto civile in Italia. Milano: Giuffrè, 2004, p. 1116. Didaticamente, o autor assume o ordenamento jurí dico moderno como um sistema constituído de critérios voltados à seleção de problemas sociais a que deve responder, e de remédios que a tais problemas ofereçam soluções. Os critérios seletivos cor respondem a fattispecies normativas. A relação entre as fattispecies (critérios seletivos) e os remédios (os seus efeitos jurídicos) indica a compreensão do sistema sobre problemas sociais e a ordem de considerações selecionadas para encontrar a sua solução, p. 1123. A responsabilidade civil desenvolve uma função de instrumento de controle social e difuso no confronto de atividades potencialmente lesivas, seja conjuntamente, em substituição ou em suplência aos tradicionais instrumentos administrativos ou penais (FACCI, Giovanni. Le obbligazioni. A cura di Massimo Franzoni. Roma: Utet Giuridica, 2004, p. 13). 3.7.3. Função precaucional “Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã... Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã, E assim será possível; mas hoje não...” Fernando Pessoa Lembremos que em nossas atuais sociedades de risco, há - ou deve haver - uma democrá tica reavaliação dos riscos que são socialmente aceitáveis. Antigas práticas que eram tidas como normais e aceitáveis podem se mostrar inadequa das ou nocivas com o andar das décadas. Nesse contexto, o mero risco de dano autoriza que sejam adotadas medidas prévias necessárias para evitar que o dano ocorra. O conceito de risco, nesse contexto, aproxima-se cada vez mais da dimensão jurídica. Diminuem os espaços em que o responsável pela atividade geradora de risco pode invocar com sucesso as excludentes de responsabilidade civil, porquanto atividade gera responsabilidade, se o dano está a ela vinculado. Altera-se, aliás, em nossos dias, a própria percepção acerca dos riscos. Os chamados danos de massa (mass exposure torts), nas sociedades de informação, não são raros. Os danos ambientais não ostentam, em regra, uma linha de causalidade linear e clara. Nem sempre estamos no reino das causas visíveis. Há, se assim podemos dizer, uma dispersão assustadora do nexo causai, o que nos autoriza a pensar, em certos casos, em flexibilizar sua análise, ou mesmo presu mir sua existência, diante de certos (excepcionais) pressupostos. Para enfrentar esses riscos, e de forma a antecipar certa carga de segurança social, o direito se acautela lançando mão dos princípios da prevenção e da precaução. Ambos se manifestam na antecipação de riscos graves e irreversíveis. Nesse contexto, os princípios da precaução e da prevenção dialogam com a teoria do risco. A complexidade dos nossos dias concedeu singular relevância ao conceito de risco, dotando-o de configuração conceituai própria. Os princípios da precaução e da prevenção dialogam com a teoria do risco19 *. Cada vez mais, enfim, bus camos e nos aproximamos de técnicas preventivas e precaucionais, para tratar diferentemente o diferente. Isto é, diante de novos danos - sobretudo quando diante bens jurídicos particularmente valiosos, como os bens existenciais ou bens ambientais - não seria prudente nem razoável que continuássemos nos va lendo dos emperrados instrumentos da racionalidade jurídica tradicional, liberal-individualística. Nem todos os riscos são iguais, e nem todos, por conseguinte, devem receber idêntico tratamento do direito. Por exemplo, o risco concreto (ou mesmo, em certos casos, potencial) encontra paralelo conceituai no princípio da prevenção. Ao passo que o risco abstrato é melhor trabalhado pelo princípio da precaução. Os parâmetros clássicos da responsabilidade civil são repensados em uma era marcada por aconteci mentos aleatórios, dificilmente previsíveis, mesmo em situações planejadas. De fato, se pensarmos que as ameaças típicas da sociedade de risco não são delimitáveis, inviável supor que no esquema tradicional de nexo relacionai de causa e efeito possamos conseguir grandes progressos em termos de efetividade. A responsabilidade civil tradicional é moldada para solucionar problemas intersubjetivos 15 Nessa ordem de idéias, "diante da nova estrutura da ilicitude civil, pode ser visto que a probabilidade determinante de um dano ambiental futuro (dano às futuras gerações) desvela-se como ilícito passível de sanção civil, imprimindo a possibilidade de imposição de restrições em razão dos seus custos sociais (Paollo Gallo)"(CARVALHO, Délton Winter de. Dano ambiental futuro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 67). O autor menciona, ainda, de forma interessante, que a produção de riscos ambientais intoleráveis configura ilícito ambiental e viola um dever de preventividade objetiva imposto pela Constituição Federal no art. 225. MANUAL DE DIREITO CIVIL - Cristiano Chaves de Farias - Nelson Rosenvald • Felipe Braga Netto diante de algo que já aconteceu (post factum'). Já nas sociedades atuais, plurais e complexas, hádi mensões claramente proativas (responsabilidade de longa duração), sendo necessário lidar com danos (potenciais) marcados pela difusidade, transtem- poralidade e efeitos transfronteiriços20. 21 Nesse sentido, Cláudio Scognamiglio assevera que "o ordenamento não pode se mostrar indiferente a respeito da violação de direitos e ao fenômeno de fatos que acarretam graves prejuízos de ordem econômica e social aos sujeitos”, SCOGNAMIGLIO, Cláudio. Danno moral e funzione deterrente dellà responsabilità civile. In: Studi in onore di Nicolò Lipari. Milano: Giuffrè, 2008. t. II, p. 2773. O direito ambiental foi a porta de ingresso do princípio da precaução. “Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental”. Ademais, a lógica de antecipação dos riscos é um dado constan te na prática estadunidense, da Alemanha - berço da noção de Vorsorge, como “precaução” - e na jurisprudência da União Européia. Apesar de toda incerteza científica, a avaliação do risco não pode se basear em considerações puramente hipotéticas. Um mundo do qual todo risco fosse removido seria um mundo sem liberdade ou individualidade. Afinal, o que é “atividade efetiva ou potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente”? No direito comparado a questão que se agita perpassa o necessário equilíbrio entre a precaução e os efeitos perversos da paralisação de importantes setores da atividade econômica. Como diz a sabedoria popular, a diferença entre o remédio e o veneno se encontra na medida da dosagem. Ao ordenamento jurídico compete congregar essas perspectivas divergentes. A modulação da ação preventiva levará em consideração a ponderação do custo de evitar o risco e realizar o risco. A necessidade de precisar um limiar do risco gerou na jurispru dência comparada uma espécie de “presunção de risco”. Ou seja, haverá uma espécie de inversão do ônus da prova a cargo de quem pretenda obter uma autorização administrativa de instalação/comerciali- zação de atividades/produtos em relação aos quais há dúvida acerca de sua inocuidade para a saúde/ ambiente. O STJ já decidiu que “o meio ambiente deve ter em seu favor o benefício da dúvida no caso de incerteza (por falta de provas cientificamente relevantes) sobre o nexo causai entre determinada atividade e um efeito ambiental nocivo”. Assim, “(...) justifica-se a inversão do ônus da prova, transferindo para o empreendedor da atividade potencialmente lesiva o ônus de demonstrar a segurança do empre endimento” (STJ, REsp 972.902). custeio da carga invertida, não como dever, mas como simples faculdade, sujeita as consequências processuais advindas da não produção da prova (STJ, REsp 1.807.831, Rei. Min. Herman Benjamin, 2a T, DJe 14/09/2020). Ou seja, a inversão não implica transferência ao réu de custas de perícia requerida pelo autor da demanda, pois de duas, uma: ou tal prova continua com o autor e somente a ele in cumbe, ou a ele comumente cabia e foi deslocada para o réu, titular da opção de, por sua conta e risco, cumpri-la ou não. Claro, se o sujeito titular do ônus invertido preferir não antecipar honorá rios periciais referentes a seu encargo probatório, presumir-se-ão verdadeiras as alegações da outra parte. O julgado ressaltou ainda que o art. 373, § Io do CPC, em perfeita sintonia com a Constituição de 1988, traduz, na relação processual, a transição da isonomia formal para a isonomia material. 3.2. A prevenção como cerne da responsabilidade civil atual Percebemos que, conforme o tempo e o lugar, a responsabilidade civil absorve quatro funções fundamentais (sendo as duas primeiras pacíficas na civil law): (a) a função de reagir ao ilícito danoso, com a finalidade de reparar o sujeito atingido pela lesão; (b) a função de repristinar o lesado ao status quo ante, ou seja, estado ao qual o lesado se encontrava antes de suportar a ofensa; (c) a função de reafirmar o poder sancionatório (ou punitivo) do Estado; (d) a função de desestimulo para qualquer pessoa que pretenda desenvolver atividade capaz de causar efeitos prejudiciais a terceiros. Cada período histórico valorizará mais essa ou aquela função. Ao efetuarmos a tripartição funcional da res ponsabilidade civil em reparatória, punitiva e pre- caucional, abstemo-nos de conferir a qualquer uma delas, com exclusividade, a qualificação de “função preventiva”. A prevenção lato sensu é um dos princí pios regentes da responsabilidade civil e inafastável consequência da aplicação de qualquer uma das três funções estudadas. O sistema de responsabilidade civil não pode manter uma neutralidade perante valores juridicamente relevantes em um dado momento histórico e social2'.Vale dizer, todas as perspectivas de proteção efetiva de direitos merecem destaque, O STJ, em 2020, em excelente julgado, frisou que a inversão do ônus probatório leva consigo o 20 LEITE, José Rubens Morato; CAETANO, Matheus Almeida. A respon sabilidade civil por danos ambientais na sociedade de risco. In: Sociedade de risco e direito privado. São Paulo: Atlas, 2013, p. 274. RESPONSABILIDADE CIVIL seja pela via material como pela processual, em um sincretismo jurídico capaz de realizar um balance amento de interesses, através da combinação das funções basilares da responsabilidade civil: punição, precaução e compensação. Repensar hoje a responsabilidade civil significa compreender as exigências econômicas e sociais de um determinado ambiente. Responsabilizar já significou punir, reprimir, culpar; com o advento da teoria do risco, “responsabilizar” se converteu em reparação de danos. Na contemporaneidade, some-se à finalidade compensatória a ideia de responsabilidade como prevenção de ilícitos. 4. MODALIDADES DE RESPONSABILIDADE CIVIL * Já de longa data se estabeleceu a dicotomia entre a responsabilidade civil (delitual ou aqui- liana) e a responsabilidade contratual (negociai ou obrigacional). Trata-se de uma summa divisio decorrente do critério da origem do dever des- cumprido, ou seja, se contratual ou não. Apesar de atualmente haver interpenetração entre as duas responsabilidades, a bipartição ainda faz sentido teórico e prático (embora, em certos setores, como nas relações de consumo, sua importância seja bastante reduzida). Nas relações civis podemos pensar na responsabilidade civil extranegocial como uma espécie de regime geral e a responsabi lidade negociai como regime específico. A natural aproximação entre os dois setores é tendência compreensível em ordenamentos complexos e abertos como o brasileiro. O inadimplemento corresponde ao descum primento de um dever jurídico qualificado pela preexistência de relação obrigacional. A questão é analisada na parte relativa ao direito das obrigações. Já a responsabilidade civil em sentido técnico - extranegocial - requer o descumprimento de um dever genérico de não causar danos. A violação do neminem laedere por qualquer membro da comunidade se dá no instante em que o agente ofende situações existenciais e patrimoniais alheias. Importante consignar que o elemento comum e indispensável à eclosão das duas responsabilidades é o dano. Tanto a responsabilidade negociai como a extranegocial pressupõem o dano. Essa tendência se reforçou com o progressivo descolamento da responsabilidade da aferição da ilicitude e da culpa do ofensor para a tutela do ofendido. O STJ, em 2018 - na sua função de uniformizar a aplicação da lei federal no Brasil -, firmou dois pontos relevantes em sede de responsabilidade civil: a) é adequada a distinção dos prazos prescricionais da pretensão de reparação civil advinda de responsabilidades contratual e extracontratual; b) é decenal o prazo prescricional aplicável às hipóteses de pretensão fundamentadas em inadimplemento contratual (STJ, EREsp 1.280.825, Rei. Min. NancyAndrighi, Segunda Seção, DJe 02/08/2018). No ano seguinte, em 2019, após alguma polêmica, o STJ concluiu o julgamento do EREsp 1.281.594, pacificando o entendimento acerca do cabimento do prazo de 10 anos para a prescrição da pretensão de repara ção civil contratual. Desse modo, o prazo trienal (previsto no art. 205, § 3o, V do Código Civil) aplica-se à responsabilidade civil extracontratual. Para a contratual, prevalece, portanto, o prazo de 10 anos previsto no art. 205 do Código Civil. 4.1. A responsabilidade pela confiança: superação da clássica dicotomia “Tem o sentimento da confiança, e muito curta a memória das pancadas. Ao contrário, os afagos ficam-lhe impressos e fixos, por mais distraídos que sejam. Gosta de ser amado. Contenta-se de crer que o é”. Machado de Assis A complexidade da vida é capaz de implodir certas categorias artificialmente idealizadas pelo sistema jurídico. Em princípio as dicotomias clássicas (capacidade/incapacidade, validade/invalidade, por exemplo) surgem para conferir segurança jurídica, evitando a imponderabilidade. Evidentemente é vá lido todo o esforço legislativo no sentido de conferir uma ordem de estabilidade e para tanto o Código Civil em vigor - tal e qual o seu antecessor - estabe leceu um sistema dualista de responsabilidade civil. Porém, nas situações que estudaremos a partir de agora, esfacela-se o dualismo antes posto. Ao inserirmos a confiança, criamos um terceiro fun damento de imputação. Um espaço para deveres que não se vinculam a uma prestação delineada pelas partes e nem tampouco tem relação com a violação de um dever genérico de abstenção. Ela tomará vulto em contextos como o da violação positiva do contrato, das responsabilidades pré e pós-contratual e da tutela externa ou transubjetiva do contrato. Em todos esses casos perceberemos com que havia uma lacuna no sistema dicotômico de responsabilidade. A função da responsabilidade pela confiança é a de suprir essas lacunas. A res ponsabilidade pela confiança se edifíca em torno MANUAL DE DIREITO CIVIL - Cristiano Chaves de Farias • Nelson Rosenvald • Felipe Braga Netto da expectativa de cumprimento de determinados deveres de comportamento. Essa concepção con cede à confiança um espaço próprio no confronto com as duas grandes modalidades clássicas da responsabilidade civil - a contratual e a aquiliana considerando-a um tertium genus, uma “pista autônoma” da responsabilidade22. 23 A correta hermenêutica da função integrativa da boa-fé objetiva remete à aceitação da violação positiva do contrato pela janela da cláusula geral do art. 422 do Código Civil. Com tal propósito, editou-se o Enunciado 24 do Conselho de Justiça Federal: "em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa". O mérito do referido enunciado consiste em demonstrar que a responsabilidade civil decorrente dessa espécie de inadimplemento não corresponde a um simples ato ilícito culposo, mas a uma responsabilidade pela confiança. A violação positiva do contrato como rompimento da relação de confiança que conecta as partes, mesmo que não atrelada aos deveres de prestação, deverá ser identificada em seus efeitos patrimoniais com o inadimplemento, para que dela se possa extrair o direito da parte ofendida à resolução do vínculo obrigacional ou, mesmo, à oposição da exceptio non adimpleti, inclusive com todas as consequências da responsabilidade civil, sobremaneira o dever de indenizar em prol do lesado. As Jornadas de Direito Civil, em 2018, entenderam que "como instrumento de gestão de riscos na prática negociai paritária, é lícita a estipulação de cláusula que exclui a reparação por perdas e danos decorrentes do inadimple mento (cláusula excludente do dever de indenizar) e de cláusula que fixa valor máximo de indenização (cláusula limitativa do dever de indenizar)" (Enunciado 631). 24 Silva, Jorge Cesa Ferreira da. A boa-fé e a violação positiva do contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 89. No sentido que sempre defendemos - nesta e em outras obras - o STJ em 2017 sublinhou: “Tradicionalmente, a responsabilidade civil divide-se em responsabilidade civil stricto sensu (delitual ou aquiliana) e a responsabilidade contratual (negociai ou obrigacional), segundo a origem do dever des- cumprido, contrato ou delito, critério que, apesar de conferir segurança jurídica, mereceu aperfei çoamentos, à luz da sistemática atual do Código Civil, dos microssistemas de direito privado e da Constituição Federal. Seguindo essa tendência na tural, doutrina e jurisprudência vêm se valendo de um terceiro fundamento de responsabilidade, que não se vincula a uma prestação delineada pelas partes, nem mesmo vincula indivíduos aleatoria mente ligados pela violação de um dever genérico de abstenção, qual seja a responsabilidade pela confiança. A responsabilidade pela confiança é autônoma em relação à responsabilidade contratual e à extracontratual, constituindo-se em um terceiro fundamento ou ‘terceira pista’ (dritte Spur) da res ponsabilidade civil, tendo caráter subsidiário: onde houver o dano efetivo, requisito essencial para a responsabilidade civil e não for possível obter uma solução satisfatória pelos caminhos tradicionais da responsabilidade, a teoria da confiança será a opção válida” (STJ, REsp 1.592.422). 4.2. Responsabilidade pela violação positiva do contrato Hoje assistimos a um alargamento do conceito de adimplemento. Adimplir significará atender a todos os interesses envolvidos na obrigação, abar cando tanto os deveres ligados à prestação propria mente dita, como aqueles relacionados à proteção dos contratantes em todo o desenvolvimento do processo obrigacional. O descumprimento dos deveres anexos provocará inadimplemento, com o nascimento da pretensão reparatória ou o direito potestativo à resolução do vínculo. A lesão aos deveres genéricos de proteção, informação e coo peração repercute na chamada violação positiva do contrato. Cuida-se de uma terceira modalidade de inadimplemento das obrigações, ao lado da mora e do inadimplemento absoluto23. Poderiamos exemplificar a violação positiva do contrato com base em múltiplas situações, por exemplo: a) médico realiza tratamento e alcança a cura do paciente. Porém, a técnica empregada é extremamente dolorosa, quando existiam meios alternativos na ciência para se alcançar idêntico resultado sem que isto implicasse sofrimento para o paciente; b) uma empresa contrata com agência de publicidade a colocação de outdoors pela cidade para a exibição de um novo produ to. Todos os anúncios são colocados em locais de difícil acesso e iluminação, em que poucas pessoas tenham a possibilidade de visualizar a propaganda. Poderá ocorrer, portanto, que o adim plemento se dê de forma ruim ou insatisfatória, ofendendo deveres de proteção, colaboração, etc. Destarte, inserem-se dentre os deveres laterais “o dever de não destruir o patrimônio da outra parte com a execução do contrato, ou o de não informar as eventuais consequências danosas do mau uso da máquina instalada, ou o de instalar a máquina de modo a melhor atender os interesses do adquirente”24. 4.3. Violação de deveres anexos A boa-fé objetiva é fonte de deveres de conduta. Inexiste uma boa-fé objetiva estática, pois o conceito se amolda às circunstâncias concretas das relações jurídicas. Deveres de comportamento pedem que as 22 FRADA, Manuel Antonio de Castro Portugal Carneiro da. Teoria da confiança e responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 2012, p. 900-905. 644 RESPONSABILIDADE CIVIL pessoas estabeleçam uma prévia relação de confiança, no mínimo um contato social. O dano à confiança é uma ofensa a deveres que concretamente pertencem a uma relação obrigacional, mas não se vinculam imediatamente à prestação. Surge entre as partes uma ordem especial de proteção que suplantao mandamento genérico do neminem laedere, aplicável a tutela geral e a indiferenciada convivência social, pois aqui há uma pessoa que confiou de fato na correção do comportamento da outra parte25. 25 FRADA, Manuel Antonio de Castro Portugal Carneiro da, Manuel. Contrato e deveres de proteção. Coimbra: Almedina, 2007, p. 44-47. 26 FRITZ, Karina Nunes. Boa-fé objetiva na fase pré-contratual. Curitiba: Juruá, 2008, p. 33-34. "Partindo do emblemático caso dos rolos de tapete de linóleo, julgado em 1911, no qual uma cliente se fere gravemente em uma loja ao ser atingida por rolos de tapete, a juris prudência prosseguiu no desenvolvimento da culpa in contrahendo, enaltecendo cada vez mais o seu âmbito de incidência e, fixando, paulatinamente, as diversas hipóteses atualmente compreendidas na terminologia, as quais têm em comum a infringência dos deveres de consideração decorrentes da boa-fé objetiva, independentemente de terem as partes firmado um contrato ou não", p. 34. 27 Nesse sentido, "a obrigação vista como um processo, compõe-se, em sentido largo, do conjunto de atividades necessárias à satisfação do interesse do credor. Essas atividades, modo geral, corporificam deveres jurídicos, pré-negociais, negociais e pós-negociais. Assim, a compreensão da relação em sua complexidade evidencia, ao lado dos deveres de prestação, os já aludidos deveres de proteção, laterais, anexos ou instrumentais, além de direitos potestativos, sujeições, ônus jurídicos, expectativas jurídicas, todos coligados em atenção a uma identidade de fim" (MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil, v. V, p. 53). 28 NERY JÚNIOR, Nelson. Contratos no Código Civil. In: FRANCIULLI NETTO, Domingos; MENDES, Gilmar Ferreira; MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva (Coord.). O novo Código Civil: estudos em homenagem ao professor Miguel Reale. São Paulo: LTR, 2004, p. 433. Ver também: PEREIRA, Regis Fichtner. A Responsabilidade Civil Pré-Contratual. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 442. Em obra pioneira sobre o tema, Antonio Chaves já considerava inadmissível que o período de formação do acordo fosse uma "terra de ninguém", em que sob a invocação de uma mal compreendida liberdade de contratar, inte resses legítimos, aspirações procedentes, intuitos plausíveis hajam de esbarrondar repentinamente frente a uma simples mudança de opinião, a um displicente dar de ombros (CHAVES, Antonio. Responsabilidade pré-contratual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 242). Na fase das negociações preliminares, é de rigor que as partes estejam imbuídas pelo ânimo que vem do princípio do fair play (jogo limpo). 29 MENEZES CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha. Da pós-eficácia das obrigações. Coimbra: Almedina, 1984, p. 168. 4.4. Responsabilidade pré-negocial: deveres anexos desvinculados da obrigação A teoria da responsabilidade pré-contratual, ou, como ainda hoje é denominada na Alemanha, culpa in contrahendo, foi originariamente formulada por Rudolph von Ihering em 1861. O grande jurista alemão, amparado no direito romano, observou a existência de um dever de diligência, surgido em momento anterior à conclusão do contrato. A dou trina e jurisprudência desenvolveram e aplicaram a teoria da responsabilidade pré-contratual, que posteriormente foi ligada à proteção da confiança por Larenz e seu discípulo Canaris26. Na sistemática da obrigação como processo27 o contrato se desen volve em três etapas sucessivas: (a) pré-contratual; (b) contratual; (c) pós-contratual. Ao interpretar o art. 422 do Código Civil, dispõe o Enunciado n° 170 das Jornadas de Direito Civil que “a boa-fé objetiva deve ser observada pelas partes na fase de negociações preliminares e após a execução do contrato, quando tal exigência decorrer da natureza do contrato”. Nelson Nery pondera que estão compreendidas no artigo 422 “as tratativas pre liminares, antecedentes do contrato, como também as obrigações derivadas do contrato, ainda que já executado. Com isso, os entabulantes - ainda não contratantes - podem responder por fatos que te nham ocorrido antes da celebração e da formação do contrato e os ex-contratantes também respondem por fatos que decorram do contrato findo (pós-eficácia das obrigações contratuais)”28. Fundamental é que percebamos que “a responsabilidade pré-contratual não decorre do fato de a tratativa ter sido rompida e o contrato não ter sido concluído, mas do fato de uma das partes ter gerado à outra, além da expectativa legítima de que o contrato seria concluído, efetivo prejuízo material” (STJ, REsp 1.051.065). 4.5. Responsabilidade pós-negocial: deveres anexos transcendem a obrigação A relação obrigacional é atualmente concebida como um “processo”. Trata-se de um conjunto de atos coordenados cujo ápice será o adimplemento. Em sua função integrativa (Código Civil, art. 422), a boa-fé objetiva insere na obrigação os deveres anexos, laterais ou de conduta. Para além do conte údo prestacional estipulado, os deveres de proteção, informação e cooperação surgem como exigências éticas do ordenamento jurídico, aptas ao estabeleci mento de uma ordem de cooperação intersubjetiva, que guiará o negócio jurídico para o adimplemento. Desse modo, mesmo após o cumprimento de todas as obrigações negociais, credor e devedor mantêm uma aproximação, pois a boa-fé pressupõe que uma parte assegurará à outra a mais ampla fruição dos resultados obrigacionais bem como a não defraudação das legítimas expectativas de confiança depositadas naquele projeto comum e em seus escopos. Portanto, a responsabilidade pós-contratual, também conhecida como culpa post pactum finitum ou pós-eficácia das obrigações, representa uma obrigação de reparação de danos decorrente da violação de deveres laterais mesmo após a extinção dos deveres prestacionais29. MANUAL DE DIREITO CIVIL - Cristiano Chaves de Farias • Nelson Rosenvald • Felipe Braga Netto 4.6. Responsabilidade transubjetiva e os deveres anexos Já vimos que os deveres anexos (frutos da boa- -fé objetiva) antecedem à assunção das obrigações e extravasam o adimplemento delas. É o que vem se denominando responsabilidade civil pré e pós- -contratual. Há outro aspecto relevante: os deveres de conduta derivados da boa-fé objetiva podem atingir igualmente pessoas que originariamente não participaram da relação obrigacional. Quer dizer, trata-se de uma eficácia obrigacional transubjetiva, apta a alcançar terceiros estranhos ao negócio jurídico. Com esteio na concepção social do contrato (Código Civil, art. 421) e na quebra do dogma de sua relatividade, Teresa Negreiros alude à atual distinção entre a eficácia das obrigações contratu ais e a sua oponibilidade, nos seguintes termos: “o princípio da função social condiciona o exercício da liberdade contratual e torna o contrato, como situação jurídica merecedora de tutela, oponível erga omnes. Isto é, todos têm o dever de se abster da prática de atos (inclusive a celebração de contratos) que saibam prejudiciais ou comprometedores da satisfação de créditos alheios. A oponibilidade dos contratos traduz-se, portanto, nesta obrigação de não fazer, imposta àquele que conhece o conteúdo de um contrato, embora dele não seja parte. Isto não implica tornar as obrigações contratuais exigíveis em face de terceiros (é o que a relatividade impede), mas impõe a terceiros o respeito por tais situações jurídicas, validamente constituídas e dignas da tutela do ordenamento (é o que a oponibilidade exige)”30. 30 NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 265. A autora traz excelente exemplo da quebra de dever de conduta. No filme O informante, discute-se o risco de uma emissora de TV ser processada por uma companhia de cigarros, pelo fato de um ex-executivo revelar publicamente informações sigilosas, objeto de contratação de confidencialidade em razão de seu antigo trabalho na empresa. 31 SILVA, Luis Renato Ferreira da. A funçãosocial do contrato no novo código civil. Porto Alegre: Renovar, 2004, p. 133. 32 CHAVES, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe; ROSENVALD, Nelson. Novo Tratado de Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2017. Todo dever de cuidado envolve, em maior ou menor grau, uma forma de cooperação para com o alter. Nessa cooperação é afirmada a ideia solidarista veiculada no art. 3o, I, da Constituição Federal. Em interessante projeção, considera-se que o binômio cooperação versus solidariedade pode ser considerado de duas maneiras: (a) dentro da relação contratual ele atua por meio do princípio da boa-fé (Código Civil, art. 422); (b) já os reflexos externos das relações contratuais, que podem afetar a esfera de terceiros, impõem um comportamento solidário cooperativo, que é atuado pela noção da função social do contrato (Código Civil, art. 421)31. 4.7. O terceiro ofendido e a relação obrigacional Ao permitirmos que a responsabilidade civil en globe terceiros lesados pelo descumprimento de uma obrigação assumida no âmbito de um contrato de cuja formação não participaram, devemos assumir que o princípio pelo qual os efeitos do contrato só se produzem inter partes deverá ser interpretado de forma que, no conceito de “oponibilidade obri- gacional”, incluam-se pessoas que não consentiram na formação do negócio jurídico, mas que estão sujeitas a ser por ele afetadas, precisamente no que se refere à sua função social. Expusemos a questão, em minúcias, em ou tra obra32. Aqui basta dizer em certos contextos é injustificada a discriminação normativa entre lesado ou terceiro. Esta correção de rumos pode ser atribuída à responsabilidade pela quebra da confiança do contratante, causando danos injustos ao terceiro ofendido. Em comum, tanto o bystan- der quanto o lesado por um veículo segurado e o adquirente de um imóvel não são sujeitos aleato riamente escolhidos a quem se imputam danos por uma omissão genérica de cuidado. Não obstante a inexistência de um contato social prévio entre lesante e lesado, há por parte do fornecedor de bens e serviços, do segurador e do alienante um dever especial de proteção perante estas pessoas. Por outro ângulo, antes da incidência do evento danoso já existe uma confiança realmente experi mentada pelas potenciais vítimas na seriedade do comportamento dos referidos agentes e na especial colaboração nas hipóteses de irrupção de danos. 4.8. O terceiro ofensor e a relação obrigacional A eficácia transubjetiva das obrigações não permite apenas a tutela de terceiros estranhos ao negócio jurídico, vítimas de danos dele proveniente. Na linha da função social do contrato, propugna- -se por uma “tutela externa do crédito”, pela qual o terceiro ofensor seja responsabilizado, não pro priamente pela prestação convencionada, mas pela ofensa a dever de conduta nela consubstanciada. É inadmissível que a sociedade se comporte como se o contrato não existisse ou, se existisse, fosse algo estranho a ela, a ponto de ser ignorado. Em princípio, os terceiros não têm o dever de conhe cer a existência do crédito alheio, mas, quando o RESPONSABILIDADE CIVIL conhecem na sua existência e configuração mínima, então aquele dever geral de respeito concretiza-se, surge como um concreto dever de respeito, que se incrusta na esfera jurídica desse terceiro e limita sua liberdade de agir33. O conhecimento do crédito constitui uma condição de oponibilidade efetiva do direito de crédito a terceiros. A responsabilidade civil de terceiro por lesão do direito do crédito é a solução equilibrada ao valor da justiça, harmo nizando os princípios da reparação do dano e da liberdade contratual, resultando em aumento da confiança nos contratos e em sua estabilidade, por evitarem-se interferências materiais de terceiros sobre o crédito. 33 É o que já vem se chamando de terceiro cúmplice, pois ocorre nas hipóteses em que o terceiro assume papel relevante na violação de interesses de outrem. Otávio Rodrigues lembra o interessante exemplo de um artista de televisão que, contratado para um perí odo de 50 meses, rompe o contrato, sem justo motivo, e passa a se exibir na empresa televisiva concorrente. E arremata:"ao garantir-lhe um suporte negociai, jurídico e econômico (o terceiro cúmplice, que, no caso, é a sua nova emissora), agiu como um tiers complice, coadjuvando-o e favorecendo-se com sua conduta, o que daria ensanchas a admitir que os efeitos da responsabilidade contratual estender-se-iam a um terceiro" (RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz. A doutrina do terceiro cúmplice: autonomia da vontade, o princípio res inter alios, função social do contrato e a interferência alheia na execução dos negócios jurídicos. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 821, p. 80-98,2004, p. 93). Porém, o terceiro que aliciou o contratante e frustrou a relação obrigacional primitiva poderá ser condenado a indenizar por responsabilidade civil pela confiança. A cláusula penal não será exigida do “terceiro predador", pelo singelo fato dele se situarfora da obrigação, não sendo qualquer prestação a ele dirigida. Porém, inegavelmente viola dever lateral de cooperação se através de uma concorrência desleal, provoca danos a seu concorrente. A responsabilidade aquiliana impactará em condenação condizente aos danos injustos causados ao autor da demanda. O princípio da relatividade dos contratos não pode mais ser elevado à condição de dogma. Tudo recomenda que terceiros se abstenham de violar contratos em andamento. O abuso no exercício da liberdade contratual gera responsabilidade de quem induz outrem à violação de contrato. A colaboração em grau mínimo já é suficiente para preservar a confiança na circulação econômica dos créditos. Ao trazermos - embora com extrema brevida de, como é o propósito deste livro - temas como a violação positiva do contrato, responsabilidade pré-contratual, responsabilidade pós-contratual, terceiro ofendido e terceiro ofensor, percebemos que a responsabilidade pela confiança merece destaque, pois o colorido desses modelos jurídicos se afasta do preto e branco da clássica distinção entre a responsabilidade negociai e a extranegocial. Estamos diante, seguramente, de de situações bem mais complexas que o mero descumprimento de uma obrigação ou inobservância de um dever genérico de um neminem laedere. Em situações como as descritas, parece mais adequado considerar cada situação concreta, com base na tópica e nas especificidades que se apre sentam. As respostas oscilarão de acordo com o tipo de dever violado e da natureza da relação entre lesante e lesado. A abertura do sistema propiciará a flexibilidade de decisões quanto ao ônus da prova, a prescrição, eventuais limites à obrigação de in denizar e outros aspectos que se mostrem menos claros. Vale lembrar que o fato da responsabilidade civil lidar com cláusulas gerais (como o art. 927, parágrafo único, do Código Civil, por exemplo), longe de ser um defeito, apresenta-se como uma de suas mais altas virtudes. Isso possibilita um diálogo constante entre a norma e as mudanças sociais, funcionando como janelas normativas de uma sociedade plural. 5. TEORIA SUBJETIVA: PRESSUPOSTOS Podemos conceituar a responsabilidade civil como a reparação de danos injustos resultantes da violação de um dever geral de cuidado. Ao aden trarmos na teoria subjetiva, iremos, nos próximos tópicos, nos distanciar de suas finalidades punitiva e precaucional, que apenas serão lateralmente abor dadas. Optamos por uma classificação tetrapartida dos pressupostos da responsabilidade civil, cujos elementos são: (a) ato ilícito; (b) culpa; (c) dano; (d) nexo causai. Aliás, não é outro o resultado que se alcança ao compulsarmos o art. 927, caput, do Código Civil - dispositivo introdutório ao Título dedicado à responsabilidade civil: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.” Os quatro pressupostos ora elencados se