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O QUE É A MEDICINA LIBERAL - OK

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O que é a medicina Liberal
A medicina liberal, por sua vez, não é nada mais do que a forma histórica surgida no período de consolidação do capitalismo concorrencial, que, em delimitação aproximativa, pode ser identificado com o século XIX, para os países europeus e Estados Unidos, e primeiras décadas do século XX, para alguns países da América Latina.
· Um pouco de filologia social
Mais recentemente, é dita liberal toda profissão que se baseie em formação de nível universitário e seja exercida por conta própria, em oposição às relações de assalariamento.
Os indivíduos em condições de pagar por esses serviços vivem na mesma comunidade ou em comunidades próximas, porém sempre em um contexto urbano; a medicina liberal exige um determinado grau de concentração de necessidades e de recursos o que é típico das cidades, com a transferência definitiva para esse ambiente das classes dominantes e intermediárias de uma sociedade.
Além desses requisitos de amadurecimento das forças produtivas sociais, a medicina liberal pressupõe que a sociedade já esteja imersa em ampla rede de relações mercantis, isto é, que a circulação de mercadorias e a venda de diversas formas de serviços sejam generalizadas. A consulta médica aparece, então, como um caso particular de troca sistemática de bens e serviços por seu equivalente monetário que se dá em toda a sociedade.
Essas forças econômico-sociais moldaram os serviços prestados pelo médico e o inseriram em uma rede de relações de troca de caráter eminentemente capitalista. Deu-se uma espécie de homogeneização do produto do trabalho médico, tanto em seu aspecto de valor de uso como no de valor de troca. A consulta expressa justamente essa unidade de valor de uso/valor de troca.
Uma consulta envolve, em primeiro lugar, certo padrão de utilização do tempo de trabalho de um médico; há uma tendência geral em fixar uma média de tempo devotado ao atendimento de cada paciente. Por outro lado, essas frações de tempo de disponibilidade de trabalho do médico tendem também a assumir um preço médio entre o conjunto dos prestadores desse serviço.
É claro que o preço da consulta, como manifestação de seu valor de troca, depende de fatores como a qualificação especial do médico, sua fama etc. Mas, em cada momento, não é nada difícil detectar uma média normativa entre os preços cobrados pelos diferentes profissionais (abstraímos aqui a situação particular da cirurgia, em que o problema do risco introduz uma série de variáveis circunstanciais, que influenciam o preço). Ademais, a própria corporação médica trata de converter o preço da consulta em item importante de seu código de ética, especialmente tendo em vista a prevenção da prática de preços muito abaixo da média, o que é considerado uma ação "desleal".
Em outras palavras, o primado do consultório, alcançado pela medicina liberal, proporcionou a entrada definitiva dos serviços dos médicos em um mercado competitivo. Pela primeira vez, na longa trajetória de compra e venda de seus serviços, o mercado passou a ter um efeito realmente regulador das unidades de trabalho e do valor da própria força de trabalho que lhe dá origem.
A medicina liberal de consultório "despersonaliza" a relação mercantil e, simultaneamente, "personaliza" a relação técnica - e este é um preceito iniludível de seu código deontológico: cada paciente é um indivíduo e, como tal, deve ser diagnosticado e tratado, mas o serviço, em sua unidade mais simples, a consulta, tem um preço que não depende das características do consumidor.
· A subordinação das distintas atividades
Pode-se dizer que a medicina liberal é produto da etapa do desenvolvimento capitalista que, por coincidência, é também chamada "liberal", por oposição, à etapa "monopolista" que se lhe segue. Esta caracterização é muito genérica, entretanto, e pouco útil, porque duas situações complicam bastante o quadro da análise: aquilo que é específico do desenvolvimento das sociedades dependentes (e de seu "capitalismo tardio") e a continuidade das formas "liberais" da prática médica ao longo do período seguinte (e mantendo-se até os dias atuais). Vale dizer que a "subordinação mercantil" deveria ser sempre objeto de estudo de casos nacionais, especialmente porque existem condicionantes decisivos no nível da conformação das relações entre Estado e sociedade.
A passagem da medicina liberal clássica à medicina neoliberal, a qual, em nossos dias, é apenas um segmento da forma moderna de organização social das práticas de saúde, ocorreu por mudanças não só nas relações econômicas internas como também por subordinação ao capital no conjunto da sociedade.
Para o médico liberal clássico, a mercadoria mais útil e valiosa de que dispunha era sua própria força de trabalho, com sua qualificação peculiar. A legitimidade obtida em centro universitário conferia-lhe quase tudo que era necessário para se instalar como médico; os meios de trabalho, incluída a infraestrutura física do consultório, representavam custos reduzidos, facultados sem maiores problemas por poupanças individuais ou familiares.
Assim, o mercado de trabalho do médico liberal clássico não era mediado pelo capital. Ou seja, como pequeno comerciante, esse médico subordinava-se a relações de compra e venda, mas se situava, por assim dizei; à margem da acumulação capitalista. Inúmeros episódios da história médica, de rebeldia contra avanços do capital e de iniciativas do Estado, demonstram o quanto se enraizou no grupo profissional o preceito de autonomia como representação de relações mercantis hipostasiadas.
A medicina neoliberal já não alberga tais ilusões. Em primeiro lugar, ela se submete diretamente às relações capitalistas; a complexidade técnica da Medicina, a necessidade de trabalho administrativo e auxiliar fazem que um consultório moderno seja caracterizado como um nítido investimento de capital. O médico transforma-se não só em empresário de si mesmo, mas detém frações maiores ou menores de "capital constante" e "capital variável". Nesse sentido, o consultório é um exemplo típico de uma microempresa inserida na dinâmica da acumulação capitalista.
O grande problema para esse novo tipo de pequeno empreendimento não é tanto o de obter o capital necessário para instalá-lo (que, de todos os modos, a depender da especialidade, pode ser considerável), mas o acesso à clientela em contexto em que muitas vezes os estabelecimentos estatais ou parestatais (como os da seguridade social) e as empresas privadas de grande porte criam uma situação de "oligopólio" do mercado de serviços de saúde.
Essa pequena unidade de produção que é o consultório moderno, em forma isolada ou em esquema de cooperação entre os produtores, funciona, mesmo assim, com regras capitalistas inequívocas. Ademais, o médico neoliberal e o conjunto das práticas de saúde passam a ter uma conexão direta ou indireta com a indústria de medicamentos e de equipamentos, em outras palavras, entram em subordinação formal ao grande capital industrial. Para todos os efeitos, a prescrição moderna de medicamentos "presta um serviço" à indústria. Ela é uma engrenagem fundamental em sua produção econômica tal como é a publicidade pelos meios de comunicação de massa.
Essa evolução pressupõe, entretanto, uma descontinuidade; o complexo médico-industrial que marca a moderna forma de organização das práticas de saúde rompe com a medicina liberal nos planos econômicos e político-jurídico e incorpora alguns de seus elementos em segmento específico e subalterno que é a medicina neoliberal.

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