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Autor: Prof. Nelson Inácio Pinto Neto Colaboradoras: Profa. Mônica Teixeira Profa. Carolina Kurashima Fisiopatologia da Nutrição Professor conteudista: Nelson Inácio Pinto Neto Nutricionista graduado pela Universidade do Vale do Sapucaí em 2011. Mestre e doutor em Ciências, ambos em 2014, pelo departamento de Fisiologia e Programa de Pós-graduação em Nutrição da Universidade Federal de São Paulo. Realizou doutorado sanduíche na Università degli Studi di Roma La Sapienza (Uniroma), Itália, no Dipartimento di Medicina Clinica, em 2017. Pós-doutor pelo Programa de Pós-graduação em Nutrição da Universidade Federal de São Paulo. Pós-doutorando/pesquisador pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Vencedor do Prêmio Capes de Tese na área de Nutrição em 2019. Professor titular da Universidade Paulista (UNIP) desde 2020. Professor convidado em cursos de extensão e pós-graduação de várias instituições de ensino desde 2014. Revisor da Nutrition & Metabolism, do Journal of Nutrition and Metabolism e do Journal of Cellular Biochemistry. Tem experiência na área de fisiologia, com ênfase em fisiologia endócrina, nutrição, bioquímica e biologia molecular, atuando principalmente nos seguintes temas: inflamação, tecido adiposo, câncer, caquexia e obesidade. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) P659f Pinto Neto, Nelson Inácio. Fisiopatologia da Nutrição / Nelson Inácio Pinto Neto. – São Paulo: Editora Sol, 2021. 180 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230. 1. Doença. 2. Diagnóstico. 3. Tratamento. I. Título. CDU 616-092 U512.29 – 21 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcello Vannini Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Deise Alcantara Carreiro – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Lucas Ricardi Vera Saad Sumário Fisiopatologia da Nutrição APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................9 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................9 Unidade I 1 DESNUTRIÇÃO, CAQUEXIA E SARCOPENIA ........................................................................................... 11 1.1 Desnutrição ............................................................................................................................................. 11 1.1.1 Introdução ..................................................................................................................................................11 1.1.2 Desnutrição energético-proteica (DEP) ..........................................................................................11 1.1.3 Fisiopatologia ........................................................................................................................................... 12 1.1.4 Manifestações clínicas .......................................................................................................................... 16 1.1.5 Consequências da desnutrição .......................................................................................................... 17 1.1.6 Diagnóstico ............................................................................................................................................... 18 1.2 Caquexia ................................................................................................................................................... 19 1.2.1 Introdução ................................................................................................................................................. 19 1.2.2 Etiologia ...................................................................................................................................................... 22 1.2.3 Fisiopatologia ........................................................................................................................................... 22 1.3 Sarcopenia ............................................................................................................................................... 28 1.3.1 Introdução ................................................................................................................................................. 28 1.3.2 Fisiopatologia ........................................................................................................................................... 29 1.3.3 Categorias de sarcopenia e outras condições correlatas........................................................ 31 1.3.4 Consequências da sarcopenia ............................................................................................................ 32 2 DOENÇAS RENAIS ........................................................................................................................................... 32 2.1 Lesão renal aguda ................................................................................................................................ 32 2.1.1 Introdução ................................................................................................................................................. 32 2.1.2 Etiologia ...................................................................................................................................................... 33 2.1.3 Lesão renal aguda: pré-renal ............................................................................................................. 34 2.1.4 Lesão renal aguda: renal (intrínseca) .............................................................................................. 34 2.1.5 Lesão renal aguda: pós-renal ............................................................................................................. 35 2.1.6 Manifestações clínicas .......................................................................................................................... 37 2.1.7 Diagnóstico ............................................................................................................................................... 37 2.1.8 Tratamento ................................................................................................................................................ 38 2.2 Doença renal crônica .......................................................................................................................... 38 2.2.1 Introdução ................................................................................................................................................. 38 2.2.2 Etiologia ...................................................................................................................................................... 39 2.2.3 Diagnóstico ...............................................................................................................................................40 2.2.4 Classificação: estágios da DRC .......................................................................................................... 41 2.2.5 Fisiopatologia ........................................................................................................................................... 41 2.2.6 Manifestações clínicas .......................................................................................................................... 42 2.2.7 Tratamento ................................................................................................................................................ 46 2.2.8 Diálise e transplante .............................................................................................................................. 46 3 NEOPLASIAS ...................................................................................................................................................... 49 3.1 Introdução ............................................................................................................................................... 49 3.2 Etiologia ................................................................................................................................................... 51 3.3 Fisiopatologia ......................................................................................................................................... 53 3.4 Carcinogênese........................................................................................................................................ 53 3.5 Câncer e crescimento celular .......................................................................................................... 57 3.6 Classificação das neoplasias ............................................................................................................ 58 3.7 Câncer in situ e câncer invasivo ..................................................................................................... 59 3.8 Manifestações clínicas ....................................................................................................................... 60 3.9 Diagnóstico ............................................................................................................................................. 63 3.10 Tratamento ........................................................................................................................................... 64 3.10.1 Cirurgia ..................................................................................................................................................... 65 3.10.2 Quimioterapia ........................................................................................................................................ 65 3.10.3 Radioterapia ........................................................................................................................................... 66 3.10.4 Hormonioterapia .................................................................................................................................. 67 3.10.5 Imunoterapia .......................................................................................................................................... 68 3.11 Terapia nutricional ............................................................................................................................. 69 3.12 Cuidados paliativos ........................................................................................................................... 69 4 AIDS ...................................................................................................................................................................... 71 4.1 Introdução ............................................................................................................................................... 71 4.2 Etiologia ................................................................................................................................................... 72 4.3 Formas de transmissão ....................................................................................................................... 73 4.4 Fisiopatologia ......................................................................................................................................... 74 4.5 Manifestações clínicas ....................................................................................................................... 76 4.5.1 Infecções oportunistas ......................................................................................................................... 76 4.5.2 Manifestações respiratórias ................................................................................................................ 76 4.5.3 Manifestações gastrointestinais ....................................................................................................... 77 4.5.4 Manifestações no sistema nervoso ................................................................................................. 77 4.5.5 Neoplasias .................................................................................................................................................. 77 4.5.6 Síndrome consumptiva ........................................................................................................................ 77 4.5.7 Transtornos metabólicos e morfológicos ...................................................................................... 78 4.6 Diagnóstico ............................................................................................................................................. 79 4.7 Tratamento .............................................................................................................................................. 79 4.7.1 Tipos ............................................................................................................................................................. 80 4.7.2 Efeitos adversos ....................................................................................................................................... 81 4.7.3 Terapia nutricional ................................................................................................................................. 81 Unidade II 5 DOENÇAS PANCREÁTICAS E HEPÁTICAS ............................................................................................... 90 5.1 Pancreatites ............................................................................................................................................ 90 5.1.1 Anatomia .................................................................................................................................................... 90 5.1.2 Embriologia ............................................................................................................................................... 91 5.2 Pancreatite aguda ................................................................................................................................ 91 5.2.1 Definição e fisiopatologia.................................................................................................................... 91 5.2.2 Etiologia ...................................................................................................................................................... 92 5.2.3 Fisiopatologia ........................................................................................................................................... 93 5.2.4 Classificações ............................................................................................................................................ 93 5.2.5 Manifestações clínicas ..........................................................................................................................94 5.2.6 Diagnóstico ............................................................................................................................................... 94 5.2.7 Complicações ............................................................................................................................................ 95 5.2.8 Tratamento ................................................................................................................................................ 95 5.3 Pancreatite crônica .............................................................................................................................. 95 5.3.1 Definição e fisiopatologia.................................................................................................................... 95 5.3.2 Etiologia ...................................................................................................................................................... 96 5.3.3 Manifestações clínicas .......................................................................................................................... 96 5.3.4 Diagnóstico ............................................................................................................................................... 97 5.3.5 Complicações ............................................................................................................................................ 97 5.3.6 Tratamento ................................................................................................................................................ 98 5.4 Fígado e vias biliares ........................................................................................................................... 99 5.4.1 Anatomia do fígado ............................................................................................................................... 99 5.4.2 Cirrose hepática .....................................................................................................................................100 5.5 Insuficiência hepática aguda .........................................................................................................114 5.5.1 Definição e fisiopatologia..................................................................................................................114 5.5.2 Etiologia ....................................................................................................................................................115 5.5.3 Manifestações clínicas ........................................................................................................................115 5.5.4 Diagnóstico .............................................................................................................................................116 5.5.5 Tratamento ..............................................................................................................................................116 5.6 Colelitíase ..............................................................................................................................................116 5.6.1 Anatomia da via biliar .........................................................................................................................116 5.6.2 Definição e fisiopatologia..................................................................................................................117 5.6.3 Fatores de risco ...................................................................................................................................... 118 5.6.4 Manifestações clínicas, complicações, diagnóstico e tratamento .................................... 118 6 DOENÇAS PULMONARES ...........................................................................................................................119 6.1 Síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA) .........................................................119 6.1.1 Introdução ............................................................................................................................................... 119 6.1.2 Epidemiologia ........................................................................................................................................ 120 6.1.3 Etiologia ................................................................................................................................................... 120 6.1.4 Fisiopatologia .........................................................................................................................................121 6.1.5 Diagnóstico ............................................................................................................................................ 122 6.1.6 Manejo e tratamento ......................................................................................................................... 123 6.2 Doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) ........................................................................123 6.2.1 Definição e fisiopatologia................................................................................................................. 123 6.2.2 Etiologia ................................................................................................................................................... 123 6.2.3 Fisiopatologia ........................................................................................................................................ 124 6.2.4 Manifestações clínicas e diagnóstico .......................................................................................... 124 6.2.5 Tratamento ............................................................................................................................................. 126 6.3 Fibrose cística .......................................................................................................................................126 6.3.1 Definição e fisiopatologia................................................................................................................. 126 6.3.2 Manifestações clínicas e diagnóstico .......................................................................................... 128 6.3.3 Tratamento ............................................................................................................................................. 130 7 DOENÇAS NEUROLÓGICAS ........................................................................................................................130 7.1 Paralisia cerebral .................................................................................................................................130 7.1.1 Definição e fisiopatologia................................................................................................................. 130 7.1.2 Prevalência ............................................................................................................................................. 132 7.1.3 Classificação motora e manifestações clínicas ........................................................................ 132 7.1.4 Etiologia e fatores de risco .............................................................................................................. 133 7.1.5 Diagnóstico e tratamento ................................................................................................................ 134 7.2 Epilepsia .................................................................................................................................................134 7.2.1 Definição e fisiopatologia................................................................................................................. 134 7.2.2 Manifestação clínica ........................................................................................................................... 135 7.2.3 Etiologia................................................................................................................................................... 136 7.2.4 Diagnóstico ............................................................................................................................................ 137 7.2.5 Tratamento ............................................................................................................................................. 137 7.3 Acidente vascular cerebral ..............................................................................................................138 7.3.1 Conceito e fisiopatologia .................................................................................................................. 138 7.3.2 Manifestações clínicas ....................................................................................................................... 139 7.3.3 Diagnóstico e tratamento ............................................................................................................... 139 7.4 Declínio cognitivo (Alzheimer) ......................................................................................................139 7.4.1 Definição ................................................................................................................................................. 139 7.4.2 Fisiopatologia da doença de Alzheimer ...................................................................................... 140 7.4.3 Diagnóstico e tratamento .................................................................................................................141 7.5 Doença de Parkinson.........................................................................................................................141 7.5.1 Definição e fisiopatologia..................................................................................................................141 7.5.2 Manifestações clínicas ....................................................................................................................... 142 7.5.3 Diagnóstico e tratamento ................................................................................................................ 142 8 PACIENTES CRÍTICOS....................................................................................................................................143 8.1 Sepse ........................................................................................................................................................144 8.1.1 Etiologia ................................................................................................................................................... 144 8.1.2 Fisiopatologia ........................................................................................................................................ 145 8.1.3 Manifestações clínicas ....................................................................................................................... 147 8.1.4 Diagnóstico ............................................................................................................................................ 147 8.1.5 Tratamento ............................................................................................................................................. 149 9 APRESENTAÇÃO Caro aluno, Este livro-texto foi cuidadosamente elaborado com o objetivo de contribuir para a realização e o desenvolvimento de seus estudos, assim como para a ampliação de seus conhecimentos. Cada capítulo foi minunciosamente construído utilizando informações fundamentadas no conhecimento científico, abordadas por meio de textos, ilustrações, tabelas e figuras e baseadas em livros, artigos científicos, diretrizes e materiais governamentais oficiais nacionais e internacionais que normatizam os serviços de saúde. O livro-texto está organizado em duas unidades. Na primeira, abordaremos as patologias desnutrição, caquexia, sarcopenia, lesão renal aguda, doença renal crônica, neoplasias e aids. Na segunda, veremos as patologias pancreatites, doenças hepáticas e de vias biliares, doenças pulmonares, doenças neurológicas e pacientes críticos. Cada tópico apresenta conceitos, etiologia, aspectos fisiopatológicos e aspectos clínicos como manifestações clínicas (sinais, sintomas), diagnóstico, complicações e tratamento a respeito das doenças abordadas. O conhecimento da fisiologia na condição de saúde e de doenças é fundamental para a adequada atuação de qualquer profissional da saúde, em especial o nutricionista. Relacionar o funcionamento corporal normal com as alterações fisiológicas que participam da produção da doença e que ocorrem como consequência desta, além da habilidade admirável do corpo de compensar essas alterações, é algo fantástico e imprescindível na atuação profissional. Desse modo, convidamos você a mergulhar no complexo, porém encantador universo da fisiopatologia. Desejamos a você um trabalho proveitoso sobre os temas abordados nesta disciplina. INTRODUÇÃO O estudo e o conhecimento na área da fisiopatologia é uma ferramenta importante para identificarmos e reconhecermos as diversas formas do agir do corpo humano em condições não homeostáticas. Para profissionais que atuam na área da saúde, apropriar-se desse conhecimento é fundamental para a compreensão do desenvolvimento da patologia (como surge, sinais e sintomas, prognóstico, seus alvos terapêuticos), evolução clínica, condutas terapêuticas assertivas e evolução dos recursos acerca do tratamento de determinadas patologias. Durante o estudo da fisiopatologia é necessário um mergulho em outras ciências, tais como fisiologia, patologia, bioquímica, anatomia humana, farmacologia, microbiologia, entre outras ciências envolvidas nesses processos, as quais fazem parte do entendimento acerca da composição e do funcionamento do corpo humano. Carol Mattson Porth relata que o estudo da fisiopatologia expõe a beleza do corpo humano e enfatiza que tanto na doença como na saúde há mais “coisas positivas” no corpo do que “negativas”. Durante o processo de desenvolvimento da doença, no qual ocorrem diversas alterações decorrentes 10 dela, nosso corpo promove adaptações admiráveis na tentativa de compensar essas alterações e manter a homeostase (PORTH; MATFIN, 2010). Aproveite, portanto, para se aprofundar no conhecimento da fisiopatologia e das alterações que ocorrem nesse processo de doença. Esse conhecimento será importante para entender outros aspectos envolvidos na saúde do paciente, a responsabilidade e atribuições do nutricionista e a relação desse conhecimento com outras disciplinas do curso. 11 FISIOPATOLOGIA DA NUTRIÇÃO Unidade I 1 DESNUTRIÇÃO, CAQUEXIA E SARCOPENIA 1.1 Desnutrição 1.1.1 Introdução A subnutrição continua sendo um importante problema de saúde em todo o mundo. A desnutrição proteico-energética é mais prevalente nos países em desenvolvimento, nos quais é indiretamente responsável por um número elevado de óbitos de crianças pequenas. Dados do Relatório Global de Nutrição 2018 apontam que houve redução da prevalência de desnutrição em várias regiões do mundo. No entanto, o déficit de crescimento em crianças menores de 5 anos ainda é muito prevalente no mundo, afetando 22,2% dos indivíduos nessa faixa etária. Em grande parte dos países da América Latina e Caribe, a desnutrição crônica teve uma trajetória positiva, cuja prevalência reduziu de 24,5% em 1990 para 11% em 2016 (SCALING UP NUTRITION, 2018). A desnutrição é caracterizada como uma condição patológica decorrente da falta de energia e proteínas, em variadas proporções, podendo ser agravada por infecções repetidas. Evidências demonstram que déficits de crescimento na infância estão associados a maior mortalidade, doenças infecciosas, prejuízo para o desenvolvimento psicomotor, menor aproveitamento escolar e diminuição da altura e da capacidade produtiva na idadeadulta (CHAGAS et al., 2013). Existem diversas condições que podem levar à desnutrição. Entre elas destacam-se a pobreza e a ignorância, doenças agudas e crônicas e a restrição dietética autoimposta. Indivíduos em risco nutricional, como pessoas em situação de rua, indivíduos idosos e crianças em condições de pobreza, frequentemente exibem os efeitos da desnutrição proteica e energética, bem como deficiências de vitaminas e minerais. Alguns tipos de desnutrição são causados por doenças agudas e crônicas, como as que ocorrem em indivíduos com doença de Crohn, que são incapazes de absorver os nutrientes dos alimentos. A anorexia nervosa e os transtornos alimentares, que afetam uma grande população de indivíduos preocupados acerca de sua imagem corporal e desempenho atlético, também podem levar ao desenvolvimento de um quadro de desnutrição (ALVES et al., 2011; CHAGAS et al., 2013). 1.1.2 Desnutrição energético-proteica (DEP) A desnutrição de proteína e energia (calorias) conhecida como energético-proteica (DEP) moderada/grave é ainda um importante problema na faixa etária pediátrica, especialmente em crianças hospitalizadas, com taxa de mortalidade elevada, em torno de 30% em alguns hospitais (SOCIEDADE BRASILEIRA DE NUTRIÇÃO PARENTERAL E ENTERAL, 2011). 12 Unidade I A desnutrição energético-proteica representa uma depleção dos tecidos corporais magros causada pelo consumo insuficiente de nutrientes (proteínas e calorias) ou por uma combinação de inanição e estresse catabólico. Os tecidos magros são metabolicamente ativos e desprovidos de grandes concentrações de gordura, como os músculos esqueléticos, as vísceras e as células do sangue e do sistema imune. Como os tecidos magros correspondem ao maior compartimento do corpo, sua taxa de perda constitui o principal determinante do peso corporal total na maioria dos casos de desnutrição energético-proteica. Conforme mencionado anteriormente, a desnutrição acomete principalmente lactentes e crianças nos países subdesenvolvidos, onde a privação de alimento resulta em aporte inadequado de proteínas e calorias para suprir as necessidades energéticas do organismo. Nessa população, a desnutrição energético-proteica pode ser dividida em duas condições distintas: o marasmo (deficiência proteico-calórica) e o kwashiorkor (deficiência proteica). 1.1.3 Fisiopatologia As alterações patológicas de ambos os tipos de desnutrição consistem em imunodeficiências humorais e celulares em consequência da deficiência de proteínas e/ou de calorias. Existem dois compartimentos funcionais envolvidos na distribuição das proteínas pelo corpo: o compartimento somático, representado pelos músculos esqueléticos, e o compartimento visceral, representado pelas reservas de proteínas nos órgãos corporais, principalmente o fígado. Esses compartimentos são regulados de modo diferente, sendo o compartimento somático afetado mais gravemente no marasmo, enquanto o compartimento visceral é afetado mais gravemente no kwashiorkor. O marasmo é caracterizado por uma perda progressiva da massa muscular e das reservas de gordura devido à ingestão inadequada de alimento igualmente deficiente em calorias e proteína. Essa condição resulta em redução do peso corporal ajustado para a idade e o tamanho do indivíduo. A criança com marasmo tem aspecto debilitado, com perda da massa muscular, retardo do crescimento e perda da gordura subcutânea; abdome protuberante (devido à hipotonia muscular); pele enrugada; cabelos ralos, secos e sem brilho; e diminuição da frequência cardíaca, pressão arterial e temperatura corporal. Além desses sintomas, é comum a ocorrência de diarreia. Devido ao comprometimento da função imunológica, característica do quadro de desnutrição, ocorrem infecções concomitantes, o que promove um estresse adicional ao corpo já enfraquecido, comprometendo ainda mais o quadro do paciente. Uma característica importante do marasmo é a deficiência do crescimento, pois, devido ao fornecimento insuficiente de calorias (alimentos), o processo de crescimento de tecidos é prejudicado, fazendo com que essa criança não atinja a estatura potencial total. O kwashiorkor, que é outra forma da desnutrição energético-proteica, resulta de uma deficiência de proteína em dietas relativamente ricas em carboidratos, principalmente. 13 FISIOPATOLOGIA DA NUTRIÇÃO O termo kwashiorkor provém de uma palavra africana que significa “a doença sofrida pela criança deslocada”, visto que a condição se desenvolvia logo após a criança ser desmamada após a chegada de um novo lactente, passando a receber uma alimentação de papa rica em amido. O kwashiorkor é uma forma de desnutrição mais grave do que o marasmo. Ao contrário do marasmo, a deficiência grave de proteína está associada a uma extensa perda do compartimento proteico visceral, com consequente hipoalbuminemia, dando origem a um edema generalizado ou nas partes inferiores do corpo. A criança com kwashiorkor habitualmente apresenta edema, descamação da pele, cabelos descorados, anorexia e extrema apatia. Também podem-se observar lesões “em tinta descascada” da pele na face, nos membros e no períneo, e os cabelos passam a ter uma cor de areia ou avermelhada, com despigmentação linear (sinal da bandeira). Ocorrem deficiência generalizada do crescimento e debilidade muscular como no marasmo, porém a gordura subcutânea está normal, visto que a ingestão de calorias é adequada. Outras manifestações consistem em lesões cutâneas, hepatomegalia, distensão abdominal, extremidades frias e redução do débito cardíaco e taquicardia (FERNANDES et al., 2002; LIMA; GAMALLO; OLIVEIRA, 2010; PORTH; MATFIN, 2010). Já o marasmo-kwashiorkor ou kwashiorkor marasmático refere-se a um déficit proteico-energético avançado associado à necessidade ou perda aumentadas de proteína. Nessa apresentação de desnutrição observa-se uma rápida diminuição das medidas antropométricas, com edema e debilidade, bem como perda de massa corporal (veja o quadro a seguir). Um aspecto essencial da desnutrição energético-proteica grave é a depleção de gordura de vários órgãos, como o coração e o fígado. Essa degeneração provoca disfunção cardíaca subclínica ou franca, especialmente quando a desnutrição é acompanhada de edema. Outro aspecto que causa prejuízo é a perda da gordura subcutânea, que reduz acentuadamente a capacidade do corpo de regular a temperatura e armazenar a água. Em consequência a essas modificações, as crianças desnutridas sofrem desidratação e hipotermia mais rapidamente e de forma mais grave do que as crianças que recebem nutrição normal, o que acarreta o aumento de riscos para a criança desnutrida. Uma consequência da desnutrição em crianças, especialmente, é o comprometimento do sistema imunológico. Grande parte das crianças com desnutrição energético-proteica grave apresenta infecções assintomáticas e recorrentes. Isso se dá porque o sistema imunológico é incapaz de responder de modo apropriado. O sistema imune dessas crianças está tão deprimido, que muitas delas são incapazes de produzir a febre típica de uma infecção aguda. Ocorre comprometimento da desnutrição energético-proteica, que são as alterações na síntese de pigmentos dos cabelos e da pele (por exemplo, a cor dos cabelos pode mudar e a pele pode tomar-se hiperpigmentada), e esse quadro pode ser explicado devido à ausência de substrato (tirosina) e coenzimas (FERNANDES et al., 2002; LIMA; GAMALLO; OLIVEIRA, 2010; PORTH; MATFIN, 2010). 14 Unidade I Quadro 1 – Classificação da desnutrição proteico-energética (DPE) Diagnóstico e descrição Critério e características Kwashiorkor (edema nutricional com despigmentação da pele e cabelo) Peso > 90% do padrão de peso para altura Albumina < 3 g/dL, transferrina < 180 mg/dL Causada por deficiências energéticas e proteicas agudas, podendo refletir uma resposta metabólica à lesão Caracterizada por edema, catabolismo de tecido muscular, fraqueza, alterações neurológicas, perda de vigor, infecçõessecundárias, retardo de crescimento infantil e alterações em cabelo Marasmo (atrofia nutricional, deficiência calórica crônica grave, desnutrição grave) Peso < 80% do padrão de peso para altura e/ou perda de peso > 10% do peso habitual nos últimos 6 meses com redução muscular Albumina > 3 g/dL Causada por ingestão crônica deficiente em energia Caracterizada por catabolismo adiposo e muscular, letargia, fraqueza generalizada e perda de peso Kwashiorkor marasmático (edema nutricional sem despigmentação de pele e cabelo) Peso < 60% do padrão de peso para altura Albumina < 3 g/dL Ocorre quando um paciente marasmático é exposto a um estresse Caracterizado pela combinação dos sintomas de marasmo e kwashiorkor, alto risco de infecções e deficiência de cicatrização Adaptado de: Mahan, Escott-Stump e Raymond (2013). Além das alterações fisiológicas descritas anteriormente, na desnutrição energético-proteica podem-se observar adaptações metabólicas. Essas adaptações compreendem alterações no metabolismo de macronutrientes que objetivam diminuir o gasto energético total para poupar energia. A criança desnutrida pode apresentar hipoglicemia em determinados estágios e níveis baixos de insulina. O excesso de cortisol pode estar presente, estimulando a proteólise, que gera a glicogênese seguida pela neoglicogênese, além de uma deficiência insulínica ou resistência à insulina. Outro processo adaptativo que pode ocorrer na DEP é a perda de tecido muscular com redirecionamento das proteínas musculares para disponibilizar nitrogênio para síntese de proteínas teciduais, formação de células vermelhas e funções imunes (VOLTARELLI; MELLO, 2008). Ainda na tentativa de economizar energia, as crianças desnutridas crônicas podem apresentar um quociente respiratório maior e uma oxidação de lipídios menor (veja as figuras a seguir). 15 FISIOPATOLOGIA DA NUTRIÇÃO Fornecimento de energia para o sistema nervoso Síntese de proteínas essenciais para homeostase Produção de energia Liberação de ácidos graxos Liberação de aminoácidos essenciais Liberação de glicose Perda de tecido muscular Perda de gordura subcutânea Perda de tecidos corporais Insulina Fome Cortisol Figura 1 – Alterações metabólicas no marasmo Fonte: Fernandes et al. (2002, p. 57). Dieta pobre Relação proteína: energia Glicemia Pós-prandial Suprimento de aminoácidos 1ª mensagem: Insulina Ativar processos metabólicos Produção de beta-lipoproteína 2ª mensagem: Falta substrato para anabolismo Produção de albumina Preservação da massa muscular e tecido adiposo Fígado gorduroso Composição distorcida de aminoácidos plasmáticos (essenciais/ não essenciais) Edema Fornecimento de aminoácidos, ácidos graxos, glicerol para o fígado Hipotálamo Mensagens confusas Figura 2 – Alterações metabólicas no kwashiorkor Fonte: Fernandes et al. (2002, p. 58). Muitas alterações endócrinas podem ser observadas nesse processo adaptativo da DEP crônica (SAWAYA, 2006) (veja o quadro a seguir). 16 Unidade I Quadro 2 – Alterações hormonais na desnutrição e seus efeitos metabólicos Hormônios Atividade Efeitos Insulina Diminuída ↓ Síntese proteica e muscular ↓ Lipogênese, crescimento Hormônio de crescimento (GH) Aumentada ↑ Síntese de proteínas viscerais ↓ Síntese de ureia ↑ Lipólise ↓ Captação de glicose pelos tecidos Somatomedina (insulin-like growth factor) Diminuída ↓ Síntese proteica muscular e de cartilagem ↓ Síntese de colágeno, lipólise Catecolaminas (epinefrina) Normal, mas pode aumentar Lipólise, glicogenólise Glicocorticoide Normal ou aumentada ↑ Catabolismo proteico muscular ↑ Turnover das proteínas viscerais ↑ Lipólise ↑ Glicogenólise ↓ Ações do GH dependentes das somatromedinas Renina-aldosterona Normal ou aumentada ↑ Retenção de sódio e água, contribuindo para o aparecimento de edema Hormônios tireoidianos T4 normal ou diminuído T3 diminuída ↓ Oxidação de glicose ↓ Gasto energético basal Gonadotrofinas Diminuída Amenorreia Fonte: Aroldo Filho (s.d.). 1.1.4 Manifestações clínicas As manifestações clínicas da desnutrição energético-proteica são variadas e dependentes do tipo: marasmo (deficiência proteico-calórica) e kwashiorkor (deficiência proteica). Já o kwashiorkor marasmático apresenta a associação dessas citadas anteriormente (veja o quadro e a figura a seguir). Quadro 3 – Principais características clínicas e laboratoriais das diferentes formas de DEP Achados clínicos e laboratoriais Marasmo Kwashiorkor Idade prevalente Primeiro ano de vida Segundo e terceiro anos de vida Alterações do peso e da estatura +++ + Edema clínico Ausente Presente Gordura subcutânea Ausente Presente, diminuída Hipotrofia ou atrofia muscular Presente Presente Dermatoses Menos frequentes Frequentes Alterações dos cabelos Frequentes Muito frequentes 17 FISIOPATOLOGIA DA NUTRIÇÃO Achados clínicos e laboratoriais Marasmo Kwashiorkor Hepatomegalia (por esteatose) Ausente Presente Apetite Diminuído Diminuído Retardo do DNPM ++ ++ Estado mental Alerta (exceto nas formas avançadas) Apatia, desinteresse Atividade física Diminuída Muito diminuída Diarreia +++ +++ Albumina sérica Normal ou pouco baixa Baixa Água corporal Aumentada Muito aumentada Potássio corporal Baixo Muito baixo Anemia Frequente Muito frequente Sinonímia Subnutrição, atrofia, desnutrição global Desnutrição proteica, distrofia pluricarencial hidropigênica Fonte: Fernandes et al. (2002, p. 56). Figura 3 – Sinais do marasmo e kwashiorkor Fonte: Fernandes et al. (2002, p. 55). 1.1.5 Consequências da desnutrição Além dos fatores socioeconômicos e socioculturais, que estão entre os principais fatores que acarretam o desenvolvimento da desnutrição, a desnutrição energético-proteica pode ser desencadeada também em consequência de traumatismo ou doença. A desnutrição proteica, semelhante ao kwashiorkor, ocorre comumente em associação a doenças agudas hipermetabólicas, como traumatismo, queimaduras e sepse. Já a desnutrição energético-proteica secundária, semelhante ao marasmo, é uma complicação da presença de doenças crônicas, como doença pulmonar obstrutiva crônica, insuficiência cardíaca congestiva, câncer e infecção pelo HIV. 18 Unidade I Em pacientes saudáveis há um processo homeostático no qual as proteínas corporais são mantidas e a perda efetiva de proteína no estado pós-absortivo é equilibrada por um ganho pós-prandial de proteínas, gerando um balanço positivo. Porém, em pacientes com lesão ou doença graves, a degradação de proteínas é acelerada e a reconstrução de proteínas está comprometida, levando a um desbalanço proteico. Um balanço negativo de proteínas e a degradação de proteínas nos tecidos podem acarretar diversos comprometimentos sistêmicos. A perda de proteínas do fígado gera uma redução na síntese hepática das proteínas séricas, e isso pode promover uma redução das células imunes. Com essa redução do sistema imune, ele se torna ineficaz no combate a uma infecção devido a múltiplas disfunções imunológicas. Ainda a respeito desse déficit de proteínas, o trato gastrintestinal sofre atrofia mucosa com perda das vilosidades no intestino delgado, resultando em má absorção. No músculo cardíaco pode ocorrer uma redução da contratilidade do miocárdio e do débito cardíaco. Já os músculos utilizados para a respiração tornam-se enfraquecidos e ocorre comprometimento da função respiratória conforme as proteínas musculares são degradadas para gerar energia devido ao hipermetabolismo e/ou baixa ingestão alimentar. Nos pacientes hospitalizados, a desnutrição aumenta as taxas de morbidade e de mortalidade, a incidência de complicações e a duração da internação. O paciente hospitalizado muitas vezes tem dificuldade em ingerir a dieta e comumente tem restrições quanto à ingestão de alimentos e água na preparação para testes e cirurgia. A dor, as medicações, as dietas especiais e o estresse podem diminuir o apetite. Além da baixa ingestão alimentarocasionada pelos fatores descritos anteriormente, existe uma necessidade aumentada de proteína para sustentar o reparo dos tecidos após traumatismo ou cirurgia. Todos esses fatores repercutem diretamente no desenvolvimento da desnutrição e no comprometimento do prognóstico do paciente (LIMA; GAMALLO; OLIVEIRA, 2010; MAHAN; ESCOTT-STUMP; RAYMOND, 2013; PORTH; MATFIN, 2010). 1.1.6 Diagnóstico O diagnóstico da desnutrição, assim como de outras comorbidades, deve ser realizado utilizando diversas medidas diagnósticas, pois nenhuma medida diagnóstica isolada apresenta acurácia suficiente e é confiável o suficiente para determinar um quadro de desnutrição. As técnicas de avaliação nutricional consistem em avaliação da ingestão dietética, medidas antropométricas, exame clínico e exames laboratoriais. A medida do peso é particularmente importante. O peso corporal pode ser determinado em relação à altura, utilizando-se o IMC ou correlacionado com a idade e o gênero do paciente. Os níveis séricos de albumina e de pré-albumina são utilizados no diagnóstico da desnutrição energético-proteica. Porém, outros exames bioquímicos podem e devem ser utilizados. Dessa forma, é imprescindível que várias ferramentas de diagnóstico sejam empregadas para aumentar a sensibilidade e assertividade para detecção da desnutrição (LIMA; GAMALLO; OLIVEIRA, 2010; MAHAN; ESCOTT-STUMP; RAYMOND, 2013; PORTH; MATFIN, 2010). 19 FISIOPATOLOGIA DA NUTRIÇÃO Saiba mais Para saber mais a respeito dos critérios de diagnóstico de desnutrição, acesse: CEDERHOLM, T. et al. Glim criteria for the diagnosis of malnutrition: a consensus report from the global clinical nutrition community. Espen Endorsed Recommendation, v. 38, n. 1, p. 1-9, fev. 2019. Disponível em: https://bit.ly/3hMsuNn. Acesso em: 24 maio 2021. Observação A desnutrição energético-proteica (DEP) pode ser classificada de acordo com sua etiologia em: • Primária: causada pela ingestão inadequada de nutrientes. • Secundária: resultado de distúrbios como insuficiência pancreática, enterite, enteropatia, câncer, aids, DPOC, infecções, queimaduras, traumas, entre outros ou de fármacos que interferem na utilização dos nutrientes. 1.2 Caquexia 1.2.1 Introdução O termo caquexia deriva do grego kakos (má) e hexis (condição). A caquexia é uma síndrome clínica complexa caracterizada pela presença de anorexia, perda de peso, saciedade precoce, perda de massa muscular e frequentemente da massa gorda, anemia e edema (FEARON et al., 2006; KERN; NORTON, 1988). Ela é largamente estudada no câncer, porém não é restrita apenas a essa patologia, pois pode acometer também pacientes com falência cardíaca congestiva, com doenças digestivas, defeitos tubulares renais, queimaduras, sepse e aids, entre outras. O caráter multifatorial e sistêmico da caquexia dificulta e permite a elaboração de distintos critérios para definição e diagnóstico. Os sintomas e sinais registrados variam consideravelmente entre os pacientes, e a heterogeneidade das manifestações é aceita como a própria característica intrínseca à caquexia. As características clínicas da caquexia podem ocorrer em uma extensão variável e podem mudar, em termos de gravidade, durante o curso da doença de um paciente. O complexo de origem multifatorial da caquexia se opõe a um perfil fisiopatológico uniforme, dificultando o estabelecimento dos mecanismos que levam ao seu desenvolvimento para que seja realizada uma abordagem terapêutica mais eficaz (FEARON et al., 2006). 20 Unidade I O câncer é uma das doenças que mais favorecem ao desenvolvimento da caquexia; dessa forma, sua prevalência nesses pacientes se destaca. Aproximadamente 50% dos pacientes com câncer sofrem de caquexia. Esse número sobe para 80% em pacientes com doença avançada (ARGILÉS; ALVAREZ; LOPEZ-SORIANO, 1997; ARGILÉS et al., 2014; FEARON; MOSES, 2002), além de promover um aumento significativo na morbidade e mortalidade associada ao câncer (KUMAR et al., 2010), agravando os efeitos secundários da quimioterapia e reduzindo a qualidade de vida. A caquexia é considerada a causa imediata de morte de uma grande porcentagem (22% a 40%) dos pacientes com câncer (TISDALE, 2010). Apesar de sua grande incidência e por estar associada diretamente à mortalidade de pacientes, a caquexia associada ao câncer é raramente identificada ou diagnosticada de forma precoce e muitas vezes não é tratada (MELO et al., 2011). Como citado anteriormente, existem diferentes critérios para o diagnóstico da caquexia. Destacaremos dois dos mais empregados atualmente. Para o diagnóstico de caquexia, Evans et al. (2008) propuseram, em um consenso, os seguintes critérios: • diminuição involuntária nos últimos seis meses da massa corporal maior ou igual a 5% da massa corporal inicial; • índice de massa corporal menor que 20 kg/m2 para pacientes com menos de 65 anos e menor que 22 kg/m2 para pacientes com idade maior ou igual a 65 anos; • concentração de albumina inferior a 3,2 g/dL; • concentração plasmática de proteína C reativa maior que 5 mg/L; • análise do questionário European Organization for Research and Treatment of Cancer Core Quality of Life Questionnaire (EORTC QLQ-C30), utilizado para verificação de anorexia, fadiga e qualidade de vida. O paciente será considerado como tendo caquexia se for verificada a presença de pelo menos três destes itens (veja a figura a seguir). • Redução da força muscular • Fadiga • Anorexia • Baixo índice de massa livre de gordura • Bioquímica anormal: – Marcadores inflamatórios aumentados (CRP, IL-6) – Anemia (Hb < 12 g/dL4) – Albumina sérica baixa (3,2 g/dL) Perda de peso de pelo menos 5% em 12 meses ou menos (ou IMC < 20 kg/m2) 3 dos 5 Figura 4 – Critérios de diagnóstico de caquexia Adaptada de: Evans et al. (2008). 21 FISIOPATOLOGIA DA NUTRIÇÃO Já Fearon et al. (2011) estabeleceram os critérios diagnósticos para caquexia da seguinte forma: perda involuntária de peso superior a 5% (ou 2% em indivíduos já abaixo dos valores esperados de peso, segundo o índice de massa corporal IMC < 20 kg/m2) ou presença de sarcopenia. O mesmo grupo propõe a classificação da síndrome, segundo a gravidade, em pré-caquexia, caquexia e caquexia refratária (veja a figura a seguir), sendo a pré-caquexia definida como aquela na qual o paciente apresenta perda de peso igual ou superior a 5%, anorexia e alterações metabólicas; para inclusão do paciente no estágio de caquexia, considera-se perda de peso igual ou superior a 5%, ou de 2%, com IMC < 20kg/m2, ou sarcopenia acompanhada de perda de peso corporal equivalente ou superior a 2%. Referem ainda presença frequente de redução da ingestão e de inflamação sistêmica. Finalmente, o terceiro estágio, a caquexia refratária, inclui os pacientes com diferentes graus de caquexia, mas nos quais há intenso catabolismo e que não respondem ao tratamento anticâncer. Ainda nesse estágio, devem ser incluídos pacientes com baixo escore de desempenho e sobrevida esperada inferior a três meses. Os parâmetros utilizados para a inclusão do paciente em cada um dos estágios abrangem a determinação da concentração de proteína C-reativa no soro, avaliação da anorexia e fatores correlatos (redução do apetite, alterações na percepção gustativa e olfativa, motilidade gastrointestinal reduzida, constipação, dor, entre outros), metabólitos indicadores de catabolismo, massa e força muscular (dinamometria dos membros superiores), bem como manifestações psicossociais. – Perda de peso > 5% ou IMC < 20 e perda de peso > 2% ou sarcopenia e perda de peso > 2% – Redução da ingestão alimentar/inflamação sistêmica – Catabolismo – Não responsivo ao tratamento anticâncer – Baixo score de desempenho – Expectativa de vida < 3 meses – Perda de peso < 5% – Anorexia e alterações metabólicas Precaqueixa Normal Morte Caqueixa Caqueixa refratária Figura 5 – Estágios da caquexia Fonte: Melo et al. (2011, p. 5). Pacientes com câncer-caquexia sofrem de perdade peso, anorexia, anemia, fadiga, má absorção intestinal, náuseas, alterações endócrinas importantes e caos metabólico, com ruptura severa do metabolismo de proteínas, lipídios e carboidratos. Ocorrem aumento da proteólise, alta demanda energética, diminuição da síntese proteica e perda progressiva de massa magra e de tecido adiposo, resultando em declínio acentuado do peso corporal e aumento da mortalidade (DAAS; RIZEQ; NASRALLAH, 2018). 22 Unidade I 1.2.2 Etiologia A etiologia da caquexia é complexa e até o presente momento não há absoluto consenso sobre os fatores que deflagram e mantêm o quadro. Fatores secretados pelo tumor em crescimento estão implicados na mobilização de ácidos graxos e proteínas. Contudo, a caquexia tem como uma de suas características a manutenção de um estado inflamatório crônico, em que a presença do tumor, por exemplo, é tida como o principal agente causal desse quadro inflamatório, com produção e liberação de citocinas, agravando ainda mais o quadro inflamatório e contribuindo para um estresse neuroendócrino. Sabe-se que a síndrome caquexia pode ser observada em pacientes acometidos por sepse, aids, neoplasias malignas, doenças cardíacas como insuficiência cardíaca congestiva, insuficiência renal crônica, doenças hepáticas, doenças gastrointestinais, entre outras (MELO et al., 2011, PORTH; MATFIN, 2010). 1.2.3 Fisiopatologia A caquexia, cujo sintoma mais aparente é acentuada e rápida perda de peso, afeta cerca de metade de todos os pacientes com câncer e está presente na grande maioria dos pacientes com câncer avançado. Trata-se de síndrome de etiologia extremamente complexa, em que o prognóstico adverso e a redução da sobrevida estão diretamente relacionados. Caquexia no câncer é mais frequente em pacientes com tumores sólidos, sendo ainda comum em câncer avançado com tumores gástricos, do pâncreas, de pulmão, de próstata e de cólon, com exceção de tumores de mama. O grau de manifestação da síndrome pode variar entre pacientes com o mesmo tipo histológico e estágio de progressão tumoral, não apresentando associação evidente com o tamanho da massa do tumor ou a localização. As manifestações clínicas da caquexia incluem anorexia, alterações no paladar, vômito, saciedade precoce, astenia, fadiga exacerbada, perda de peso involuntária (massa gorda e magra), perda da imunocompetência, perda de habilidades motoras e físicas, apatia, desequilíbrio iônico, anemia, náuseas, grandes alterações no metabolismo de proteínas, carboidratos e lipídios, alteração no perfil hormonal plasmático e reduzida atividade de hormônios anabólicos, bem como disfunção hipotalâmica. A perda de peso e de apetite são normalmente os primeiros sintomas percebidos pelo paciente. A perda de massa magra inclui a perda de proteínas não só a partir da musculatura esquelética, mas também da cardíaca, resultando em alterações da função do coração, além de comprometimento hepático, com elevação da liberação e proteínas de fase aguda e redução na síntese de albumina (veja a figura a seguir) (ARGILÉS et al., 2014, MELO et al., 2011, PORTH; MATFIN, 2010). 23 FISIOPATOLOGIA DA NUTRIÇÃO Cérebro – Padrão alterado de mediadores hipotalâmicos – Perda de apetite – Hiposmia – Hipogeusia Intestino – Disfunção da barreira intestinal – Produção de grelina alterada – Liberação de mediadores inflamatórios Músculo esquelético Perda Resposta de fase aguda Perda Anorexia Termogênese Disfunção cardíaca Má absorção Tecido adiposos branco – Lipólise aumentada – Liberação de ácidos graxos – Liberação de mediadores inflamatórios? Fígado – Liberação de proteínas de fase aguda – Síntese reduzida de albumina – Liberação de mediadores inflamatórios Cérebro Ineficiência energética Coração – Atrofia – Diminuição da inervação – Maior consumo de energia – Liberação de mediadores inflamatórios? Figura 6 – Alterações metabólicas na caquexia Adaptada de: Argilés et al. (2014). A síndrome caquexia, além das características apresentadas anteriormente, apresenta um quadro pró-inflamatório com aumento da produção e secreção de citocinas pró-inflamatórias, as quais apresentam grande importância na patogênese da caquexia. Alterações na expressão de fator de necrose tumoral α (TNFα), as interleucinas (IL-1. IL-6), o interferon γ (IFN γ) e as prostaglandinas, por exemplo, podem contribuir com o desenvolvimento de diversos sintomas e complicações relacionados à caquexia. Além disso, evidências demonstram que a concentração dessas citocinas está associada à progressão tumoral e ao pior prognóstico (veja a figura a seguir). 24 Unidade I HIF Invasão a outros tecidos Grelina ↓/↑? IL-6 ANGPTL-4 Outros Miostatina CaquexiaPior prognóstico TNF-α LepR Degradação de depósitos de tecido adiposo Proteólise do músculo esquelético Ingestão aliementar Gasto energético Metástases Tumor Figura 7 – O estado pró-inflamatório e o desenvolvimento da caquexia Adaptada de: Inácio Pinto et al. (2015). Diversas alterações metabólicas são descritas na caquexia. Entre elas, podemos destacar as alterações descritas no metabolismo de carboidratos, proteínas e lipídios. Na caquexia há uma maior taxa de neoglicogênese, a partir de alanina (proveniente da musculatura esquelética), glicerol (cuja disponibilidade no fígado resulta do aumento da lipólise no tecido adiposo periférico) e lactato (produzido pelo tumor em grandes quantidades). O glicogênio hepático é degradado, havendo maior liberação de glicose pelo órgão. A intolerância à glicose e a resistência à insulina são comuns em pacientes com caquexia associada ao câncer, e o TNF-α tem papel importante no desenvolvimento da resistência à insulina na caquexia. Os efeitos da caquexia sobre o metabolismo proteico são o alvo mais frequente dos estudos, visto que a degradação da musculatura constitui um dos sintomas mais importantes da doença. Diferentemente do que é observado no jejum, em que mecanismos regulatórios impedem a degradação extensa da massa magra, na caquexia pode-se observar a ingestão de nitrogênio reduzida 25 FISIOPATOLOGIA DA NUTRIÇÃO em razão da anorexia, e tais mecanismos falham, possibilitando a proteólise, inclusive da musculatura cardíaca e lisa com aumento do turnover proteico. Outras alterações descritas abrangem hipoalbuminemia e aumento na concentração plasmática de fibrinogênio, refletindo alteração na taxa de síntese das duas proteínas no fígado do organismo. Essas mudanças na função do fígado estão ligadas a alterações na síntese proteica, como elevação da concentração de proteínas de fase aguda verificadas no trauma, inflamação e infecção grave, em que há elevação de proteína C reativa e do fibrinogênio (ARGILÉS et al., 2014; MELO et al., 2011). O TNF-α e a IL-6 promovem a mediação na transcrição e ativação de fatores de transcrição, como o nuclear factor kappa B- (NFкB), MyoD, além de outras vias, como a do mTOR (que estaria inibida na caquexia), que acarretam no turnover proteico. A caquexia pode causar alterações no metabolismo lipídico em portador de tumor. Pode-se observar uma elevação da concentração plasmática de glicerol, indicativo de lipólise no tecido adiposo periférico, demonstrando aumento do turnover de ácidos graxos e glicerol em pacientes com câncer caquéticos, comparados aos que não desenvolvem a síndrome. Há também aumento na taxa de oxidação lipídica, não suscetível à inibição por glicose e aumento do ciclo do substrato, acarretando o aumento da lipólise no tecido adiposo marrom. Observa-se, também, redução na deposição lipídica, ou seja, redução da lipogênese, mediada pela redução na expressão/atividade da enzima lipase de lipoproteínas e pela redução na concentração de insulina, além de ocorrer um aumento da atividade da enzima lipase hormônio-sensível estimulada pelas catecolaminas, aumentando a atividade lipolítica (BARACOS et al., 2018). Sabe-se que o tecido adiposo secreta vários hormônios, proteínas e citocinas, que são capazesde regular diretamente o metabolismo lipídico, a atividade do sistema complemento e a homeostasia vascular. Entre esses fatores, destacamos o TNF-α, a interleucina-6 e os hormônios leptina, adiponectina, resistina, entre outros. As modificações provenientes da caquexia no perfil lipídico plasmático são tão acentuadas e características que podem ser utilizadas como marcadores na triagem de pacientes para o diagnóstico inicial de câncer, sendo que quadros de hiperlipemia e hipercolesterolemia são muito prevalentes em pacientes com caquexia associada ao câncer. Essas alterações ocorrem em consequência da redução significativa da atividade da enzima lipase lipoprotéica (LPL), enzima responsável pela remoção do triacilglicerol plasmático nos tecidos periféricos. Também já foi demonstrado que o fígado de animais caquéticos possui reduzida capacidade de oxidar ácidos graxos e de sintetizar corpos cetônicos. Essas alterações metabólicas promovem o agravamento do déficit energético na caquexia e contribuem para a proteólise no músculo esquelético, na tentativa de disponibilizar energia ao organismo. Portanto, com todo o conteúdo descrito anteriormente, é nítido que a caquexia é caracterizada como um quadro inflamatório e catabólico que afeta o metabolismo intermediário e o eixo neuroimunoendócrino, repercutindo negativamente no prognóstico e na qualidade de vida do paciente (veja a figura a seguir) (BARACOS et al., 2018). 26 Unidade I Figura 8 – Catabolismo na caquexia associada ao câncer Adaptada de: Baracos et al. (2018). Veja a seguir os mecanismos fisiopatológicos da caquexia, conforme Melo et al. (2011): • Inflamação sistêmica: — ↑ Concentração tecidual e circulante de fatores pró-inflamatórios. — Infiltração de células imunológicas no tecido adiposo. • Estresse oxidativo: — ↑ Espécies reativas de oxigênio. • Alterações metabólicas: — Metabolismo de carboidratos: - ↑ Neoglicogênese. - Degradação glicogênio hepático. Fatores catabólicos derivados do tumor Mediadores pró-inflamatórios decorrentes do crosstalk tumor-sistema imune Músculo esquelético cardíaco Tecido adiposo brancoGlândula adrenal Tecido adiposo bege Tecido adiposo marrom Crosstalk Crosstalk Órgãos-alvoSNC Resultado Tumor com inflitração imune Neuropeptideo YNeuropeptideo Y MaelanocortinaMaelanocortina CentrosCentros dodo apetiteapetite Redução da ingestão alimentar Saídas simpatoadrenais catabólicas Saídas comportamentais catabólicas Saídas simpáticas catabólicas Condicionamento muscular FadigaAnorexia Excesso proteólise Excesso lipólise Ciclo substrato – Activina – Miostatina – IL-1a – IL-1b – IL-6 – IFNy – GDF15 – TWEAK – TRAF6 – Oncostatina – TNF – IL-11 – IL-17 – LIF – TNFR – PGE2 – Serotonina – TGFb 27 FISIOPATOLOGIA DA NUTRIÇÃO - Intolerância à glicose. - Resistência à insulina. — Metabolismo de proteínas: - Extensa proteólise. - ↑ Turnover. - Inibição do transporte de aminoácidos na musculatura esquelética. - ↑ Liberação alanina e glutamina. - Apoptose na musculatura esquelética. - ↑ Produção de proteínas da fase aguda pelo fígado. — Metabolismo lipídico: - ↓ Massa gorda. - Inflamação do tecido adiposo. - Hipertrigliceridemia, hipercolesterolemia. - ↓ Captação e oxidação de gordura no fígado, cérebro e músculo. - ↓ Síntese de corpos cetônicos no fígado. Saiba mais Acesse o documento a seguir: ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CUIDADOS PALIATIVOS. Consenso brasileiro de caquexia/anorexia em cuidados paliativos. Revista Brasileira de Cuidados Paliativos, v. 3, n. 3, supl. 1, 2011. Disponível em: https://bit.ly/2RMZomn. Acesso em: 25 maio 2021. 28 Unidade I Lembrete A pré-caquexia e a caquexia podem ser revertidas com tratamento multidisciplinar, incluindo a terapia nutricional. Já na caquexia refratária encontramos um quadro não responsivo ao tratamento curativo. 1.3 Sarcopenia 1.3.1 Introdução Após atingir a idade adulta, os humanos e outros mamíferos sofrem um declínio progressivo de força e massa muscular com o passar do tempo. Esse declínio é acompanhado por uma perda de capacidade funcional e um aumento da gordura muscular. A associação desses fatores pode afetar a qualidade de vida dos idosos, causando fragilidade, perda de autonomia e aumento da morbimortalidade. Essa deterioração progressiva da capacidade muscular é conhecida como sarcopenia, do grego sarco (músculo) e penia (desperdício, perda). A sarcopenia vem acometendo cada vez mais a população mundial e é uma doença muscular esquelética progressiva e generalizada associada a uma maior probabilidade de quedas, fraturas, deficiência física e mortalidade (CRUZ-JENTOFT et al., 2019). Vários autores indicaram em seus estudos que a massa muscular atinge o valor máximo por volta dos 30 anos e, a partir daí, diminui a uma taxa de 3-8% por década, sendo que o ritmo de declínio acelera a partir dos 50 anos, atingindo 12-15% por década (SCHAAP et al., 2018). Há alguns anos, um indivíduo era considerado portador de sarcopenia quando os valores dos parâmetros musculares eram inferiores a dois desvios-padrão dos valores de uma população jovem de referência. No entanto, parâmetros relacionados a força, capacidade funcional do sujeito e quantidade de gordura corporal foram incluídos como critérios para determinar a sarcopenia. O uso desses vários parâmetros permitiu a possibilidade de distinguir a etiologia do processo sarcopênico, ou seja, processo dependente do envelhecimento (sarcopenia primária) ou processo patológico (sarcopenia secundária). Em sua definição de 2018, o European Working Group on Sarcopenia in Older People (EWGSOP) usa baixa força muscular como o parâmetro principal da sarcopenia, sendo que a força muscular é atualmente a medida mais confiável da função muscular. O diagnóstico de sarcopenia é confirmado pela presença de baixa quantidade ou qualidade muscular. Quando baixa força muscular, baixa quantidade/qualidade muscular e baixo desempenho físico são detectados, a sarcopenia é considerada grave (CRUZ-JENTOFT et al., 2019). A sarcopenia relacionada ao envelhecimento está diretamente ligada ao processo inflamatório crônico que afeta a maioria dos idosos, agravado por infiltração de gordura no músculo e obesidade sarcopênica. 29 FISIOPATOLOGIA DA NUTRIÇÃO A obesidade sarcopênica é caracterizada pelo aumento patológico da gordura corporal acompanhado por uma diminuição da massa muscular e óssea. Além disso, outras doenças que acometem frequentemente indivíduos mais velhos, como câncer, doença renal, diabetes e doença arterial periférica, também podem contribuir com a progressão da sarcopenia em idosos (SANTOS et al., 2017). 1.3.2 Fisiopatologia A respeito da diminuição da massa muscular, existem dois mecanismos já descritos: redução do número de fibras musculares e redução da área de secção transversal das fibras existentes, sendo que o envelhecimento não afeta da mesma forma todos os tipos de fibras (as fibras do tipo II são as mais afetadas). Desse modo, uma importante incapacidade funcional é observada resultante de diminuir a produção de força rápida ou de realizar potência no músculo. Isso se deve à menor resistência desse tipo de fibra à denervação, deficiência na expressão gênica da miosina tipo II e menor resistência dessas fibras ao estresse oxidativo (JONES et al., 2009). A redução da massa da fibra muscular também é produzida por fatores intrínsecos nos miócitos. Entre esses fatores, podemos destacar o acúmulo de danos ao mtDNA (DNA mitocondrial) que afetam negativamente a taxa metabólica, a síntese proteica e a produção de ATP, acarretando a morte da fibra muscular. Além disso, existe um comprometimento nos mecanismos de regeneração e reparo da fibra muscular devido à menor atividade das células satélites em indivíduos idosos, inflamação crônica, estresse oxidativo, resposta anormal do microRNA e uma regulação inadequada dos processos de reparo em fibras musculares danificadas (PEAKE; DELLA GATTA; CAMERON-SMITH,2010). O músculo envelhecido apresenta um retardo no pico de contração muscular, aumento do tempo de relaxamento muscular, diminuição da força e redução da capacidade metabólica oxidativa. Essas alterações são resultantes do acúmulo de proteínas e DNA danificados pelo estresse oxidativo, principalmente mtDNA, disfunção mitocondrial, alteração do transporte de cálcio e mau funcionamento de proteínas contráteis. A sarcopenia pode se desenvolver como resultado da ingestão inadequada de energia ou proteína, que podem ser resultantes da anorexia, de má absorção, do acesso limitado a alimentos saudáveis ou da capacidade limitada de comer (BEAS-JIMÉNEZ et al., 2011). Todos os mecanismos descritos anteriormente assinalam a etiologia multifatorial da sarcopenia (veja a figura a seguir). 30 Unidade I Fatores nutricionais ↓ Absorção de proteínas ↓ Dieta antioxidante Anorexia Deficiência de vitamina D Fatores do sistema nervoso ↓ Neurônios alfa motores (apoptose, neurotoxicidade) ↓ Unidade motora ↓ Número de fibras Fatores humorais Estado crônico de inflamação (↑ IL-1b, IL-6, TBF-α) Estresse oxidativo Fatores musculares ↓ Massa e força Apoptose Sarcopenia ↓ Atividade ↓ Força Incapacidade Dependência Morbidade Mortalidade Estilo de vida ↑ Sedentário ↑ Massa gorda Obesidade Tabagismo Fatores genéticos Programação genética Plasticidade neural Fatores hormonais ↓ HGH ↓ IGF-I ↓ Testosterona ↓ Estrogênios ↑ Miostatina Resistência à insulina Figura 9 – Esquema dos diferentes mecanismos etiológicos da sarcopenia e suas consequências Adaptada de: Beas-Jiménez et al. (2011, p. 161). De acordo com o consenso europeu da European Working Group on Sarcopenia in Older People (EWGSOP apud CRUZ-JENTOFT et al., 2019) publicado em 2018 e os critérios de diagnóstico propostos, a sarcopenia pode ser classificada da seguinte forma: Quadro 4 – Classificação da sarcopenia Classificação Características Provável sarcopenia Baixa força muscular Sarcopenia Baixa força muscular + Baixa quantidade ou qualidade muscular Sarcopenia grave Baixa força muscular + Baixa quantidade ou qualidade muscular + Baixa performance física Adaptado de: Cruz-Jentoft et al. (2019). 31 FISIOPATOLOGIA DA NUTRIÇÃO 1.3.3 Categorias de sarcopenia e outras condições correlatas Sarcopenia primária e secundária Como vimos, a sarcopenia pode ser classificada em primária e secundária, de acordo com seus fatores etiológicos, e essa classificação pode contribuir para a prática clínica. A sarcopenia é classificada como primária quando seu desenvolvimento está relacionado unicamente com o envelhecimento; por outro lado, na sarcopenia, fatores causais diferentes (ou além) do envelhecimento são evidentes. A sarcopenia secundária pode ser resultado de uma doença sistêmica, especialmente uma que pode promover processos inflamatórios, por exemplo, malignidade ou falência de órgãos. Além disso, a inatividade física também contribui para o desenvolvimento de sarcopenia, seja devido a um estilo de vida sedentário, à mobilidade reduzida ou a uma deficiência relacionada à doença. Sarcopenia aguda e crônica A sarcopenia também pode ser classificada em aguda ou crônica. A sarcopenia aguda apresenta um período de duração inferior a seis meses, enquanto a sarcopenia com duração ≥6 meses é considerada uma condição crônica. A sarcopenia aguda comumente está relacionada a uma doença ou lesão aguda, enquanto a sarcopenia crônica provavelmente está associada a condições crônicas e progressivas e acarreta o aumento do risco de mortalidade (BEAS-JIMÉNEZ et al., 2011; CRUZ-JENTOFT et al., 2019). Obesidade sarcopênica Condição em que há redução da massa corporal em resposta ao excesso de adiposidade. A obesidade sarcopênica é mais relatada em pessoas mais velhas, pois tanto o risco quanto a prevalência aumentam com a idade. A obesidade exacerba a sarcopenia, aumenta a infiltração de gordura nos músculos, diminui a função física e aumenta o risco de mortalidade (CRUZ-JENTOFT et al., 2019; SANTOS et al., 2017). Fragilidade É uma síndrome geriátrica multidimensional caracterizada pelo declínio cumulativo em vários sistemas ou funções do corpo, com patogênese envolvendo dimensões físicas e sociais. A fragilidade está intimamente relacionada com maus resultados de saúde, como deficiência, internação hospitalar, redução da qualidade de vida e até morte. O fenótipo físico da fragilidade descrito por Fried e colaboradores mostra uma sobreposição significativa com a sarcopenia, pois pode-se observar em ambos os pacientes baixa força de preensão e baixa velocidade de marcha. A perda de peso, que é um critério para diagnóstico de fragilidade, também é um fator etiológico da sarcopenia (CEDERHOLM, 2015; CRUZ-JENTOFT et al., 2019). 32 Unidade I 1.3.4 Consequências da sarcopenia Alterações estruturais características da sarcopenia, como a redução de massa e fibras musculares e aumento relativo nas fibras tipo I, estão associadas a fraqueza muscular, força específica e resistência muscular reduzidas, bem como resistência à insulina e possível desenvolvimento de diabetes mellitus (DM). O aumento de citocinas pró-inflamatórias, como TNF-α e IL-6, em indivíduos sarcopênicos pode contribuir com o desenvolvimento da aterosclerose. O TNF-α promove adesão de leucócitos às células endoteliais, induzindo quimiotaxia e aumentando a expressão de várias moléculas de adesão. A IL-6 promove adesão de linfócitos ao endotélio – aumentando, assim, a permeabilidade endotelial –, estimula a transformação de monócitos em macrófagos e induz a proliferação de musculatura lisa vascular. Finalmente, além disso, TNF-α e IL-6 podem elevar a síntese de proteínas de fase aguda no fígado, que são importantes fatores de risco cardiovascular. Contudo, a sarcopenia per se acarreta a queda da qualidade de vida e comprometimento do prognóstico de pacientes e ainda podem contribuir com o desenvolvimento de outras doenças. Portanto, com tudo que foi estudado, a sarcopenia associada ao envelhecimento é um processo lento e progressivo e aparentemente inevitável. A sarcopenia apresenta diversos fatores etiológicos, em que destacam-se a diminuição de estímulos anabólicos e o aumento de estímulos catabólicos musculares, devido, principalmente, à elevação das citocinas pró-inflamatórias. Suas consequências afetam diretamente a capacidade funcional dos idosos e possuem sérias repercussões sobre a saúde do indivíduo (PIERINE; NICOLA; OLIVEIRA, 2009). Saiba mais Leia o consenso europeu sobre a definição e diagnóstico da sarcopenia: CRUZ-JENTOFT, A. J. et al. Sarcopenia: revised European consensus on definition and diagnosis. Age and Ageing, v. 1, n. 48, p. 16-31, jan. 2019. Disponível em: https://bit.ly/3bUDapj. Acesso em: 25 maio 2021. 2 DOENÇAS RENAIS 2.1 Lesão renal aguda 2.1.1 Introdução No início do século XX, em 1909, a lesão renal aguda foi descrita no Willian Osler’s textbook for medicine como Bright’s disease, mas o termo “insuficiência renal aguda” foi creditado a Homer W. Smith e descrito no capítulo “Acute renal failure related to traumatic injuries” no livro The kidney-structure and functional in health and disease, de 1951. Atualmente, é empregado o termo “lesão renal aguda”. 33 FISIOPATOLOGIA DA NUTRIÇÃO Foi proposta a substituição do termo “insuficiência renal aguda” (IRA) por “lesão renal aguda” (LRA) por ser mais amplo, pois abrange desde pequenas alterações na função renal até mudanças que necessitam de terapia de substituição renal (NUNES et al., 2010). A LRA é definida como perda rápida da função renal, com azotemia (elevação de ureia e creatinina). É caracterizada por uma redução abrupta da função renal, que pode se manter por períodos variáveis, resultando na incapacidade dos rins para exercer suas funções de excreção e manutenção da homeostase hidroeletrolítica do organismo. Apesar do avanço para a compreensão dos mecanismos fisiopatológicos da LRA, assim como de seu tratamento, os índices de mortalidade
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