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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA THIAGO DESTRO ROSA FERREIRA MITOLOGIA NA CONTEMPORANEIDADE: O LEGENDARIUM DE J.R.R. TOLKIEN UBERLÂNDIA 2013 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA THIAGO DESTRO ROSA FERREIRA MITOLOGIA NA CONTEMPORANEIDADE: O LEGENDARIUM DE J.R.R. TOLKIEN Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em História, do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em História Orientadora: Profa. Dra. Josianne Francia Cerasoli. Linha de Pesquisa: Política e Imaginário UBERLÂNDIA 2013 3 FICHA CATALOGRÁFICA Ferreira, Thiago Destro Rosa. (1987) Mitologia na Contemporaneidade: o Legendarium de J.R.R. Tolkien/ Thiago Destro Rosa Ferreira – Uberlândia, 2013. 166 pgs. Orientadora: Josianne Francia Cerasoli Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Uberlândia, Curso de Mestrado em História Inclui Bibliografia Palavras-chave: J.R.R. Tolkien, contemporaneidade, modernidade, subcriação 4 THIAGO DESTRO ROSA FERREIRA MITOLOGIA NA CONTEMPORANEIDADE: O LEGENDARIUM DE J.R.R. TOLKIEN Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em História, do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em História Linha de Pesquisa: Política e Imaginário Uberlândia, 22 de fevereiro de 2013 ________________________________________________ Profa. Dra. Josianne Francia Cerasoli – Orientadora (UFU) ________________________________________________ Profª. Drª Karin Volobuef (UNESP – Araraquara) ________________________________________________ Profª. Drª Jacy Alves Seixas (UFU) 5 Para Gustavo. Sem sua inspiração e paciência élficas, e sua alegria de hobbit, essa dissertação não teria sido possível. 6 A G R A D E C I M E N T O S Nessas minhas aventuras pela Terra-média eu devo tanto a tantas pessoas! Meu objetivo com certeza não era terrível e tão difícil quanto o de Frodo, mas creio que a minhas dívidas com os companheiros de estrada são ainda maiores que as dele. À minha orientadora Josianne, um agradecimento especial por tantas coisas! Pela orientação sempre atenciosa e instigante, pelo estímulo a autonomia intelectual, por ter aceitado enfrentar esse desafio comigo, ainda na graduação. Mais do que isso, por sempre ter uma palavra de motivação e de força para levar o trabalho adiante. Muito obrigado mesmo Josi! Também sou muito grato a toda a contribuição do professor Guilherme e da professora Jacy, não só para o desenvolvimento desse trabalho, mas também pela importância que tiveram na minha formação intelectual. À professora Karin Volobuef, que tão gentilmente acolheu o convite para compor a a minha banca de defesa, agradeço desde já a leitura e o proveitoso diálogo. Agradeço ainda à CAPES, que possibilitou que eu me dedicasse a essa pesquisa como bolsista de mestrado. Aos meus amigos, que me acompanharam e me apoiaram durante todo esse tempo de pesquisa, dedico todo o meu carinho. Tivemos muita sorte de estarmos todos envolvidos com nossos trabalhos, mais ou menos na mesma época, e assim pudemos nos ajudar naqueles inúmeros momentos de dificuldade que aparecem ao longo do caminho. Jac, Cris, Lud, Thiago, Dio, New... Conseguimos! Gui e Gu, mais um pouco e estão lá também! Agradeço ainda aos meus pais, irmão, tios, tias, primos e tantos outros, que sempre que esbarravam um elfo em algum lugar lembravam de mim e me davam um palpite, ou me passavam uma nova informação sobre o mundo de Tolkien. Aos meus pais em especial, pelo carinho e compreensão nos momentos em que tinha que trocar aquele feriado em família pelos eventos na Vila dos Hobbits. Por fm, tenho de agradecer ao próprio J.R.R. Tolkien, que além de me proporcionar incontáveis horas de agradáveis leituras, ainda me possibilitou a realização desse trabalho. 7 R E S U M O A mitologia do progresso, como denomina Paolo Rossi, calcada na crença do contínuo aperfeiçoamento da humanidade e nos benefícios da ciência e, mais recentemente, da técnica, foi um dos guias decisivos do projeto de modernidade das sociedades ocidentais, e, apesar de abalada no decorrer do último século, ainda persiste no imaginário atual. Diante disso, J.R.R. Tolkien afirmou certa vez: "É uma maldição ter o temperamento épico em uma época superlotada dedicada a pedacinhos ligeiros!”. Esse incômodo com seu próprio tempo é, segundo Agamben, a característica do contemporâneo por excelência, aquele que não se acomoda totalmente a seu tempo, percebendo as sombras que este comporta. Nesse contexto, o Legendarium, termo dado pelo autor ao seu conjunto literário, elaborado em sua maior parte durante a primeira metade do século XX, propõe um mundo fictício embasado na fantasia e no mítico, aparentemente anacrônico com sua época, mas paradoxalmente contemporâneo. Assim, o presente trabalho se propõe a refletir sobre aspectos do imaginário contemporâneos por meio da análise da obra literária de J.R.R. Tolkien, focada, principalmente nas obras O Senhor dos Anéis (1954–1955) e O Silmarillion (1977). Palavras-chave: J.R.R. Tolkien. Mitologia. Contemporaneidade. Modernidade. 8 A B S T R A C T The mythology of progress, as called Paolo Rossi, based on the belief of the continued betterment of mankind and the benefits of science and, more recently, the technique, was one of the decisive guides to the project of modernity in Western societies, and although shaken during the last century, still exists in the actual imaginary. Given this, JRR Tolkien once said: “It is a curse having the epic temperament in an overcrowded age devoted to snappy bits!” This discomfort with their own time is, according to Agamben, the characteristic of the contemporary par excellence, one that does not fully accommodates with your time, realizing the shadows that this entails. In this context, the Legendarium, term given by the author to his literary set, developed mostly during the first half of the twentieth century, proposes a fictional world grounded in fantasy and in mythic, seemingly anachronistic with his time, but paradoxically contemporary. Therefore, this paper intends to reflect on aspects of contemporary imaginary through the analysis of literary JRR Tolkien, focused mainly in the works The Lord of the Rings (1954-1955) and The Silmarillion (1977). Keywords: J.R.R. Tolkien. Mythology. Contemporaneity. Modernity. 9 L I S T A D E I L U S T R A Ç Õ E S Figura 1 - Inscrições das páginas iniciais d'O Senhor dos Anéis 11 L I S T A D E A B R E V I A Ç Õ E S CARTAS – As Cartas de J.R.R. Tolkien CI – Contos Inacabados de Númenor e da Terra-média Hb – O Hobbit HoME-I – The History of Middle-earth: The Books of Lost Tales, part 1 HoME-II – The History of Middle-earth: The Books of Lost Tales, part 2 HoME-III – The History of Middle-earth: The Lays of Beleriand HoME-IV – The History of Middle-earth: The Shaping of Middle-earth HoME-V – The History of Middle-earth: The Lost Road and Other Writings HoME-IX – The History of Middle-earth: Sauron Defeated HoME-X – The History of Middle-earth: Morgoth’s Ring HoME-XI – The History of Middle-earth: The War of the Jewels MYTH – Mythopoeia SdA – O Senhor dos Anéis SHF – Sobre Histórias de Fadas SILM – O Silmarillion10 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...............................................................................................................11 I – NARRAR UMA REALIDADE .................................................................................20 1 – Subcriação ............................................................................................................ 20 2 – As Narrativas de Arda .......................................................................................... 31 II – A MITOLOGIA DE ARDA .....................................................................................41 1 – A Música dos Sagrados ........................................................................................ 42 2 – A Dissonância na Melodia: o Mal e o Senhor do Escuro ..................................... 49 3 – Dos Poderes do Mundo ........................................................................................ 56 3.1 – Os Valar ............................................................................................................. 60 3.2 – Os Maiar ............................................................................................................ 67 4 – Os Filhos de Ilúvatar ............................................................................................ 70 4.1 – Quendi, os Primogênitos.................................................................................... 70 4.2 – Atani, os Sucessores .......................................................................................... 74 5 – Tempo e Espaço nos Círculos do Mundo ............................................................. 75 III – MITOS DE ARDA, MITOS DA MODERNIDADE ..............................................82 1 – Aulë, ou Da arte e do ideal no ofício do artífice ................................................... 83 2 – Melkor e a Mitológica da Ciência e do Progresso ................................................ 89 3 – O Olho de Sauron ................................................................................................. 96 4 – O Mago Branco e o sentido da História ............................................................. 107 5 – Os Limites de Arda e as Modernidades .............................................................. 115 IV – MITOLOGIA E CONTEMPORANEIDADE ......................................................127 1 – Os Narradores de Arda ....................................................................................... 127 2 – Mitopoese ........................................................................................................... 136 REFERÊNCIAS ............................................................................................................143 ANEXOS .......................................................................................................................151 11 INTRODUÇÃO “Numa toca no chão vivia um hobbit [...] e seu nome era Bolseiro. [...] Está é a história de como um bolseiro teve uma aventura, e se viu fazendo e dizendo coisas totalmente inesperadas” 1 *. Assim começam as histórias narradas por J.R.R. Tolkien, o criador da Terra-média. As possibilidades criativas que a ficção permite ao escritor são sedutoramente vastas, por meio dela é possível conceber personagens e situações diversas, construir ricas paisagens e cenários. Tolkien procurou levar tais possibilidades ao máximo, e acabou concebendo, não apenas uma localidade ou um reino fictício, mas todo um mundo, complexo e vasto, que tem conquistado uma enorme quantidade de leitores desde a publicação de O Hobbit, em 1937. John Ronald Reuel Tolkien nasceu em 1892 em Bloenfontein, África do Sul, mas ainda criança vai para a Inglaterra, país de origem de sua família. Desde cedo desenvolveu um gosto por línguas, tornando-se mais tarde filólogo. Lecionou na Universidade de Leeds, e posteriormente na Universidade de Oxford, onde exerceu a docência até sua aposentadoria. Seu interesse maior eram as línguas antigas, em especial aquelas do norte da Europa como o finlandês e o anglo-saxão, tendo exercido a cátedra desse último. Tais interesses fizeram com que ele tivesse um grande contato com os antigos textos desses idiomas, de modo que seus estudos acabaram por se concentrar nestas obras. Dentre seus trabalhos acadêmicos destaca-se o ensaio Beowulf: The Monsters and the Critics (1936), até hoje uma referência para os estudos do poema anglo-saxão Beowulf 2, e traduções, tais como a de Sir Gawain and the Green Knight * Neste trabalho, as passagens dos textos de Tolkien citadas no texto serão referenciadas da seguinte forma: o original em inglês virá em rodapé de página, seguido pela sigla referente à obra de Tolkien do qual foi retirada a citação, o número da página da edição inglesa e por fim a paginação da edição em português, quando houver. 1 “In a hole in the ground there lived a hobbit […] and his name was Baggins. […] This is a story of how a Baggins had an adventure, and found himself doing and saying things altogether unexpected” (Hb, p.1,1-2). 2 Escrito aproximadamente entre o século VIII e X da era cristã, o Beowulf é um poema escrito em anglo- saxão (old-english) de autoria desconhecida. Apesar de ter sido elaborado na Inglaterra, o poema narra os feitos de Beowulf príncipe dos Geats, eventos que teriam ocorrido no que hoje seriam regiões da Suécia e Dinamarca. 12 (1925) 3. Além disso, ele reelaborou literariamente alguns desses temas, compondo, dentre outros, A Lenda de Sigurd e Gudrun e The fall of Arthur4. Paralelamente ao seu trabalho como professor e pesquisador, Tolkien dedicou-se durante a maior parte da vida à elaboração de uma mitologia. Sendo professor de línguas antigas, possuía vasto conhecimento sobre os temas épicos e míticos registrados nos textos que estudava, partindo disso, chegou a conclusão pessoal de que, dado aos poucos textos que haviam sido preservados, a Inglaterra não possuía preservado um conjunto mítico de vulto. Assim, o desejo por uma mitologia propriamente inglesa e o gosto pela criação de línguas fictícias, atividade que sempre o atraiu particularmente, o motivaram a elaborar aquilo que denominou o Legendarium de Arda, seu mundo mitológico. O Legendarium foi elaborado principalmente durante a primeira metade do século XX, num processo criativo que se iniciou por volta do início da década de 1910 e estendeu-se até 1973, ano da morte de seu autor. É portanto fruto de um trabalho desenvolvido ao longo de quase sete décadas de trabalho, que começou a ser explorado pelos leitores em O Hobbit. Nessa obra, somos apresentados a Terra-média e acompanhamos a aventura de Bilbo Bolseiro, que deixa o conforto de seu lar e, acompanhado por um grupo de treze anões e um velho mago, parte em busca do tesouro do dragão Smaug. A aventura do Sr. Bolseiro agradou o público infantil, e, ainda em 1937, Tolkien foi incentivado pelos editores a produzir novos escritos sobre hobbits. Dezessete anos depois foi publicado O Senhor dos Anéis, obra mais densa e dirigida ao público adulto. Publicada em três volumes, A Sociedade do Anel e As Duas Torres em 1954, e O Retorno do Rei em 1955, a obra se tornou um grande sucesso editorial, conferindo grande visibilidade a seu autor. O Legendarium seria composto ainda pelas seguintes obras: As Aventuras de Tom Bombadil e outros versos do Livro Vermelho (1962), e postumamente, O Silmarillion (1977), Contos Inacabados de Númenor e da Terra-média (1980), os doze 3 Texto do século XIV, que se inscreve no chamado círculo arturiano. O poema narra a aventura que Sir Gawain, um dos cavaleiros de Arthur, teve envolvendo o misterioso Cavaleiro Verde do título. 4 Textos escritos nas décadas de 1920 e 1930.O primeiro retoma a saga de Sigurd, o Volsung, tema da mitologia nórdica. O segundo trabalha a queda e a morte do legendário Rei Arthur. Sigurd e Gudrun foi publicado, postumamente, em 2009, e The fall of Arthur será publicado em 2013. 13 volumes de The History of Middle-earth (publicados entre 1983 e 1996) e mais recentemente Os Filhos de Húrin (2007) 5. Os acontecimentos narrados se passam em Arda, nome dado ao universo tolkieniano, no entanto, a maioria das histórias se passa na Terra-média, uma região de Arda, na qual os vários povos habitam e os acontecimentos se desenrolam. Esse universo é povoado por homens, e também por elfos, anões, hobbits, orcs, dentre outras raças fantásticas criadas por Tolkien inspiradas nas antigas mitologias europeias. Suas obras cobrem uma ampla gama de assuntos e acontecimentos, que vão desde o mito cosmogônico de criação, passando por momentos como a introdução do mal na ordem das coisas, a ação dos poderes divinos na formação do cosmo, até o relato de grandes guerras e a ascensão e queda de grandiosos reinos. Cronologias detalhadas, anais de eventos, dentre outros detalhes esperados de um registro histórico mais tradicional são encontrados em abundância, uma vez que as obras e textos que compõem o Legendarium são apresentados ao leitor como registros de antigas narrativas míticas de um passado remoto da humanidade 6. As críticas dirigidas à literatura do professor Tolkien oscilam entre o elogio e a depreciação. Quando O Senhor dos Anéis foi lançado em 1954, por exemplo, a obra foi alvo de um acalorado volume de críticas variadas. Em um comentário no periódico britânico Truth, o jornalista Bernard Levin foi da opinião de que a obra era “uma das mais admiráveis obras da literatura do nosso ou de qualquer tempo” (apud WHITE, 2002, p.207), e o poeta W. H. Auden afirmou que não mais confiaria nos julgamentos daqueles que desaprovassem o livro. Por outro lado, o crítico americano Edmund Wilson chegou a caracterizá-lo de “lixo juvenil”. Outros comentários diziam que a obra só agradaria ao gosto britânico, ou criticavam o que chamavam de superficialidade dos personagens. A obra teria um conteúdo maniqueísta com os personagens representando 5 Datas de publicação para as edições inglesas. No Brasil O Senhor dos Anéis foi lançado em uma primeira edição pela editora Artenova ainda na década de 1970. Segundo consta, a editora não possuía autorização para uma tradução da obra. Em 1994 a editora Martins Fontes lança a obra em três volumes, e em 2000 em volume único. As demais obras foram editadas também pela Martins Fontes nas seguintes datas: O Hobbit/1995, O Silmarillion/1999, Contos Inacabados/2002, As Aventuras de Tom Bombadil/2008 e Filhos de Húrin/2009. A coleção The History of Middle-earth ainda não conta com uma edição brasileira, ou em português. Tolkien ainda escreveu obras não diretamente relacionadas com o seu Legendarium como Roverandom (1998) e Farmer Giles of Ham (1949), publicado no Brasil como Mestre Gil de Ham (2003). 6 O próprio termo Legendarium, escolhido por Tolkien para designar seu conjunto literário, faz referência ao conteúdo e às temáticas dos textos que o compõem. Em latim medieval o termo designava um conjunto de lendas, especialmente referentes à vida dos santos. Desse modo, o termo escolhido por Tolkien tinha por intenção designar sua literatura como um conjunto de lendas ou mitos. 14 estereótipos rasos e pobres. Seriam sempre bons e nobres, ou cruéis e sombrios, não havendo espaço para o conflito ou profundidade na construção de suas personalidades. Já Edwin Muir disse em uma de suas críticas que “o espantoso é que todos os personagens são garotos mascarados de heróis adultos [...] dificilmente um deles sabe alguma coisa sobre mulheres, a não ser de ouvir falar” (WHITE, 2002, p.209) 7. Apesar disso, um grande público leitor se formou em torno de suas obras. White nos fornece o número de cem milhões de exemplares de O Senhor dos Anéis vendidos no mundo todo desde o seu lançamento até o ano de 2001. As vendas de O Hobbit acrescentariam a esse número outros sessenta milhões de exemplares. Estima-se que as duas obras juntas aumentam esse número em três milhões por ano (WHITE, 2002, p.248-49). A esses somam-se ainda as demais obras do Legendarium, como O Silmarillion. Em 1997, O Senhor dos Anéis foi eleito o livro do século pelos leitores da editora Waterstones (WHITE, 2002, p.244), resultado que voltou a se repetir em 2003 em votação promovida pela emissora pública britânica de rádio e televisão BBC 8. Para além do âmbito da leitura, formaram-se ainda organizações de admiradores e estudiosos. Em 1969 foi fundada na Inglaterra a Tolkien Society, a primeira dessas organizações. No Brasil, temos grupos como o Conselho Branco e o fórum virtual Valinor. Nos anos 2000, a filmografia baseada em O Senhor dos Anéis contribuiu para essa popularização. Se por um lado as críticas negativas ao trabalho do autor se avolumam, por outro é inegável o interesse que ele exerce. Embasado na fantasia e no mítico, o Legendarium propõe um mundo fictício aparentemente anacrônico com o século XX . Por meio de sua literatura, Tolkien acabou por se posicionar diante de um século no qual a percepção de que tudo se acelerava de maneira frenética e incessante era marcante; vestígios da crescente importância do ideal do progresso do século XIX, sobretudo de matriz positivista, eram cada vez mais notáveis, e as próprias relações pessoais começavam a adquirir novos contornos. Sendo assim, a partir de seus posicionamentos e de sua obra, Tolkien não poderia ser tido como apenas um deslocado, um descrente com o tempo em que viveu? Um acadêmico que projetava sua nostalgia em um glorioso passado fictício? 7 Ainda sobre as críticas em torno da obra de Tolkien ver Curry (2005). 8 Cf. Britânicos elegem “O Senhor dos Anéis” o melhor livro da história. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/cultura/story/2003/12/031214_senhoron.shtml. Acesso em: 5 ago. 2010. Esse resultado provavelmente foi influenciado pela publicidade em torno da filmografia baseada em O Senhor dos Anéis produzida à época da pesquisa. 15 Segundo o filósofo Giorgio Agamben, o contemporâneo não deve ser entendido como sendo aquele que coincide de forma muito próxima com sua própria época, pois essa proximidade impediria o olhar inquiridor e crítico sobre a mesma. Pelo contrário: Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; [...] exatamente através desse descolamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo. (AGAMBEN, 2009, p.58-59) O “anacronismo” de Tolkien em relação ao seu próprio tempo era algo que ele mesmo reconhecia: “É uma maldição ter o temperamento épico em uma época superlotada dedicada a pedacinhos ligeiros!” 9 afirmou em uma de suas cartas. Marcado pela vivência de duas guerras mundiais, desconfortável em uma Inglaterra cada vez mais tomada pelas “maravilhas” do maquinário moderno, das quais desconfiava seriamente, e adepto de gostos e valores literários considerados “excêntricos”, direcionados à fantasia e ao conto-de-fadas, Tolkien reconhecia seu deslocamento. Mas é justamente por isso, como afirmado por Agamben, que talvez seu olhar tenha sido mais rigoroso com o seu tempo, e sua obra, por sua vez, contenha elementos importantes que respondam aos anseios de nossa época. Partindo dessa perspectiva, o estudo da obra de Tolkien poderia trazer alguma contribuição para a compreensão das sombras de seu tempo? Foram essas singularidades e inquietações que motivaram o desenvolvimento do presente trabalho.A obra do autor poderia ser lida como uma crítica à época? Que diálogo os mitos de Arda estabelecem com as concepções modernas que seguem orientando a contemporaneidade? Quais os desdobramentos possíveis de uma obra que se quer não como literatura mas como o registro de uma antiga linhagem narrativa? Em síntese, qual a pertinência de uma mitologia como essa na contemporaneidade? Essas são as indagações a ques se propõe essa pesquisa. Tais questionamentos se mostram particularmente pertinentes quando pensadas a partir das noções de racionalidade científica e progresso sobre as quais se estruturaram a modernidade, não apenas a mais contemporânea, vivenciada por Tolkien. Tais concepções estão naturalizadas e assentadas na certeza do progresso e da ciência, que, 9 “It is a curse having the epic temperament in an overcrowded age devoted to snappy bits!” (CARTAS, p.101,91). 16 elegendo a razão como instrumento “natural” e “lógico” para se pensar a realidade, aparentemente sentenciaram à marginalidade os domínios do sentimento, da imaginação e do sagrado. Essas noções, tais como são representadas na contemporaneidade, começaram a ser gestadas ainda nos séculos XVI e XVII, durante o Renascimento, consolidaram-se no século XIX, e foram aceitas e ampliadas, não sem grandes questionamentos, ao longo do século XX. Entretanto, a aposta do progresso foi, em certa medida, fortemente abalada no início do último século, com as guerras de caráter mundial e as crises, sobretudo da década de 1930, que colocaram em xeque as promessas do perpétuo avanço humano. No entanto, mesmo que as certezas da modernidade tenham sofrido grandes abalos, o imaginário apoiado nessa tríade, razão, ciência e progresso, ainda persiste em nossa contemporaneidade. Contemporaneidade essa, que parece promover um reiterado dualismo: razão/paixão e imaginação, luz/sombra, quase sempre separados, como se não operassem em conjunto no agir, pensar e sentir dos homens. Ao eleger a obra literária de John R. R. Tolkien como fonte de pesquisa, entendo que, de certa forma, abordo um objeto de pesquisa “incomum” para o campo da historiografia, já que a literatura produzida por ele, dita fantástica, ou de fantasia, não é comumente analisada a partir de uma perspectiva historiográfica10. No entanto, a meu ver, esse tipo de ficção traz ricas possibilidades no que se refere à relativização daquilo que costumamos entender como realidade. Como afirma C.S. Lewis11, a literatura como um todo possibilita ao leitor um deslocamento de olhar, uma possibilidade de enxergar outros pontos de vista: Aqueles de nós que têm sido leitores verdadeiros durante todas as nossas vidas raramente entendem por completo a enorme extensão do nosso ser que devemos aos autores. [...] Meus próprios olhos não me bastam, eu verei através dos olhos dos outros. Realidade, mesmo vista através dos olhos de muitos, mão é o bastante. Verei o que os outros 10 No Brasil, a maioria dos trabalhos acadêmicos sobre Tolkien foi realizado no campo da teoria literária como por exemplo os trabalhos de mestrado de Pereira, 2011 e Silva, 2008. Na área de tradução tem-se ainda alguns trabalhos interessantes, como as dissertações de Gonçalves, 2007 e Lopes, 2006. Há também trabalhos em áreas diversas Klautau, 2007, que trabalha a partir da perspectiva das ciências da religião. No entanto, a área de história conta apenas com o recente trabalho de Teixeira, 2011. É notável ainda o fato de que a maioria dos trabalhos tem O Senhor dos Anéis como o foco de suas reflexões. 11 Cabe notar aqui que, assim como Tolkien, Lewis também foi escritor e professor em Oxford, além de terem sido amigos durante grande parte da vida. Ambos integram o chamado grupo dos Inkling, dedicado à leitura e discussão de literatura, notadamente de textos de conteúdo mítico e de escritos dos próprios membros. Vários textos de Tokien tiveram nos Inklins seus primeiros ouvintes e leitores. Além de Lewis e Tolkien, foram membros do Inklings, autores ingleses tais como Charles Williams e Owen Barfield, dentre outros. 17 inventaram. [...] Lamento que os brutos não possam escrever livros. Com muita gratidão eu aprenderia qual a face com que as coisas se apresentam a um camundongo ou uma abelha [...] lendo grande literatura eu me torno mil homens e ainda permaneço eu mesmo. (LEWIS apud CAUSO, 2003, p.41) No trecho citado, nota-se a sensibilidade de Lewis frente às possibilidades do texto literário. Lendo, “me torno mil homens”, vivencio experiências que não as minhas, me coloco no lugar do outro. Se a literatura como um todo nos oferece esse recurso, que possibilidades nos oferecerão então, obras criadoras de realidades outras? Ainda assim, a relação entre História e Literatura permanece conflituosa. Acredito que a literatura pode dizer muito a respeito dos homens que a produzem e a leem. Por meio dela, as angústias e anseios humanos são retratados e discutidos. No entanto, os historiadores muitas vezes tendem a manter uma postura desconfiada em relação ao texto literária. Admitem-na como campo de estudo e pesquisa, mas, muitas vezes, creem ser necessário demarcar claramente o limite entre as disciplinas, defendendo-se da ficção, e reafirmando a cientificidade do texto histórico. A situação torna-se mais complexa quando examinamos a obra de John R. R. Tolkien. O autor concebe Arda como um mundo tão rico em detalhes que poderíamos falar, de certa forma, em uma “historicidade fictícia”, própria às narrativas do Legendarium. De um ponto de vista mais ortodoxo, tal obra poderia oferecer muitos obstáculos e empecilhos para um exame do ponto de vista histórico. Seria também perigoso e arriscado entrar em terreno no qual ficção e realidade assumem fronteiras tão movediças. Encaro as peculiaridades dessa obra de forma diferente. Vejo aqui uma oportunidade para se pensar sobre a relatividade daquilo que entendemos como realidade, contribuindo para os debates feitos em torno dessa questão. A História e a Literatura, guardando-se suas respectivas particularidades, são formas de compreensão e aproximação em relação ao o mundo, portanto, o diálogo entre ambas as áreas pode ser extremamente rico. Dessa forma, proponho para este trabalho a análise do Legendarium tolkieniano, em específico as obras O Silmarillion e O Senhor dos Anéis, que formam o conjunto narrativo central à obra. Além disso, O Silmarillion é uma espécie de compêndio dos antigos mitos e histórias do passado da Terra-média, sendo, de certa forma, o “pano de fundo histórico” d’O Senhor dos Anéis. Por isso o autor insistiu por várias vezes que as 18 duas obras fossem publicadas juntas, por entender que uma complementava e fornecia embasamento à outra. Recorrerei ainda, sempre que necessário, aos demais textos do Legendarium, além da coletânea de cartas de J.R.R. Tolkien, publicadas e organizadas por seu filho Christopher Tolkien e seu biógrafo Humphrey Carmpenter, nas quais o autor faz esclarecimentos valiosos sobre a constituição e as intenções de sua obra. Uma vez que o Legendarium de Tolkien apresenta a distinção de ter sido concebido como um mundo verossímil, um estudo que pretenda analisar suas narrativas não pode ignorar suas particularidades constituintes. Desse modo, já que que os diversos textos e narrativas que compõem o Legendarium de Arda são concebidos como registros míticos e históricos, assim eles são encarados nesse trabalho. Recorro a uma abordagem semelhante a que Frances Yates adotou em seu trabalho sobre os textos mágico-herméticos do Renascimento europeu. A época do desenvolvimento das tradições herméticas, acreditava-se que o autor de tais escritos, o lendário Hermes Trimegisto, teria sido um sacerdote egípcio contemporâneo aos profetas bíblicos. Os textos herméticos,consequentemente, adviriam da antiquíssima sabedoria de seu autor. Entretanto, a real datação dos textos, posteriormente apurada, indicava os primeiros séculos da era cristã como mais provável para sua concepção, bem como apontava não um, mas vários autores. Apesar disso: [...] com referência aos nossos propósitos, são irrelevantes os problemas críticos e históricos da literatura hermética [...] e, assim, abordarei imaginativamente esses documentos, [...] como revelações da antiqüíssima sabedoria egípcia, registradas por um escritor que vivera muito antes de Platão e mais tempo ainda antes de Cristo. [...] Parece-me que, somente aderindo com certo grau de simpatia à imensa ilusão de sua grande antiguidade e caráter egípcio, poderemos esperar compreender o tremendo impacto que essas obras tiveram sobre o leitor da Renascença. (YATES, 1990, 32-33) Assim, o objeto de estudo dessa pesquisa não é apenas a obra literária de J.R.R. Tolkien, mas o próprio mundo de Arda, acessado por meio dos diversos textos que o abordam. Pretendo empreender, juntamente como o leitor, uma incursão por esse mundo, analisando seus mitos e sua história para que possamos compreender as relações que este mantém com nossa própria contemporaneidade. Nesse trabalho, procuro, primeiramente, compreender o processo criativo e as concepções literárias de J.R.R. Tolkien, fortemente centradas na questão da fantasia como forma artística legítima, pela qual o autor pode construir realidades. Nesse 19 sentido, me dedico também, a importância da narrativa para o Legendarium, elemento que além de contribuir para a criação de Arda, promove uma continuidade entre o passado mítico construído por meio da literatura de Tolkien e o momento histórico do autor e de seus vários leitores. No segundo capítulo, me detenho sobre os aspectos constitutivos da mitologia de Arda, e assim, procurei proceder tal como um estudo de mitologia comparada, dando atenção a seu mito de criação, às potências divinas que agem no mundo e sua cosmologia, sempre buscando paralelos com outras tradições mitológicas. Espero que ao fim dessa etapa o leitor possa perceber as características míticas do Legendarium, bem como possa obter uma compreensão geral de Arda, de seus mitos e de seus principais temas. Após esse exame mais geral da mitologia de Tolkien dedico-me mais detidamente a alguns motivos míticos em especial. Dentre esses, o tema do artífice e sua obra será o fio condutor a nos guiar nas reflexões a cerca do diálogo, e da tensão, entre os mitos de Arda e o que chamei mitos modernos. Desde o mito cosmogônico, passando pelas potências divinas que regem o mundo, até os principais dramas da história de Arda, encontraremos a questão da criação como um tema central. Por meio dela é possível abordar alguns temas fundamentais à modernidade ocidental. Dentre esses, dedico especial atenção às questões da ciência e do progresso, e da relação entre liberdade e poder. Por fim, retomo dois pontos fundamentais a literatura de J.R.R. Tolkien, as questões da narrativa e do mito, importantes pilares que sustentam toda a sua obra. O Legendarium se pretende um conjunto de mitos transmitidos ao longo de uma longuíssima tradição narrativa, que teria se perpetuado do passado remoto de Arda até o século XX. Mas afinal, é possível considerar a literatura Tolkien como um conjunto mítico e narrativo legítimo? Está feito assim, o convite ao leitor. Façamos uma viagem pelas vastas regiões de Arda, sem perder de vista nossa contemporaneidade, a fim de tentar compreender as imbricações entre estes dois mundos. “Lá e de volta outra vez”, assim como fez Bilbo Bolseiro em busca do tesouro de Smaug. 20 I – NARRAR UMA REALIDADE Agora tinha nas mãos um vasto fragmento metódico da história total de um planeta desconhecido, com suas arquiteturas e querelas, com o pavor de suas mitologias e o rumor de suas línguas, com seus imperadores e mares, com seus minerais e pássaros e peixes, com sua álgebra e seu fogo, com sua controvérsia teológica e metafísica. Jorge Luis Borges. Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. J.R.R. Tolkien possuía concepções muito próprias acerca da literatura e da criação literária. Defendia que a literatura que escrevia, a fantasia, não era nem especialmente dedicada às crianças e nem uma forma literária menor, pelo contrário, por meio dela era possível conceber outros mundos possíveis. Como procurarei analisar, seu Legendarium foi concebido não como uma ficção tradicional, mas como subcriação, o resultado da arte do subcriador, aquele que a partir da linguagem, e suas propriedades, reelabora os elementos constrói uma realidade. Tais questões formam o caminho que nos leva ao mundo de Arda, sendo também fundamentais às relações que este mantém com a contemporaneidade. Nesse capítulo, as perseguiremos, investigando a teoria criativa de Tolkien e suas relações com o mito. 1 – Subcriação Ao folhear O Senhor dos Anéis o leitor encontrará logo nas primeiras páginas a seguinte inscrição: Figura 1: inscrições encontradas às margens das páginas iniciais d'O Senhor dos Anéis 21 Através da nota de tradução da edição brasileira presente na obra toma-se conhecimento de que essa escrita está registrada em caracteres do chamado alfabeto fëanoriano, e sua tradução seria: “O Senhor dos Anéis traduzido do Livro Vermelho do Marco Ocidental por John Reuel Tolkien. Aqui está contada a história da Guerra do Anel e do retorno do Rei conforme vista pelos hobbits”12. Inscrições semelhantes aparecem em outras obras, como O Silmarillion e O Hobbit, que traz, inclusive, um esclarecimento: “Naquela época, as línguas e as letras eram muito diferentes das que empregamos hoje”13. Dessa maneira Tolkien recusa o papel de autor, e assume o de tradutor, recurso criativo esse que sustentará toda a literatura do autor, uma vez que, a partir dessa concepção, o Legendarium deve ser entendido como fruto do estudo e da tradução de antiquíssimos documentos advindos de uma era perdida da história. Inúmeros elementos e detalhes, fornecidos em abundância ao longo do dos textos, enriquecem essa postura e demonstram a profundidade com que isso foi elaborado. Esse pequeno trecho traduzido na nota introdutória, por exemplo, revela um conjunto extremamente denso de informações. Primeiramente somos informados de que a obra foi escrita do ponto de vista dos hobbits, um dentre os vários povos da Terra-média, observação que fica mais clara durante o desenrolar do enredo. Frodo, dentre outros de seu povo, participou dos eventos que envolveram a Guerra do Anel, e a partir de seu ponto de vista registrou os acontecimentos do seu tempo. No entanto, esse registro contempla apenas uma perspectiva desses eventos. Outros sujeitos que atuaram naquela mesma época poderiam fazer ressalvas à narrativa, ou poderiam acrescentar algo a partir de suas próprias experiências, entretanto, esse Livro Vermelho do Marco Ocidental foi a única versão que teria se preservado até o nosso tempo 14. O registro de Frodo teria sido redigido em westron, ou Língua Geral, amplamente falada nas regiões a oeste da Terra-média, onde se desenrola a trama 12“The Lord of the Rings translated from the Red Book of Westmarch by John Ronald Reuel Tolkien. Herein is set forth the history of The War of the Ring and the return of the King as seen by the hobbits”. Esse trecho em ingles encontra-se ainda na “Nota à tradução brasileira” (SdA, p.V). É interessante notar que as edições inglesas da obra não contam com essa nota explicativa. Talvez isso ocorra pelo fato de que O Senhor dos Anéis foi planejado como uma continuação d’O Hobbit, no qual Tolkien já se apresentava como tradutor de antigas narrativas e indicava o meio de leitura e tradução de alguns desses caracteres. 13 “At thattime the languages and letters were quite different from ours of today” (Hb, p.VII, XIII). 14 Segundo o prólogo da obra, não teria existido apenas o registro original de Frodo, mas varias cópias e até mesmo algumas versões diferentes feitas a partir dele. Para um histórico mais completo dessa questão ver Nota sobre os registros do Condado (SdA, p.14-16). Terei a oportunidade de voltar a essa questão mais adiante. 22 narrada. Segundo o tradutor “apenas idiomas alheios à Língua Geral foram mantidos em suas formas originais, mas essas aparecem principalmente em antropônimos e topônimos”15, e provêm, em sua maioria, das línguas élficas, família idiomática que possuía duas línguas principais: o quenya, ou alto-élfico, mais cerimonial e erudito, e o sindarin, ou élfico-cinzento. Além dessas, o leitor encontra ainda referências, entre frases, palavras ou apenas menções, a várias outras línguas, tais como o rohirric, idioma dos homens do reino de Rohan, e o khuzdul, a língua dos anões. Os caracteres empregados na escrita, o alfabeto fëanoriano, derivam do primeiro alfabeto conhecido em Arda, elaborado por Rúmil de Valinor, posteriormente aperfeiçoado por Fëanor, tendo tirado daí seu nome. Nas inscrições acima, temos nas duas linhas inferiores os “Tengwar ou Tîw, aqui traduzidos como ‘letras’ [...] criados para serem escritos com pincel ou pena”. Na primeira linha, por sua vez, temos os Angerthas, derivados dos “Certar ou Cirth, traduzidos como ‘runas’ [...] criados e mormente usados apenas para inscrições gravadas ou entalhadas”16. Os certar foram concebidos por Fëanor, e os angerthas foram, mais tarde, rearranjados a partir dos certar por Daeron. Poderia me alongar aqui, discutindo várias outros pormenores, mas creio ter sido o suficiente para demonstrar com que profundidade e exaustivo nível de detalhes Tolkien concebeu o seu mundo literário. Ele almejava a concepção de um mundo coerente e crível, criação esta sustentada por concepções literárias muito particulares, que objetivavam a criação daquilo que o autor denominou Mundo Secundário. Tais concepções são apresentadas e discutidas no belíssimo ensaio Sobre histórias de fadas 17, no qual Tolkien se propõe a tentativa de responder três questões: O que são as histórias18 de fadas? Qual sua origem? Para que servem? 15 “Only the languages alien to the Commom Speech have benn left in their original form; but these appear mainly in the names of persons and places” (SdA, p.1133,1196). 16 “Tengwar or Tîw, here translated as ‘letters’ […] devised for writing woth brush or pen”; “Certar or Cirth, translated as ‘runes’ […] devised and mostly used only for scratched or incised inscriptions” (SdA, p.1117,1181). 17 Esse texto foi elaborado como uma palestra em homenagem a Andrew Lang (1844-1912), escritor e folclorista inglês, apresentada na Universidade St. Andrews em 8 de março de 1939. Dentre a obra de Lang destaca-se a sua coleção de livros de contos-de-fada, (os doze Colored Fairy Books) um dos objetos de discussão de Tolkien nesse ensaio. O texto foi publicado em 1947 integrando a coletânea Essays Presented to Charles Williams, e posteriormente republicado em Tree and Leaf, juntamente com o conto Leaf by Niggle, em 1964. 18 Cabe fazer um esclarecimento sobre a adoção do termo “história” nesse contexto. Na definição de Le Goff, “uma história é uma narração, verdadeira ou falsa, com base na ‘realidade histórica’ ou puramente imaginária – pode ser uma narração histórica ou uma fábula” (1990, p.108). A distinção vocabular entre os dois significados só ocorre no inglês que “escapa a esta última confusão porque distingue entre history 23 Responder a essas questões seria uma difícil tarefa, pois implicaria aventurar-se por Faërie, o Belo Reino, local onde as histórias teriam sua origem, e cuja natureza é impossível de ser compreendida em sua totalidade: O reino das histórias de fadas é amplo, profundo e alto, repleto de muitas coisas: todas as espécies de animais e aves se encontram lá; oceanos sem margem e estrelas incontáveis; uma beleza que é um encantamento, e um perigo sempre presente; alegrias e tristezas agudas como espadas. Um homem pode talvez se considerar afortunado por ter vagado nesse reino, mas sua riqueza e estranheza atam a língua do viajante que as queira relatar. E, enquanto ele está por lá, é perigoso que faça perguntas demais, para que não se fechem os portões e não se percam as chaves.19 Para o autor as histórias de fadas se passariam no Belo Reino e na interação entre os homens seus habitantes, e assim, a história de fadas diria mais sobre os homens do que sobre os seres encantados. Durante o ensaio, Tolkien não faz distinções muito precisas entre contos de fadas, fantasia e mesmo mitologia. Para ele “não há distinção fundamental entre as mitologias superior e inferior”20. Os próprios termos “superior” e “inferior” são utilizados por ele em um contexto no qual ele comenta, e se opõe, a algumas teorias que acreditaram ver o conto de fadas, bem como outras formas literárias, como uma forma degradada do mito. Da mesma forma, o termo fantasia empregado por ele diz muito mais respeito a sua própria visão de literatura do que a uma filiação a determinado gênero literário21. e story (história e conto)” (1990, p.108). O termo “estória”, por vezes encontrado em português, é um neologismo derivado do story inglês, no entanto, o uso do termo nunca foi um consenso na língua, e recomenda-se que o termo “história” seja usado em qualquer um dos casos. Em seu trabalho, Lopes (2006) que trabalha exatamente a questão da tradução, preferiu a distinção dos vocábulos e traduz o termo por estória. Pessoalmente, optei por manter o termo história tal como utilizado na tradução publicada, acreditando não haver nenhum prejuízo de sentido ou de compreensão para o texto, pensando principalmente no fato de que a literatura de Tolkien pretende justamente relativizar tais distinções. 19 “The realm of fairy-story is wide and deep and high and filled with many things: all manner of beasts and birds are found there; shoreless seas and stars uncounted; beauty that is an enchantment, and an ever-present evil; both joy and sorrow as sharp as swords. In that realm a man may, perhaps, count himself fortunate to have wandered, but its very richness and strangeness tie the tongue of a traveller who would report them. And while he is there it is dangerous for him to ask too many questions, lets the gates should be shut and keys be lost”(SHF, p.9,9-10) 20 “There is no fundamental distinction between the higher and lower mythologies” (SHF, p.24,30). 21 Além disso, caberia salientar aqui que a fantasia proposta por Tolkien não demonstra grandes proximidades com o conceito clássico de fantástico proposto por Todorov em sua obra Introdução Literatura Fantástica, pela qual o autor define esse gênero como aquele cuja trama hesita entre uma explicação estranha e uma sobrenatural. No quadro teórico proposto por Todorov, Tolkien estaria talvez mais próximo do maravilhoso. No entanto, a meu ver, o Legendarium de Tolkien se aproxima mais àquelas concepções mais recentes sobre o fantástico, que o consideram em suas variadas vertentes, como o insólito, o horror, o realismo mágico, a ficção científica, as representações literárias do mito, dentre outros. Sobre o tema ver Alvarez, Volobuef e Wimmer (2012). 24 Dentre as questões propostas por ele, a da origem é particularmente complexa, uma vez que, segundo ele, “perguntar qual é a origem das histórias (não importa como estejam classificadas) é perguntar qual é a origem da linguagem e da mente” 22. Essa afirmação indica não apenas a incalculável antiguidade das mesmas, mas também um dos pontosprincipais da visão de Tolkien sobre o assunto, já que para ele existe uma indissociável relação entre linguagem e narrativa. Os estudos da linguagem, e sua expressão por meio dos inúmeros idiomas, eram a paixão e a principal preocupação de J.R.R. Tokien enquanto estudioso. Interessava-se sobretudo pelo que chamava de estética linguística, ou seja, a capacidade de apreciar as palavras por elas mesmas, sem nenhuma preocupação utilitária, por vezes nem mesmo literária23. Além disso, acreditava que a linguagem era um atributo intrinsicamente humano, e teve a intenção de escrever, juntamente com seu amigo e colega C. S. Lewis, uma obra dedicada à natureza, origens e funções da linguagem, que teria por título Language and Human Nature. Infelizmente tal obra nunca foi concluída24. A elaboração de uma narrativa, especialmente no caso das histórias de fantasia e do conto de fadas, se relacionaria intimamente com as propriedades da própria linguagem. Segundo ele, dentre essas possibilidades da língua, nada é mais poderoso para a fantasia do que o adjetivo: [...] nenhum feitiço ou mágica do Belo Reino é mais potente. [...] tais encantamentos de fato podem ser vistos apenas como uma outra visão dos adjetivos, uma parte do discurso numa gramática mítica. A mente que imaginou leve, pesado, cinzento, amarelo, imóvel, veloz também concebeu a magia que tornaria as coisas pesadas leves e capazes de voar, transformaria o chumbo cinzento em ouro amarelo e a rocha imóvel em água veloz. [...] Quando podemos abstrair o verde da grama, o azul do céu e o vermelho do sangue, já temos o poder de um encantador em um determinado plano, e o desejo de manejar esse poder no mundo externo vem a nossa mente.25 22 “To ask what is the origin of the stories (however qualified) is to ask what is the origin of language and of the mind” (SHF, p.17,23) 23 O trecho a seguir, retirado da correspondência do autor, exemplifica um pouco dessa noção: “o tempo que certa vez passei tentando aprender sérvio e russo não me deixou com quaisquer resultados práticos, apenas uma forte impressão da estrutura e estética das palavras...” (CARTAS, p.167) 24 Apesar de Lewis ter chegado a afirmar que essa obra conjunta seria publicada pela Student Christian Movement Press em 1949, ela nunca foi levada a termo. Até recentemente, acreditava-se que o livro não teria sido nem mesmo iniciado, entretanto, alguns manuscritos inéditos de C. S. Lewis foram encontrados em 2009, verificando-se que eram na verdade o esboço introdutório de Language and Human Nature. O manuscrito foi publicado em 2010 pelo periódico VII: An Anglo-American Literary Review. Com relação a Tolkien, até hoje não se conhece nenhum texto produzido por ele que teria sido destinado a essa obra. 25 “[...]no spell or incantation in Faërie is more potent. [...] such incantantions might indeed be said to be only another view of adjectives a part of speech in a mythical grammar. The mind that thought of light, 25 As reflexões de Tolkien lembram de algum modo a filosofia de Giorgio Agamben, para quem a linguagem constitui o principal tema de reflexão. Em seu Experimentum Linguae, o filósofo formula a questão fundamental ao seu pensamento da seguinte forma: “Existe uma voz humana, uma voz que seja voz do homem como o fretenir é a voz da cigarra ou o zurro é a voz do jumento? E, caso exista, é essa voz a linguagem?” (2005, p.10). Tal investigação é, como apontada por ele mesmo, uma indagação filosófica duradoura, de difíceis conclusões. Apesar disso, Tolkien, mesmo não tendo formulado a questão tal como faz Agamben, aparentemente indica sua própria resposta, pois para ele a linguagem parece ser uma instância tão fundamentalmente humana, ao permitir que homem se relacione e apreenda o mundo, que poderia sim ser considerada, de certa forma, a voz própria ao homem. Devido a tais concepções, sua criação literária obedeceu a um preceito muito claro no qual “a invenção de idiomas é a base. As ‘pedras’ foram antes criadas para fornecer um mundo para os idiomas do que o contrário. Para mim, um nome vem primeiro e a história depois” 26. Dessa forma, ele buscou construir um mundo utilizando como principal ferramenta a língua, cujas propriedades possibilitam a reelaboração e a reconstrução do vivido: Podemos pôr um verde mortal no rosto de um homem e produzir horror, podemos fazer reluzir a rara e terrível lua azul, ou podemos fazer com que os bosques irrompam em folhas de prata e os carneiros tenham pelagem de ouro, e pôr fogo quente no ventre do réptil frio. Mas numa “fantasia”, tal como a chamamos, surge uma nova forma: O Belo Reino vem à tona, o Homem se torna subcriador.27 O conceito de subcriador e de sua obra, a subcriação, são elementos-chave para a compreensão toda a teoria de Tolkien. Enquanto subcriador o homem tem, a partir da heavy, grey, yellow, still, swift, also conceived of magic that would make heavy things light and able do to fly, turn grey lead into yellow gold, and the still rock into swift water […]. When we can take green from grass, blue from heaven, and red from blood, we have already an enchanter’s power – upon one plane; and the desire to wield that power in the world external tour minds awakes” (SHF, p.25,28). 26 “The invention of languages is the foundation. The 'stones' were made rather to provide a world for the languages than the reverse. To me a name comes first and the story follows. (CARTAS, p. 233,211) 27 “We may put a deadly green upon a man's face and produce a horror; we may make the rare and terrible blue moon to shine; or we may cause woods to spring with silver leaves and rams to wear fleeces of gold, and put hot fire into the belly of the cold worm. But in such “fantasy,” as it is called, new form is made; Faerie begins; Man becomes a sub-creator” (SHF, p. 21-22,28-29). 26 linguagem, a possibilidade de reelaborar o mundo a sua volta, subcriando uma subrealidade, o resultado desse trabalho, chamada por ele de Mundo Secundário. O subcriador age de forma semelhante ao que diz Baudelaire sobre a imaginação. Conforme ele, o mundo pode ser visto aos olhos do artista como uma espécie de dicionário, de forma que “todo universo visível é apenas um armazém de imagens e de signos aos quais a imaginação deverá atribuir um lugar e um valor relativos; é uma espécie de alimento que a imaginação deve digerir e transformar” (BAUDELAIRE, 1988, p.84). Nas concepções tolkienianas, o mundo primário, ou seja, aquilo que entendemos por “realidade”, fornece as bases e o material para a elaboração do universo secundário, e assim, se neste último pôde existir um príncipe sapo, isso só foi possível porque no mundo primário existem sapos e reis. Tais elementos foram rearranjados, e dessa forma foi concebida a clássica personagem do príncipe transformado em sapo. Assim, ao contrário do que se pensa, um mundo de fantasia não nega e nem se afasta radicalmente do real, pois a “Fantasia é uma atividade humana natural. Certamente ela não destrói, muito menos insulta, a Razão; e não abranda o apetite pela verdade científica nem obscurece a percepção dela. Ao contrário. Quanto mais aguçada e clara for a razão, melhor fantasia produzirá”28. A fantasia parte do vivido, e por meio dele é construída. Além disso, Tolkien considera a fantasia, entendida como subcriação, uma arte, e essa arte deve promover naquele que lê uma crença secundária, ou seja, durante o tempo que o leitor se dedica a obra ele deve crer naquela realidade outra. Não é uma simples suspensão da incredulidade, como a apontada por Ricoeur, pela qual “o leitor suspende de bom grado sua desconfiança, sua incredulidade, e aceita entrar no jogo do como se – como seaquelas coisas narradas tivessem acontecido” (RICOUER, 2007, p.275), mas uma crença genuína naquele universo criado, enquanto realidade secundária. Para isso o mundo subcriado deve possuir regras e dinâmicas próprias que lhe conferirão uma lógica interna, permitindo que nele adentremos e que ele nos faça sentido. Se esse efeito não é conseguido, ou se durante a narrativa essa qualidade se perde, a arte fracassa. Quando temos um mundo secundário bem sucedido esse efeito 28 “Fantasy is a natural human activity. It certainly does not destroy or even insult Reason; and it does not either blunt the appetite for, nor obscure the perception of, scientific verity. On the contrary. The keener and the clearer is the reason, the better fantasy will it make” (SHF, p.54-55,62). 27 não se desvanece. É verdade? “Se você construiu bem seu pequeno mundo, sim, é verdade nesse mundo” 29. É com a finalidade de conceber um mundo secundário, com o maior grau de credibilidade secundária possível, que J.R.R. Tolkien tece em torno de sua obra uma “atmosfera de realidade”, formada por uma série de características e detalhes que a compõem. Em primeiro lugar, como já comentado anteriormente, tem-se o entendimento da obra como uma tradução. Poderíamos falar então de uma “pseudo-tradução”, ou seja, existe ai uma falsa tradução? O conceito parece não conseguir abarcar o que ocorre na prática, pois o Legendarium é composto por textos filosóficos, linguísticos, épicos, poemas, canções, narrativas, cronologias, árvores genealógicas, textos explicativos, calendários e outros que ultrapassam a simples simulação. Assim, concordando com a análise de Dircilene Gonçalves: [...] acreditamos que “pseudotradução” não seja um termo adequado para nos referirmos a O Senhor dos Anéis [e por extensão, o Legendarium]. Uma designação mais apropriada é Tradução Fictícia. [...] Há uma diferença fundamental entre os dois, presente nos próprios nomes: um é pseudo – uma falsificação dentro da realidade – o outro é ficção – a criação de uma realidade. (GONÇALVES, 2007, p. 77) Assim, a tradução fictícia de Tolkien se diferenciaria daquele recurso utilizado por outros autores, como Umberto Eco em O Nome da Rosa, por conceber uma realidade secundária e não apenas introduzir um elemento fictício em nosso “real”. Tais documentos traduzidos dizem respeito a um mundo que se insere em um passado remoto da humanidade até então desconhecido, e cobrem desde a criação do mundo até o fim da Tereceira Era do Sol, período no qual se passa O Senhor dos Anéis. A partir das informações encontradas no Legendarium foram atém mesmo feitas estimativas de que haveria uma distância de seis a oito mil anos entre aquele passado e o nosso tempo presente (KYRMSE, 2003, p.37-39). Esses textos cobrem, dentre outros aspectos, o cenário natural de Arda, sua geografia e geologia, sua fauna, sua flora e seu clima; suas temporalidades mítico- históricas, bem como as variações linguísticas e as diferenças culturais dos vários povos que a habitam. Existem, também, lacunas e trechos obscuros que indicam informações não conhecidas ou perdidas, pois como afirma Tolkien, a narrativa ali exposta é como 29 “If you have built your little world well, yes: it is true in that world” (SHF, p.71,79). 28 “um holofote, por assim dizer, sobre um breve episódio na História e sobre uma pequena parte da nossa Terra-média, cercada pelo vislumbre de extensões ilimitadas no tempo e no espaço” 30. Lopes (2008) denominaria esse efeito de invenção da tradição e simulação de profundidade. A meu ver, há invenção e simulação, sim, do ponto de vista da teoria literária, mas do ponto de vista dessa realidade secundária há tradição e profundidade, sem maiores adjetivações. Para Kyrmse, o Legendarium possuiria tridimensionalidade, cujas dimensões seriam a diversidade, já que Tolkien “conhece a antropologia, a botânica, a geologia, a fauna e a flora, a história e os mitos, os idiomas, a ética, as crenças, as próprias formas de tratamento do mundo que nos mostra” (KYRMSE, 2003, p.26); a profundidade, pois se nos pusermos a escavar qualquer ponto da dimensão diversidade “sempre haverá algo no subsolo” (KYRMSE, 2003, p.26); e por fim, tempo, já que “por trás de cada colina, de cada enseada existe um panorama de vastas extensões temporais, de anos [...] incontáveis como as asas das árvores” (KYRMSE, 2003, p.27). Dessa maneira, a obra promove, de certa forma, não somente o pacto entre o autor e o leitor de ficção, mas também possibilita aquele acordo estabelecido entre autor e o leitor do texto histórico, que “convencionam que se tratará de situações, acontecimentos, encadeamentos, personagens que existiram realmente anteriormente, isto é, antes que tenham sido relatados” (RICOEUR, 2007, p.289). Entretanto, por mais que Tolkien trabalhe no sentido de elaborar um mundo fictício o mais crível possível, defendendo a fantasia como uma forma literária legítima, ele aparentemente não deixa de estabelecer, como os próprios termos sugerem, certa hierarquia entre o vivido, o mundo primário, e Arda, a realidade secundária. Suas concepções parecem ainda partir do pressuposto de que há um real verdadeiro e que, a partir deste, é possível criar uma subrealidade, ou seja uma realidade dentro da Realidade. A questão do real enquanto uma instância absoluta, aprioristicamente dada, já foi longamente debatida e problematizada. Arthur Schopenhauer, filósofo do século XIX, foi um dos pensadores que questionaram tal absolutização. Segundo ele, não é possível apreender um real em si, uma vez que o sujeito conhece o mundo através da mediação dos instrumentos sensíveis de que dispõe: 30 “a searchlight, as it were, on a brief episode in History, and on a small part of our Middle-earth, surrounded by the glimmer of limitless extensions in time and space” (CARTAS, p.450, 390). 29 Quando imaginávamos que pensávamos a matéria, na realidade só pensávamos o sujeito que percebe a matéria: o olho que vê, a mão que sente, a compreensão que conhece. (...) O que existe para o conhecimento, portanto o mundo inteiro, é tão somente objeto em relação ao sujeito, intuição de quem intui, numa palavra, representação. (SCHOPENHAUER, 2005, p.43) Dessa forma, o que percebo não é o mundo em sua totalidade mas a sua representação, elaborada a partir da minha própria percepção. O que posso conhecer do mundo são apenas fenômenos mutáveis e sujeitos ao tempo e ao espaço, existentes num fluxo incessante, no qual o próprio sujeito do conhecimento está inserido. Mas ao mesmo tempo em que o mundo é Representação, ele também é Vontade, e é esta que seria a coisa-em-si, o conteúdo essencial do mundo, permanente e imutável, inapreensível pelos meios racionais e origem do nosso mundo dos fenômenos. O mundo dos fenômenos é a objetivação dessa Vontade e “acompanhará a Vontade tão inseparavelmente quanto a sombra acompanha o corpo. Onde existe Vontade, existirá vida, mundo” (SCHOPENHAUER, 2005, p.358). Relacionadas à Vontade estão as Ideias que, próximas à concepção platônica, são a sua objetivação imediata e primeira, constituindo-se como os “modelos” de todas as coisas, os fenômenos, e consequentemente da Representação. Os fenômenos observáveis são contingentes e variáveis, enquanto que as Ideias, sua fonte e modelo, são transcendentes e imutáveis, acessíveis somente por meio da apreciação estética da obra de arte (SCHOPENHAUER, 2003). Portanto, segundo o pensamento desse filósofo, aquilo que denomino realidade nada mais é do que a minha representação do mundo, e, desse modo, a realidade não é absoluta. Se não há um real natural no qual possamos nos apegar, ele é, pelo contrário, variável e histórico. Comisso, meu intuito é chamar a atenção para o fato de que, a meu ver, o entendemos por realidade também possui uma historicidade 31. Conforme Maia (2010), seria adequado atribuir uma qualificação ao termo, e em vez de realidade, deveríamos falar antes em realidade histórica, adjetivação essa “que retira esse termo do reino das coisas absolutas e atemporais e o coloca no devir” (MAIA, 2010, p.381). 31 Há ainda a noção de imaginário proposta por pelo filósofo C. Castoriadis, que mais recentemente, teorizou sobre o que ele chamou de imaginário radical, instância que se encontra na raiz do pensamento, dimensão fundante na constituição do sujeito e da condição social-histórica. Para ele, “aquilo que denominamos ‘realidade’ e ‘racionalidade’ são seus produtos” (CASTORIADIS, 1986, p.13). 30 Por outro lado, não partilho aqui das concepções, também já amplamente debatidas, da limitação do real às práticas discursivas, independentes de sua exterioridade sócio-histórica. O “método” criativo de Tolkien pode até mesmo levar a crer que privilegia-se a linguagem em detrimento da materialidade das coisas, uma vez que o mundo secundário e inteiramente elaborada por meio da língua. Mas como procurei demonstrar, apesar da elaboração se fazer pela articulação das propriedades da linguagem, estas articulam e reelaboram os elementos do vivido para formular algo novo, e não independe dele. Por fim, poderíamos entender essa hierarquização estabelecida por Tolkien, a partir de sua própria visão de mundo, a qual era fortemente marcada por sua religiosidade cristã católica. Segundo suas as concepções, a arte da subcriação emula de certa forma o atributo criativo da divindade, e contribui com a Criação. Derivaria daí, a noção de que exista um mundo primário e um secundário, o primeiro origina-se de uma atividade criativa sobre-humana, divina, a segunda é uma arte humana. Tal como Deus criou o seu universo, o artista concebe a sua subcriação, e assim, “a capacidade humana para a ‘subcriação’ contribui para o enriquecimento incessante da Criação divina da qual ela derivou” (LOPES, 2008, p.37). A subcriação é, portanto, uma criação dentro da Criação. Neste trabalho, não tomo Arda como uma subrealidade subordinada ao mundo primário do qual teve origem, mas prefiro entendê-la como uma realidade outra, um mundo construído a partir da realidade vivida, fictício, mas de existência em certa medida autônoma, em constante diálogo com nossa própria realidade histórica. A partir disso, novamente afirmo: o Legendarium é fruto de uma organização e tradução de antiguíssimos textos, que tratam de um passado remoto e nos apresentam os povos daquela época, seus costumes, sua história, suas crenças.... Sendo assim, passarei a análise dessa documentação tão rica e diversa a fim de refletir sobre a história32 e mitologia de Arda. 32 Considerando o já exposto sobre a natureza subcriativa da obra de Tolkien utilizarei “história”, e termos relativos, para me referir a historicidade de Arda, e não “estória”. Quando me referir a nossa “História”, o termo será grafado em inicial maiúscula. 31 2 – As Narrativas de Arda O Legendarium de Arda é composto por um conjunto de narrativas que teriam sido o legado de uma longa sequência de narradores, que produziram e preservaram testemunhos, relatos, registros, epopeias, canções e poemas, passados ao longo das gerações desde a aurora do tempo. Esse material está dividido basicamente em duas grandes obras, O Senhor dos Anéis e O Silmarillion, que se encontram fortemente inter- relacionadas. Enquanto o primeiro é uma narrativa sobre os eventos que envolveram a chamada Guerra do Anel, o segundo é um conjunto de textos acerca da mitologia e do passado mais remoto de Arda, de modo que as narrativas d’O Silmarillion ocorrem no passado daquela época histórica retratada n’O Senhor dos Anéis. O Silmarillion deve seu nome ao Quenta Silmarillion, a História das Silmarils, o mais longo dos textos que o compõem. Os demais integrantes desse conjunto são o Ainulindalë, o relato da criação do mundo, o Valaquenta, que se dedica às potências divinas que governam Arda, e, por fim, o Akallabêth e Dos Anéis de Poder e da Terceira Era, que se relacionam ainda mais intimamente com O Senhor dos Anéis. Além de não se constituir como uma narrativa contínua, há ainda outra particularidade importante. Apesar do vasto material produzido, seu autor nunca pode terminá-lo ou organizá-lo satisfatoriamente e a obra permaneceu inacabada. Assim, a meu ver a obra de J.R.R. Tolkien conhecida por este nome pode ser compreendida de duas maneiras distintas. Primeiramente, temos o volume editado por esse nome, organizado postumamente por Christopher Tolkien, filho e herdeiro literário de Tolkien, e publicado em 1977. Em um plano anterior, temos a obra idealizada, mas deixada inacabada pelo seu autor, e nesse sentido, O Silmarillion, mesmo que nem sempre tenha tido esse nome, compreende aquele conjunto de mitos e histórias concernente aos mais remotos dias de Arda, sustentáculo de todo o Legendarium, mas que nunca encontrou uma forma definitiva a ponto de ser publicado. Esse Silmarillion é muito mais vasto e complexo que seu homônimo publicado ao final da década de 1970, e possui um histórico de elaboração de mais de meio século. Os mais antigos registros sobre a existência dessas narrativas remontam à década de 1910. Em mensagem a Edith Bratt, sua então futura esposa, datada de 1914, Tolkien menciona o texto A Viagem de Earendel, a Estrela Vespertina; e em 1915, em outra correspondência do casal, o autor promete a ela uma cópia do poema Kortirion entre as 32 árvores. Esse e outros textos foram reunidos no primeiro volume de The History of Middle-earth que contempla os escritos do autor formulados entre 1915 e 1918. Esse processo de concepção e escrita perduraria, mesmo que de forma inconstante, até a morte do autor, no entanto, mesmo tendo tomado forma e substância, e sendo considerado pelo seu autor como sua obra principal, ele nunca foi considerado terminado. Durante esse processo criativo, as diversas narrativas foram desenvolvidas e expandidas, ao mesmo tempo em que eram modificadas, reescritas ou, mesmo, abandonadas. Dessa maneira, enquanto, por exemplo, a narrativa de Earendel, foi sendo desenvolvida ao longo dos anos, aparecendo em versões posteriores como o mito de Eärendil, outras, como Kortirion, perderam espaço na mitologia do autor. Como afirma Christopher Tolkien: O Silmarillion se considerado meramente como uma grande estrutura narrativa, sofreu relativamente poucas mudanças radicais [...] Estava, entretanto, longe de se fixar como um texto pronto, e não permaneceu inalterado nem mesmo em certas ideias fundamentais relativas à natureza do mundo que retrata, quando as mesmas lendas voltaram a ser relatadas em formas mais longas e mais curtas e em estilos diferentes. 33 Embora inconcluso, é interessante notar a profusão de textos produzidos pelo autor, já que Tolkien elaborou, na maioria das vezes, duas, três ou mais versões do mesmo texto ou tema, experimentando, aperfeiçoando e multiplicando as possibilidades narrativas. O caso dos temas A queda de Gondolin, Beren e Lúthien e Os Filhos de Húrin exemplificam bem essa variedade textual. Essas três temáticas são desenvolvidas em prosa na edição publicada de Quenta Silmarillion, compondo alguns capítulos do texto. As três novamente aparecem no terceiro volume de The History of Middle-earth, dessa vez em verso, sendo que Beren e Lúthien, agora sob o título de A Balada de Leithian, possui não apenas uma, mas duas longas versões poéticas, ambas inconclusas. Nota-se também, que tais poemas não são estruturados em um estilo poético único, uma vez que a Leithian se estruturaem dísticos 33 “The Silmarillion, considered simply as a large narrative structure, underwent relatively little radical change [...] But it was far indeed from being a fixed text, and did not remain unchanged even in certain fundamental ideas concerning the nature of the world it portrays; while the same legends came to be retold in longer and shorter forms, and in different styles” (SILM, p. VIII, VII-VIII). 33 octossilábicos34, enquanto que Os Filhos segue as normas do aliterativo anglo- saxônico35. Por fim, este último ainda possui outra versão em prosa com o mesmo título, mais longa, publicada em 2007, sendo atualmente a mais recente publicação do Legendarium36. Há de se levar em conta ainda, a existência de uma infinidade de trechos, notas, textos inacabados, e rascunhos que lançam luz sobre vários pontos do Legendarium. Esse montante, se por um lado revela a riqueza da obra de Tolkien, por outro apresenta dificuldades particulares, pois uma vez que existem várias versões da mesma narrativa, ocorrem, quase que inevitavelmente, divergências e distanciamentos entre elas. Dessa forma, considerando-se todos os textos e suas respectivas variantes, não se pode esperar que o Legendarium possua uma coerência e consistência interna. J.R.R. Tolkien estava claramente ciente disso, sendo essa uma de suas grandes preocupações com a sua obra. Sua grande ambição fora publicar O Silmarillion juntamente com O Senhor dos Anéis, mas isso não foi possível à época, devido a questões editoriais. Após o grande sucesso do livro, o público, e consequentemente os editores, ansiavam por novas histórias, e Tolkien voltou a ter esperanças de publicar sua obra magna. Para isso, era preciso preencher as lacunas e dar uma forma mais consistente ao corpo de narrativas, no entanto, a possibilidade de fazê-lo parecia-lhe cada vez mais distante. Em 1963, em resposta a um leitor ansioso por mais de seu mundo, Tolkien transparece suas preocupações sobre o assunto: De fato eu poderia dar-lhe outro volume (ou muitos) sobre o mesmo mundo imaginário. Na verdade estou sob contrato para fazê-lo. [...] Ainda assim, receio que a apresentação necessitará de muito trabalho, e eu trabalho muito lentamente. As lendas precisam ser trabalhadas por completo (foram escritas em épocas diferentes, algumas há muito anos) e tornadas consistentes; e precisam ser integradas com O S.A.[O Senhor dos Anéis]; e precisam receber um formato progressivo. [...] Eu mesmo tenho dúvidas sobre a tarefa. 37 34 Versos que rimam de par em par, contendo oito sílabas poéticas cada. 35 Forma poética utilizada não apenas na Inglaterra saxônica mas também na Escandinávia e Islândia. Nessa estrutura lírica a unidade do texto não é o verso, e sim o chamado meio-verso, separados um do outro por uma pausa. Além disso o ritmo não é ditado pelas rimas, e sim pelas aliterações, que unem um meio-verso ao outro. O aliterativo também será empregado em vários poemas e versos encontrados em O Senhor dos Anéis, especialmente aqueles relativos aos cavaleiros de Rohan, cuja língua e “cultura” por vezes aproxima-se, por assim dizer, aos anglo-saxões históricos. Sobre o tema ver A Rima Aliterativa Anglo-Saxã, em Lopes (2006). 36 The Children of Húrin organizado e publicado por C. Tolkien em 2007. No Brasil, a obra foi publicada como Os Filhos de Húrin pela Martins Fontes editora em 2009. 37 “I could indeed give you another volume (or many) about the same imaginary world. I am in fact under contract to do so. […]The legends have to be worked over (they were written at different times, some 34 Diante disso, a edição postumamente publicada de O Silmarillion não é, de modo algum, a forma final ou única dos mitos do Legendarium. É, na verdade, uma proposta de C. Tolkien, uma tentativa de ordenamento e organização do vasto material existente, afim de colocá-lo em uma forma publicável e parcialmente coerente. Assim ele esclarece em seu prefácio: Tomou-se claro para mim que a tentativa de apresentar, num único volume, a diversidade de materiais - revelar O Silmarillion de fato como uma criação contínua e em evolução, que se estendeu por mais de cinqüenta anos - levaria na realidade apenas à confusão e ao obscurecimento daquilo que é essencial. Propus-me, por isso, elaborar um texto único, selecionando e organizando trechos de tal modo que me parecessem produzir a narrativa mais coerente e de maior consistência interna. [...] Não se pode aspirar a uma harmonia perfeita (quer no âmbito do próprio O Silmarillion, quer entre O Silmarillion e outras obras publicadas de meu pai), e ela somente poderia ser alcançada, se fosse possível, a um custo elevado e desnecessário. 38 O volume de 1977 é, portanto, apenas a forma de organização que C. Tolkien considerou mais apropriada ao lidar com os escritos de seu pai, uma seleção. O Silmarillion não se resume ao volume publicado e nem necessariamente tem de ser estruturado tal como nos foi apresentado. Os demais textos de Tolkien publicados após a edição de 1977 vieram a confirmar isso. Em 1980, é publicado Contos Inacabados de Númenor e da Terra-média39, uma coletânea de textos sobre diversos temas, tanto d’O Silmarillion como d’O Senhor dos Anéis. Mas é a partir de 1983 que as várias variantes e transformações d’O Silmarillion começam a vir a público, a partir da publicação de The Book of Lost Tales – Part 1 o primeiro volume da série The History of Middle-earth. Essa série de doze volumes é um many years ago) and made consistent; and they have to be integrated with The L.R. ; and they have to be given some progressive shape. No simple device, like a journey and a quest, is available. I am doubtful myself about the undertaking” (CARTAS, p.351, 316-17). 38 “It became clear to me that to attempt to present, within the covers of a single book the diversity of the materials – to show The Silmarillion as in truth a continuing and evolving creation extending over more than half a century – would in fact lead only to confusion and the submerging of what is essential I set myself therefore to work out a single text selecting and arranging in such a way as seemed to me to produce the most coherent and internally self-consistent narrative. […] A complete consistency (either within the compass of The Silmarillion itself or between The Silmarillion and other published writings of my father's) is not to be looked for, and could only be achieved, if at all at heavy and needless cost” (SILM, p.VII,VIII). 39 Originalmente intitulado Unfinished Tales of Númenor and Middle-earth. Foi publicado no Brasil pela Martins Fontes Editora em 2002. 35 esforço por parte de C. Tolkien para ampliar aquela seleção, e principalmente, apresentar o caráter mutável constituinte à obra. No prefácio desse primeiro volume, C. Tolkien repensa algumas de suas posições na organização de 1977, pois para ele “o trabalho publicado não possui um ‘ponto de referência’, nem sugestão do que é e como (interiormente ao mundo imaginário) veio a ser. Agora eu penso que isso foi um erro”40. O Silmarillion publicado, composto em sua maior parte pelos textos mais tardios e consolidados do Legendarium, foi apresentado como obra acabada e isolada, o que acabou por encobrir aquele outro Silmarillion, que: […] não era estável, mas que existe, “longitudinalmente” no tempo (o tempo de vida do autor) e não apenas “transversalmente” no tempo, tal como um livro impresso que não terá mais nenhuma mudança essencial. Por meio da publicação de “O Silmarillion” o longitudinal foi cortado transversalmente e colocou-se como tendo um certo caráter definitivo.41 Assim, os volumes dessa História
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