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Prévia do material em texto

1 
LEANDRO HENRIQUE SCARABELOT CAMPOS DE PIERI 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
AS FACES DO DIABO NA OBRA DE UM BRUXO: 
UMA RELEITURA DO DIABO MACHADIANO. 
 
 
 
 
Dissertação, na área de Teopoética, na 
linha de pesquisa TEXTUALIDADES 
HÍBRIDAS submetida ao Programa de 
Pós-Graduação em Literatura da 
Universidade Federal de Santa Catarina 
(PPGLit/UFSC), como requisito parcial 
para a obtenção do título de Mestre em 
Literatura. 
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Salma Ferraz. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Florianópolis 
2019. 
 2 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 3 
 
Leandro Henrique Scarabelot Campos de Pieri 
 
 
 
 
AS FACES DO DIABO NA OBRA DE UM BRUXO: UMA 
RELEITURA DO DIABO MACHADIANO. 
 
 
Esta Dissertação/Tese foi julgada adequada para obtenção do Título de 
Mestre em Literatura, área de concentração em Textualidades Híbridas, 
e aprovada em sua forma final pelo Programa de Pós-Graduação em 
Literatura. 
 
Florianópolis, 18 de fevereiro de 2019. 
 
________________________ 
Prof.ª Dr.ª Patrícia Peterle Figueiredo Santurbano 
Coordenadora do Curso 
Banca Examinadora: 
 
Orientadora: __________________________________ 
Prof.ª Dr.ª Salma Ferraz 
UFSC 
Membros: 
 
__________________________ ______________________________ 
Prof.ª Dr.ª Silvana de Gaspari Prof.ª Dr.ª Tânia Regina Oliveira Ramos 
 UFSC (Presidente) UFSC 
 
__________________________ ______________________________ 
Prof. Dr. Eli Brandão Prof. Dr. José Ernesto de Vargas 
 UEPB UFSC (Suplente) 
 
 4 
 
 
 5 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Dedico esta dissertação às grandes mulheres de minha vida: 
Alvina Cechinel Scarabelot, minha bisavó; 
Lourdes Scarabelot Campos, minha avó; 
Viviane Scarabelot Campos, minha mãe; 
Salma Ferraz, minha orientadora; 
Marina Coelho Santos, minha amada. 
 6 
 
 
 7 
 
AGRADECIMENTOS 
 
 Meu agradecimento é direcionado a todas e todos que me 
auxiliaram ao longo desta grande jornada que venho trilhando desde a 
graduação. Sem vocês, podem ter certeza de que não teria conquistado 
nem a metade daquilo que agora me creio possuidor. A todos vocês, 
meus sinceros agradecimentos. 
 Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à minha família: 
- minha mãe, Viviane Scarabelot Campos, que sempre me auxiliou nos 
momentos mais difíceis; 
- minha avó, Lourdes Scarabelot Campos, por sempre incentivar suas 
filhas e netos ao estudo; 
- minha bisavó, Alvina Cechinel Scarabelot, pelo ―dinheirinho pra 
comprar um lanche na rua‖ que me dava na época em que ainda não 
tinha a bolsa de estudos. 
 Em segundo lugar, à professora Salma Ferraz, por 
absolutamente tudo que fez por mim, seja na época da graduação seja 
agora no período do Mestrado. 
 Em terceiro lugar, à CAPES, pela bolsa concedida no segundo 
ano do Mestrado, a qual me possibilitou não apenas a compra de novos 
livros para a minha dissertação, mas também o tempo ocioso, tão 
necessário para uma pesquisa séria e comprometida. 
 Em quarto lugar, ao Programa de Pós-Graduação em Literatura 
da UFSC, tanto pela oportunidade de fazer parte do grupo discente, 
quanto pelo quadro de excelentes professoras e professores que 
disponibiliza aos seus alunos. 
 Em quinto lugar, à professora Telma Scherer e ao professor 
Stélio Furlan, pelos conselhos e indicações bibliográficas que me deram 
em minha qualificação. 
 Em sexto lugar, à professora Tânia Regina O. Ramos e ao 
professor Eli Brandão, por aceitarem participar de minha banca. 
 Em sétimo lugar, o último e mais importante, à Marina Coelho 
Santos, minha preciosa namorada, minha doce amada, por todo o apoio 
que me deu, por todas as vezes em que aguentou minhas crises 
existenciais e lamentações, meu medo e desespero; por todas as vezes 
que me motivou; pelos momentos agradáveis que passamos juntos 
fazendo nossas leituras; pelas nossas conversas, nossos diálogos sobre 
literatura e filosofia que sempre me levam a novas reflexões; enfim, por 
tudo o que vivemos. 
 A todos vocês, os meus mais ternos e sinceros agradecimentos. 
 
 8 
 
 
 
 9 
 
A um Bruxo, Com Amor 
 
Em certa casa da Rua Cosme Velho 
(que se abre no vazio) 
venho visitar-te; e me recebes 
na sala trastejada com simplicidade 
onde pensamentos idos e vividos 
perdem o amarelo, 
de novo interrogando o céu e a noite. 
 
Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro. 
Daí esse cansaço nos gestos e, filtrada, 
uma luz que não vem de parte alguma 
pois todos os castiçais 
estão apagados. 
 
Contas a meia-voz 
maneiras de amar e de compor os ministérios 
e deitá-los abaixo, entre malinas 
e bruxelas. 
Conheces a fundo 
a geologia moral dos Lobo Neves 
e essa espécie de olhos derramados 
que não foram feitos para ciumentos. 
E ficas mirando o ratinho meio cadáver 
com a polida, minuciosa curiosidade 
de quem saboreia por tabela 
o prazer de Fortunato, vivisseccionista amador. 
Olhas para a guerra, o murro, a facada 
como para uma simples quebra da monotonia universal 
e tens no rosto antigo 
uma expressão a que não acho nome certo 
(das sensações do mundo a mais sutil): 
volúpia do aborrecimento? 
ou, grande lascivo, do nada? 
 
O vento que rola do Silvestre leva o diálogo, 
e o mesmo som do relógio, lento, igual e seco, 
tal um pigarro que parece vir do tempo da Stoltz e do gabinete Paraná, 
mostra que os homens morreram. 
A terra está nua deles. 
Contudo, em longe recanto, 
a ramagem começa a sussurrar alguma coisa 
que não se estende logo 
e parece a canção das manhãs novas. 
Bem a distingo, ronda clara: 
é Flora, 
com olhos dotados de um mover particular 
entre mavioso e pensativo; 
Marcela, a rir com expressão cândida (e outra coisa); 
 10 
 
Virgília, 
cujos olhos dão a sensação singular de luz úmida; 
Mariana, que os tem redondos e namorados; 
e Sancha, de olhos intimativos; 
e os grandes, de Capitu, abertos como a vaga do mar lá fora, 
o mar que fala a mesma linguagem 
obscura e nova de D. Severina 
e das chinelinhas de alcova de Conceição. 
A todas decifrastes íris e braços 
e delas disseste a razão última e refolhada 
moça, flor mulher flor 
canção de manhã nova... 
E ao pé dessa música dissimulas (ou insinuas, quem sabe) 
o turvo grunhir dos porcos, troça concentrada e filosófica 
entre loucos que riem de ser loucos 
e os que vão à Rua da Misericórdia e não a encontram. 
 
O eflúvio da manhã, 
que o pede ao crepúsculo da tarde? 
Uma presença, o clarineta, 
vai pé ante pé procurar o remédio, 
mas haverá remédio para existir 
senão existir? 
E, para os dias mais ásperos, além 
da cocaína moral dos bons livros? 
Que crime cometemos além de viver 
e porventura o de amar 
não se sabe a quem, mas amar? 
 
Todos os cemitérios se parecem, 
e não pousas em nenhum deles, mas onde a dúvida 
apalpa o mármore da verdade, a descobrir 
a fenda necessária; 
onde o diabo joga dama com o destino, 
estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro, 
que revolves em mim tantos enigmas. 
 
Um som remoto e brando 
rompe em meio a embriões e ruínas, 
eternas exéquias e aleluias eternas, 
e chega ao despistamento de teu pencenê 
O estribeiro Oblivion 
bate à porta e chama ao espetáculo 
promovido para divertir o planeta Saturno. 
Dás volta à chave, 
envolves-te na capa, 
e qual novo Ariel, sem mais resposta, 
sais pela janela, dissolves-te no ar. 
 
(Carlos Drummond de Andrade) 
 11 
 
RESUMO 
 
O presente estudo visa investigar, em alguns textos de Machado de 
Assis, uma importante figura que faz parte do imaginário e da cultura 
ocidental, a saber, o Diabo. Ao abordar este ser dentro da obra do Bruxo 
do Cosme Velho, nosso intuito é observá-lo enquanto personagem 
literária. Para tal, propomo-nos a efetuar uma releitura de alguns escritos 
do autor de Dom Casmurro em que o Diabo figure explicitamente como 
personagem, tais como os contos ―A igreja do Diabo‖, ―Adão e Eva‖, a 
crônica do dia 5 de outubro de 1885, situada na série Balas de Estalo, a 
crônica ―τ Sermão do Diabo‖, publicada em A Semana, e o capítuloIX 
do romance Dom Casmurro, intitulado ―A Ópera‖. σossos objetivos 
com este estudo são: i) investigar as características utilizadas por 
Machado de Assis para descrever o Diabo em seus textos; ii) comparar o 
Diabo machadiano com o Diabo de alguns outros autores para, desta 
forma, perceber suas semelhanças e diferenças, e, assim, situá-lo dentro 
de uma tradição; iii) desdobrar alguns possíveis sentidos para esta 
personagem dentro de sua obra. 
 
Palavras-chave: Diabo; Bruxo do Cosme Velho; Machado de Assis. 
 
 12 
 
 
 
 13 
 
ABSTRACT 
 
The present study aims to investigate, in some texts of Machado de 
Assis, an important figure that is part of Western imagery and culture, 
namely, the Devil. In addressing this being within the work of the Bruxo 
do Cosme Velho, our intention is to observe him as a literary character. 
For this, we propose to re-read some of the writings of the author of 
Dom Casmurro in which the Devil explicitly figures as a character, such 
as the short-stories "A igreja do Diabo" and "Adão e Eva"; the chronicle 
of October 5, 1885, located in the series Balas de Estalo, the chronicle 
"O Sermão do Diabo", published in A Semana, and the IX chapter of the 
novel Dom Casmurro, titled "A Ópera". Our objectives with this study 
are: i) to investigate the characteristics used by Machado de Assis to 
describe the Devil in his texts; ii) compare the Machado‘s Devil with the 
Devil of some other authors in order to perceive their similarities and 
differences, and thus situate him in a tradition; iii) unfold some possible 
meanings for this character within his work. 
 
Keywords: Devil; Wizard of the Old Cosme; Machado de Assis. 
 
 14 
 
 
 
 15 
 
LISTA DE ILUSTRAÇÕES 
 
Figura 01: Diabo. .................................................................................. 40 
Figura 02: Diablo. ................................................................................. 40 
Figura 03: Devil. .................................................................................... 41 
Figura 04: Teufel. .................................................................................. 41 
Figura 05: Pã. ........................................................................................ 42 
Figura 06: Pã. ........................................................................................ 43 
Figura 07: Pacto de Judas. .................................................................... 45 
Figura 08: Detalhe de O Juízo Final. .................................................... 46 
Figura 09: Inferno. ................................................................................ 48 
Figura 10: A queda de Lúcifer e dos anjos rebeldes. ............................ 49 
Figura 11: Detalhe de O Juízo Final. .................................................... 50 
Figura 12: Miguel e o Dragão. .............................................................. 51 
Figura 13: São Miguel e o dragão . ...................................................... 51 
Figura 14: São Miguel e o Diabo. ......................................................... 52 
Figura 15: Miguel e Lúcifer. .................................................................. 53 
Figura 16: Satã triunfando sobre Eva. .................................................. 57 
Figura 17: Satã cobrindo Jó com úlceras malignas. ............................. 57 
Figura 18: O grande Dragão Vermelho e a dama vestida de Sol. ......... 58 
Figura 19: O grande Dragão Vermelho e a Besta do oceano. .............. 59 
Figura 20: A revolta de Lúcifer e dos anjos rebeldes. ........................... 62 
Figura 21: Satan. ................................................................................... 63 
Figura 22: Revolta do Inferno contra o Céu. ......................................... 63 
Figura 23: O anjo do mal. ..................................................................... 65 
Figura 24: O gênio do mal. .................................................................... 66 
Figura 25: El ángel caído. ..................................................................... 67 
Figura 26: Detalhe de Lúcifer, de Botticelli. ....................................... 144 
Figura 27: Lúcifer, William Blake. ..................................................... 145 
Figura 28: Morada de Lúcifer, de Gustave Doré. ............................... 146 
Figura 29: Capa Ed. Ática. .................................................................. 151 
Figura 30: Capa Ed. Objetivo. ............................................................. 151 
Figura 31: Capa Porto Editora. ............................................................ 152 
Figura 32: Capa Ed. Brasiliense . .................................................. 152 
Figura 33: Ilustração do Diabo. ........................................................... 152 
Figura 34: Satã encontra sua prole, Pecado e Morte, nos portões do 
Inferno, de John B. Medina (1688). .................................................... 161 
Figura 35: Satã despertando os anjos rebeldes, de William Blake 
(1808). ................................................................................................. 162 
Figura 36: Satã no Éden, de Gustave Doré (1866). ............................. 163 
Figura 37: Mefistófeles voando sobre Wittenberg, de E. Delacroix 
 16 
 
(1828). ................................................................................................. 168 
Figura 38: Wagner, Fausto e o cão negro, de Delacroix. ................... 169 
Figura 39: Fausto e Mefistófeles, de Delacroix. ................................. 172 
Figura 40: Fausto, Margarida e Mefistófeles, de Delacroix. .............. 173 
Figura 41: Capa Ed. Mercado Aberto. ................................................ 182 
 
 
 
 17 
 
LISTA DE TABELAS 
 
Tabela 01: Menções do vocábulo ―Diabo/diabo‖ e de outros ―similares‖ 
nos romances de Machado de Assis. ..................................................... 26 
 
 18 
 
 
 19 
 
SUMÁRIO 
 
1 NO PRINCÍPIO ERA... A INTRODUÇÃO ...................................... 21 
2 CAPÍTULO I: Uma visão panorâmica ............................................... 37 
2.1 Um Diabo diferente: algumas ―representações‖ do Tinhoso. . 38 
2.2. Revisão bibliográfica. ............................................................ 69 
2.2.1 Falando em Machado... .................................................... 72 
2.2.1.1 Um homem célebre ................................................... 72 
2.2.1.2 Na selva da crítica. .................................................... 81 
2.2.2 Falando no Diabo... .......................................................... 90 
2.3 Potencialidades da figura do Diabo na obra machadiana ........ 97 
3 CAPÍTULτ II: Com o Diabo no corpus… ...................................... 101 
3.1 Contos do Capeta: .......................................................... 102 
3.1.1 ―Vá, pois, uma igreja...‖ – A Igreja do Diabo (1883) ... 102 
3.1.2 ―Foi o Diabo que criou o mundo‖ – Adão e Eva (1885)
 ................................................................................................ 108 
3.2 Crônicas infernais: .......................................................... 118 
3.2.1 Um breve caso de possessão – Crônica de 5 de outubro de 
1885 ........................................................................................ 118 
3.2.2 O Evangelho segundo o Diabo – O Sermão do Diabo 
(1892) ...................................................................................... 122 
3.3 Romance diabólico: .............................................................. 124 
3.3.1 O mundo inteiro é um palco – Dom Casmurro. (1899) . 124 
3.4 Uno, múltiplo ou múltiplo e comum? ................................... 129 
4 CAPÍTULO III: Machado de Assis e a tradição diabólica. .............. 133 
4.1 O Diabo em autores da tradição – ―Pois o demo não é de 
todos??!‖ .....................................................................................137 
4.1.1 ―Lo‟mperador del doloroso regno‖ – O Lúcifer de Dante.
 ................................................................................................ 137 
4.1.2 Um Diabo zombeteiro – Gil Vicente e o Auto da Barca do 
Inferno .................................................................................... 146 
 20 
 
4.1.3 Melhor ser rei no inferno do que servir no céu – O Satã de 
John Milton ............................................................................. 153 
4.1.4 O gênio que sempre nega – O Mefistófeles goetheano . 163 
4.1.5 Pedagogia satânica – O Satã de Macário ...................... 177 
4.2 Uma (con)fusão dos Diabos… .............................................. 183 
5 Capítulo IV: Faces do Diabo na obra de Machado de Assis. ........... 191 
5.1 O Diabo tem sentido? ........................................................... 192 
5.1.1 Narrativas da Criação: ................................................... 193 
5.1.2 Panaceias da humanidade. ............................................. 200 
5.1.3 O ethos diabólico. .......................................................... 206 
6 Απο ά υψη: Juízo Final e απο α ά α ς. ..................................... 229 
REFERÊNCIAS .................................................................................. 235 
ANEXO A – A IGREJA DO DIABO ................................................. 245 
ANEXO B – ADÃO E EVA ............................................................... 253 
ANEXO C – 5 DE OUTUBRO DE 1885 ........................................... 259 
ANEXO D – O SERMÃO DO DIABO .............................................. 261 
ANEXO E – A ÓPERA ...................................................................... 265 
 
 21 
 
1 NO PRINCÍPIO ERA... A INTRODUÇÃO 
 
À barca, à barca, houlá! 
Que temos gentil maré! 
(Gil Vicente) 
 
Há um meio certo de começar uma dissertação de forma não 
trivial. É parodiar o escritor que se estuda. Faz-se isto, e aponta-se a 
paródia. Eis que não se tem mais a dura realidade da página em branco, 
pois, a partir daí, o gelo já foi quebrado e se pode prosseguir com as 
explicações. Fácil, não? Em verdade vos digo que nem tanto. Pode ser 
que a tática não funcione e, assim, lá se foi a entrada triunfal. Mas, 
convenhamos: não é a todos que cabe esta honra, certo? Em todo caso, 
ao menos o gélido branco da página já se extinguiu. 
 Conforme o título deixa transparecer, este estudo visa efetuar 
uma releitura do Diabo machadiano. Mas, por que estudar esta 
controversa personagem da cultura ocidental? E, ainda por cima, por que 
dentro da obra de um de nossos mais célebres escritores? Será que tudo 
que se poderia dizer sobre ela já não foi dito e redito pelos moralistas do 
mundo? Estas são questões que, por ora, deixo em aberto, mas que 
espero dar conta ao longo deste estudo. Neste momento, mesmo que não 
seja fundamental, parece interessante mencionar que essa ideia de 
releitura vem sendo não só pensada, mas também trabalhada desde a 
minha monografia1, na qual, visando perceber semelhanças e diferenças, 
efetuei uma comparação entre o Diabo descrito na Bíblia e na Tradição 
Católica, mais especificamente no Catecismo da Igreja Católica, com 
aquele que foi descrito por Machado de Assis em dois contos seus, a 
saber, ―Adão e Eva‖ e ―A igreja do Diabo‖. σeste estudo, entretanto, 
embora ainda exista uma preocupação semelhante, o intuito é outro. 
Explico-me. 
Enquanto na monografia a comparação era feita em relação à 
Bíblia e à Tradição Católica para buscar aquilo que o Bruxo do Cosme 
Velho2 retirava, mantinha ou acrescentava nesta personagem, aqui, em 
contrapartida, a comparação será feita dentre os próprios escritos 
machadianos ou, para ser mais preciso, dentre aqueles em que o Diabo 
 
1 PIERI, Leandro H. S. C. de. O Bruxo e o Tinhoso: uma análise do Diabo em 
dois contos machadianos. Florianópolis, 2016. 
2 O epíteto Bruxo do Cosme Velho vem por conta da homenagem prestada a 
Machado de Assis por Carlos Drummond de Andrade em seu poema intitulado 
A um Bruxo, com amor, transcrito como epígrafe desta dissertação. 
 22 
 
figure como personagem substancial, isto é, nos textos em que ele ganhe 
protagonismo ou destaque. Outra diferença que se faz presente é o fato 
de que aqui também se busca uma comparação entre o(s) Diabo(s) 
machadiano(s)3 e aqueles que estão inseridos naquilo que eu gostaria de 
chamar de ―tradição diabólica‖, expressão que pretendo utilizar neste 
estudo com a finalidade de abarcar a grande quantidade de 
autores/artistas da cultura ocidental cujo Diabo, de alguma forma ou em 
algum momento, se fez presente em sua obra. 
À guisa de exemplo de autores dessa tradição, é possível 
mencionar nomes como: Dante Alighieri (1265-1321), Gil Vicente 
(1465-1536), N. Maquiavel (1469-1527), C. Marlowe (1564-1593), W. 
Shakespeare (1564-1616), Calderón de la Barca (1600-1681), John 
Milton (1608-1674), Walter Scott (1771-1832), Marquês de Sade 
(1740-1814), William Blake (1757-1827), J. W. von Goethe (1749-
1832), Irmãos Grimm (Jacob: 1785-1863 e Wilhelm: 1786-1859), E. 
T. A. Hoffmann (1776-1822), Lord Byron (1788-1824), Victor Hugo 
(1802-1885), G. Flaubert (1821-1880), C. Baudelaire (1821-1867), 
Edgar A. Poe (1809-1849) Alexandre Herculano (1810-1877), Eça de 
Queiroz (1845-1900), Álvares de Azevedo (1831-1852), Machado de 
Assis (1839-1908), etc. Isso falando apenas de literatura e de autores 
canônicos ocidentais que escreveram até a data em que Machado de 
Assis viveu4. Se ampliarmos o escopo desta tradição e mencionarmos os 
 
3 Deixo aberta a possibilidade de uso do singular ou do plural por conta da 
hipótese de que o Diabo machadiano, isto é, a personagem que aparece em 
vários escritos de Machado de Assis com o nome de ―Diabo‖ não seja 
exatamente a mesma em todos eles. Abordarei este assunto um pouco mais 
adiante. 
4 Para conhecer (ou lembrar de) outros autores que também poderiam ser 
incluídos nesta lista, vale a pena conferir a antologia de contos organizada por 
Raimundo Magalhães Junior em 1974, intitulada O Diabo Existe? – As 
melhores histórias diabólicas de todos os tempos, dividida em dois volumes, na 
qual ele nos apresenta mais de 40 contos de diversos autores cujo tema seja o 
Diabo ou alguma manifestação demoníaca. Além disso, vale dizer que, caso 
fôssemos ultrapassar a época em que viveu Machado de Assis, poderíamos 
ampliar ainda mais este quadro citando autores como Paul Valéry (1871-1945), 
Thomas Mann (1875-1955), José Saramago (1922-2010) – para mencionar os 
europeus –, além de J. Guimarães Rosa (1908-1967), Rubem Braga (1913-
1990), Luís Fernando Veríssimo (1936- ), Ariano Suassuna (1927-2014), etc. 
– para mencionar alguns brasileiros. Saindo do âmbito estritamente ocidental, 
poderíamos lembrar-nos de autores russos como F. Dostoievski (1821-1881), L. 
Tolstói (1828-1910), L. Andreiev (1871-1919), M. Bulgákov (1891-1940), etc. 
 23 
 
artistas plásticos/visuais que nos legaram alguma imagem do Diabo, seja 
na pintura seja na escultura, teremos nomes como: Giotto di Bondone 
(1266-1337), Fra Angelico (1395-1455), Sandro Botticelli (1445-
1510), Antonio Pollaiuolo (1433-1498), Rafael Sanzio (1483-1520), 
Lorenzo Lotto (1480-1557), William Blake (1757-1827), Eugène 
Delacroix (1798-1863), Gustave Doré (1832-1883), Antoine Wiertz 
(1806-1865), Joseph Geefs (1808-1885), Guillaume Geefs (1805-
1883), Ricardo Bellver (1845-1924), etc. Faz-se necessário explicar 
que quando utilizo a expressão ―tradição diabólica‖ não quero sugerir ou 
afirmar que o Diabo de um autor seja a causa/efeito de outro ou que 
estes autores dependam uns dos outros para concebê-lo, embora possam 
influenciar uns aos outros, mas no sentido de que todos têm algo em 
comum, isto é, que o Diabo está presente, de alguma forma, em suas 
obras. 
Disse acima que pretendo efetuar uma releitura do Diabo 
machadianoe também o chamei de ―personagem‖. Faço isto tendo em 
vista que, aqui, não está em questão o estatuto ontológico do Diabo, isto 
é, se ele existe ou não existe, esta questão deixamos para Riobaldo5, 
nosso Fausto sertanejo. Sua existência, pelo menos naquilo que 
concerne a este estudo, é levada em conta a partir daquela que recebe no 
papel, e para ser ainda mais preciso, naquela em que aparece 
especificamente como um ser ficcional, como personagem literária6. 
 
Para um estudo mais aprofundado sobre o Diabo em alguns autores da literatura 
brasileira contemporânea, cf. a dissertação de José Oleriano Monteiro Filho, 
intitulada O Diabo tem três caras: as três faces do Diabo apresentadas em cinco 
contistas brasileiros contemporâneos (2012); sobre o Diabo na literatura 
nordestina de cordel, a dissertação de Estela Ramos de Souza de Oliveira, 
intitulada O Diabo ridicularizado na literatura de folhetos do nordeste (2013); 
sobre o Diabo nos contos dos irmãos Grimm, a tese de doutoramento de Filipe 
Marchioro Pfützenreuter, intitulada Entre o utilitário-pedagógico e o poético-
emancipatório: O Diabo dos irmãos Grimm e suas projeções sobre o leitor 
(2014); e, finalmente, para um estudo sobre o Diabo na literatura russa, a tese de 
doutoramento (em andamento), de Patrícia Leonor Martins, atualmente 
intitulada O Diabo fala russo. Também é válido mencionar que todos estes 
estudos foram orientados pela Prof.ª Dr.ª Salma Ferraz. 
5 Personagem/narrador da obra Grande Sertão: Veredas (1956), de J. Guimarães 
Rosa. 
6 Faço este esclarecimento, pois não se pode ignorar sua existência como 
conceito teológico, em sua condição de explicação para a existência do mal. Até 
porque, conforme aponta Jaziel Guerreiro Martins em sua Biografia do Diabo 
Brasileiro (2015), ―A crença no diabo sempre foi a forma que o cristianismo de 
 24 
 
Sendo assim, antes de seguir adiante, parece pertinente explicar de 
forma mais clara aquilo que entendo por ―personagem‖. 
Seguindo a indicação de Beth Brait em seu livro intitulado A 
personagem (2006), eu compreendo a personagem como ―um habitante 
da realidade ficcional‖, cuja matéria pela qual é feita e cujo espaço em 
que habita ―são diferentes da matéria e do espaço dos seres humanos‖, 
mas que, no entanto, ―mantém um íntimo relacionamento‖ entre essas 
duas realidades7. De forma semelhante, Massaud Moisés, em seu 
Dicionário de termos literários (1988), indica que o termo personagem 
designa 
 
no interior da prosa literária (conto, novela e 
romance) e do teatro, os seres fictícios 
construídos à imagem e semelhança dos seres 
humanos: se estes são pessoas reais, aqueles são 
―pessoas‖ imaginárias; se os primeiros habitam o 
mundo que nos cerca, os outros movem-se no 
espaço arquitetado pela fantasia do prosador. 
(MOISÉS, 1988, p. 396 – grifos meus) 
 
Cabe salientar que, embora costumeiramente, devido à própria 
etimologia do termo, confundam-se os termos ―pessoa‖ e ―personagem‖, 
eles não designam a mesma coisa, tendo em vista que o primeiro 
designa um ―ser vivo‖ e o segundo um ―ser ficcional‖8. Conforme 
aponta Beth Brait, ―o problema da personagem [literária] é, antes de 
tudo, um problema linguístico, pois a personagem não existe fora das 
palavras‖9; no entanto, conforme dito, embora possuam diferentes 
realidades, ambos, ainda assim mantém um íntimo relacionamento, pois, 
―as personagens representam pessoas, segundo modalidades próprias da 
ficção‖10. Assim, para a autora, 
 
Se quisermos saber alguma coisa a respeito de 
personagens, teremos de encarar frente a frente a 
construção do texto, a maneira que o autor 
encontrou para dar forma às suas criaturas, e aí 
 
todos os tempos encontrou para explicar sua própria maldade e ignorância, 
medos e ódios, invejas e violências.‖ (MARTIσS, 2015, p. 14) 
7 Cf. BRAIT, 2006, p. 11-12. 
8 Cf. MOISÉS, 1988, p. 396-397. 
9 BRAIT, 2006, p. 11. 
10 BRAIT, 2006, p. 11 – itálico da autora. 
 25 
 
pinçar a independência, a autonomia e a ―vida‖ 
desses seres de ficção. É somente sob essa 
perspectiva, tentativa de deslindamento do espaço 
habitado pelas personagens, que poderemos, se 
útil e se necessário, vasculhar a existência da 
personagem enquanto representação de uma 
realidade exterior ao texto. (BRAIT, 2006, p. 11) 
 
O excerto acima é interessante e pertinente para este estudo por 
dois motivos: i) por indicar a forma pela qual se deve observar uma 
personagem, isto é, encarar frente a frente ―a construção do texto‖ e a 
forma como o escritor ―encontrou para dar forma às suas criaturas‖, e, 
somente a partir daí, tentar encontrar sua autonomia, sua independência, 
sua ―vida‖; e ii) por realçar que, ―se útil e necessário‖, também é 
possível ―vasculhar a existência da personagem enquanto representação 
de uma realidade exterior ao texto‖. Menciono isso, pois este estudo 
além de tentar proceder pela forma indicada por Brait, também tem a 
intenção apontar a utilidade e necessidade de se pensar o Diabo 
machadiano tanto em relação a, como também enquanto representação 
de uma realidade exterior ao texto, conforme será explicitado mais 
adiante. 
Seguindo nessa direção, pode-se dizer que a novidade está em 
que além de investigar o Diabo como personagem literária dentro de 
alguns textos de Machado de Assis, isto é, de que forma ele é 
apresentado ao leitor, com suas características e traços peculiares, o 
presente estudo também visa desdobrar seus possíveis sentidos dentro 
deles. Para tal, conforme mencionado, busquei encontrar dentro dos 
escritos de nosso Bruxo do Cosme Velho aqueles textos em que o Diabo 
aparecesse de forma mais substancial, isto é, como uma personagem que 
recebesse algum protagonismo ou destaque. Esta delimitação foi 
necessária, pois, por incrível que pareça, o Diabo é constantemente 
mencionado nos escritos do autor de Dom Casmurro. Disse ―por incrível 
que pareça‖, pois para aqueles que não se debruçaram sobre este aspecto 
da literatura machadiana, o Diabo pode parecer uma figura esporádica, 
uma personagem que não é muito presente e que teria aparecido em 
apenas dois textos seus, a saber, ―A igreja do Diabo‖ e ―τ sermão do 
Diabo‖. σo entanto, ao reler as obras machadianas e efetuar um 
levantamento mais rigoroso, foi possível constatar que ele está bastante 
presente em seus escritos, seja como menção direta, alusão ou figura de 
linguagem. Apenas para dar uma ideia ao leitor, pode-se dizer que o 
Diabo ―aparece‖ nos seguintes escritos: a) Romances: Memórias 
 26 
 
Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó 
e Memorial de Aires; b) Contos: ―τ anjo Rafael‖, ―A igreja do Diabo‖, 
―Adão e Eva‖, ―τ sermão do Diabo‖; c) Crônicas: uma de 5 de outubro 
de 1885 (Balas de Estalo) e a outra de 5 de abril de 1888 (Bons Dias!); 
d) Poema: ―τ Casamento do Diabo‖11. Para apresentar tais dados de 
forma mais clara, efetuei uma contagem e preparei uma tabela acerca 
das menções do vocábulo ―Diabo/diabo‖ e de outros ―similares‖ nos 
romances de nosso escritor. 
 
Tabela 01: Menções do vocábulo ―Diabo/diabo‖ e de outros ―similares‖ 
nos romances de Machado de Assis. 
Obra/ Nome 
Diabo/ 
diabo 
Lúcifer Satanás 
Demô-
nio 
pobre-
diabo 
Tinhoso 
Ou-
tros12 
Total 
Ressurreição 1 X X X X X X 1 
A mão e a luva 1 X X 2 X X X 3 
Helena X X X 1 X X 1 2 
Iaiá-Garcia 2 X X X X X X 2 
M.P.B.C. 21 X X X 2 X 2 25 
Casa Velha 4 X X X 1 X X 5 
Q. Borba 22 X X 2 5 X 1 30 
D. Casmurro 12 X 6 X 2 X 2 22 
Esaú e Jacó 14 X 2 X 1 X X 17 
M. de Aires 11 X X X X X X 11 
Total 88 X 8 5 11 X 6 118 
Fonte: Obras Completas de Machado de Assis. 13 
 
Note o leitor que, ao todo, foram encontradas 118 ocorrências. 
Caso deixemos a expressão ―pobre-diabo‖ de lado, ainda nos sobram 
por volta de 107 menções ao Tinhoso, e isso contando apenas nos 
romances de nosso autor. Dessas 107menções, em λ6 delas o ―Coisa-
Ruim‖ recebeu o nome ―próprio‖ (Diabo ou Satanás). Caso fôssemos 
 
11 Raimundo Magalhães Jr. (1981, p. 191-193), no primeiro volume de sua 
biografia sobre Machado de Assis, sugere que o poema seria uma imitação de 
um poema alemão, feita por Machado de Assis a partir da tradução de Henrique 
Fleiuss, e explica que ―o texto imitado não passava de uma cançoneta de 
Gustave σadaud‖. 
12 Outros = diabólico (Helena e MPBC), endiabrado (Quincas Borba), diabrete 
(Dom Casmurro), satânico (MPBC), satanista (Dom Casmurro), etc. 
13 A contagem dos vocábulos e, por consequência, a elaboração da tabela foram 
facilitadas pela disponibilidade das Obras Completas de Machado de Assis em 
formato digital; trabalho este que é fruto de uma parceria entre o Portal 
Domínio Público – a biblioteca digital do MEC – e o Núcleo de Pesquisa em 
Informática, Literatura e Linguística (NUPILL), da Universidade Federal de 
Santa Catarina. Disponível no site < http://machado.mec.gov.br/index.php >. 
Acesso em: 14 jan. 2019. 
 27 
 
observar e contabilizar suas menções nos contos e crônicas, esse número 
provavelmente se mostraria ainda maior. No entanto, o objetivo aqui 
não é saber a quantidade de vezes que Machado de Assis menciona o 
Diabo em seus escritos; trouxe estes dados não apenas para apontar e 
justificar a relevância deste estudo, mas também para mostrar a 
necessidade de delimitação dos escritos machadianos diante da 
ubiquidade em que se mostra esta personagem. 
Assim, de acordo com o critério estabelecido – isto é, o de 
escolher apenas os textos em que o Diabo apareça como uma 
personagem em posição de protagonismo ou destaque –, encontrei cinco 
textos, cinco escritos em que é possível observar esta característica. 
São eles: os contos: ―A igreja do Diabo‖, de 1κκ3, e ―Adão e Eva‖, de 
1885; as crônicas: do dia 05 de outubro de 1885, situada na série Balas 
de Estalo, e ―τ sermão do Diabo‖, de 04 de setembro de 1κλ2; e, por 
fim, o capítulo IX de Dom Casmurro, intitulado ―A Ópera‖. Dito isto, 
cabe explicitar de forma mais clara, porém sucinta, quais são os 
objetivos deste estudo. De forma geral, o objetivo aqui é de estudar o 
Diabo enquanto personagem da obra de Machado de Assis. No entanto, 
dizer apenas isto é insuficiente, pois esta é apenas a base do edifício. 
Para delimitar melhor, é possível dizer que existem três objetivos 
principais, que, para prosseguir com a metáfora, são os pilares que 
sustentarão a estrutura. 
Em primeiro lugar, o intuito é investigar de que forma o autor de 
Dom Casmurro descreve esta personagem, ou seja, de que forma 
Machado de Assis o apresenta ao leitor, quais são suas características. 
Essa investigação se faz pertinente na medida em que, se formos 
observar a história do ocidente, perceberemos que nem sempre o Diabo 
foi ―visto‖ da mesma forma. Neste sentido, vale trazer, mesmo que de 
forma bastante sintética, as constatações de quatro autores que 
confirmam essa afirmação e que, além disso, são, basicamente, os 
pilares de minha pesquisa acerca do Diabo. São eles: Luther Link, 
Robert Muchembled, Peter Stanford, Henry Ansgar Kelly14. 
 
14 Além destes autores, também me baseio na tetralogia do historiador Jeffrey 
Burton Russell, pioneiro nos estudos sobre o Diabo, e no livro de Carlos 
Roberto F. Nogueira, pioneiro nestes estudos feitos aqui no Brasil. Embora 
ambos sejam autores renomados, eles não constam especificamente como 
pilares desta pesquisa pelo fato de que o primeiro, embora tenha uma obra de 
bastante fôlego (quatro volumes), aborda o Diabo como uma personificação do 
Mal, seja ele de qualquer tipo, e por isso inclui outros tipos de manifestações 
maléficas como parte integrante de seu estudo. O segundo, por sua vez, é 
 28 
 
Em O Diabo: a máscara sem rosto (1998, p. 19), Luther Link vai 
argumentar sobre a ―descontinuidade da imagem do Diabo‖ ao trabalhar 
com as artes plásticas (pinturas e esculturas) do séc. IX ao XVI – aqui é 
preciso mencionar que, embora a iconografia de Jesus, de Maria e de 
outros também seja variável, diz Link, ela foi definida de forma mais 
precisa, enquanto que a do Diabo, nunca o foi. Além disso, ainda 
segundo este autor, ―[n]ossas ideias sobre o Diabo, embora não 
necessariamente sua imagem pictórica, derivam de três fontes: 
interpretações antigas do Novo Testamento, o herói rebelde criado por 
Milton e pela tradição literária romântica de Blake e Baudelaire e a 
tradição popular dos cultos satânicos e sabás de bruxas.‖15. 
R. Muchembled, em seu livro Uma história do Diabo: séculos 
XII-XX (2001), vai abordar como, ao longo de oito séculos, a figura de 
um Diabo mais humanizado, que poderia ser enganado, ludibriado e 
derrotado por cristãos espertos, vai se bifurcar em uma tradição que o 
aponta tanto como o soberano do Inferno quanto como uma besta 
imunda escondida nas entranhas de cada pecador; depois passa a ser 
apontado como o líder de seitas demoníacas, como a das feiticeiras dos 
sabbath‟s; em seguida, em como ele é reinterpretado pelos românticos 
na forma do grande rebelde; e, ainda, mais ou menos após o século 
XVIII, em como ele será cada vez mais interiorizado – ou seja, em como 
ele passa para dentro de cada indivíduo, seja dentro de si seja dentro do 
outro, isto é, daqueles que são considerados diferentes por determinado 
grupo (geralmente simbolizados por estrangeiros, comunistas, etc.). 
Peter Stanford, em seu O Diabo: uma biografia (2003), 
trabalhando desde as antigas civilizações europeias até o século XX, 
argumenta que um esboço, um rascunho, um protótipo do Diabo cristão 
teria nascido com a tentativa dos povos egípcios, mesopotâmicos, 
cananeus (ou cananitas), gregos e persas de explicar o mal; teria entrado 
numa espécie de ―Jardim de Infância‖ com a cultura e as Escrituras 
hebraicas; em seguida, teria aparecido como um ―adolescente‖ no 
Segundo Testamento; depois, tornou-se o poderoso inimigo de Deus 
com as reinterpretações dos Pais da Igreja; e, por fim, seguiu sua 
trajetória sendo novamente reinterpretado conforme a necessidade, 
 
profícuo como introdução ao tema e como suporte, mas não especificamente 
como um pilar, tendo em vista que seus apontamentos são de cunho mais geral, 
não se aprofundando tanto nas questões. Para as referências completas, cf. a 
bibliografia ao final deste estudo. 
15 LINK, 1998, p. 17. 
 29 
 
tornando-se sinônimo de todas as divindades e crenças rivais da 
cristandade. 
Em seu Satã: uma biografia (2008), H. A. Kelly trabalha com a 
hipótese de que o Satã da Tradição Cristã é diferente do Satã/Diabo que 
é retratado na Bíblia, e para isso, ele começa sua trilha pelas Escrituras 
hebraicas, passa pelos livros apócrifos, segue pelo Segundo Testamento, 
comenta sobre a reinterpretação pelos Pais da Igreja, de suas novas 
reinterpretações pelas artes (literárias e plásticas), etc. 
Ainda seguindo neste primeiro ponto, é preciso dizer que esta 
investigação se torna pertinente pelo fato de que, da forma como eu 
vejo, quando Machado de Assis utiliza o Diabo como uma personagem, 
ele nem sempre o faz da mesma forma. E não o faz da mesma forma em 
dois sentidos, tanto no de que sua descrição, isto é, as características que 
utiliza para a personagem não seriam as mesmas, quanto no de que o 
Diabo machadiano pode abarcar outros significados que aqueles 
convencionalmente abordados pela tradição teológica cristã, a saber, 
como um ser espiritual que renegou a Deus e que simboliza unicamente 
o Mal e tudo aquilo que nos impede de chegar a Deus16. Em meu juízo, 
essa possibilidade se torna uma probabilidade se levarmos em conta a 
interpretação e a argumentação de alguns estudiosos da obra 
machadiana, tais como John Gledson, Paul Dixon, etc. Estas 
constatações me levaram à hipótese de que o Diabo em cada um dos 
escritosmachadianos não é exatamente o mesmo, e daí a possibilidade 
deixada em aberto (anteriormente e ainda agora) de não serem chamados 
de Diabo, mas de Diabos. 
Em segundo lugar, o objetivo é comparar o(s) Diabo(s) 
machadiano(s) com outros Diabos explorados por outros autores daquilo 
que chamei de tradição diabólica. Dos inúmeros autores existentes, tive 
de optar por apenas cinco, tendo em vista que observar a todos seria uma 
tarefa (praticamente) infinita. Dentre os que foram mencionados, escolhi 
aqueles que, em minha visão, parecem ser os mais significativos, além 
de me serem os mais familiares, a saber, Dante Alighieri, Gil Vicente, 
John Milton, J. W. von Goethe e Álvares de Azevedo17. Outro motivo 
que me fez escolher estes autores para a comparação está no fato de que 
 
16 Cf. CATECISMO Católico. 
17 Os textos são, respectivamente, A Divina Comédia, O Auto da Barca do 
Inferno, Paraíso Perdido, Fausto (Parte I) e Macário. Cabe ressaltar que, 
embora pareça uma tarefa imensa, ela não chega a ser tão grande assim, uma 
vez que meu intuito é levantar os traços da personagem de forma mais genérica, 
abordando suas principais características. 
 30 
 
Machado de Assis teria conhecido e lido as obras em que eles se 
utilizaram do Diabo como personagem, cabendo, portanto, uma 
comparação entre suas ―visões‖ acerca dele18. 
Além disso, também se faz necessário esclarecer e frisar, no que 
tange às mencionadas obras desses autores, é que aqui não será feito um 
estudo exaustivo em relação ao personagem nelas apresentado, mas um 
levantamento geral sobre suas principais características a fim de efetuar 
uma comparação com as descrições machadianas do Diabo e, desta 
forma, perceber suas semelhanças e diferenças. Entendo que, mesmo 
trabalhando com apenas cinco autores, isso já parece uma tarefa enorme. 
No entanto, cabe reiterar que não me deterei em uma análise destas 
personagens, isto é, não pretendo colocá-las sobre a mesa de dissecação, 
esquartejá-las e observar suas partes. O intuito aqui será observá-las 
como ―modelos‖ e, assim, esboçar suas ―fisionomias‖, traçar um 
desenho, fazer um breve retrato para que se possa observar de forma 
mais acurada o que nosso escritor traz da tradição e no que ele se 
diferencia. Assim, pelo modo comparativo, ficará mais fácil de 
vislumbrar os possíveis diálogos e choques, laces e desenlaces, 
entranhamentos e estranhamentos que ocorrem com estas personagens. 
Essa comparação também é interessante pelo fato de que nos 
possibilitará perceber de forma mais clara a pluralidade nas 
representações de Machado de Assis para o Diabo, ou, dito de outra 
forma, para confirmar a hipótese de que não se trata de apenas um 
Diabo, mas de alguns. 
Dito isto, podemos passar ao terceiro objetivo deste estudo, a 
saber, o desdobramento de alguns possíveis sentidos que o(s) Diabo(s) 
machadiano(s) pode(m) receber dentro de sua obra. Antes de tudo, é 
preciso esclarecer que o intuito aqui não é esgotar o sentido ou os 
sentidos que ele pode receber, mas sim, fugir daquele 
convencionalmente abordado pela tradição teológica cristã, e, a partir de 
outros olhares, isto é, a partir da Fortuna Crítica existente sobre os 
textos machadianos e sobre esta personagem dentro da obra de Machado 
de Assis, construir outra visão para ela. O interesse que subjaz a esse 
objetivo é o de buscar uma reflexão e uma possível explicação do 
porquê esses textos continuarem a nos tocar mesmo quando parecem 
 
18 Dentre estes autores, o único que não consta na ―biblioteca de Machado‖ é 
Álvares de Azevedo. No entanto, a partir de seus escritos como crítico literário 
é possível perceber e afirmar que Machado teve contato com sua obra. Baseio-
me aqui na lista de livros catalogada por Jean Michel Massa e atualizada por 
Glória Viana (Cf. JOBIM (org.), 2008, p. 144-274). 
 31 
 
fazer referências a algo que não está mais ―aí‖. Menciono isto por conta 
de constatações como a de Luiz Costa Lima quando este afirma que ―a 
originalidade machadiana resulta de haver fundado sua produção da 
maturidade na reflexão ficcional de sua sociedade.‖19, bem como o fato 
de que ―é sua poética que exige sua temporalização‖ 20, pois, sem essa 
temporalização, ―desentendemos a presença da alegoria e concedemos a 
Machado o epíteto insosso de ‗o nosso primeiro clássico‘.‖ 21. 
É evidente que em certa medida ele está com a razão, pois, sem 
essa temporalização, perdem-se algumas das sutilezas da obra 
machadiana, algumas de suas alegorias, e, principalmente, suas mais 
finas ironias, aquela pitadinha de sal que as deixa (ainda) mais 
saborosas. Mas, se fosse apenas por isso, não leríamos mais Machado 
de Assis. Suas narrativas já estariam ultrapassadas e seriam 
completamente enfadonhas, pois diriam respeito somente ao seu tempo 
e somente deleitariam aqueles que tivessem algum conhecimento 
histórico mais amplo, ou, pior, que vissem na obra do autor apenas um 
documento histórico e que buscassem nela somente apontamentos e 
explicações sobre sua época. No entanto, não é isso que ocorre. 
Machado de Assis é o nosso primeiro clássico, pois continua atual ainda 
hoje, pois continua a nos tocar. Além disso, força é dizer, quando o 
chamo de escritor clássico tenho em mente aquilo que Gadamer escreve 
em Verdade e Método I (2008) , a saber, quando afirma que um clássico 
é ―aquilo que se subtraiu às flutuações do tempo e do gosto‖, e quando 
completa sua afirmação explicando que ―[o] que nos leva a chamar algo 
de ‗clássico‘ é, antes, uma consciência do ser permanente, uma 
consciência do significado imorredouro, que é independente de toda 
circunstância temporal, uma espécie de presente intemporal 
contemporâneo de todo e qualquer presente.‖ 22. Essa explicação de 
Gadamer, a meu ver, está em perfeita consonância com a sexta definição 
de Ítalo Calvino em seu texto ―Por que ler os clássicos?‖, na qual 
declara o seguinte: ―Um clássico é um livro23 que nunca terminou de 
dizer aquilo que tinha para dizer.‖24. Sendo assim, chamar Machado de o 
nosso primeiro clássico não é demérito algum. Pelo contrário, é dar a 
ele o que lhe é de direito. Precisamos, sim, dessa leitura histórica para 
 
19 LIMA, 2011, p. 195. 
20 LIMA, 2011, p. 220. 
21 LIMA, 2011, p. 220 – grifo meu. 
22 GADAMER, 2008, p. 381. 
23 Ou texto, se quisermos aumentar o escopo. 
24 CALVINO, 1993, p. 11. 
 32 
 
não perder de vista o horizonte de expectativas que estava em questão 
quando ele escreveu seus textos, mas, também precisamos lembrar que 
eles, os textos, transcendem sua época e que quem os lê atualmente, 
mesmo sem esse fundo histórico, ainda é tocado, ou, para utilizar mais 
uma das definições de Calvino, seus textos ―persiste[m] como rumor 
mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível.‖ 25. 
Feitas estas considerações, gostaria de abrir dois breves 
parênteses antes de explicar de que forma se constituirá a estrutura 
formal desta dissertação. Um deles concerne ao título deste estudo; o 
outro, à forma como venho me referindo e como irei me referir à 
personagem que será estudada. Começarei por este último ponto. 
Sobre a forma como vou me referir à personagem, é preciso 
esclarecer que os termos para designar o Diabo provêm de uma tradição 
com diferentes interpretações; menciono isso, pois, os livros da Bíblia – 
tanto do Primeiro (ou Antigo) quanto do Segundo (ou Novo) Testamento 
– não foram escritos ao mesmo tempo e, por isso, cada livro bíblico já 
seria uma reinterpretação (a sua maneira) da tradição hebraica. Vale 
dizer que, se o leitor for procurar no Primeiro Testamento bíblico, não 
encontrará o Diabo propriamente dito. Terá, sim, uma personagem que é 
chamada de STN26 (adversário), termo este que, segundo o professor e 
pesquisador Henry A. Kelly (2008, p. 11), é geralmente utilizado como 
um substantivo comum, e não como um nome próprio. Embora o Diabodo cristianismo tenha ―se baseado‖ no STN hebraico, os dois só se 
tornam o mesmo ser posteriormente. Em outras palavras, o Diabo, na 
forma como se consolidou no imaginário ocidental, é uma invenção 
posterior, uma interpretação cristã. 
Sendo assim, também é pertinente mencionar que, 
etimologicamente27 falando, STN é um termo hebraico que significa 
adversário; que diabolôs – de onde provém o nosso termo Diabo – é a 
tradução deste termo para o grego e significa acusador ou difamador; 
que daemon, um termo que também é grego, refere-se a ―espíritos 
mediadores entre deuses e homens‖, os quais podem ser tanto bons 
quanto maus (vide o exemplo do daemon socrático); e que, por fim, o 
 
25 CALVINO, 1993, p. 15. 
26 Leia-se ―Shatan‖. 
27 Sobre a etimologia dos principais nomes do Diabo é possível consultar os 
livros: O Diabo: a máscara sem rosto (1998), de Luther Link, e Satã: uma 
biografia (2008), de Henry A. Kelly. Para estes e outros nomes relacionados ao 
Diabo (Lillith, Azazel, etc.) conferir o Manual de demonologia (2011), de 
Carlos Augusto Vailatti. 
 33 
 
termo Lúcifer provém do latim e significa o portador da luz, o qual, a 
princípio, não se referia ao anjo que se rebela contra Deus, mas a um rei 
babilônico em uma passagem de Isaías (14: 12). De acordo com Luther 
Link, professor de história da arte, 
 
Historicamente, a sequência dos três termos que 
conhecemos bem é: Satã, Diabo, Lúcifer, embora 
ao longo das eras estudiosos e escritores 
frequentemente tenham imaginado a sequência de 
outras maneiras. Chaucer, por exemplo, julgava 
que o anjo Lúcifer, depois de sua queda do Céu, 
tornou-se Satã. Teólogos medievais e 
renascentistas não apresentam um uso sistemático 
ou uniforme dos três termos. Além disso, embora 
todos os três refiram o mesmo ser, no uso inglês 
comum (e também em alemão, francês e italiano), 
esses termos ora são intercambiáveis, ora não. 
(LINK, 1998, p. 13) 
 
Sendo assim, para facilitar a compreensão, darei preferência ao 
uso do termo Lúcifer como nome do anjo que se rebela contra Deus (e 
aqui independe se o seu pecado foi orgulho, concupiscência ou inveja 
em relação ao homem28), ou seja, como nome para o anjo antes de sua 
queda, e os termos Satã, Satanás, Demônio e Diabo como sinônimos 
para seu nome após a queda. Além disso, para não utilizar seu nome em 
todas as ocasiões, ele também poderá ser chamado de Cão, Capeta, 
Capiroto, Chifrudo, Coisa Ruim, Cramulhão, Maligno, Pedro Botelho, 
Tinhoso, nomes utilizados pela cultura popular. Vale dizer que, salvo em 
citações diretas, quando for me referir ao Diabo como uma personagem, 
seu nome (ou alguma de suas variações) será grafado com a inicial 
maiúscula. Passemos agora ao outro parêntese. 
No que concerne ao título de minha dissertação – Faces do Diabo 
na obra de um Bruxo: uma releitura do Diabo machadiano –, ele aparece 
aqui como homenagem à minha orientadora, a Prof.ª Dr.ª Salma Ferraz, 
cuja tese de doutoramento é intitulada As faces de Deus na obra de um 
ateu. Presto esta humilde homenagem em virtude não só da acolhida que 
me deu enquanto orientadora, ou da amizade que se firmou entre nós – 
fatores que, por si sós, já seriam o suficiente –, mas também por me ter 
possibilitado a reconciliação com essa parte determinante da cultura 
 
28 Sobre a divergência teológica acerca de qual teria sido o pecado de Lúcifer, 
cf. LINK, 1998, p. 33-36. 
 34 
 
ocidental, que é a tradição dos estudos bíblicos e teológicos e suas 
relações com a literatura. Lembro ainda da primeira vez que cursei a 
disciplina de Teopoética29 aqui na Universidade Federal de Santa 
Catarina, sobre Humor e mau humor nas e sobre as narrativas bíblicas. 
Até então, eu não tinha a menor ideia de que se pudesse estudar a Bíblia 
enquanto literatura. Minha visão de ovelha desgarrada do rebanho 
impedia qualquer tipo de olhar para estas narrativas que – conforme 
explica Auerbach, no texto ―A cicatriz de Ulisses‖30 – são um dos dois 
pilares da literatura ocidental, juntamente com a literatura greco-latina; 
ou que, na visão de Northrop Frye, citando William Blake31, são o 
―grande código da arte‖. Tampouco podia apreciar as referências 
bíblicas, mesmo aquelas que a ironizavam, uma vez que não possuía 
parâmetros para tal. Assim, com essa singela homenagem, espero prestar 
meus agradecimentos a essa grande mulher. Feitos estes apontamentos e 
esclarecimentos, passo agora a explicitar de que forma este estudo será 
estruturado. 
 
29 De acordo com a Prof.ª Dr.ª Salma Ferraz em sua apresentação para o site do 
NUTEL (Núcleo de estudos comparados entre Teologia e Literatura), ―A 
Teopoética foi proposta por Karl Josef Kuschel e trata-se de um novo ramo 
de estudos acadêmicos voltado para o discurso crítico-literário sobre Deus, 
a análise literária efetivada por meio de uma reflexão teológica, o diálogo 
interdisciplinar possível entre Teologia e Literatura. Uma das principais 
perguntas da Teopoética é: qual o discurso dos autores sobre Deus dentro da 
Literatura do século XX? Sobre este assunto já existe um interessante estudo 
denominado Literatura do século XX e cristianismo: o silêncio de Deus, de 
autoria de Charles Moeller que investiga a importância de Deus nas obras de 
Albert Camus, André Gide e diversos outros escritores.‖. (Grifo meu) 
Disponível em: <http://teopoetica.sites.ufsc.br/>. Acesso em: 14 jan. 2019. 
Vale acrescentar que, não obstante a Teopoética – na visão de Kuschel e de 
Ferraz – privilegiar, em certa medida, o âmbito teológico, meu intuito aqui, pelo 
contrário, é privilegiar o âmbito literário a partir de um horizonte que possa se 
valer de reflexões teológicas em benefício do estudo da literatura. Em outras 
palavras, a teologia, aqui, será uma espécie de ferramenta que me irá auxiliar 
tanto a analisar quanto a efetuar uma releitura desta personagem que faz parte 
da cultura ocidental. Para uma discussão um pouco mais aprofundada sobre a 
Teopoética a partir de meu ponto de vista, cf. o primeiro capítulo de minha já 
mencionada monografia (PIERI, 2016). 
30 Situado como o primeiro capítulo de seu livro Mimesis: a representação da 
realidade na literatura Ocidental, Ed. Perspectiva, 2009. 
31 Conforme explica o autor em seu livro intitulado O código dos códigos: a 
Bíblia e a literatura, Ed. Boitempo, 2004. 
 35 
 
σo primeiro capítulo, chamado ―Uma visão panorâmica‖, são 
tecidos alguns comentários sobre o Diabo enquanto uma figura artística, 
para, a partir daí, prover a abertura de que necessito sobre o tema. Ainda 
neste primeiro capítulo, será feita uma revisão bibliográfica da Fortuna 
Crítica de Machado de Assis, passando tanto por algumas de suas 
biografias, quanto por alguns dos principais estudiosos sobre sua obra 
como um todo, e ainda por alguns dos estudos feitos especificamente 
sobre o Diabo em sua obra. Esta revisão é fundamental para este estudo 
tendo em vista que muitos autores – sejam eles de renome ou não, com 
estudos de caráter mais geral ou mais específico – já se debruçaram 
sobre a obra machadiana, e não só não convém deixá-los de lado, como 
também seria um grande erro fazê-lo, uma vez que suas contribuições 
podem (e em muitos casos vão) me auxiliar a chegar ao ponto onde 
pretendo. Para concluir este capítulo, eu retorno ao Diabo, mas agora 
enquanto personagem da obra machadiana para sugerir algumas de suas 
potencialidades. 
σo segundo capítulo, intitulado ―Com o Diabo no corpus‖, passo 
a abordar as narrativas selecionadas a fim de contemplar os aspectos, os 
traços, as características utilizadas por Machado de Assis para compor 
sua personagem. Em primeiro lugar, abordarei os contos ―A igreja do 
Diabo‖ e ―Adão e Eva‖;, para em seguida abordar a crônica do dia ―05 
de outubro de 1κκ5‖, situada na série Balas de estalo, e a crônica ―τ 
sermão do Diabo‖; e, por último, o capítulo IX de Dom Casmurro, 
intitulado―A ópera‖. Fiz a opção de agrupar os textos por gênero neste 
capítulo (conto, crônica e romance), pois, embora seja uma forma 
arbitrária, ainda assim me parece ser mais consistente (ou menos 
subjetiva. No final do capítulo encontram-se considerações parciais 
acerca do questionamento proposto, isto é, se o Diabo machadiano é 
uno, múltiplo ou múltiplo e comum. 
σo terceiro capítulo, cujo título é ―Machado de Assis e a tradição 
diabólica‖, abordo cinco diferentes formas de representações do Diabo 
na literatura ocidental a partir de textos como o ―Inferno‖, de Dante 
Alighieri; O Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente; Paraíso Perdido, 
de John Milton; Fausto (Parte 1), de J. W. von Goethe; e, Macário, de 
Álvares de Azevedo. O intuito deste capítulo é traçar comparações entre 
as diversas formas de representação do Diabo em alguns autores 
inseridos no cânone da literatura ocidental para, com isso, perceber as 
semelhanças e diferenças das características apresentadas entre seus 
textos e os textos machadianos, e assim perceber o que Machado de 
Assis traz dessa tradição e o que ele nos fornece de novo. 
 36 
 
No quarto capítulo, intitulado ―Faces do Diabo na obra de 
Machado de Assis‖, pretendo desdobrar os sentidos que se pode 
alcançar a partir deste outro olhar para o(s) Diabo(s) machadiano(s), 
pois, se em cada aparição do Diabo tivermos um Diabo diferente – 
mesmo que possua o mesmo nome ou apenas várias faces –, seu sentido 
pode ser outro, e, por isso, cada vez apontar para outro lugar, seja para o 
―mundo real‖32 seja para o mundo da ficção, na forma de um 
―confronto‖, um ―embate‖, com a própria tradição. 
As considerações finais levam o título de Απο ά υψη33, pois é o 
lugar onde se passa o juízo final e a απο α ά α ς34. Aqui encontra-se 
não apenas a revelação daquilo que encontramos, mas também a 
redenção do Diabo, se é que ele irá querer ou precisar de alguma, e 
ainda sugestões para futuros estudos. Dito isto, é preciso que, como 
Lúcifer, filho da estrela d‘alva, subamos aos céus e ainda mais, até que 
estejamos acima das estrelas, pois só assim teremos Uma visão 
panorâmica... 
 
 
32 σo sentido de que não é o ―mundo da ficção‖ ou o ―mundo do texto‖ 
(Ricoeur). 
33 τ termo ―apocalipse‖, em grego, significa ―Revelação‖. 
34 τ termo ―apokatástasis‖ ou ―apocatástase‖ provém de τrígenes de 
Alexandria e sua teoria na qual, no final dos tempos, todos os seres teriam a 
possibilidade de redenção. Para maiores detalhes, cf. STANFORD, 2003, p. 95-
96 e KELLY, 2008, p. 231. 
 37 
 
2 CAPÍTULO I: Uma visão panorâmica 
 
12 Como caíste do céu, ó estrela d'alva, 
filho da aurora! Como foste atirado à 
terra, vencedor das nações! 13 E, no 
entanto, dizias no teu coração: 'Hei de 
subir até o céu, acima das estrelas de 
Deus colocarei o meu trono, 
estabelecer-me-ei na montanha da 
Assembléia, nos confins do norte. 14 
Subirei acima das nuvens, tornar-me-
ei semelhante ao Altíssimo.' 15E, 
contudo, foste precipitado ao Xeol, nas 
profundezas do abismo. 
(Livro de Isaías XIV: 12-15)35 
 
Eis que estamos acima das nuvens, na posição necessária para 
que tenhamos uma visão panorâmica. Foi preciso subir a essa altura para 
que não fôssemos tragados para o Xeol – ou Inferno, dependendo da 
tradução bíblica que se use. Embora estejamos olhando de cima, Satã já 
caiu e se encontra nas profundezas do Abismo, outro dos nomes 
recebidos pelo lugar em que, segundo a tradição Católica, são lançados 
aqueles que se afastam dos caminhos da divindade. Esta subida, claro 
está, é metafórica. Ela apenas quer dizer que tomamos distância para 
maior ―objetividade‖, que vai entre aspas, pois já é lugar comum saber-
se que não existe uma objetividade plena, mas, apenas certa 
objetividade. Eis que mal começamos e Satã nos desvia do caminho. Ou 
será que não? Afinal, é sempre válido lembrar que aquele que escolhe 
uma questão é tocado por ela, e assim, de alguma forma é difícil fugir 
plenamente da subjetividade. Mas, voltemos nosso olhar para baixo e 
vejamos de que forma a figura do Diabo foi explorada por alguns 
artistas da cultura ocidental. 
 
35 Embora a passagem do Livro de Isaías refira-se a um rei babilônico em seu 
contexto original, eu a utilizo como epígrafe levando em conta a história de sua 
interpretação, que a identifica com a queda de Lúcifer. 
 38 
 
2.1 Um Diabo diferente: algumas ―representações‖36 do Tinhoso. 
 
―O Diabo é uma extraordinária mistura 
de confusões. Satã é uma criatura da 
teologia, da ideologia e política 
práticas e de tradições pictóricas 
estranhamente ligadas. O soberano do 
Inferno, o anjo rebelde, a contrapartida 
de Miguel na pesagem das almas e o 
perverso micróbio provocador pouco 
se sobrepuseram na esfera pictórica. 
Sem uma iconografia fixa, o Diabo 
pôde ser Godzilla, um Pã desvirtuado, 
uma peste peluda com ou sem asas, 
com ou sem chifres, com ou sem 
cascos fendidos, feroz ou cômico‖. 
(Luther Link – O Diabo: a máscara 
sem rosto) 
 
Conforme mencionei na introdução37, em seu O Diabo: a máscara 
sem rosto (1998), Luther Link afirma que nossas concepções sobre a 
imagem do Diabo provêm de três fontes: 1) de interpretações da 
Bíblia38; 2) de John Milton e da literatura romântica; e 3) da tradição 
popular dos cultos satânicos e sabás de bruxas. Além disso, também 
mencionei que nem sempre o Diabo foi ―visto‖ ou, melhor dizendo, 
 
36 O termo vai entre aspas, pois compreendo que seu uso seja problemático 
dentro dos estudos literários, uma vez que nos remete à ideia de mimese, isto é, 
de espelhamento, cópia ou imitação. No entanto, eu a utilizo aqui tanto no 
sentido daquilo que ―torna algo presente‖, quanto no sentido daquilo que 
―desempenha um papel‖ (como nas representações teatrais), ou ainda daquilo 
que ―substitui algo ou alguém‖, tal como um advogado representa seu cliente. 
Estes outros sentidos são elencados pelo Novo dicionário da língua portuguesa 
(1986), de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. 
37 Cf. p. 28 desta dissertação. 
38 Vale mencionar que, nem mesmo na Bíblia, o Diabo possui uma 
caracterização única ou unívoca. Para que se tenha uma noção disto, basta 
mencionar que, mesmo dentro do Primeiro Testamento temos pelo menos 
quatro aparições de uma figura denominada STN na forma de um ente 
sobrenatural, as quais nem sempre dão exatamente a ―mesma forma‖ à 
personagem. Para uma explicação mais detalhada sobre as aparições/descrições 
de Satã na Bíblia – seja para o Primeiro e o Segundo Testamentos ou para os 
livros apócrifos –, consultar a obra de Henry A. Kelly, Satã: uma biografia 
(2008). 
 39 
 
―concebido‖ da mesma forma na cultura ocidental. Para embasar esta 
afirmação trouxe sinteticamente os argumentos de estudiosos como 
Luther Link, Robert Muchembled, Peter Stanford e Henry Ansgar Kelly. 
No entanto, embora perdesse em academicidade, também poderia ter 
solicitado à leitora ou ao leitor que me respondesse a seguinte questão: 
de que forma você imagina o Diabo? É possível que cada qual tivesse 
sua própria concepção sobre a aparência do Tinhoso, o que nos 
proporcionaria diversas formas para ―representá-lo‖. Mesmo que 
fôssemos seguir a sua descrição consolidada pela cultura popular39, isto 
é, a partir da descrição na qual ele consta como uma figura 
antropomórfica, de pele vermelha ou preta, segurando um tridente, com 
rabo pontiagudo, manco40, com um casco fendido no lugar dos pés, 
barba e chifres de bode, com cheiro de enxofre (ou muito perfumado, 
para disfarçar o cheiro), ainda assim teríamos margem para muitas 
variantes. 
Falei em descrição consolidada pela cultura popular, pois, de 
acordo com Carlos Roberto F. Nogueira, em seu O Diabo no imaginário 
cristão, a partir da Idade Moderna, 
 
duas imagens de Satã coexistem: uma popular e 
outra erudita, esta, de longe, a representação mais 
trágica, pois o Demônio, nas consciências 
populares, é umaentre outras tantas 
sobrevivências míticas que uma conversão 
imposta não conseguiu exterminar. O Diabo 
popular é uma personagem familiar, às vezes 
benfazeja, muito menos terrível do que o 
afirma a Igreja, e pode ser, inclusive, 
facilmente enganado. A mentalidade popular 
defendia-se, desse modo, da teologia aterrorizante 
 
39 Sobre o Diabo na cultura popular, cf. Carlos Roberto F. Nogueira, em seu O 
Diabo no imaginário cristão. (1986), 
40 Segundo Carlos Roberto F. Nogueira, em seu O Diabo no imaginário 
cristão., ―τutra característica desenvolvida na tradição popular é que o Diabo é 
coxo, como resultado de um ferimento recebido quando foi precipitado dos 
céus. Disso resulta a crença de que se o corpo de uma criatura é defeituoso, isso 
é um claro sinal da deformidade de toda a sua natureza; crença que é levada 
para o cotidiano, em prejuízo de homens e mulheres que serão levados à justiça 
como agentes do Diabo unicamente por possuírem deformidades físicas, 
deduzindo-se de sua monstruosidade material a sua monstruosidade espiritual.‖ 
(1986, p. 59 – grifo meu). 
 40 
 
– e muitas vezes incompreensível – da cultura 
erudita. (NOGUEIRA, 1986, p. 76 – grifo meu) 
 
Para constatar a pluralidade de suas representações, efetuei uma 
busca na internet por imagens disponibilizadas pelo vocábulo Diabo (ou 
de seus cognatos em outras línguas: diablo, devil, Teufel, etc.). Veja o 
leitor as imagens abaixo (Imagens 01, 02, 03, e 04) e assim terá uma 
noção do que digo, embora o que figure aqui seja uma versão mais 
modernizada do Capiroto. 
 
Figura 01: Diabo. 
 
Fonte: https://www.altoastral.com.br/5-formas-como-diabo-conhecido/ Acesso 
em: 14/01/2019. 
 
Figura 02: Diablo. 
 
Fonte: https://sipse.com/novedades/diablo-satanas-como-es-satan-arte-
cristianismo-diablo-cristiano-mal-maldad-biblia-religion-pintura-cuernos-como-
es-el-diablo-204076.html Acesso em: 14/01/2019. 
 41 
 
Figura 03: Devil. 
 
Fonte: 
https://vignette.wikia.nocookie.net/vampirediaries/images/4/4d/Devil.jpg/revisi
on/latest?cb=20130508215710 Acesso em: 14/01/2019. 
 
Figura 04: Teufel. 
 
Fonte: https://i.mmo.cm/is/image/mmoimg/bigview/teufel-deluxe-set--104540-
devil-deluxe-make-up-kit-teulfe-deluxe-set.jpg Acesso em: 14/01/2019. 
 
 42 
 
Conforme podemos observar, essas imagens (Figuras 01, 02, 03 
e 04) possuem características que não deixam de ter certa semelhança 
com o deus Pã e os sátiros (Figuras 05 e 06). Peter Stanford (2003) 
constata que a imagem de Pã serviu de inspiração para a produção 
iconográfica do Diabo. Carlos R. F. Nogueira, em sua obra supracitada, 
possui a mesma opinião, e afirma sem meias palavras que 
 
O grande modelo que influenciou toda uma 
iconografia diabólica foram as clássicas 
imagens de Pã e dos sátiros: criaturas meio 
homem, meio bode, com chifres, cascos partidos, 
olhos oblíquos e orelhas pontiagudas. A essa 
combinação a imaginação cristã acrescenta um 
ingrediente essencial: as asas de um anjo. 
Contudo, como se tratava de anjos caídos, as 
asas não poderiam ser de um pássaro que voa à 
luz do dia, e sim as de um morcego, que ama as 
trevas e, de um modo absolutamente diabólico, 
vive de cabeça para baixo. (NOGUEIRA, 1986, p. 
58 – grifos meus) 
 
Figura 05: Pã. 
 
Fonte: https://escamandro.wordpress.com/2012/02/29/shelley-hinos-de-apolo-
pa Acesso em: 14/01/2019. 
 43 
 
Figura 06: Pã. 
 
Fonte: http://arcanoteca.blogspot.com.br/2017/02/menu-mitologia-grega-pa-e-
constelacao.html Acesso em: 14/01/2019. 
 
Em certa medida, eles até que estão com a razão, pois esta 
imagem realmente se alastrou pelo imaginário cristão. Apesar disso, 
Luther Link discorda parcialmente dessa opinião. Embora o autor 
admita que Pã tenha realmente influenciado na concepção do Diabo 
dentro do imaginário cristão, ele explica – e demonstra a partir de 
diversas obras de arte – que ―imaginar que Pã foi o protótipo do Diabo 
não corresponde aos fatos‖41, pois nem todos os Diabos que foram 
esculpidos42 ou pintados43 – do séc. IX ao XVI, pelo menos – possuem 
as características do deus Pã. Embora de forma não tão completa ou 
detalhada quanto a de Luther Link, é por esse caminho que vamos trilhar 
a partir de agora44. 
 
41 LINK, 1998, p. 55. 
42 LINK, 1998, p. 55. 
43 LINK, 1998, p. 61. 
44 Por motivos de concisão e de foco – uma vez que esta dissertação não é sobre 
o Diabo na cultura ocidental, mas sim, na obra de Machado de Assis –, não 
poderei abordar todas as representações já feitas do Diabo. Esta exposição 
aparece aqui apenas para ilustrar este ponto de vista, a saber, a descontinuidade 
nas representações do Diabo. Ao leitor interessado em mais representações 
pictográficas do Diabo, remeto à obra de Luther Link. 
 44 
 
Nossa caminhada se inicia por volta do século XIV, data que 
pode parecer um tanto quanto arbitrária. No entanto, mesmo que essa 
arbitrariedade não deixe de ser minimamente verdadeira, esta data foi 
escolhida por dois motivos. O primeiro é referente às duas pinturas que 
veremos a seguir (Imagens 07 e 08), as quais, além de terem sido feitas 
por um dos grandes mestres da pintura universal, também nos mostram 
que o mesmo autor pode ter uma concepção diferente da mesma 
personagem. O segundo motivo refere-se à afirmação de Robert 
Muchembled, na qual declara que ―[o] diabo mostrou-se discreto 
durante o primeiro milênio cristão‖ e que, embora os teólogos e 
moralistas se interessassem por ele, ―a arte quase não lhe dava 
espaço‖45. Assim, consoante ao autor, é possível dizer que a entrada de 
Satã na cena ocidental só vai ocorrer realmente em um momento tardio, 
pois, embora os ―elementos heterogêneos da imagem demoníaca 
existi[ssem] há muito‖46, é somente a partir do século XII ou XIII ―que 
eles vêm a assumir um lugar decisivo nas representações e nas práticas, 
antes de desenvolver um imaginário terrível e obsessivo no final da 
Idade Média.‖ 47. É nesse período que, ainda nas palavras do autor, 
 
a noção teológica começa realmente a 
encarnar-se, no universo das pessoas da Igreja 
e dos dominantes laicos, sob a forma de 
assustadoras imagens, já distanciadas da visão 
popular, que pintavam um demônio quase 
semelhante ao homem e que, como este, podia ser 
ludibriado e vencido. Um duplo mito, de futuro 
fecundo, foi então inventado e a seguir 
lentamente difundido: o do terrível soberano 
luciferiano reinando sobre um imenso exército 
demoníaco em um assombroso inferno de fogo 
e enxofre; ou o da besta imunda oculta nas 
entranhas do pecador, que conserva tanta 
importância para inúmeros de nossos 
contemporâneos. (MUCHEMBLED, 2001, p. 14 – 
grifos meus) 
 
 
45 MUCHEMBLED, 2001, p. 19. 
46 MUCHEMBLED, 2001, p. 18 – modificação minha entre colchetes. 
47 MUCHEMBLED, 2001, p. 18. Para saber mais sobre o Diabo no início da 
cristandade e na Idade Média, remeto o leitor interessado a dois livros de Jeffrey 
Burton Russell, Satan: the early Christian tradition (1981) e Lúcifer: o Diabo 
na Idade Média (2003). 
 45 
 
Assim sendo, escolhi iniciar pela Idade Média Tardia/ 
Renascença, data que se poderia chamar de ―meio termo‖, isto é, uma 
data em que não é bem o início, mas também ainda não é fim da entrada 
de Satã na cultura ocidental. Dito isto, passemos às obras. 
 Em seu afresco intitulado Pacto de Judas ou Judas trai Cristo 
(Figura 07), pintado entre 1304 e 1306 – que alude ao Evangelho 
segundo São Lucas (22: 3-648) –, Giotto, ―o pintor mais importante da 
Renascença que retratou o Diabo‖49, representa o Diabo como uma mera 
sombra, um espectro obscuro por trás de Judas enquanto este recebe o 
dinheiro dos sacerdotes. Vale ressaltar que não se percebe nenhum dos 
traços característicos de Pã, a menos que o queixo protuberante seja 
interpretado como uma barbicha. 
 
Figura 07: Pacto de Judas. 
 
Fonte: https://www.artbible.info/images/giotto_verraad_judas_grt.jpg Acesso 
em: 14/01/2019.48 ―3 Satanás entrou em Judas, chamado Iscariotes, do número dos Doze. 4 
Ele foi conferenciar com os chefes dos sacerdotes e com os chefes da guarda 
sobre o modo de lho entregar. 5 Alegraram-se e combinaram dar-lhe dinheiro. 6 
Ele aceitou, e procurava uma oportunidade para entregá-lo a eles, escondido da 
multidão.‖ (grifo meu) 
49 LINK, 1998, p. 20. 
 46 
 
 
Em outro afresco, intitulado Il Giudizo Universale ou O Juízo 
Final (1304-13), o mesmo Giotto pinta o Diabo sentado em um trono, 
como uma espécie de ―soberano do Inferno‖, mastigando e defecando 
pecadores. Vale observar, em conjunto com L. Link, que ―Satã sentado 
em um trono é o oposto de Cristo em um trono‖50, tendo em vista que 
―[a] ingestão e a evacuação simultâneas possivelmente têm origens 
psicológicas em inferências a partir do trono imundo em que Satã está 
acocorado.‖51. O Satã de Giotto é imenso, azul, peludo, tem chifres e 
está nu. Apesar da feição peluda, de seus chifres e sua nudez, não vemos 
traços de Pã, ou tampouco o rabo pontiagudo. Ainda de acordo com L. 
Link (1998, p. 80), é possível que essa imagem tenha inspirado Dante na 
composição de seu ―Imperador del doloroso regno‖52. 
 
Figura 08: Detalhe de O Juízo Final. 
 
Fonte: https://www.artbible.info/images/giotto_verraad_judas_grt.jpg Acesso 
em: 14/01/2019. 
 
Ainda falando sobre a Idade Média Tardia/ Renascença, podemos 
mencionar os Livros Iluminados (do latim illuminare, adornar), no 
sentido de ―ilustrados‖, cujos principais tipos eram a Bíblia e os livros 
 
50 LINK, 1998, p. 107. 
51 LINK, 1998, p. 107. 
52 Sobre o Diabo dantesco cf. o cap. III desta dissertação. 
 47 
 
usados na missa, os saltérios (uma combinação de salmos) e os Livros 
de Horas (livros de preces). É sobre estes últimos que irei comentar 
agora. 
σas palavras de Link, eles eram feitos ―para aristocratas e 
comerciantes que contratavam privadamente os artistas‖53 e transmitiam 
mais o status de seus donos do que mensagens religiosas. ―Como um 
livro de horas destinava-se a um público secular‖, explica o autor, ―os 
artistas talvez sentissem mais liberdade‖ no que tange a composição de 
suas imagens, tendo em vista que ―sempre se podia encontrar em algum 
lugar um texto apropriado‖54 para justificar suas escolhas. Ainda 
segundo Link55, tanto a transformação decisiva na forma de representar 
o Diabo quanto a ―mais notável queda de Lúcifer‖ encontram-se em 
Livros de Horas, representações estas que foram feitas pelos irmãos 
Limbourg para o Duque de Berry. Essa virada na representação de Satã, 
consoante Link, ocorre em uma ilustração de Miguel derrotando Satã, 
em um livro de 140956. Nela, temos um Satã (após sua queda) que 
apresenta ―patas com garras, asas leves de morcego e um rabo curto, [e 
cujos] rosto e corpo são humanos‖57. 
Existem ainda duas outras ilustrações feitas pelos irmãos 
Limbourg, situadas em um livro de 1415. Conforme aponta L. Link, 
uma delas, intitulada Inferno (Figura 09), apresenta similaridades com a 
Visão de Tundale, que narra uma excursão pelo Inferno58. Essa excursão 
teria sido escrita por um monge irlandês do século XII, ou seja, antes da 
Comédia dantesca. Embora a imagem apresentada pelos Limbourg não 
seja tão original, explica o autor, ela ―aparenta uma síntese de como fora 
a aparência de Satã e do Inferno até então.‖ 59. 
Nessa ilustração (Figura 09), suas pernas, em certa medida, até 
lembram as de Pã ou dos sátiros, mas a semelhança de seu corpo não 
chega a ser muito grande. Nas palavras de Link, o que temos aqui é 
 
Um Satã chifrudo com dentes de sabre [que] 
está num leito de brasas e, como uma baleia 
brincando com uma bola no alto de seu jorro de 
 
53 LINK, 1998, p. 179. 
54 LINK, 1998, p. 179. 
55 LINK, 1998, p. 179. 
56 Cf. LINK, 1998, p. 183. 
57 LINK, 1998, p. 183. Infelizmente, esta foi a única imagem que não consegui 
encontrar online. Para vê-la, remeto o leitor à página 187 do livro de Link. 
58 Cf. LINK, 1998, p. 187. 
59 LINK, 1998, p. 185. 
 48 
 
água, este Satã usa chamas no lugar da água e 
brinca com um punhado de pecadores. Diabos 
usam foles para aumentar o calor e, em seus 
costumes de encenação de mistérios, arrastam 
pecadores até seu chefe. (LINK, 1998, p. 185) 
 
Figura 09: Inferno. 
 
Fonte: https://uploads1.wikiart.org/images/limbourg-brothers/hell.jpg Acesso 
em: 14/01/2019. 
 
A outra imagem (Figura 10), em contrapartida – intitulada A 
queda de Lúcifer e dos anjos rebeldes ou somente A queda dos anjos 
rebeldes –, além de apresentar, segundo Link, ―o primeiro Lúcifer belo 
na história da arte‖60, é também seu mais belo exemplar (no que diz 
respeito à arte medieval/renascentista, pelo menos) – ―belo na 
 
60 LINK, 1998, p. 33. 
 49 
 
composição, na cor, no movimento e na concepção‖. σela vemos que 
―Deus e suas hostes estão no alto. [E] τs anjos rebeldes são jogados 
para baixo em duas colunas, à esquerda e à direita, formando um V que 
culmina com Lúcifer entrando no Inferno.‖ 61. Diz-se que os anjos em 
queda perdem o verde de suas asas e ganham as cores branco e dourado 
provavelmente em sinal de suas pretensões e orgulho. Mas o que 
realmente deve ser percebido e levado em conta é que eles são e 
continuam belos em todos os níveis de sua queda. 
 
Figura 10: A queda de Lúcifer e dos anjos rebeldes. 
 
Fonte: http://johnbald.typepad.com/.a/6a00d8341ec5f153ef01a73ddcd328970d-
pi Acesso em: 14/01/2019. 
 
61 LINK, 1998, p. 32. 
 50 
 
Outra obra que merece nossa menção é o Juízo Final (1431-35), 
de Fra Angélico (Figura 11), o qual nos leva de volta à figura do Diabo 
como soberano do Inferno. Ele é grande e monstruoso, é escuro, tem 
dois chifres pequenos e discretos, além disso, semelhante à visão de 
Giotto (e, também à de Dante), ele parece ter três faces (ou pelo menos 
três bocas) e mastigar pecadores. Vale assinalar que ele em nada se 
parece com Pã. 
 
Figura 11: Detalhe de O Juízo Final. 
 
Fonte: 
https://sumateologica.files.wordpress.com/2010/05/fra_angelico_juizo_final_de
talhe.jpg Acesso em: 14/01/2019. 
 
Em meados do século XV temos outro exemplar do Diabo com o 
quadro Miguel e o dragão (1450), de Antonio Pollaiuollo. Nele, 
segundo Link, temos o dragão mais ameaçador que até então se vira62. 
Menciono este quadro (Figura 12) tanto em função própria quanto em 
função de outra pintura, a qual pertencente a Rafael Sanzio, a saber, São 
Miguel e o dragão (Figura 13), de 1505. Segundo Link, o dragão de 
Rafael teria sido ―produzido à imagem e semelhança do dragão de 
 
62 Cf. LINK, 1998, p. 184. 
 51 
 
Pollaiuollo‖ 63. Será necessário mencionar que nenhum dos dois se 
parece com Pã? 
 
 Figura 12: Miguel e o Dragão. 
Figura 13: São Miguel e o dragão . 
 
Fontes: 
https://i.pinimg.com/originals/9e/d1/e7/9ed1e7a2ef89215bd4498de7bba0df52.p
ng Acesso em: 14/01/2019. 
http://cultura.culturamix.com/blog/wp-content/gallery/obras-de-rafael-sanzio-1-
1/Obras-de-Rafael-Sanzio-3.JPG Acesso em: 14/01/2019. 
 
Também de Rafael é o quadro chamado São Miguel e o Diabo 
(Figura 14), de 1518, o qual, segundo L. Link, diferentemente do 
anterior, estaria mais próximo daquela dos irmãos Limbourg. Não tanto 
na questão da técnica, mas conceitualmente, pois aqui ―Satã tem forma 
humana e, em termos pictóricos, está no mesmo nível de existência que 
o arcanjo.‖64. σas palavras de Vasari, esse Satã ―revela todas as nuanças 
de cólera que o imenso e maligno orgulho do Diabo dirige contra o Deus 
que o expulsou.‖65. 
 
 
63 Cf. LINK, 1998, p. 184. 
64 LINK, 1998, p. 184 
65 Apud LINK, 1998, p. 184 
 52 
 
 
Figura 14: São Miguel e o Diabo. 
 
Fonte: http://4.bp.blogspot.com/_-
E_3I1JfJrc/S9z4MkYbS_I/AAAAAAAAAOU/KJJ9lXaQ6eE/s1600/hd-
satanas.jpg Acesso em: 14/01/2019.Outro quadro que se pode mencionar é de meados do século XVI. 
Ele foi pintado por Lorenzo Lotto e se chama Miguel e Lúcifer (Figura 
15). Como a fala de Link sobre o quadro é bastante esclarecedora, vale a 
pena citá-la por inteiro. Ele explica que: 
 
Em geral, Miguel está de pé em cima de Lúcifer 
caído. Ou Lúcifer cai no Inferno. Mas Miguel 
 53 
 
sempre está ereto: a mensagem está no contraste 
das posições. A estabilidade da postura de Miguel 
indica a estabilidade de seu poder. Lotto mudou 
isso situando o eixo longitudinal de Lúcifer e 
Miguel em diagonal e deixando paralelos os 
eixos das duas figuras. Esse paralelismo 
estrutural reflete a representação mística de 
Lotto. Miguel e Lúcifer são iguais. É como ver 
os dois gametas de um zigoto. A outra face de 
Lúcifer é Miguel. (LINK, 1998, p. 191 – grifo 
meu) 
 
Figura 15: Miguel e Lúcifer. 
 
Fonte: 
https://i.pinimg.com/originals/d4/1d/42/d41d4226f0222c3e863d31f81cb6518b.j
pg Acesso em: 14/01/2019. 
 
Vale mencionar que, no quadro de Lotto, também há o bastão 
quebrado de Lúcifer, pelo qual é simbolizada a quebra de seu status e/ou 
a perda de seu poder; além disso, pode-se ver algo que parece ser uma 
 54 
 
serpente passando pelo meio de suas pernas. De certa forma, pela 
posição da mão de Miguel, talvez se possa ir ainda mais longe que Link 
e supor que Miguel parece querer salvar Lúcifer, mas essa é apenas uma 
hipótese. 
Seguindo adiante e dando mais um salto no tempo, quero fazer 
uma breve menção sobre a obra de John Milton, Paradise Lost (1667) 66, 
uma vez que ela, conforme nos lembra P. Stanford, a partir de seu 
―retrato psicológico‖ de Satã, ―provocou um impacto de grande 
magnitude nas gerações que o sucederam.‖67. Em sua vasta epopeia 
bíblica, explica R. Muchembled, Milton ―punha em cena um Lúcifer ao 
mesmo tempo tradicional e já diferente, que recusa o jugo de um Deus 
autoritário e proclama orgulhosamente sua insubmissão: ‗É preferível 
reinar no inferno que servir no céu.‘‖ 68. 
O século XVIII, conforme explica Muchembled (2001, p. 217), 
se inicia com uma ―crise de consciência‖, surgida no final do século 
XVII, e que se amplia no mundo científico, dando menos valor para a 
figura de um Diabo real. Consoante às palavras do historiador, ―[o] final 
do reinado de Luís XIV pode ser considerado como a época da primeira 
grande oscilação da imagem diabólica em direção a uma imagem 
onírica.‖69. Além disso, Muchembled (2001, p. 218) também explica 
que, mesmo causando medo à maior parte das pessoas, havia um 
―princípio de desdramatização‖ se esboçando neste momento, o qual foi 
se estabelecendo ―através do humor ou da ironia que matizam obras 
literárias e artísticas.‖. Mesmo que o tema do Diabo ironizado não seja 
especificamente novo, remontando ao período medieval, ele foi 
importante para esta mudança. Já no início do reinado de Luís XV – isto 
é, por volta de 1715 –, explica Muchembled, ―a categoria do 
maravilhoso constitui-se distinguindo-se de uma definição do diabo e de 
suas obras, que nós chamamos de crença, mas que tinha então a 
densidade de uma realidade social.‖ 70. Apenas para finalizar este breve 
comentário sobre o século XVIII e possamos nos dirigir ao século 
seguinte, vale dizer que um dos grandes influenciadores dessa guinada 
para o ―maravilhoso‖ teria sido Jacques Cazotte, com sua obra O diabo 
apaixonado, de 1772, a qual, mais tarde, foi vertida para o nosso idioma 
por Camilo Castelo Branco com o nome de Os amores do diabo. 
 
66 Abordarei o Satã de Milton de forma mais elaborada no capítulo III. 
67 STANFORD, 2003, p. 276. 
68 MUCHEMBLED, 2001, p. 208. 
69 MUCHEMBLED, 2001, p. 217. 
70 MUCHEMBLED, 2001, p. 232. 
 55 
 
Conforme explica Muchembled, no início do século XIX ocorre 
uma guinada crítica não só na França como também em toda a Europa, 
pois ―[a] imagem do diabo se transforma em profundidade, 
distanciando-se inelutavelmente da representação de um ser 
aterrorizante exterior à pessoa humana para tornar-se, cada vez mais, 
uma figura do Mal que cada um traz dentro de si.‖71 Além disso, 
Muchembled também explica mais adiante que, ainda no início do 
século XIX, a ―visão trágica da existência não domina mais 
unanimemente o continente europeu‖, uma vez que ―o Iluminismo e, 
talvez mais ainda, a ruptura revolucionária produziram um olhar novo 
sobre o mundo, acentuando a interiorização do sentido do pecado para 
os crentes, e da percepção do Mal para os demais.‖72 Assim, neste 
século, o Diabo toma uma dimensão diferente, pois acaba se tornando 
um tema quase que estritamente literário. Para que isto ocorresse, 
explica Muchembled citando Max Milner, ―foi preciso que sua 
existência e seus poderes fossem postos em questão.‖73. Tal ruptura só 
se efetivou por volta do final do século XVIII, pois 
 
Até então, os filósofos haviam, certamente, 
expressado algumas dúvidas, mas sem ceder à 
vertigem da dúvida. Daí em diante, esta se 
instalava no centro mesmo do imaginário culto. 
Pulverizada, a imagem de Satã ia começar a 
esposar modas, a adaptar-se às evoluções dos 
costumes e da sociedade. Sua projeção na cena 
literária ou artística, sob múltiplas facetas, 
resultou na multiplicação de simbolismos, mas 
igualmente no enfraquecimento da potência 
unificadora do mito cristão, que continuava 
sendo defendido pelos teólogos ortodoxos. 
(MUCHEMBLED, 2001, p. 244 – grifos meus) 
 
Além disso, também é preciso explicar, ainda consoante às 
palavras de Muchembled, que a figura do Diabo é diferente em cada 
país. Assim, na França, por exemplo, o Satã que lá está em voga no 
século XIX ―é o Príncipe da Ambiguidade, o demônio do sonho: um 
motivo, um símbolo, mas cada vez menos um grande mito cristão‖74, 
 
71 MUCHEMBLED, 2001, p. 238. 
72 MUCHEMBLED, 2001, p. 246. 
73 MUCHEMBLED, 2001, p. 244. 
74 MUCHEMBLED, 2001, p. 250 – grifo meu. 
 56 
 
enquanto que ―na Inglaterra, a lição de Milton, retomada sob formas 
diversas, do roman noir a Byron, implica uma crença mais angustiada 
na realidade do Maligno, transcendida pelo arquétipo do revoltado por 
excelência.‖75 Em outras palavras, enquanto na França o Demônio vive 
numa oscilação bastante ambígua entre o real e o onírico, na Inglaterra, 
por sua vez, temos, como herança de Milton, o Diabo na condição de 
uma figura exterior, como uma personificação real do Mal, um Satã 
que, em sua revolta contra Deus, é tão poderoso quanto infeliz, uma vez 
que está sob o jugo de um tirano impiedoso. Para ter uma noção mais 
acurada, vejamos alguns exemplos das representações de Satã durante o 
século XIX. 
Um dos artistas que se debruçou sobre a imagem do Maligno 
nesse período foi William Blake. Conforme assinala Muchembled, 
Blake rejeitava a ortodoxia cristã, todavia, afirmava que ―o homem deve 
ter religião: se ele não conhece a de Jesus, deve pelo menos 
experimentar a de Satã.‖76. Em Blake, vemos representações do Diabo 
tanto em suas pinturas que ilustram cenas bíblicas quanto nas que foram 
inspiradas pelo Paraíso Perdido de Milton. Levando em conta que 
abordarei este último mais adiante (juntamente com ilustrações de Blake 
e de outros), vejamos agora algumas de suas pinturas de cenas bíblicas, 
como a intitulada Satã triunfando sobre Eva (Figura 16), de 1795, a 
qual reinterpreta o terceiro capítulo do livro Gênesis; ainda deste mesmo 
livro, há uma aquarela intitulada ―Satã observando Adão e Eva‖, de 
1808, na qual, conforme assinala Peter Stanford, Blake ―apresenta a 
imagem do ser diabólico fundida com a da serpente, de modo a manter 
uma tradição autenticamente miltoneana [sic], mas quem exibe um rosto 
trágico e contorcido é um belo querubim alado com cabelos 
encaracolados.‖77. Há também a que se chama Satã cobrindo Jó com 
úlceras malignas (Figura 17), de 1826, ilustrando uma cena do segundo 
capítulo do Livro de Jó; vale mencionar que existe outra imagem 
semelhante, porém, diferentemente desta, Satã não possui as asasde 
morcego78. Outra de suas grandes pinturas é intitulada O grande Dragão 
Vermelho e a dama vestida de Sol (Figura 18), de 1803-05, a qual faz 
referência ao décimo segundo capítulo do Livro do Apocalipse; e O 
 
75 MUCHEMBLED, 2001, p. 250 – grifo meu. 
76 MUCHEMBLED, 2001, p. 245. 
77 STANFORD, 2003, p. 276. 
78 Disponível em: < 
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Blake_Book_of_Job_Linell_set_6.jpg 
>. Acesso em: 14 jan. 2019. 
 57 
 
Grande Dragão Vermelho e a Besta do oceano (Figura 19), de 1805, 
também referente ao Livro do Apocalipse, mas agora pertencendo ao 
décimo terceiro capítulo. 
 
Figura 16: Satã triunfando sobre Eva. 
 
Fonte: http://librerantes.com/wp-content/uploads/2016/06/William-Blake-
Satan-Exulting-over-Eve.jpg Acesso em: 14/01/2019. 
 
Figura 17: Satã cobrindo Jó com úlceras malignas. 
 
Fonte: https://s-media-cache-
ak0.pinimg.com/originals/6e/1c/69/6e1c69d2c4407b28266dc15c85cc972d.jpg 
Acesso em: 14/01/2019. 
 
 58 
 
 
 
 
Figura 18: O grande Dragão Vermelho e a dama vestida de Sol. 
 
Fonte: 
http://68.media.tumblr.com/9bceda8514712208d023467fdec807d7/tumblr_nn1
nj338081r30ie1o1_1280.jpg Acesso em: 14/01/2019. 
 
 
 
 59 
 
Figura 19: O grande Dragão Vermelho e a Besta do oceano. 
 
Fonte: 
https://i.pinimg.com/736x/29/08/65/290865c0b14a16519a16e3ca5e66bb58.jpg 
Acesso em: 14/01/2019. 
 
Agora que vimos as pinturas de Blake, podemos passar 
rapidamente por algumas das outras interpretações/representações 
românticas do Diabo que – de acordo com, L. Link, P. Stanford, R. 
Muchembled e Henry A. Kelly –, seguem a mesma linha de Blake e 
fazem uma releitura do Satã de Milton. Nas palavras de P. Stanford, 
―alguns revolucionários buscaram inspiração em Milton para instituir o 
Diabo como um símbolo de rebelião contra a Igreja e o ancien régime.‖ 
79 Além disso, prossegue o autor logo adiante, ―no final do século XVIII, 
 
79 STANFORD, 2003, p. 273-274. 
 60 
 
o Diabo tornou-se um símbolo potente e positivo nas mãos dos 
românticos, que o libertaram das restrições bíblicas e eclesiásticas, 
passando a utilizá-lo como uma metáfora cultural e social. Nesse 
percurso, a criação de Milton foi modificada e distorcida.‖80 
Ao efetuar sua interpretação do Diabo a partir da obra de Milton, 
os românticos transformam Satã em um símbolo de subversão, de 
transgressão, de revolta. Segundo Carlos R. F. Nogueira, essa 
interpretação romântica ―transformará Satã no símbolo do espírito livre, 
da vida alegre, não contra uma lei moral, mas segundo uma lei natural, 
contrária à aversão por este mundo pregada pela Igreja. Satanás 
significa liberdade, progresso, ciência e vida.‖81. Desta forma, 
prossegue σogueira, o Diabo é ―[a]migo do homem e inimigo de Deus, 
que estabeleceu a ordem como um tirano, condenando ao sofrimento, à 
humilhação e à morte todos aqueles que tinham por única culpa o desejo 
de conhecer, Lúcifer está ao lado do homem, uma vez que, como o 
homem, ele é condenado ao sofrimento.‖ 82. Assim, ainda nas palavras 
de Nogueira, 
 
O Diabo passa a representar a rebelião contra a 
fé e a moral tradicional, representando a revolta 
do homem, mas com a aceitação do sofrimento 
porque este é uma fonte purificadora do espírito, 
uma nobreza moral, da qual só pode surgir a 
bem da humanidade. E [então] o demoníaco 
torna-se o símbolo do Romantismo: demoníaco 
como paixão, como terror do desconhecido, como 
descoberta do lado irracional existente no homem: a 
explosão da imaginação contra os obstáculos 
excessivos da consciência e das leis. (NOGUEIRA, 
1986, p. 81 – grifo meu) 
 
Além disso, na interpretação dos românticos, o Satã miltoniano é 
considerado um herói (ou anti-herói) sublime. Sublime aqui no sentido 
schilleriano, um sublime moral, por assim dizer, no sentido em que, 
mesmo perdendo, mesmo sucumbindo, mesmo sendo esmagado por 
uma força maior, ele exerce sua liberdade mostrando-se inflexível em 
 
80 STANFORD, 2003, p. 274. 
81 NOGUEIRA, 1986, p. 80 – grifo meu. 
82 NOGUEIRA, 1986, p. 80-81 – grifos meus. 
 61 
 
seu caráter83. Segundo L. Link, William Blake teria dito que ―Milton 
escreveu em liberdade quando escreveu sobre Satã, pois ‗foi um 
verdadeiro poeta e do partido do Diabo sem o saber.‘.‖84. Ainda segundo 
os autores mencionados, para Blake, Byron, Victor Hugo, Baudelaire, e 
outros, o Diabo passa a ser considerado não só como um grande rebelde, 
mas também, para usar as palavras de Baudelaire, como ―o tipo mais 
perfeito da beleza viril‖. 
Para exemplos do Diabo na pintura romântica, vale mencionar 
Eugène Delacroix e Gustave Doré. Do primeiro, além das belas 
ilustrações que fez para o Fausto, de Goethe, temos também o quadro A 
revolta de Lúcifer e dos anjos rebeldes, de 1876 (Figura 20). Neste 
quadro, consoante as palavras de R. Muchembled, 
 
Vigorosos corpos nus lançam-se em direção ao 
céu brandindo armas. Somente as sombrias asas 
de um Lúcifer luminoso indicam quem ele é, mas 
ele se vê transfigurado em chantre em favor de 
uma revolução que sacode todos os jugos, e não 
pintado como o senhor de um inferno prometido 
aos insubmissos. O tema seduz na Europa a todos 
os que invocam o espírito de revolta e das 
revoluções. (MUCHEMBLED, 2001, p. 255) 
 
 
83 Schiller, em seu texto intitulado ―Do sublime (Para uma exposição ulterior de 
algumas ideias kantianas)‖, inserido no livro Do sublime ao trágico (2011), 
logo no primeiro parágrafo explica o seguinte: ―Sublime denominamos um 
objeto frente a cuja representação nossa natureza sensível sente suas limitações, 
enquanto nossa natureza racional sente sua superioridade, sua liberdade de 
limitações; portanto, um objeto contra o qual levamos a pior fisicamente, 
mas sobre o qual nos elevamos moralmente, i. e., por meio de ideias.‖ 
(SCHILLER, 2011, p. 21 – grifo meu, itálicos do autor). Mais adiante, no 
mesmo texto, Schiller nos traz a diferenciação entre aquele que é grande e 
aquele que é sublime. Ele declara o seguinte: ―Grande é aquele que sobrepuja o 
temível. Sublime é aquele que, mesmo sucumbindo, não teme. [...] Hércules foi 
grande porque empreendeu os seus doze trabalhos e os concluiu. Sublime foi 
Prometeu, porque acorrentado ao Cáucaso não se arrependeu de seu ato e 
não admitiu seu erro. Grandes podemos nos mostrar na felicidade, sublimes 
apenas na infelicidade.‖ (SCHILLER, 2011, p. 3λ – grifo meu, itálicos do 
autor.) Vale mencionar que o paralelo entre Satã e Prometeu é bastante 
recorrente. 
84 LINK, 1998, p. 191. 
 62 
 
Do segundo – isto é, de G. Doré –, menciono de passagem as 
ilustrações que fez para a Comédia, de Dante, e para o Paraíso Perdido, 
de Milton85. Além deles, também vale indicar dois quadros de Antoine 
Wiertz, um chamado Satan, de 1840 (Figura 21), em que ele segue a 
linha de Blake em sua representação e, no qual, vemos Satã ―sob a 
forma de ‗uma bela e tenebrosa figura, singularmente enigmática‘‖86, e o 
outro, a Revolta do Inferno contra o Céu, de 1842 (Figura 22), no qual 
é preciso notar que o Diabo aparece na forma de um imenso Dragão 
alado sendo agarrado (e aparentemente empurrado para baixo) por 
diversos anjos, provavelmente em uma alusão à batalha que ocorre no 
Livro do Apocalipse (capítulo 12, versículos 7-9), no qual se lê que 
―Houve então uma batalha no céu: Miguel e seus Anjos guerrearam 
contra o Dragão. O Dragão batalhou, juntamente com seus Anjos, mas 
foi derrotado, e não se encontrou mais lugar para eles no céu.‖. 
 
Figura 20: A revolta de Lúcifer e dos anjos rebeldes. 
 
Fonte: http://thesatanicscholar.com/2017/02/06/lucifers-feather-of-liberty-on-
french-romanticisms-satanic-symbol/ Acesso em: 14/01/2019. 
 
85 Veremos as ilustrações de Delacroix e de Doré no capítulo III, junto com as 
respectivas obras. 
86 MUCHEMBLED, 2001, p. 252. 
 63 
 
Figura21: Satan. 
 
Fonte: https://www.fine-arts-museum.be/fr/la-collection/antoine-wiertz-
satan?letter=w&artist=wiertz-antoine-1&page=9 Acesso em: 14/01/2019. 
 
Figura 22: Revolta do Inferno contra o Céu. 
 
Fonte: https://www.flickr.com/photos/magika2000/4670834151/in/album-
72157624207256282/ Acesso em: 14/01/2019. 
 64 
 
O Diabo também aparece nas esculturas românticas. Podemos vê-
lo nos belíssimos exemplares de Joseph Geefs e de seu irmão, 
Guillaume Geefs, a saber, L‟ange du mal (Figura 23), de 1842, e Le 
Génie du Mal (Figura 24), de 1848, respectivamente. Vale mencionar 
que a estátua de Guillaume é a única estátua bela de Lúcifer que pôde 
permanecer dentro de uma catedral. De acordo com Marija Georgievska, 
em seu artigo ―The Lucifer of Liège: one of the magnificent sculptures of 
the fallen angel‖, a estátua de Guillaume foi feita para substituir a 
estátua de seu irmão mais novo, Joseph, a qual teria sido retirada da 
catedral por causa de seu fascínio e de sua ―beleza insalubre‖87. Além 
disso, na descrição fornecida pelo site que possibilita o tour virtual pela 
Catedral de Liége, a estátua de Joseph Geefs era ―jovem demais, bela 
demais e demasiadamente nua.‖ 88. A estátua de Guillaume, conforme 
pontua Georgievska, ―mostra menos carne e é mais fortemente marcada 
pela iconografia satânica como nem humana nem angelical.‖. Esta 
iconografia satânica é marcada por alguns símbolos, como os chifres 
(discretíssimos), a coroa retirada, o cetro quebrado, as correntes nos pés, 
uma maçã mordida no chão… 
Outros exemplos de esculturas românticas em que Satã aparece 
são: a Fonte São Miguel, de 1858-60, situada numa praça do quartier 
Latin (quarteirão latino), na França; a estátua de Ricardo Bellver, 
intitulada El Ángel Caído, de 1885 (Figura 25), situada em Madrid 
(Espanha): nesta última é preciso notar que as serpentes, que circundam 
suas pernas e sua mão direita, provavelmente fazem alusão à estátua de 
Laocoonte e seus filhos (c. 40 a.C.). Vale mencionar que aqui ele lembra 
mais o Satã de Milton do que o grande Dragão bíblico. 
Apesar de todo o fascínio exercido pela figura demoníaca como o 
grande rebelde, a partir da metade do século XIX, explica Muchembled, 
―o declínio do tema demoníaco era patente nos setores mais 
elaborados do pensamento e das artes, tanto na Europa quanto na 
América do Norte. A atenção, a partir de então, se concentrava muito 
mais na parte sombria da personalidade humana que na figura do 
Maligno.‖ 89 Também neste momento, segundo o autor, parece ocorrer 
um período de transição, no qual há ―uma longa hesitação entre o tempo 
 
87 Cf. GEORGIEVSKA, 2017. Disponível em: 
<https://www.thevintagenews.com/2017/01/02/the-lucifer-of-liege-one-of-the-
magnificent-sculptures-of-the-fallen-angel/>. Acesso em: 14 jan. 2019. 
88 Disponível em: < https://roundme.com/tour/16344/view/40296 >. Acesso em: 
14 jan. 2019. 
89 MUCHEMBLED, 2001, p. 260 – grifos meus. 
 65 
 
do diabo infernal e o de um duplo monstruoso que dorme em todo 
homem, uma fase interminável de desconstrução do cristianismo 
angustiante em curso desde o confronto confessional do século XVI.‖90 
Em outras palavras, com o declínio do cristianismo, há, 
consequentemente, um declínio de Satã como uma figura infernal real. 
Além disso, conforme pudemos ver nos dois excertos supracitados, é 
sintomático que na segunda metade do século XIX o Mal está focalizado 
cada vez mais na figura humana, no demônio que vive dentro de nós. 
 
Figura 23: O anjo do mal. 
 
Fonte: https://www.flickr.com/photos/magika2000/7516471374 Acesso em: 
14/01/2019. 
 
 
90 MUCHEMBLED, 2001, p. 257. 
 66 
 
Figura 24: O gênio do mal. 
 
Fonte: 
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/6/6e/Chaire_Cath%C3%A9dr
ale_Li%C3%A8ge_240809_06.jpg Acesso em: 14/01/2019. 
 
 67 
 
Figura 25: El ángel caído. 
 
Fonte: https://br.pinterest.com/pin/357051076684466949/ Acesso em: 
14/01/2019. 
 
 68 
 
Ainda seguindo na esteira de Muchembled, podemos mencionar 
rapidamente a obra de Charles Baudelaire, a qual, segundo o historiador, 
―revela roda a ambiguidade deste período de transição.‖91 Afinal, para 
Baudelaire, conforme explica Muchembled, 
 
o diabo é, ao mesmo tempo, íntimo e totalmente 
outro. Cético em relação à explicação pela 
ciência, rejeitando o ateísmo, de cultura católica 
sem ser ortodoxo, ele considera conjuntamente a 
alienação e o Mal como a mais profunda realidade 
da existência humana. Em cada ser humano, 
escreve ele em seu Diário íntimo, existem 
simultaneamente duas tendências, uma que o 
impulsiona para Deus, outra para Lúcifer. O 
Mal é, ao mesmo tempo, atrativo e destruidor. 
O demônio é tanto o campeão da liberdade 
quanto a encarnação da hipocrisia. Ele 
representa uma força externa e real: ―A mais bela 
armadilha do diabo é persuadir-nos de que ele 
não existe‖, explica Baudelaire aos céticos ou aos 
que querem louvar os progressos do Iluminismo. 
Ele age, porém, tanto no espírito do homem 
quanto por imagens e desejos destruidores. 
Alguns chegaram a acusar o poeta de satanismo, 
pois ele afirmou: ―Satã é o mais perfeito tipo de 
Beleza viril‖, e proclamou, em As litanias de Satã: 
―Meu caro Belzebu, eu te adoro.‖ A imagem que 
ele apresenta é, na realidade, muito complexa, 
ainda mais pelo fato de ter-se modificado ao longo 
de sua vida. Por um lado, este pensador 
impregnado de uma visão pessimista do homem 
lembra, assim, a importância da religião 
aterrorizante que reinou sobre o Ocidente do 
início da modernidade. Por outro, ele descobre em 
si mesmo abismos, contradições, flores do mal 
cujas raízes ele não identifica claramente.‖ 
(MUCHEMBLED, 2001, p. 259 – grifos meus) 
 
Chegado a este ponto, é hora de fazer um arremate e sintetizar o 
que vimos traçando. Esta breve exposição teve como intuito mostrar as 
diversas faces de Satã no ocidente, isto é, as diversas representações e 
tratamentos que sua figura recebeu ao longo de um certo período, 
 
91 MUCHEMBLED, 2001, p. 259. 
 69 
 
partindo do século XIV até o XIX. Nós o vimos como uma sombra atrás 
de Judas, como um grande monstro situado no inferno comendo e 
defecando pecadores, como um dragão, como um belo anjo... O que eu 
gostaria de salientar, a partir do que foi exposto, é que Satã não só era 
imaginado/representado de formas diferentes em cada período, como 
também que sua imagem nem sempre carrega os traços do deus Pã ou 
dos sátiros, conforme a imagem arraigada no imaginário popular. Além 
disso, é importante perceber que a figura de Satã vai sendo cada vez 
mais humanizada, cada vez mais parecida com o homem, até que por 
fim, é o próprio homem que se transforma na figura diabólica, seja 
imaginando ele mesmo como tal ou imaginando que os outros é que são 
o Demo... Feitas estas observações sobre as representações do Diabo, 
podemos passar, se me é lícita a comparação, ao próximo círculo 
infernal, no qual, tal como Dante, vamos dialogar com vários mortos 
(embora também com alguns vivos) para traçar uma revisão 
bibliográfica. 
 
2.2. Revisão bibliográfica. 
 
― Por que escrever ainda sobre o 
significado da ficção machadiana? Um 
século de leituras já não terá descido ao 
fundo da questão, examinando-a pelos 
âmbitos biográfico, psicológico, 
sociológico, filosófico, estético? Não 
seria o caso de revisitar essa ampla e 
díspar bibliografia que já conta com 
intérpretes notáveis pela argúcia e 
erudição, em vez de tentar, uma vez 
mais, decifrar enigmas que já estariam 
afinal aclarados?‖ (Alfredo Bosi) 
 
A presente seção aborda a Fortuna Crítica machadiana. Ao fazê-
lo, o intuito é trazer a fala de alguns autores cuja visão contribuiu para 
enriquecer a nossa. Esse diálogo com os diversos críticos que outrora se 
debruçaram sobre a obra machadiana é importante na medida em que 
nos possibilita rever algumas de suas considerações – tanto no sentidode vê-las novamente quanto no sentido de revisá-las –, como também 
nos poderão dar oportunidade de ampliar seus pontos de vista, uma vez 
que até mesmo um anão pode enxergar um pouco mais longe quando 
está nos ombros de um gigante… 
 70 
 
Dito isto, parece pertinente traçar o rumo que essa revisão 
bibliográfica irá tomar. Ela se inicia abordando rapidamente algumas 
biografias, críticas ou não, de nosso escritor. Ao fazê-lo, o intuito não é 
esclarecer a obra pelo homem ou vice-versa, embora eu também não vá 
me esquivar de interpretar a obra a partir do homem quando parecer 
pertinente e plausível para a argumentação. Isso não quer dizer que tudo 
me será lícito, mas, sim, que penso em me utilizar de certa flexibilidade 
na hora de traçar interpretações, afinal, se a possibilidade se mostrar 
plausível e viável, por que descartá-la de antemão? 
Dentre as biografias machadianas, escolhi quatro que considero 
bastante significativas. Três por serem de críticos consagrados do estudo 
Machadiano e uma, em certa medida, por ser a mais recente92. Sem mais 
delongas, os nomes, em ordem cronológica93, são: Lúcia Miguel-
Pereira, com seu Machado de Assis: estudo crítico e biográfico (1988); 
Raimundo Magalhães Júnior, com sua tetralogia intitulada Vida e obra 
de Machado de Assis (1981/200894); Valentim Facioli, com seu estudo 
intitulado ―Várias histórias para um homem célebre (Biografia 
Intelectual)‖ (1λκ2); e, por fim, Daniel Piza, com seu Machado de 
Assis: Um gênio brasileiro (2008). 
Quanto aos estudos críticos propriamente ditos, isto é, os estudos 
que se detêm sobre a obra machadiana não em busca do homem, mas da 
obra enquanto literatura – seja ela como fonte tanto para reflexões 
estéticas quanto para históricas, sociológicas, filosóficas, etc. –, 
pretendo seguir uma linha mais conservadora, por assim dizer, e abordar 
os estudos dos críticos consagrados de nosso autor. No entanto, mesmo 
querendo abordar apenas os estudos dos críticos mais célebres, ainda 
assim eu poderia morrer afogado nesse mar de obras, de tal maneira que 
resolvi, em um primeiro momento, me valer de um guia, ou melhor, de 
dois. O primeiro guia escolhido foi a pequena, porém interessante, obra 
de Wilson Chagas, intitulada A fortuna crítica de Machado de Assis 
(1994); o segundo guia foi a volumosa obra de Alfredo Bosi et al 
 
92 Digo isso levando em conta que, em 2016, Silviano Santiago lançou um 
romance biográfico sobre os anos finais da vida de Machado. 
93 Em ordem cronológica em relação à primeira edição e não a edição utilizada 
como base para este estudo. 
94 Insiro as duas datas aqui, pois, dos volumes com que trabalho, os iniciais 
(Aprendizado e Ascensão) são da primeira data, enquanto que os dois últimos 
(Maturidade e Apogeu) são da segunda data. 
 71 
 
(1982), uma antologia de textos e estudos de e sobre Machado de Assis, 
que leva o nome de nosso autor95. 
Wilson Chagas, com seus breves ensaios, foi quase como um 
Virgílio, pois me possibilitou atravessar diversos círculos dessa Fortuna 
Crítica e escolher os lugares em que poderia me deter para dialogar com 
alguém e os lugares em que deveria me apressar, sob pena de cair em 
perdição. Foi assim que rumei para os estudos de Augusto Meyer; de 
John Gledson; de Roberto Schwarz; da Antologia de estudos organizada 
por Alfredo Bosi, José Carlos Garbuglio, Mario Curvello e Valentim 
Facioli; e de Afrânio Coutinho. Não que a maioria desses nomes me 
fosse desconhecida, uma vez que os que aí estão são basicamente o 
cânone dos estudos machadianos, mas é sempre bom ter um autor que 
nos indique quais são aqueles que podem nos servir de trampolim (ou, 
ao menos, de base) para que alcancemos novas ideias. A antologia de 
Alfredo Bosi et al, por sua vez, para continuar a analogia, foi quase 
como uma Beatriz, acrescentando a fina flor dos estudos, como Sônia 
Brayner; Barreto Filho; Eugênio Gomes; etc. Há outros autores, porém, 
que encontrei quase que ―por acaso‖, fruto da curiosidade, como Miguel 
Reale; Paul Dixon; etc… E isto falando apenas na Fortuna Crítica mais 
geral, por assim dizer, isto é, daqueles autores que se aproximam da 
obra de Machado de Assis por diversos flancos. Embora não tantos 
quantos estes, também abordarei aqueles que se debruçaram 
especificamente sobre o tema desta pesquisa, isto é, sobre o Diabo na 
obra do Bruxo do Cosme Velho (ou, ao menos, sobre os textos em que 
ele é mencionado). 
Dentre estes últimos, na medida em que ainda não se formou uma 
legião crítica, pude me aproximar de algumas obras bastante recentes e 
interessantes, seja em forma de teses e dissertações seja em forma de 
artigos acadêmicos em livros e periódicos. Sem fazer uma distinção 
precisa (de título ou de pesquisa) neste momento, gostaria de elencar 
autoras e autores como Aurora G. R. Álvarez, Izabella Maddaleno, 
Magali Moura, Maurício C. Menon, Miriam P. M. Andrade, Salma 
Ferraz, Tiago Ferreira da Silva e Vera Casa Nova, os quais me 
forneceram um fundamento, uma base para algumas das reflexões que 
aqui figuram. 
 
95 Vale dizer (ou reiterar) que o intuito desta seção não é perpassar toda a 
Fortuna Crítica de nosso autor ou tampouco comentá-la exaustivamente, mas 
sinalizar ao leitor o percurso que trilhei para chegar às conclusões que aqui 
serão expressas em capítulos posteriores. 
 72 
 
Agora que o leitor já tem noção daquilo que irá encontrar, 
passemos à Fortuna Crítica propriamente dita. 
 
2.2.1 Falando em Machado... 
 
2.2.1.1 Um homem célebre 
 
―Quanto a mim, creio ser impossível 
estudar a obra de Machado sem estudar-
lhe a vida, sem procurar entender-lhe o 
caráter. 
Nele, o homem e o artista estão 
estreitamente ligados.‖ (Lúcia Miguel-
Pereira) 
 
―σão se pode, assim, entender muitas 
coisas da obra de Machado se não se 
tiver em mente a riqueza de sua vida.‖ 
(Daniel Piza) 
 
Um dos motivos que me fazem iniciar o exame da Fortuna Crítica 
machadiana tecendo considerações sobre algumas de suas biografias se 
deve à afirmações como estas que aqui aparecem de epígrafe, como a de 
Lúcia Miguel-Pereira, para quem seria ―impossível estudar a obra de 
Machado sem estudar-lhe a vida.‖96, uma vez que nele ―o homem e o 
artista estão estreitamente ligados.‖97, e a de Daniel Piza, para quem 
―muitas das coisas da obra de Machado‖ passariam despercebidas sem 
que tenhamos em mente ―a riqueza de sua vida.‖98. Não posso dizer que 
concordo plenamente com uma visão biográfica (ou ―biografista‖) 
acerca da obra de Machado (ou de qualquer outro autor), mas, ainda 
assim, é preciso concordar que talvez elas possam nos prover de alguma 
luz. Afinal, mesmo que a vida não explique a obra, ela nos fornece 
subsídio para elucubrações que talvez não se abrissem apenas com esta 
última. Sendo assim, vejamos o que elas nos fornecem. 
Conforme dito, dentre as biografias escolhidas, a primeira é a de 
Lúcia Miguel-Pereira, a qual veio a lume em 193699. Nela, a autora 
 
96 MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 22. 
97 MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 22. 
98 PIZA, 2008, p. 14. 
99 Vale explicar que o aprofundamento ou a discussão da biografia machadiana 
foge ao escopo desta dissertação e, assim sendo, não me deterei sobre todas as 
 73 
 
busca encontrar o homem Machado de Assis, seu ―feitio íntimo através 
das confissões involuntárias do escritor‖100, afinal, segundo a autora, por 
mais que ―perfeita e acabada, a criação se desligue do criador e adquira 
vida própria, [ela] sempre lhe guarda a marca, sempre de algum modo 
com ele se identifica.‖101. Em outras palavras, a autora busca encontrar 
indícios da personalidade de Machado de Assis escondida em sua 
persona, em sua máscara ficcional. Embora eu não seja entusiasta desse 
tipo de abordagem, é preciso ser sincero e afirmar que as conjecturas da 
autora não deixam de ser instigantes, uma vez que, se ela estiver certa, 
somente quando o autor conseguiuse desvencilhar de seu passado, foi 
que ele teve possibilidades de seguir adiante e deslanchar de forma 
brilhante na carreira de escritor. Esse ―desvincular-se do passado‖ se 
deu, segundo a autora, de duas formas, tanto no passado do homem, ao 
se livrar do peso de ter abandonado sua madrasta, que o havia criado 
quando menino, quanto no passado estético, ao sair da sombra de José 
de Alencar102. 
Lúcia Miguel-Pereira também chama atenção para a importância 
do período em que Machado trabalhou no Diário do Rio de Janeiro, por 
volta de 1860, importância não só em sua vida, como também em sua 
 
biografias. Apesar disso, como a biografia escrita por essa autora é uma espécie 
de marco dentre os estudos biográficos de Machado, uma vez que muitos dos 
outros autores citam-na (tanto para confirmar suas conjecturas quanto para 
contestá-las), eu a terei como uma espécie de ―ponto de Arquimedes‖ e, por 
isso, me detenho mais nela do que nas outras, trazendo estas últimas como 
contraponto. 
100 MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 9. 
101 MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 10 – acréscimo meu entre colchetes. 
102 Magalhães Jr (1981b, p. 152-165) também vai traçar certa proximidade entre 
os romances de José de Alencar e da chamada primeira fase de Machado. 
Embora concorde com esse paralelo entre os autores, vale mencionar, todavia, 
que Valentim Facioli (1982, p. 15) questiona pelo menos a primeira parte desta 
afirmação (a dívida para com a madrasta), tendo em vista haver ―evidências de 
que entre 1854 e 1855 Machado deixou o arrabalde e passou a viver na cidade, 
no centro da cidade, o que põe em dúvida a tese da forte influência que Maria 
Inês teria exercido sobre o escritor. É muito duvidosa também a dívida de 
gratidão dele para com a madrasta, segundo alguns, nunca paga, porque 
Machado teria tido vergonha das próprias origens.‖. Para uma discussão mais 
aprofundada em relação às duas questões, o leitor também poderá encontrar 
interessantes apontamentos na biografia de V. Facioli, especificamente no 
capítulo XIX, intitulado ―A luva e a mão‖, no qual o A. discute tanto os 
apontamentos de Lúcia Miguel-Pereira quanto os de Roberto Schwarz (em Ao 
vencedor as batatas). 
 74 
 
obra, tendo em vista que, quando Quintino Bocaiúva o convidou para 
trabalhar lá, ele o tirou do ―amadorismo das revistas literárias‖ e o pôs 
―na obrigação de enfrentar o grande público, de dar a sua opinião sobre 
os assuntos do dia, fê-lo refletir, pensar‖ e, assim, a ―disciplina da 
colaboração frequente, a sensação do contato com leitores de toda 
natureza amadureceram rapidamente esse rapaz de 21 anos.‖103. Essa 
experiência nos jornais, que não se limita ao Diário do Rio de Janeiro, 
foi, na expressão de Sônia Brayner, o ―laboratório ficcional‖ de 
Machado; isto é, foi no jornal (embora também nos contos) que ele pôde 
apurar o seu estilo literário, experimentando diversas formas. Também é 
interessante notar que, nessa época, Machado ainda não era o 
―absenteísta‖ que, conforme asseveram seus biógrafos, alguns autores 
quiseram pintar; aqui ele ainda era um fervoroso rapaz com ideias 
liberais e progressistas, conforme ressaltam Lúcia Miguel-Pereira, Brito 
Broca, Raimundo Magalhães Júnior, dentre outros104. 
Neste sentido, vale reiterar as palavras da autora no final de seu 
primeiro capítulo, quando afirma que 
 
Machado de Assis não foi, como 
pareceu, um puro intelectual, fazendo da vida 
duas partes bem distintas: uma para a existência 
quotidiana, insípida e vaga, outra para as 
elucubrações do raciocínio. 
 
103 MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 77. Para mais informações, conferir o capítulo 
12 (p. 128-143) do primeiro tomo da biografia de R. Magalhães Jr., no qual este 
autor vai abordar a ―escalada do jornalismo‖, corroborando com a afirmação de 
Miguel-Pereira. 
104 Para uma visão de um Machado de Assis anti-imperialista, defensor da 
liberdade religiosa e ―militante do liberalismo‖, respectivamente, cf. R. 
Magalhães Jr., 1981a, especificamente os capítulos 22 (p. 250-261), 23 (p. 262-
277) e 25 (p. 289-306). Neste último, Magalhães Jr. sintetiza bem os três 
capítulos em um parágrafo. Diz ele que não é surpreendente que ―trabalhando 
na redação do Diário do Rio de Janeiro, ao lado de homens profundamente 
comprometidos com a reorganização do Partido Liberal e a sustentação de sua 
política, Machado de Assis tenha sido, como jornalista, principalmente no ano 
de 1864, um sincero paladino do liberalismo. E não apenas sincero, mas 
combativo e apaixonado, não só defendendo o México contra o 
imperialismo europeu e a liberdade de crença contra os privilégios da 
religião oficial do Império, mas ainda investindo, com a maior irreverência, 
contra grandes figuras políticas, como o Marquês de Abrantes, o Barão de 
São Lourenço, o Senador Jobim, o Senador Dias Vieira, o Deputado Lopes Neto 
e vários outros.‖ (MAGALHÃES JR, 1λκ1a, p. 2κλ – grifos meus) 
 75 
 
Não foi apenas um esteta – mas um 
homem. E o maior valor da sua obra reside no 
fato de ter sido uma experiência, um modo de 
interrogar a vida. Interrogação que ficou sem 
resposta porque não ousou – ou não pôde – ir 
até o fundo dos problemas. Ou talvez porque 
tais perguntas não possam mesmo ser 
satisfeitas pelo engenho humano… 
E para esconder a incapacidade – ou a 
decepção – preferiu sorrir, ficar de lado, com ar de 
espectador desinteressado. (MIGUEL-PEREIRA, 
1988, p. 27 – grifo meu) 
 
 Reitero suas palavras, embora concorde apenas em parte com a 
autora. Em resposta à parte grifada é possível dizer que a grandiosidade 
da literatura machadiana seria justamente esse ―não dar uma resposta‖, 
esse constante questionar. Afinal, enquanto permanece a dúvida, 
enquanto a questão fica em aberto, a obra permanece viva e não para de 
falar… E, veremos mais tarde que é justamente o fato de deixar questões 
ou sugestões de questionamento em aberto que nos possibilita continuar 
refletindo sobre sua obra, ou, conforme dito, é o que a torna um clássico. 
Mas, voltemos às palavras da autora. 
τutro ponto interessante que ela nos traz é o ―anticlericalismo‖ 
de Machado. Sabe-se que, por volta das décadas de 70-80 de 1800, há 
um florescer de ideias materialistas que se conjugam ao positivismo em 
ascensão aqui no Brasil.105 Conforme nos lembra a autora, Machado 
teria escrito em diversos de seus folhetins inúmeros ―ataques à 
congregações religiosas, à ação dos padres, aos jornais católicos‖106; 
além disso, segundo ela, Machado tinha ―aversão, não só à crença 
religiosa, como a qualquer tipo de mística.‖107. Neste sentido, prossegue 
a autora mais adiante, assim que chegou à maturidade, isto é, quando 
chegou ―à posse de si mesmo, o seu espírito refugou à crença, refugiou-
 
105 σeste sentido, conferir o artigo de MELLτ, Maria Tereza Chaves de. ―A 
Modernidade Republicana.‖ Revista Tempo. Vol. 13, Número 26: A nova 
―velha‖ República. p. 15-31. Jan. 2009, o qual é bastante esclarecedor sobre o 
assunto. 
106 MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 83 – Aqui, não obstante, há certa divergência 
entre os biógrafos, uma vez que, segundo R. Magalhães Jr., os ataques que 
Machado de Assis efetuou sobre o jornal A Cruz não teriam ocorrido por conta 
de seu ateísmo, mas em detrimento da intolerância religiosa. Cf. MAGALHÃES 
JR., 1981a, p. 262-277. 
107 MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 83. 
 76 
 
se no racionalismo naturista [sic] de que nascerá, mais tarde, o 
humanitismo de Quincas Borba.‖108 Vale dizer, no entanto, conforme o 
complemento da autora um pouco mais adiante, que também ―não se 
pode dizer que tenha sido completamente materialista.‖, uma vez que, 
apesar de não aceitar as forças sobrenaturais, ele ―acreditaria nas forças 
morais – embora não querendo saber como existiam, de onde vinham, 
nem crendo que atuassem muito sobre a humanidade.‖109 
Ainda outro ponto chamativo na obra de Miguel-Pereiraé quando 
ela assinala a contraposição entre o ―espírito crítico de Machado de 
Assis‖110 e o desabrochar tardio de ―seu poder criador‖, pois, enquanto 
uma de suas mais lúcidas críticas à literatura brasileira (―τ Passado, o 
Presente e o Futuro da Literatura‖) é escrita com apenas dezenove anos, 
a produção de suas grandes obras só ocorreria a partir dos quarenta. 
Segundo a autora, o preconceito ―de descrever gente de uma sociedade 
que só mais tarde viria a frequentar‖111 certamente teria contribuído para 
isto, embora nisso também possa haver um pouco de sua ―tendência à 
introversão‖112. Afinal, declara a autora, 
 
O romance e o conto nunca podem ser 
inteiramente impessoais; se não se revelar neles a 
sensibilidade do autor, a sua maneira própria de 
sentir, a sua compreensão da vida, serão 
fatalmente artificiais. 
O escritor pode e deve ausentar-se da obra 
na direção, mas nunca no sentimento. E foi isto 
que, temendo sempre se abandonar, Machado 
tentou fazer em Ressurreição. (MIGUEL-
PEREIRA, 1988, p. 139-140) 
 
Embora, em certa medida, eu concorde com a autora, como antes, 
porém, há uma espécie de ressalva que deve ser feita, a saber, a de que, 
se Machado não logrou o pleno êxito nesses romances iniciais – no que 
 
108 MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 84. 
109 MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 85. 
110 Sobre Machado de Assis como crítico teatral, cf. o cap. 16 (Tomo I) da 
biografia de Magalhães Jr. (1981a, p. 174-181); e como crítico literário, os 
capítulos 32 e 49 (Tomo II, 1981b, p. 16-25 e 264-274), bem como o 
interessante livro do professor Stélio Furlan (UFSC), Machado de Assis o 
crítico: O enigma de um Rio sem Margens (2003). 
111 MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 139. 
112 MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 139. 
 77 
 
tange à sua forma de escrita mais madura, mais característica de seus 
grandes romances –, isso pode ser devido ao fato de que o autor ainda 
experimentava a pena de romancista, isto é, ainda era estreante nesse 
gênero. Além disso, conforme a própria autora menciona alhures, a 
sombra de José de Alencar ainda pairava sobre sua cabeça. Machado 
ainda se debatia entre a forma corrente de se fazer romances (a vertente 
romântica, mais ao sabor do público) e a forma pela qual gostaria de se 
exprimir; até porque, é preciso lembrar, são duas coisas diferentes o 
saber aquilo que (não) deve ser feito e o conseguir fazer aquilo que se 
quer/tem de fazer. Apenas para finalizar esta ressalva, vale dizer que é 
também a própria Miguel-Pereira que aponta, já nesse ―livro fraco‖ 
(Ressurreição), a existência da ―principal característica de Machado 
como romancista, característica que o irá aos poucos separando 
inteiramente da concepção romântica da ficção: a predominância dos 
problemas psicológicos.‖113. É interessante notar ainda que, segundo o 
próprio Machado no prefácio da primeira edição deste romance, ele não 
quis permanecer no lugar comum do romance de costumes, mas esboçar 
―uma situação e o contraste de dois caracteres‖, ou, nas palavras de 
Miguel-Pereira, ―quis fazer decorrer as peripécias do livro do 
temperamento das personagens.‖114. Ainda segundo a autora, embora o 
êxito tenha sido frustrado, teria sido essa orientação que ―depois, lhe fez 
encontrar o caminho dos seus grandes livros. Sempre se manteve fiel a 
esse romance essencial, a essa redução do drama aos elementos 
principais, aos conflitos morais, e aos choques decorrentes da índole 
ou da situação das personagens.‖115. Sendo assim, talvez não fosse o 
preconceito de descrever gente que não conhece ou a falta de 
sentimentos dentro do próprio romance, mas a falta de experiência como 
romancista, de experiência na forma de escrever ou de transformar um 
tipo em um personagem de ―carne e osso‖116. 
 
113 MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 141. 
114 MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 141. 
115 MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 141 – grifo e itálico meus. 
116 Comentando sobre a ―superioridade da segunda fase‖ em Um mestre na 
periferia do capitalismo (1990), Roberto Schwarz vai esboçar uma resposta 
diferente, que, embora não vá completamente na mesma direção que a nossa e 
seja um pouco longa, vale a pena trazer em sua extensão, uma vez que fornece 
uma explicação mais elaborada e que, a meu ver, dá conta de forma mais 
abrangente e esclarecedora. Conforme explica o autor, as ―liberdades narrativas 
peculiares à segunda fase começam sob o signo de Sterne‖, consoante a 
explicação do próprio Machado. No entanto, segundo Schwarz (1990, p. 216), 
―a prosa borboleteante‖ da segunda fase ―era velha conhecida não só do 
 78 
 
Ainda outro ponto que gostaria de chamar a atenção sobre nosso 
autor – e que quase serve de complemento ao parágrafo anterior, diga-se 
de passagem – é o fato de que, segundo Miguel-Pereira, quando 
Machado consegue sua estabilidade financeira, isto é, quando começa a 
trabalhar na Secretaria da Agricultura, ele pode, enfim voltar-se para o 
seu íntimo, 
 
para as suas vacilações, para o seu interminável 
diálogo com a vida. 
Que era ela? Para que teria vindo ao 
mundo, com essa insaciável sede de saber? Por 
que vivia? Por que viviam os outros homens? 
As interrogações se multiplicavam, e 
ficavam sem resposta, e depois se resumiam numa 
 
romancista, como de muitos outros literatos brasileiros, que a praticavam nos 
folhetins semanais da imprensa, imitando modelos franceses.‖. Sendo assim, 
isto é, se ele conhecia essa técnica desde a juventude, pergunta-se o autor um 
pouco adiante, ―por que só agora ele a trazia para a esfera do romance?‖. A 
resposta, explica Schwarz (p. 21ι), tem a ver com ―um indiscutível progresso 
literário‖. σos anos de 1κι0, prossegue o autor, ―quando escrevia os seus 
quatro romances fracos, quase privados de atmosfera contemporânea, Machado 
já era forte nas piruetas petulantes e cosmopolitas do folhetim semanal. O que 
faltava, para completar a configuração artística da maturidade, não era 
portanto o procedimento narrativo. A viravolta pendente, que permitiria 
incorporar à elaboração romanesca uma técnica disponível e comum a muitos, 
era de ordem ideológica. [...] a saída histórica buscada nos romances da 
primeira fase supunha lealdades morais e compromisso com a promoção social 
dos pobres, sobretudo os mais dotados, lealdade e compromissos que deveriam 
primar sem mistura sobre a definição burguesa do interesse, à qual no entanto 
os proprietários não podiam também deixar de estar submetidos. Quando 
percebe o infundado daquela expectativa, Machado se capacita da pertinência 
literária das modalidades de rebaixamento a que o folhetim emprestava o brilho, 
e as transforma em ambiente espiritual. Os novos tipos de consumo e 
propriedade, em face dos quais o dependente pobre, pela força das coisas, 
se encontra desvalido, saem da sombra e passam a dar a nota. Sob o 
patrocínio prestigioso de Sterne, e também das condutas anti-sociais cultivadas 
e estetizadas na prosa de folhetim, a volubilidade narrativa irmana e faz 
alternarem os arrancos da impunidade patriarcal e o pouco-se-me-dá do 
proprietário moderno, o arbítrio da velha oligarquia escravista e a 
irresponsabilidade da nova forma de riqueza. Reencenava e apontava à 
execração dos bons entendedores a ambiguidade característica da classe 
dominante brasileira.‖ (SCHWARZ, 1λλ0, p. 21ι-218 – grifos meus, itálicos 
do autor). 
 79 
 
só, a maior, a que vai dar à sua obra aquele tom de 
fatalismo irônico: o homem é um ser livre, e 
portanto responsável, ou um títere nas mãos do 
destino, da natureza, de alguma força 
desconhecida? 
E a tentação vinha, de concluir sempre 
com pessimismo, de duvidar de tudo, de negar 
tudo. (MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 150-151 – 
grifo meu) 
 
É interessante notar também que, conforme aponta a autora, há 
nos textos machadianos uma ―lógica caprichosa mas inexorável da 
vida.‖117, uma vez que, 
 
Quaisquerque fossem as circunstâncias, o 
Brás Cubas daria um solitário, em esquisitão, o 
Rubião se arruinaria, Virgília seria amoral e Sofia 
faceira. Os acontecimentos, independentes da 
vontade do indivíduo, são, porém, 
condicionados pelo seu temperamento. 
Entre essas duas fatalidades que se dão as 
mãos, a liberdade e a responsabilidade parecem 
letra morta. O homem influi sobre os sucessos, 
mas pelo que há nele de irracional, pelo que 
escapa à sua vontade. (MIGUEL-PEREIRA, 
1988, p. 204 – grifos meus) 
 
Esses aspectos dos textos machadianos são importantes na 
medida em que vão possibilitar traçar algumas reflexões no momento 
em que se for abordar os textos sobre o Diabo, uma vez que, também 
neles, parece ser possível percebê-los118. 
 
117 MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 204. 
118 Ainda não é o momento apropriado para tal, mas, se me for lícito adiantar 
um pouco as coisas – pois pretendo propor esta reflexão de forma mais 
elaborada no último capítulo (e sinalizá-la para um possível estudo posterior) –, 
essa indagação que percorre a maioria dos textos machadianos talvez possa nos 
levar a pensar sobre uma espécie de antropologia filosófica em sua obra, a 
pensar seus textos como uma constante indagação sobre o homem, suas ações e 
suas condições de existência. 
 80 
 
A partir daqui, com exceção de um capítulo em que a autora vai 
comentar sobre os contos do escritor e sobre Dom Casmurro119, o que se 
segue no texto de Miguel-Pereira não exerce influência direta sobre esta 
pesquisa. Sendo assim, passemos à biografia de R. Magalhães Jr. 
Se a obra de Miguel-Pereira tem o mérito de ser um marco nos 
estudos biográficos machadianos, a imensa obra em quatro volumes de 
R. Magalhães Jr. também não fica por baixo, pois o autor conseguiu 
reunir de forma bastante sistemática diversos documentos, conhecidos e 
desconhecidos (na época), que auxiliam no esclarecimento de diversos 
momentos da vida de nosso escritor. Conforme aponta Wilson Chagas, e 
eu tendo a concordar com ele, a obra de Magalhães Jr. ―é o estudo 
biográfico mais amplo e exaustivo já escrito sobre Machado de 
Assis‖120. Neste estudo, ainda seguindo as palavras de Chagas, ao 
apontar equívocos e corrigir erros da (extensa) bibliografia machadiana, 
Magalhães Jr. mostra ―a sua decisão de ‗passar a limpo‘ a biografia de 
Machado de Assis, expurgando-a dos defeitos que até então a 
maculavam.‖121; corrigindo, inclusive, alguns equívocos do próprio 
Machado. Em suma, para citar a orelha do livro do biógrafo, a obra 
contém uma ―rigorosa ordenação cronológica, acompanhando passo a 
passo os progressos do escritor e o desdobramento de [sua] 
existência‖122, o que a torna bastante elucidativa sobre vários pontos da 
vida de Machado. 
 Valentim Facioli, por sua vez, embora trace a biografia de 
forma bastante concisa123, tem seu valor pelas reflexões que faz acerca 
da vida, da sociedade e da obra machadiana como um todo. 
Diferentemente de Magalhães Jr., que tenta abordar os elementos 
biográficos de forma mais ―factual‖ ou ―imparcial‖, quase que somente 
pelos documentos deixados por Machado, sem dar muita ênfase as suas 
próprias interpretações sobre a obra, Facioli irá, na linha de Lúcia 
Miguel-Pereira, misturar elementos biográficos e crítica literária, com o 
acréscimo de uma crítica sociológica. Embora essa biografia, comparada 
às outras, dê uma guinada à esquerda, por assim dizer, o autor, ainda 
 
119 Refiro-me ao capítulo XVI, intitulado ―τ Artista‖. Menções a este capítulo 
serão feitas no decorrer das interpretações sobre os contos. 
120 CHAGAS, 1994, p. 53. 
121 CHAGAS, 1994, p. 53. 
122 MAGALHÃES JR., 1981a. 
123 Chamo-lhe concisa, tendo em vista que, embora o texto divida-se em duas 
colunas, a biografia ocupa por volta de 50 páginas dentro do volume, e, por isso, 
mesmo que fôssemos contabilizar tudo, ela daria aproximadamente 100 páginas. 
 81 
 
assim, consegue fugir não apenas da tentação de uma interpretação 
exclusivamente sociológica, mas também do uso desenfreado dos 
―chavões‖ do marxismo, o que às vezes acaba ou dificultando a 
assimilação do leitor ou pecando por superficialidade. Neste sentido, 
considero interessante trazer sua fala quando afirma que toda ―biografia 
intelectual persegue um fantasma, que é o do biografado e, no limite, o 
fantasma de si própria.‖, o que aponta para a consciência de um limiar, 
um confim, uma limitação para toda e qualquer biografia, mesmo as 
mais exaustivas; sendo assim, escreve o autor logo adiante, 
 
A biografia intelectual não reconstitui um homem, 
nem sua obra, nem sua época. Antes, deve buscar 
os pontos de articulação entre eles e, portanto, 
procurar captar o movimento específico das 
contradições vividas e incorporadas pelos bens 
culturais no cenário dos antagonismos da 
sociedade de classes. Para tanto, ela não pode 
perder de vista sua condição intrínseca de 
intervenção nessa batalha e seu estatuto de um 
lance a mais no movimento das contradições. 
(FACIOLI, 1982, p. 25 – grifo meu) 
 
Chamo atenção para a parte em negrito, pois considero que não 
só Facioli, mas também Daniel Piza, nosso quarto e último biógrafo, 
tenha conseguido fazer isso de forma bastante satisfatória. A meu ver, o 
mérito de Daniel Piza não é tanto a inovação nos dados sobre o 
biografado, mas acerca do contexto sociocultural em que Machado 
estava inserido. Em suas palavras, ―Machado, como todo grande criador, 
foi ao mesmo tempo expressão de sua época e exceção a ela‖, assim, ao 
estudar sua vida e obra ―podemos conhecer melhor o Rio de Janeiro e o 
Brasil da segunda metade do século XIX e observar como ele foi 
diferente dos contemporâneos.‖124 Sendo assim, esta biografia vale ser 
mencionada (e estudada) não apenas por aquilo que diz sobre Machado, 
mas também pelas considerações que tece sobre a época em que viveu 
nosso Bruxo do Cosme Velho, uma vez que nela o autor expressa uma 
preocupação com ambos. 
 
2.2.1.2 Na selva da crítica. 
 
 
124 PIZA, 2008, p. 11-12. 
 82 
 
―Valha-me Deus! É preciso explicar 
tudo.‖ (Memórias Póstumas de Brás 
Cubas) 
 
Se, como disse Umberto Eco evocando Jorge Luís Borges, a 
literatura é o bosque dos caminhos que se bifurcam125, a crítica literária 
é uma vasta selva… σão necessariamente a ―selva oscura‖ de Dante, 
mas ainda assim uma grande selva, com uma fauna exuberante, variada 
e por vezes assustadora; em alguns casos, entretanto, o que assusta não é 
tanto a fauna, mas a própria dimensão da selva, que pode levar à 
perdição aqueles que a percorrem. Metáforas à parte, a presente 
subseção tem como intuito percorrer um pequeno trecho daquilo que se 
tornou a imensa bibliografia crítica sobre a obra machadiana. O trecho é 
realmente pequeno se formos observar a quantidade de estudos que já 
foram feitos e por isso não tenho a mínima pretensão de esgotar o 
assunto; o que teremos (o leitor e eu) aqui é apenas um breve 
comentário sobre algumas das obras que consultei e que me serviram (e 
servem) de base para as considerações em capítulos posteriores. 
Conforme mencionado, nossos guias pelos labirintos da crítica (ou pela 
selva, para retomar a recente metáfora) foram Wilson Chagas e a 
antologia de textos e estudos organizada por Alfredo Bosi et al. 
 Para começar, gostaria de evocar a obra Machado de Assis 
(1935-1958), de Augusto Meyer, que, conforme bem assinala Wilson 
Chagas, ―é uma reflexão profunda dos temas machadianos; ele os 
repensa, como quem indaga dentro de si mesmo pelos grandes 
problemas.‖126. Essa obra, conforme confessa Meyer no prefácio à 
segunda edição, ―era a princípio mais contra do que sobre Machado de 
Assis, mas, no andar do diálogo, provocou uma capitulação das 
intenções do autor‖127. Percebe-se bem essa ambiguidade ao longo do 
livro, que varia entre o tom incisivo e o ameno, sendo este último o 
menos favorecido. Vale mencionar, conforme bem aponta W. Chagas,que Meyer ―unifica vida e obra, na sua crítica. Não separa a obra do 
autor. E lê como se eles retivessem ainda a respiração do escritor.‖128, 
ou conforme afirma o próprio Meyer no capítulo final do ensaio de 
1λ35, ―Através de alguns aspectos da obra de Machado de Assis, tentei 
 
125 Cf. ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: 
Companhia das Letras, 1994. 158p. 
126 CHAGAS, 1994, p. 12 – grifo meu. 
127 MEYER, 2005, p. 13. 
128 CHAGAS, 1994, p. 13. 
 83 
 
traçar o seu retrato psicológico, sem espírito prevenido.‖129. Assim, 
se a grande virtude de Meyer está em ter feito essa ―reflexão profunda 
dos temas machadianos‖, penso ser aí que se esconde o ―problema‖130 
do livro – seu grande pecado, por assim dizer –, nessa confusão entre o 
que diz a obra e o que foi o homem, entre os personagens e a persona. 
Suas considerações podem até ser bastante aguçadas, o que torna a obra 
importante para o estudioso da obra machadiana, mas perdem força 
explicativa quando caem no biografismo, o qual, muitas vezes, parece 
ser um ataque gratuito ao autor131. Apenas para finalizar as 
considerações sobre esta obra, gostaria de trazer Wilson Chagas 
novamente à palavra quando afirma que ―através da obra de Machado, o 
crítico buscava decifrar o seu próprio enigma.‖132; afirmação que 
poderia ser estendida à maioria dos críticos machadianos quando se 
debruçam sobre determinados aspectos, certos pontos de vista acerca de 
sua obra – e que, ao cabo, também poderia ser lançada sobre este que 
agora escreve. 
Outro livro interessante – embora para o leitor atual seja um 
pouco chocante (ou muito, dependendo do leitor) – é A filosofia de 
Machado de Assis e outros ensaios (1959), de Afrânio Coutinho133. O 
livro é interessante na medida em que traz importantes considerações 
sobre os autores filosóficos visitados e revisitados por Machado de 
 
129 MEYER, 2005, p. 57 – grifo meu. 
130 Entre aspas, pois era intenção do autor escrevê-lo dessa forma. 
131 Para não deixar apenas em minhas palavras, trago um par de exemplos 
daquilo que é possível encontrar ao longo da obra, como quando o A. escreve 
que ―Por mais que ponha nas palavras uma graça incomparável, cheia de 
perfídias finas e de pulos imprevistos, não sabe disfarçar o pirronismo niilista 
que forma a raiz de seu pensamento. Com as diversas máscaras superpostas 
desse voluptuoso da acrobacia humorística, podemos compor uma cara sombria 
– a cara de um homem perdido em si mesmo e que não sabe rir. Perdido em si 
mesmo, isto é, engaiolado na autodestruição do seu niilismo.‖ (MEYER, 
2005, p. 19 – grifos meus); ou quando escreve que ―quem pode saber até onde 
vai, na sua passividade lúcida, o impulso de suicídio – suicídio voluptuoso e 
consciente – que às vezes envenena a obra de Machado de Assis? Gosto de 
destruir e de se destruir. Pegar uma ideia viva na ponta dos dedos com muita 
delicadeza e arrancar-lhe as asas com tanta graça.‖ (MEYER, 2005, p. 30 – 
grifo meu). 
132 CHAGAS, 1994, p. 14. 
133 Embora a segunda parte do livro também seja interessante, trazendo as 
considerações de Coutinho sobre outros autores acerca da obra machadiana, 
detenho-me aqui sobre a primeira, tendo em vista ser ela a tratar sobre a 
filosofia na obra de Machado. 
 84 
 
Assis, como Montaigne, Pascal e Schopenhauer, e deveras chocante 
pelo teor das afirmações feitas por Coutinho, as quais talvez não sejam 
nem as mais acuradas a respeito da obra de nosso autor – caindo em 
tantos biografismos quanto Meyer (ou até mais) – nem as mais 
moralmente íntegras para os dias atuais134. Para que o leitor tenha um 
exemplo da primeira parte de minha afirmação, basta mencionar o 
trecho em que Coutinho afirma que 
 
O pessimismo de Machado é a tradução exterior 
de falta de saúde espiritual. Revela-se nas 
criações artísticas, por um ódio sistematizado da 
vida e da humanidade, uma ausência total de 
simpatia para os homens e de confiança nêles, 
uma indiferença completa para os seus 
sofrimentos, amarguras e desesperos. É esta a 
tonalidade geral de sua obra, a nota permanente da 
sua interpretação do mundo, essa falta de 
generosidade no julgar os homens e a vida. 
(COUTINHO, 1959, p. 24 – grifos meus) 
 
Além disso, embora seja inegável a influência do pensamento de 
Schopenhauer na obra machadiana, pode-se dizer que o crítico acaba, 
em certos pontos, forçando um pouco nos paralelos135, e por muitas 
 
134 Não quero me deter em críticas sobre esse ponto fraco da obra de Coutinho, 
até porque pode ser fruto de sua época, mas, força é dizer que em diversos 
momentos as suas afirmações podem ser consideradas de cunho racista. Como 
exemplo, basta ver dentro do segundo capítulo o subcapítulo intitulado 
―Ascensão e ressentimento do mestiço‖, no qual, dentre tantas outras coisas, lê-
se que ―Se o mulato brasileiro é intelectualmente capaz e às vezes superior, 
ainda não é bom, não tem estabilidade ou equilíbrio interior, fortaleza de 
caráter. É do ponto de vista moral e psicológico que ele denota ainda uma 
grande inferioridade que não pode deixar de refletir-se na harmonia social, 
dada a influência que a vida brasileira dele recebe.‖ (CτUTIσHτ, 1λ5λ, p. 
48 – grifo meu). σão será preciso apontar, além do racismo ―velado‖, certa 
culpabilização das vítimas de um sistema opressor. 
135 Como nessa passagem, em que afirma: ―Portanto, como Pascal, como 
Schopenhauer, Machado era pessimista porquanto para ele o mundo era 
essencialmente mal, o mal predominando de todo sobre o bem, a dor sobre o 
prazer, somente ela sendo verdadeiramente real, pois da sua cessação 
momentânea é que surge o prazer, não sendo o mundo senão a obra da 
vontade de uma Natureza indiferente ao bem e ao mal moral, antes má do 
 85 
 
vezes confundindo, assim como Meyer, personagens e persona, ou para 
ser mais claro, os pensamentos das personagens com os pensamentos do 
autor. Isso sem falar na visão – um tanto deturpada, diga-se de passagem 
– que Coutinho expressa sobre o Bruxo do Cosme Velho, a qual, para 
perceber, basta observar as expressões que usa, afirmando que nosso 
autor tinha um ―ódio à sociedade‖, que ―julgou-se um desgraçado‖, que 
tinha ―ódio contra a vida‖, que tinha um ―complexo de inferioridade‖, 
que tinha o ―ressentimento do mestiço‖, que sua mágoa e seu 
ressentimento foram traduzidos por sua arte, etc.136. A parte esses 
problemas, embora não possamos concordar com todas as suas 
afirmações, o crítico aborda de forma bastante elucidativa os 
pensamentos de Pascal e Montaigne, dois dos pilares da filosofia 
implícita na obra machadiana. 
Outro autor que também se debruçou sobre este aspecto da obra 
machadiana foi Miguel Reale no livro A filosofia na obra de Machado 
de Assis & “Antologia filosófica de Machado de Assis” (1982). Em seu 
breve ensaio, o A. explora praticamente as mesmas ―fontes‖ abordadas 
por Coutinho, embora corrigindo algumas afirmações deste último137. 
Embora seja inegável a ―afinidade espiritual‖ entre o ―cinzelador dos 
Pensées e o autor de Quincas Borba‖, Reale (1λκ2, p. κ), trazendo a fala 
de Sérgio Buarque de Holanda, explica que ―Afrânio Coutinho exagera, 
até certo ponto, a correlação ‗Pascal-Machado‘ [...] sobretudo por faltar 
ao nosso maior prosador qualquer forma de inquietação religiosa‖. Este 
autor (1982, p. 12-13) também afirma que embora não seja 
extraordinário que ―a visão pessimista de Machado de Assis tenha 
encontrado abrigo e consolo na doutrina de Schopenhauer‖, ainda assim, 
 
que boa, porque essencialmente egoísta nos seus motivos.‖ (CτUTIσHτ, 
1959, p. 27 – grifos meus) 
136 Cf. respectivamente COUTINHO, 1959, pp. 37; 39; 39; 40; 41; 56. Nesse 
sentido, considero bem fundamentada a crítica de Sérgio Buarque de Holanda, 
quando em seu texto ―A filosofia de Machado de Assis‖(1λ40), comentando 
esse ―ódio à vida‖ expresso por Coutinho, o A. afirma que é uma ―simplificação 
excessiva e traidora, que o exame da obra de Machado não autoriza a endossar. 
No simples ódio há uma ausência de complexidade e de nuances, uma limpidez 
que dificilmente poderia explicar qualquer reação de Machado de Assis diante 
da vida.‖ (HτLAσDA, 1λλ6, p. 310) 
137 Como este não é o escopo deste estudo, infelizmente não poderei me deter 
em todos os detalhes das divergências. No entanto, seria interessante um estudo 
comparativo entre os diversos autores que se debruçaram sobre os aspectos 
filosóficos da obra de Machado de Assis. Espero poder efetuá-lo futuramente 
em outro local. 
 86 
 
não devemos inferir que ele ―tenha sido adepto da ‗metafísica da 
vontade‘‖, conforme teria sugerido Raymundo Faoro, e nos lembra que 
em uma de suas crônicas de A Semana, datada de 16 de junho de 1895, 
Machado faz troça dessa metafísica schopenhaueriana. 
Nosso próximo autor não vem sozinho, mas juntamente com uma 
grande e importante equipe de estudiosos. Falo da antologia organizada 
por Alfredo Bosi, José Carlos Garbuglio, Mário Curvello e Valentim 
Facioli, intitulada Machado de Assis (1982). Nela, além da antologia de 
escritos machadianos (crônicas, crítica literária/teatral, contos e excertos 
de romances), os autores também trazem uma antologia de estudos sobre 
o autor de Dom Casmurro, bem como uma interessante mesa-redonda 
com um grupo de especialistas em Machado de Assis, dentre os quais 
figuram não só os organizadores, mas também autores como Antonio 
Callado, Sônia Brayner, Roberto Schwarz e Luiz Roncari. Além disso, 
ao final do livro encontra-se uma seção de ―Bibliografia comentada‖, na 
qual, como o próprio nome sugere, os organizadores traçam um 
panorama sobre ―dezesseis nomes, reputados básicos para o 
conhecimento do escritor e boa amostragem do ensaísmo que lhe foi 
dedicado.‖138. 
Embora a antologia de estudos seja realmente interessante139, 
gostaria de chamar a atenção para textos como o de Alcides Maya140, 
que aborda o humour machadiano; o de Barreto Filho141, que discorre 
sobre o ―espírito trágico‖ de Machado de Assis; o texto de Eugênio 
Gomes142, que aborda o ―microrrealismo psicológico‖ do autor de Dom 
Casmurro; o de Dirce Côrtes Riedel143, que a partir de uma leitura 
bakhtiniana aborda aspectos da carnavalização que figuram na obra de 
Machado, ou, para ser mais específico, em suas personagens; o texto de 
Sônia Brayner144, que discorre sobre o ―laboratório ficcional‖ de nosso 
autor, isto é, sobre a sua experiência no campo da crônica jornalística e 
sua influência na elaboração da tessitura romanesca, a qual permite a 
 
138 BOSI, 1982, p. 497. 
139 Sendo a antologia organizada a partir de recortes de capítulos de livros 
(próprios ou de outros autores), as obras que já foram abordadas ou que ainda o 
serão não aparecem neste parágrafo. Além disso, assim como venho fazendo, 
darei primazia àqueles que contribuíram de alguma forma para as reflexões 
posteriores. 
140 MAYA, 1982, p. 344-349. 
141 BARRETO FILHO, 1982, p. 355-357. 
142 GOMES, 1982, p. 369-373. 
143 RIEDEL, 1982, p. 397-410. 
144 BRAYNER, 1982, p. 426-437. 
 87 
 
nosso autor ―um exercício variado e constante do discurso centrado na 
perspectiva de um narrador‖145, bem como a oportunidade que os contos 
lhe oferecem ―de explorar outros ângulos e categorias importantes nesta 
sua renovação da arte literária‖146; e por fim, mas não menos importante, 
o texto de Alfredo Bosi, que, abordando principalmente os contos 
machadianos, explora a questão da máscara social e da fenda que existe 
(ou que é aberta) no muro levantado pela sociedade entre as classes 
sociais. 
Outro autor importante para este estudo é Roberto Schwarz, que 
com seus dois livros – Ao vencedor as batatas: Forma literária e social 
nos inícios do romance brasileiro (1992) e Um mestre na periferia do 
capitalismo: Machado de Assis (1990) – tornou-se e é ainda hoje peça-
chave nos estudos machadianos. Nesses livros, o autor analisa 
principalmente a relação dialética entre forma/conteúdo romanescos e 
forma/conteúdo sociais na construção da narrativa romanesca147. 
Enquanto que o primeiro livro é voltado para os romances iniciais de 
Machado de Assis, convencionalmente chamados de sua ―primeira 
fase‖, e traça uma comparação com os romances urbanos, de veio mais 
realista, de José de Alencar; o segundo, por sua vez, dedica-se 
inteiramente às Memórias Póstumas de Brás Cubas. A primeira obra de 
Schwarz – embora, por assim dizer, seja um pouco ―empolada‖, com 
uma sintaxe meio truncada e de leitura difícil – traz uma excelente 
análise de sociologia das formas literárias, que busca realçar não só os 
problemas, como também os avanços realizados por Machado de Assis 
na elaboração de seus romances da primeira fase. Vale dizer, no entanto, 
que esse livro só fica mais claro quando se lê seu complemento (Um 
mestre na periferia do capitalismo), no qual Schwarz vai apontar o 
exemplo positivo daquilo que buscava na prosa urbana de Alencar e nos 
primeiros romances machadianos. Nesse segundo livro, o autor vai se 
debruçar em elementos que fazem parte não apenas das Memórias 
Póstumas…, mas também dos romances seguintes, na qual ―um 
narrador voluntariamente importuno e sem credibilidade‖148 é visto 
 
145 BRAYNER, 1982, p. 433. 
146 BRAYNER, 1982, p. 433. 
147 Digo ―relação dialética‖, pois, na visão de Schwarz, forma e conteúdo 
romanescos devem incorporar forma e conteúdo social, ―sem o que [o escritor] 
não fica em dia com a complexidade objetiva de sua matéria – por próximo que 
esteja da lição dos mestres.‖ (SCHWARZ, 1λλ2, p. 2λ). 
148 SCHWARZ, 1990, p. 19. 
 88 
 
tanto como ―regra de composição narrativa‖149 quanto como ―estilização 
de uma conduta própria à classe dominante‖150. Em outras palavras, 
enquanto na primeira fase Machado ainda buscava mostrar a 
volubilidade e a arbitrariedade das classes superiores a partir do 
conteúdo, das ações dos personagens descritas por um narrador 
confiável, agora é o próprio narrador que incorpora essas características 
em sua forma (nada) romanesca. 
Ainda outro autor importante para esta dissertação é John 
Gledson, o qual, também com dois livros – Machado de Assis: ficção e 
história (2003) e Machado de Assis: impostura e realismo: uma 
reinterpretação de Dom Casmurro (1991) – merece destaque por suas 
contribuições acerca da obra machadiana. Vale mencionar que o próprio 
autor reconhece o débito que tem para com o primeiro livro de R. 
Schwarz. Menciono o débito do autor, pois ambos seguem uma linha 
parecida, embora não idêntica. Parecida, pelo fato de que ambos 
possuem uma interpretação mais ―sociológica‖, em sentido lato; 
diferente, pois enquanto Schwarz prima pela relação forma/conteúdo, 
enfatizando a incorporação da realidade na própria forma literária, 
Gledson vai dar primazia à relação conteúdo/alegoria, dando enfoque 
para as ―pistas‖ deixadas por Machado no próprio conteúdo do romance 
para, a partir daí, encontrar as ―intenções do autor‖. Por falar nisso, este 
último ponto me parece ser um dos poucos ―defeitos‖151 que se encontra 
nas obras de Gledson, isto é, essa busca incessante pela ―intenção 
machadiana‖. Claro que ela eleva o próprio escritor, fazendo-o parecer 
ainda mais arguto do que já é, pois, segundo Gledson, Machado teria 
deixado inúmeras pistas encobertas, vários detalhes que sabia que não 
seriam notados por seus contemporâneos e que, se fossem notados, 
seriam severos piparotes lançados à face do leitor, ou, conforme bem 
salientou Wilson Chagas, para John Gledson, parece que Machado havia 
planejado ―os diversos níveis de significado da trama por ele 
desenvolvida, ou seja, como se um romance fosse uma obra elaborada 
com a consciência, e não com a imaginação, e portanto tivesse uma 
estrutura racional, e não criativa.‖152. Não obstante, fazendo minhas aspalavras de Wilson Chagas, é preciso dizer que 
 
 
149 SCHWARZ, 1990, p. 17. 
150 SCHWARZ, 1990, p. 18. 
151 Segue entre aspas porque não é bem um defeito, uma vez que não tira o peso 
de sua argumentação. 
152 CHAGAS, 1994, p. 15. 
 89 
 
o livro de John Gledson nos convida a reler 
Machado. Pois são tantas as suas hipóteses e 
especulações que parecem acertadas, inteligentes, 
plausíveis; e tanto elas são estranhas à visão que a 
crítica e a história literária até agora nos 
transmitira, que não temos outro recurso senão o 
de procurar conferir as nossas (e as suas) opiniões. 
(CHAGAS, 1994, p. 15-16) 
 
Para fechar esta subseção que aborda os críticos da obra 
machadiana, gostaria de trazer um que, mesmo com suas considerações 
bastante argutas, ainda assim, não é muito citado em estudos 
acadêmicos; trata-se de Paul Dixon, autor do livro Os contos de 
Machado de Assis: mais do que sonha a filosofia (1992)153. Conforme o 
próprio título deixa entrever, o crítico se debruça sobre os contos de 
nosso autor, embora em alguns momentos ele também faça referências 
aos romances. No que tange ao subtítulo, o próprio Paul Dixon sinaliza 
que com ele deseja ―sugerir uma crítica a certa filosofia.‖154. O autor 
acredita que os contos machadianos trazem ―um projeto implícito de 
mostrar as fraquezas de tal filosofia‖155, a qual, segundo ele, seria ―a 
filosofia positivista, como elaborada por Augusto Comte, cuja influência 
no Brasil do século passado está bem documentada num livro de Ivan 
Lins‖156. 
A fim de melhor demonstrar esse ―projeto implícito‖, o crítico 
descreve sinteticamente cinco ―aspectos essenciais do pensamento de 
Comte‖ que, segundo ele, são pertinentes para o estudo da obra 
machadiana157, uma vez que, ―naquele contexto Machado de Assis foi 
um adversário, e sua voz artística representa uma oposição [ao 
 
153 Menciono isso, pois, até o presente momento (14 jan. 2019), utilizando a 
ferramenta de pesquisa ―Google Acadêmico‖ são encontradas apenas 44 
(quarenta e quatro) citações sobre esta obra, o que é um número baixo, levando 
em conta que o livro é de 1992. Mesmo que levemos em conta seus outros 
estudos acerca da obra de Machado, o número sobe apenas para 129 (cento e 
vinte e nove). Disponível em: < 
https://scholar.google.com.br/citations?user=ERl7QgIAAAAJ&hl=pt-
BR&oi=ao>. Acesso em: 14 jan. 2019. 
154 DIXON, 1992, p. 11. 
155 DIXON, 1992, p. 11. 
156 DIXON, 1992, p. 12. 
157 Eles seriam: a ―ambição enciclopédica‖, a ―objetividade‖, a ―linearidade‖, a 
―hierarquia‖ e o ―dogma‖. Para mais detalhes, cf. DIXτσ, 1λλ2, p. 12-13. 
 90 
 
positivismo].‖158. Em contraposição a esse espírito positivista do Brasil 
oitocentista, Paul Dixon assinala que existiria em Machado de Assis 
uma espécie de ―antecipação da fenomenologia‖159 e, então, menciona 
algumas das concepções fenomenológicas do francês Maurice Merleau-
Ponty160, pois, em ―sua versão da fenomenologia parece haver uma 
afinidade com a mentalidade do contista brasileiro.‖161. Apenas para 
finalizar esta exposição sobre esta obra do crítico, vale mencionar que 
em sua leitura dos contos, Dixon encontra ―dez ‗leis‘ do mundo 
machadiano‖162 – isto é, padrões que se repetem em suas narrativas –, 
chamadas desta forma em tom irônico, ―visto que as leis do mundo de 
Machado de Assis são ‗anti-leis‘ que, em vez de circunscrever e 
explicar, criam um espaço para o mistério.‖163. 
 
2.2.2 Falando no Diabo... 
 
Tendo percorrido alguns dos espaços mais ortodoxos dessa 
grande selva que se tornou a Fortuna Crítica machadiana, podemos 
agora contemplar os estudos que estão diretamente relacionados com 
esta dissertação, ou, para retomar a analogia, podemos fazer um desvio 
para adentrar em veredas mais heterodoxas e, por assim dizer, 
desconhecidas. Não que elas cheguem a ser completamente obscuras, 
ausentes de sinalizações ou de trilhas; o que quero dizer, todavia, é que 
elas são, ainda assim, ou relegadas ao segundo plano ou até mesmo 
deixadas de lado, simplesmente por abordar essa personagem do 
Cristianismo e da cultura ocidental que é tão marcante quanto 
controversa. No entanto, é pertinente mencionar que, embora não 
tenham sido o foco principal, o Diabo, o diabólico e o demoníaco na 
obra de Machado de Assis também já foram abordados por estudiosos 
de renome, como Afrânio Coutinho, Raymundo Faoro, John Gledson e 
Paul Dixon164. Dito isto, passemos aos autores e autoras cujo enfoque é 
 
158 DIXON, 1992, p. 14 – acréscimo meu entre colchetes. 
159 Cf. DIXON, 1992, p. 14. 
160 Elas seriam: a ―crítica ao pensamento enciclopédico‖, a ―intersubjetividade‖, 
a ―circularidade‖, a ―orientação não-hierárquica‖ e o ―ceticismo‖. Para mais 
detalhes, cf. DIXON, 1992, p. 14-15. 
161 DIXON, 1992, p. 14. 
162 DIXON, 1992, p. 17. 
163 DIXON, 1992, p. 17. 
164 Como o Diabo (ou o diabólico/demoníaco) não era(m) o tema principal de 
seus estudos, deixo para trazer os apontamentos feitos por estes autores em um 
momento mais oportuno. 
 91 
 
direcionado especificamente para o Capiroto enquanto personagem da 
obra machadiana… Antes, porém, é válido explicar que, a fim de dar 
certa sistematicidade à exposição, eu os trarei em ordem cronológica, a 
partir do ano da primeira publicação. 
Para iniciar, portanto, gostaria de mencionar o artigo ―τ Bruxo 
do Cosme Velho decretou a morte do Diabo‖ (200κ)165 da prof.ª e 
pesquisadora da UFSC, a Dr.ª Salma Ferraz, no qual ela traça um 
sucinto panorama da história do Diabo – perpassando a Bíblia, a 
Teologia, a Teoria, a Literatura ocidental – até chegar nos escritos de 
nosso autor. Vale dizer, entretanto, que seu artigo busca mais apontar as 
aparições do Diabo na obra machadiana do que efetuar uma exegese dos 
textos, o que, certamente, não diminui seu valor. Embora não seja o 
único ponto interessante de seu artigo, é possível dizer que ele atinge 
seu clímax no momento em que a autora revela quando e onde Machado 
de Assis teria decretado a morte do Diabo, a saber, no conto ―τ anjo 
Rafael‖. 
Outra pesquisadora que se debruçou sobre o Diabo – ou, pelo 
menos, sobre duas das ―narrativas‖ em que ele apareceu – é Vera Casa 
σova, professora da UFMG, com seu artigo ―Do sermão do Diabo: o 
avesso da narrativa.‖166. Utilizo o termo narrativas entre aspas, pois, 
conforme o próprio título do artigo deixa perceber, a articulista aponta a 
crônica de 1κλ2, ―τ sermão do Diabo‖, como um prenúncio do ―fim da 
narrativa tradicional‖ e também das ―transformações estéticas que 
aconteciam no fim do século XIX e sobretudo [d]as subversões políticas 
e mesmo teológicas.‖167. Comentando tanto a crônica quanto o conto de 
1κκ3, ―A igreja do Diabo‖, explica a autora que 
 
Fortemente popular, a figura do Diabo está mais 
próxima de nós que Deus. O Diabo subverte a 
ordem, mostrando que é mais fácil seguir os seus 
ditames que os de Deus. Projeto crítico, ético e 
estético que denuncia uma hipertrofia da moral 
de fin-de-siècle. O Sorriso que o leitor descuidado 
é capaz de dar ao chegar ao final da narrativa é 
 
165 Embora as citações posteriores sejam retiradas do livro As Malasartes de 
Lúcifer, de 2012, vale dizer que a data aqui expressa é a de sua primeira 
publicação na Revista UNILETRAS, Ponta Grossa, v. 30, n.1, p. 175-198, 
jan./jun. 2008. 
166 Publicado na Revista O Eixo e a Roda: Revista de Literatura Brasileira, 
Belo Horizonte, v. 16, p. 179-184, jan./jun., 2008. 
167 CASA NOVA, 2008, p. 183. 
 92 
 
também o do arrepio, do riso nas lágrimas, 
marcado pelo ceticismo. (CASA NOVA, 2008, p. 
183 – grifos meus, itálico da autora) 
 
Assim, nesses dois textos, dirá a autora logo adiante, tem-se ―a 
visão dos múltiplos aspectos (positivos?) do caráter do Diabo e o avesso 
do sacro, o profano, capaz de fazer a sociedade se transformar, pelo seu 
poder de subversão e transgressão.‖168. Desta forma,com esse lastro de 
subversão e transgressão irônicas, explica a autora, essas ―narrativas‖ 
acabam tanto por fazer desmoronar verdades absolutas quanto por 
deslocar o leitor ingênuo. 
 Também do ano de 2008 é o artigo da professora e 
pesquisadora Magali Moura, da UERJ, intitulado ―τ riso diabólico em 
Machado e Goethe. Algumas reflexões sobre a luta do mal contra o 
bem.‖169. Em seu texto, a professora tece algumas considerações sobre 
―a função da personagem do diabo (Mefistófeles) em textos de Machado 
de Assis e no Fausto de Goethe sob o prisma da teoria bakhtiniana do 
riso e da ironia.‖170. Com isso, ela pretende apontar nos textos desses 
autores uma espécie de ―educação pela felicidade transgressora‖171, isto 
é, uma educação que se utiliza dos efeitos benéficos da subversão e da 
transgressão a partir de um riso libertador, um riso que não troça, mas 
ensina. Conforme explica a autora, a figura do Diabo, um ser do além, 
serve aos dois autores para falar do aquém, ou seja, o Diabo seria 
―motivação para a exposição da intrincada teia de relações que 
caracteriza o mundo dos homens. Associado ao riso e à troça, o diabo 
assume nos textos aqui mencionados de Machado e Goethe a função do 
desmascaramento e de revelação conforme descrita por Bakhtin.‖172. Em 
outras palavras, mas ainda acompanhando a autora, pode-se dizer que 
 
Ao dar voz a uma personagem como o Diabo, 
estes autores propiciam a subversão da ordem 
pelo seu contrário, pelo seu espelhamento. É o 
próprio reflexo que ironicamente irá mostrar o 
real não o sendo. Ao se propor o jogo, eles 
evocam a disposição dialética com a qual está 
 
168 CASA NOVA, 2008, p. 183. 
169 Publicado na Revista de Letras, São Paulo, v. 48, n.2, p. 131-150, jul./dez., 
2008. 
170 MOURA, 2008, p. 131. 
171 MOURA, 2008, p. 131. 
172 MOURA, 2008, p. 132. 
 93 
 
constituído o próprio mundo [...] (MOURA, 2008, 
p. 146) 
 
A realidade, prossegue a autora, ―quando vista pelo avesso 
através da simpatia em relação ao elemento do mal provoca a intensa 
interatividade texto-leitor e, dessa forma, evoca a reflexão sobre os 
estados irônicos do mundo.‖173. Nesse sentido, longe de simplesmente 
moralizar – isto é, de apontar um caminho (seguro?) para o leitor –, 
pode-se dizer que a própria narrativa, na forma como é elaborada, acaba 
valorizando tanto a liberdade quanto a reflexão do leitor, uma vez que 
lhe abre esse espaço dialógico-reflexivo. 
O último artigo de 2008 é de Maurício Cesar Menon, professor da 
UTFPR, intitulado ―τ Diabo: um personagem multifacetado.‖174. Seu 
artigo busca ―analisar algumas das representações do Diabo na 
literatura, investigando de que forma são dadas diversas faces a um ser 
sem rosto, as origens dessas representações e de como a literatura 
brasileira apropriou-se dessa construção.‖175. Embora não seja 
especificamente sobre o Diabo machadiano, seu artigo é importante para 
esta pesquisa por tecer considerações sobre e efetuar comparações entre 
algumas das ―representações‖176 do Diabo na literatura ocidental, ou, 
para ser mais claro, sobre o Diabo dantesco, o Satã miltoniano, o Satã de 
Álvares de Azevedo, o Diabo machadiano e o Lúcifer de Coelho 
Neto177. Ao abordar essas variantes da personagem, o professor 
consegue explicitar não apenas as relações entre os diferentes autores, 
mas também as reverberações existentes entre os diversos textos. 
Outra pesquisadora que abordou o Diabo, ou, melhor dizendo, o 
discurso do Diabo no texto machadiano, foi Aurora Gedra Ruiz Alvarez, 
professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie (São Paulo), em 
seu artigo ―τ século XIX sob o olhar de Machado de Assis‖178. Com 
ele, a professora se propõe a ―estudar o processo de criação da paródia 
na crônica ‗τ sermão do Diabo‖‘ e também a ―examinar os expedientes 
de que se vale o narrador‖179 para confrontar o discurso bíblico e 
 
173 MOURA, 2008, p. 147. 
174 Publicado na Revista Línguas & Letras, Cascavel, n. Especial, p. 217-227, 
2008. 
175 MENON, 2008, p. 218. 
176 Cf. nota de rodapé nº 36. 
177 Conforme indica o articulista, o conto de Coelho σeto é intitulado ―A vitória 
de Lúcifer‖ e encontra-se no livro Melusina, de 1913. 
178 Publicado na Revista Itinerários, Araraquara, n.29, p. 393-404, 2009. 
179ALVAREZ, 2009, p. 393. 
 94 
 
construir sua própria voz narrativa. Ao fazê-lo, a articulista encontra 
cinco expedientes, ou, para ser mais claro, cinco procedimentos 
narrativos utilizados pelo narrador machadiano a fim de subverter o 
texto bíblico – o ―Sermão da Montanha‖ encontrado no Evangelho 
segundo São Mateus – e, com isso, constituir sua própria voz e visão de 
mundo, isto é, construir sua própria interpretação do mundo. Dessa 
forma, conforme bem apontado pela professora, nesse sermão ―o que se 
doutrina nos trinta mandamentos é a concepção ideológica de que o 
sucesso ocorre devido à falta de escrúpulos, à ganância, à má-fé nos 
negócios; enfim, todas as qualidades que enformam o homem do mundo 
capitalista.‖180. 
Outro texto de que me vali de base para as reflexões que aqui 
figuram é a dissertação de Isabella Maddaleno, intitulada Um Diabo 
narrado pelas tintas machadianas (2014). Sua dissertação, assim como 
esta que ora se lê, tem como objetivo estudar a figura do Diabo ―tal 
como este se apresenta pelas tintas do escritor‖, a fim de evidenciar ―de 
que forma ele foi apropriado pela literatura machadiana.‖181. Para tal, a 
pesquisadora aborda três textos de nosso autor, a saber, os contos ―Adão 
e Eva‖ e ―A igreja do Diabo‖ e a crônica ―τ sermão do Diabo‖. Em seu 
estudo, conclui a autora que ―τ Diabo apresentado por Machado de 
Assis é um ser real, possui forma corpórea e sentimentos que se 
assemelham ao ser humano.‖182. Embora concorde com esta afirmação, 
tendo a discordar quando, adiante, na seção 5.1 de sua dissertação, cujo 
título é ―τ Diabo é o mesmo?‖, a autora afirma que ―[n]os três contos 
em análise, ―Adão e Eva‖, ―A igreja do Diabo‖ e o ―Sermão do Diabo‖, 
a personagem Diabo é semelhante.‖183. 
Claro, pode-se dizer que semelhante não é igual, mas, ainda 
assim, devemos suspeitar dessa suposta semelhança. Afinal, conforme 
veremos na seção posterior, embora se possa dizer que o discurso do 
Diabo em cada um dos textos possui certa base comum e embora, sim, 
ele possa ser chamado, como na Bíblia, de ―o grande Tentador‖ e de 
―adversário de Deus‖, suas características físicas não são as mesmas. 
Conforme bem observado no estudo de Maurício C. Menon (2008), no 
conto ―A igreja do Diabo‖ a personagem tem muito do Satã miltoniano, 
enquanto que em ―τ sermão do Diabo‖ – e isso dizemos nós amparados 
pelas observações da professora Magali Moura (2008) –, ele estaria mais 
 
180ALVAREZ, 2009, p. 396. 
181MADDALENO, 2014, p. 04. 
182MADDALENO, 2014, p. 75. 
183MADDALENO, 2014, p. 78. 
 95 
 
para o Mefistófeles goethiano, não apenas pela descrição feita ao final 
da crônica, mas também pelo próprio tom irônico estabelecido 
textualmente pelo sermão. Além disso, conforme veremos, o conto 
―Adão e Eva‖ se esquiva de qualquer descrição física do Anjo Caído, 
traçando mais o seu perfil psicológico do que físico. Feitas essas breves 
observações, passemos ao próximo texto. 
Chegando perto do final, gostaria de trazer o artigo ―τ Diabo dos 
contos de Machado de Assis: destino, herança e errância do Satã 
miltoniano‖184, de Miriam Piedade Mansur Andrade, doutora em 
Literatura Comparada e pesquisadora bolsista do PNPD/CAPES, 
vinculada ao Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da 
Faculdade de Letras da UFMG. Nele, a autora busca estabelecer 
relações entre o Diabo dos textos ―A igreja do Diabo‖ e o ―τ sermão do 
Diabo‖, de nosso autor, e o Satã miltoniano a partir da ―lógica do 
suplemento, como proposto por Jacques Derrida, na qual, Machado de 
Assis, leitor de Milton, atualiza, em seus contos, o discurso literário 
sobre o mito do Mal e nãoescapa ao destino, à tradição e à herança do 
autor inglês.‖185. De acordo com a autora, ―[o] Satã de Paradise Lost 
está contido em ―A Igreja do Diabo‖ e em ―τ Sermão do Diabo‖, não de 
forma tipológica ou como cópia, mas sob uma perspectiva diferente, que 
promove mais uma significação para esse elemento ficcional.‖186. A 
despeito de minha discordância no que tange ao Diabo da crônica ser 
uma herança, ou até mesmo uma espécie de releitura, do Satã miltoniano 
– estando, conforme dito acima, muito mais para o Mefistófeles 
goethiano –, o texto se mostra interessante para esta dissertação na 
medida em que problematiza uma questão que pretendo articular no 
último capítulo, a saber, a questão do livre-arbítrio, isto é, da liberdade 
humana de escolha tanto do bem quanto do mal, a qual não é levada em 
conta pelo Diabo quando, no conto, funda sua igreja. 
Para finalizar esta seção gostaria de trazer o artigo de Tiago 
Ferreira da Silva, Doutorando em Literatura Brasileira no Póslit/UnB e 
professor da Secretaria de Educação do Distrito Federal, intitulado 
―‗Franjas de algodão em mantos de veludo‘ – As ideias, e o Diabo, fora 
do lugar num conto de Machado de Assis‖187, no qual o autor interpreta 
 
184 Publicado na Revista Em Tese, Belo Horizonte, v.23, n.1, p. 249-258, 
jan./abr., 2017. 
185 ANDRADE, 2017, p. 249. 
186 ANDRADE, 2017, p. 250. 
187 Publicado na Revista Cerrados, Brasília, v.26, n.45, Edição Especial, p. 
207-215, 2017. 
 96 
 
o conto ―A igreja do Diabo‖ à luz das ideias de Roberto Schwarz em seu 
texto ―As ideias fora do lugar‖, capítulo inicial de Ao vencedor as 
batatas. Em sua visão 
 
o texto machadiano reflete não somente sobre 
aspectos religiosos ou sobre o desejo do ser 
humano de estar desvinculado de normas 
religiosas, mas também como representa, 
literariamente, a estrutura social brasileira da 
época, travestida ‗em capas de veludo com franjas 
de algodão‘, ou seja, revestida da ideologia liberal 
europeia, mas alicerçada no atraso do regime 
escravo e no regime do favor. (SILVA, 2017, p. 
207) 
 
Desta forma, conforme assinala Silva (2017, p. 209) – e, nesse 
aspecto, tendo a concordar – o texto pode e deve ser lido para além da 
materialidade do discurso, isto é, para além de sua literalidade ou de seu 
―conteúdo explícito‖, a fim de que se encontre nele sua ―estrutura mais 
profunda‖188. Conforme bem observado pelo autor, o Diabo ―adota as 
 
188 Digo que concordo apenas nesse aspecto, pois além de me parecer que existe 
um pequeno lapso na argumentação, eu tendo a ver de forma diferente a suposta 
hierarquia das possibilidades interpretativas do conto. Segundo o autor, o 
próprio enredo e a temática do conto, a primeira vista, parecem tratar de ―uma 
crítica à religião e à maneira como as instituições religiosas se valem da fé para 
venderem uma ideologia e manipularem a vida humana‖; além disso, ainda na 
esteira do autor, o fato de o homem se encontrar insatisfeito até mesmo na igreja 
do Diabo, onde o pecado é a regra, aponta para ―um desejo de libertar-se dos 
sistemas de regras que objetivam limitar e manipular o livre arbítrio.‖ (SILVA, 
2017, p. 210) Para Silva, embora esses aspectos sejam importantes, eles não 
levam em conta aspectos ―sociais, históricos e literários‖ apontados pela 
estrutura mais profunda do conto. Digo que nesta argumentação há uma espécie 
de ―lapso‖, pois me parece que o autor não percebeu que essa ―crítica à 
religião‖ e esse ―desejo de libertar-se dos sistemas de regras‖ fazem parte dessa 
realidade histórica, social e literária, o que, certamente não invalida e, inclusive, 
se encaixa na própria reflexão que ele faz à luz da argumentação de Schwarz. 
No que diz respeito à suposta hierarquia das possibilidades interpretativas, 
diferentemente do autor, que coloca a reflexão social e histórica no plano mais 
elevado, tendo a vê-la não como uma hierarquia, não como um plano vertical, 
dicotomizando superficialidade e profundidade, mas num plano horizontal em 
que todas elas estão em certo grau de paridade. A meu ver, concordo com 
Ricoeur quando ele afirma que ―uma construção [explicativa/compreensiva] 
pode ser considerada mais provável que outra, mas não mais verdadeira. A mais 
 97 
 
mesmas formas e rituais da igreja divina, entretanto inverte o rumo da 
ideologia sem, contudo, abandonar a forma tradicional, agora permeada 
de um novo conteúdo.‖189. Assim, partindo do mencionado texto de 
Schwarz, o articulista explica que o Diabo só ―consegue fundar sua 
igreja a partir da adequação de determinadas ideias a um contexto que 
não lhes é próprio e é daí que surge uma possível correlação do conto 
com a realidade histórica do Brasil, à época de Machado de Assis.‖190. 
Nesse sentido, prossegue ele, a forma como o Diabo organiza a sua 
própria igreja – isto é, importando e adaptando ideias que não são 
próprias para um determinado contexto –, ―pode sugerir algo bem 
próprio da estrutura social brasileira, na qual dominava o fato 
‗impolítico e abominável‘ da escravidão que excluía o Brasil da 
realidade da ciência e de seus princípios‖191. 
 
2.3 Potencialidades da figura do Diabo na obra machadiana 
 
Agora que já passamos por algumas das ―representações‖ do 
Diabo na cultura ocidental – saindo do Renascimento e chegando até o 
século XIX –, que vimos algumas considerações acerca dos estudiosos 
da obra de Machado de Assis, passando por biógrafos, críticos em geral 
e críticos que versam especificamente sobre o tema que aqui se propôs, 
parece que é chegada a hora de enveredar pelo nosso próprio caminho, 
isto é, de seguir nossa própria proposta de leitura. No entanto, antes de 
efetivamente passar para a inspeção dos textos, parece pertinente, à 
guisa de uma conclusão parcial, esboçar uma síntese dos estudos 
anteriores para indicar algumas das potencialidades da figura do Diabo 
nos textos machadianos. 
Acalme-se, leitor! Não irei reescrever tudo o que você acabou de 
ler. O intuito agora é outro, a saber, indicar que caminhos me parecem 
 
provável é aquela que, de um lado, considera o maior número de fatos 
fornecidos pelo texto, inclusive suas conotações potenciais, e que, de outro, 
oferece uma convergência qualitativa melhor entre os traços que considera.‖ 
(RICτEUR, 2011, p. κ3); desta forma, o que faz a mediação entre esse ―conflito 
das interpretações‖, seria a abrangência da explicação que concede: seria o caso 
de que quanto mais, melhor. Nesse sentido, uma explicação, para que seja 
deveras completa, deve levar em conta tanto a materialidade do discurso – ou, 
para usar as palavras de Silva, o ―conteúdo explícito‖ – quanto as possibilidades 
hermenêuticas (literárias, históricas, políticas, sociais, filosóficas, etc.). 
189 SILVA, 2017, p. 210. 
190 SILVA, 2017, p. 211. 
191 SILVA, 2017, p. 211. 
 98 
 
os mais interessantes para efetuar essa releitura. Sabe o leitor que ainda 
temos pelo menos três etapas pela frente, isto é, a investigação de como 
Machado de Assis descreve textualmente a sua versão (ou versões) do 
Diabo, um estudo comparativo entre o(s) Diabo(s) machadiano(s) e 
alguns outros descritos pelos membros daquilo que chamei de tradição 
diabólica e, por fim, uma exegese dos textos a fim de explorar os 
possíveis sentidos para a figura do Diabo dentro dos textos 
machadianos. É sobre esta última que gostaria de me deter neste 
momento. 
A partir dos estudos que vimos, é possível perceber que a obra 
machadiana comporta uma série de leituras, e leituras das mais variadas. 
Às vezes, isso dá a impressão de que temos tantos Machados quanto 
críticos, ou seja, a impressão de que existe um Machado de Assis para 
cada crítico. Essa constatação não deixa de ter um fundo de verdade, 
pois cada autor/pesquisador vai se debruçar sobre os aspectos que mais 
lhe chamam atenção na obra do Bruxo e, diferentementeda matemática, 
quando se muda o enfoque, o resultado é outro. Assim, em minha 
releitura, pretendo abordar alguns aspectos que considero os mais 
importantes na leitura de cada um desses autores/pesquisadores. Desta 
forma, traço eu meu próprio Machado de Assis, um híbrido das diversas 
leituras que fiz para a composição deste estudo. 
Conforme dito mais acima192, penso, junto com Paul Ricoeur, 
que, embora exista uma espécie de ―conflito das interpretações‖193, a 
 
192 Cf. nota de rodapé n.º 188. 
193 Compreendo que o ―conflito das interpretações‖ abordado por Paul Ricoeur 
em seu livro homônimo e em diversos pontos de sua obra seja acerca das 
diversas correntes hermenêuticas (psicanálise, estruturalismo, fenomenologia, 
etc.). Para Ricoeur, todas estas correntes têm validade na medida em que dão 
conta de explicar determinados fenômenos que ou não são abordados por outra 
ou que alguma delas não dê conta de explicar. Segundo Ricoeur, não existiria – 
conforme teria postulado Dilthey em uma tentativa de fundamentar as ciências 
humanas (ou do espírito – Geisteswissenschaften) – uma diferença profunda 
entre compreensão (aquilo que é feito pelas ciências humanas) e a explicação 
(aquilo que é feito pelas ciências naturais), mas uma dialética entre 
compreender e explicar, pois ―a interpretação consiste precisamente na 
alternância de fases de compreensão com fases de explicação, ao longo de um 
único ‗arco hermenêutico‘.‖ (RICτEUR, 2011, p. 24), ou ainda, em outras 
palavras, ―se a compreensão precede, acompanha e envolve a explicação, esta 
em troca desenvolve analiticamente a compreensão‖ (RICτEUR, 2011, p. 26); 
sendo assim, uma depende da outra. Sob esse ponto de vista, para o filósofo, 
―[e]xplicar mais é compreender melhor‖ (RICτEUR, 2011, p. 26). Penso que, 
 99 
 
melhor interpretação que se pode oferecer de um texto é aquela que 
explica mais, o que, a meu ver, é feito por uma interpretação que leve 
em conta mais aspectos, tanto a nível do texto quanto a nível de teorias. 
Sendo assim, a fim de que se abra um horizonte em nossa frente, espero 
conseguir ser abrangente o suficiente para dar conta dos aspectos 
literários, filosóficos, teológicos, políticos, históricos, etc., que se pode 
perceber a partir dos textos que aqui vamos nos debruçar. 
Para dar um exemplo, podemos pensar no mais famoso deles, o 
conto ―A igreja do Diabo‖. Conforme vimos, o texto pode ser lido e 
interpretado literalmente, e isso sem que se perca a experiência estética 
– ou até uma parte de seu conteúdo filosófico, uma vez que o texto, 
conforme bem assinala Alfredo Bosi em ―A máscara e a fenda‖ é um 
daqueles contos-teoria que Machado tanto utilizou. Uma leitura mais 
imaginativa, no entanto, faz com que o texto ganhe novos contornos, 
novas possibilidades, o que faz com que ele permaneça vivo e 
dialogando com as novas gerações. Apenas para retomar algumas das 
possíveis interpretações sobre o conto, Afrânio Coutinho, por exemplo, 
vê nele um exemplo do ―conceito pascaliano da causa secreta das ações 
humanas‖194; John Gledson, por sua vez, vê a narrativa como ―uma 
adaptação da doutrina de Schopenhauer, em todo o seu vigor, ao 
contexto da vida cotidiana: algo que, diga-se, o próprio filósofo poderia 
ter compreendido, pois também era cético quanto à competência da 
humanidade para fazer face à realidade de sua própria natureza.‖195; 
Paul Dixon enxerga o Diabo, ou pelo menos sua doutrina, não apenas 
como ―uma alegoria do positivismo‖ mas também como uma espécie de 
ataque a ―programas de todos os tipos, desde que sejam gerais e 
pretensiosos.‖196; as professoras Vera Casa Nova e Magali Moura veem 
no poder de subversão e transgressão do Diabo uma forma de fazer 
desmoronar as verdades absolutas e com isso possibilitar reflexões que 
podem gerar mudanças, tanto no âmbito estético quanto no âmbito 
social; Isabella Moura, levando em conta os aspectos teológicos, vê no 
Diabo machadiano uma semelhança acentuada com aquilo que prega a 
tradição católica; Miriam P. M. Andrade vê no conto uma possibilidade 
 
mutatis mutandis, isto também pode se estender para interpretações acerca de 
determinada obra por diversos autores, uma vez que, embora às vezes sejam 
antagônicas entre si, elas acabam por se complementar e, com isso, enriquecem 
a compreensão da obra. 
194 COUTINHO, 1959, p. 104. 
195 GLEDSON, 1991, p. 149. 
196 DIXON, 1992, p. 81. 
 100 
 
de discutir uma questão que é tanto teológica quanto filosófica, isto é, a 
questão da liberdade; Tiago Ferreira da Silva, seguindo na linha de R. 
Schwarz, percebe que o conto consegue revelar aspectos históricos e 
políticos a partir de seu conteúdo e sua estética197. 
Como se pode ver, há diversas interpretações que podem ser 
feitas e que nem sempre concordam entre si, e isso falando de apenas 
um dos contos. Ao trazer e discutir essas e outras interpretações acerca 
dos escritos de nosso Bruxo do Cosme Velho, pretendo revisar e ampliar 
o ponto de vista crítico para, com isto, não apenas dar ―outro rumo‖ a 
elas, mas também abrir a possibilidade de desvelar novas 
potencialidades para a figura do Diabo, fornecendo, assim, minha 
pequena contribuição para a Fortuna Crítica de nosso escritor. 
 
 
197 Embora o leitor possa argumentar que a maioria dessas interpretações 
apontadas recai mais sobre os contos de um modo geral do que sobre a 
personagem, é possível contra-argumentar que o Diabo é peça fundamental para 
todas elas, uma vez que ele funciona como a ―mola propulsora‖ do mecanismo 
interpretativo, tendo em vista seu protagonismo no conto. 
 101 
 
3 CAPÍTULO II: Com o Diabo no corpus… 
 
―Dir-se-á que também nos cerca o 
monstro e o aleijão? Mas o aleijão é 
necessário à harmonia das coisas; o 
monstro é o complemento da beleza. Os 
antigos, que entendiam do riscado, 
casaram Vênus a Vulcano; e a lenda 
cristã reuniu a beleza física à fealdade 
moral, na pessoa do anjo réprobo.‖ 
(Machado de Assis) 
 
No capítulo anterior, sobrevoamos nosso tema para obter um 
panorama tanto das representações do Diabo na cultura ocidental quanto 
dos apontamentos de alguns dos principais estudiosos da vida e da obra 
de nosso autor; com isso, vimos as possibilidades que se abrem para as 
interpretações de nossa personagem. Agora, portanto, é chegada a hora 
de dar um rasante para que vejamos mais de perto a forma pela qual 
Machado de Assis desenha/descreve sua versão (ou versões) do Coisa 
Ruim. Todavia, antes de adentrar especificamente no tema deste 
capítulo, é preciso esclarecer um ponto importante sobre ele, a saber, o 
porquê de ele estar separado da exegese que será apresentada no último 
capítulo. 
Antes de tudo é preciso lembrar que um dos objetivos propostos 
para esta dissertação foi observar se todas as vezes em que Machado de 
Assis utiliza o Diabo como uma personagem ele o caracteriza da mesma 
forma, isto é, se suas descrições são as mesmas, assim como 
Shakespeare teria feito com Falstaff198, por exemplo. Penso que, embora 
esse objetivo pudesse ser alcançado em conjunto com a interpretação 
acerca da personagem, ainda assim, poderíamos perder em clareza e, 
além disso, talvez alguns aspectos pudessem passar despercebidos; 
destarte, optei por manter a separação entre a apresentação da descrição 
da personagem nos textos selecionados e a interpretação de seus 
possíveis sentidos. 
 Além disso, também vale lembrar que outro dos objetivos 
propostos foi o de tentar definir (ou pelo menos refletir) se, tendo ou não 
as mesmas características, o Diabo de cada um dos contos é o mesmo ou 
se pode ser pensado como outra personagem, embora com o mesmo 
nome. Em outras palavras, será o Diabo machadiano uno, múltiplo ou 
 
198 Personagem de Henrique IV e de As alegres comadres de Windsor. 
 102múltiplo e comum? Adiantando um pouco as coisas, penso que as duas 
últimas alternativas são as mais prováveis, e a última ainda mais, caso 
sigamos a linha argumentativa de Luther Link, para quem o Diabo é 
uma máscara sem rosto, isto é, uma figura proteica que, por mais que 
mude de forma, continua mantendo sua ―essência‖. 
Outro ponto que se faz necessário explicar, uma vez que o leitor 
pode sentir sua falta, é acerca da ausência de discussão dos argumentos 
de outros autores. Neste momento, evitei trazê-la a fim de dar ênfase na 
materialidade do discurso machadiano. Em outras palavras, neste 
capítulo, embora eu também teça algumas considerações, veremos 
apenas a forma como o próprio Machado descreve sua personagem para 
que suas características sejam realçadas, uma vez que no capítulo 
posterior elas servirão de base para a comparação com os Diabos dos 
outros autores. 
Para finalizar este pequeno introito, vale relembrar que, neste 
capítulo, a divisão dos textos havia sido estabelecida por gêneros; no 
entanto, é possível dizer que, além disso, ela também ganhou uma 
sequência cronológica ao começar em 1883, com a primeira publicação 
de ―A igreja do Diabo‖, e terminar em 1κλλ, com a publicação de Dom 
Casmurro. Dito isto, vamos aos textos199. 
 
3.1 Contos do Capeta: 
 
3.1.1 ―Vá, pois, uma igreja...‖ – A Igreja do Diabo (1883) 
 
— Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. 
Escritura contra Escritura, breviário 
contra breviário. Terei a minha 
missa, com vinho e pão à farta, as 
minhas prédicas, bulas, novenas e 
 
199 Para facilitar aos leitores e leitoras, todos os textos estão incluídos em anexo 
ao final deste volume. Eles foram retirados do site 
<http://machado.mec.gov.br/>, que contém a obra completa de nosso escritor. 
Para as referências, no entanto, baseio-me na versão física das obras completas 
organizadas em 3 volumes por Afrânio Coutinho pela Ed. Nova Aguilar, 1994. 
As citações de Dom Casmurro foram retiradas do vol. I, p. 817-819; as citações 
de Histórias Sem Data, Várias Histórias e Páginas Recolhidas foram retiradas 
do vol. II, p. 369-374, p. 525-528 e p. 647-649, respectivamente; e, por fim, as 
citações da crônica da série intitulada Balas de Estalo foram retiradas do vol. 
III, p. 473-474. 
 103 
 
todo o demais aparelho eclesiástico. 
(Machado de Assis) 
 
τ primeiro texto que veremos é o conto ―A igreja do Diabo‖, o 
qual foi originalmente publicado na Gazeta de Notícias em 17 de 
fevereiro de 1883. Ainda no mesmo ano, ele cruzou o Atlântico e 
chegou aos jornais portugueses, conforme relatado em carta pelo 
cunhado de nosso autor, o sr. Miguel de Novais200. No ano seguinte, o 
conto juntou-se a outros e passou a fazer parte do livro Histórias Sem 
Data. Para que se possa ter uma visão mais abrangente de nossa 
personagem, vejamos um breve resumo do que ocorre na narrativa. 
Neste conto, encontramos uma história (ou estória) que, de 
acordo com o narrador, foi retirada de um ―velho manuscrito 
beneditino‖. Conta tal manuscrito que, certo dia, sentindo-se 
―humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem 
organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada‖ e cansado 
de ―viver dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios 
humanos‖, o Diabo resolveu criar sua própria igreja, a fim de ―combater 
as outras religiões‖. Logo após sua resolução, o Diabo voa do abismo 
até ―o infinito azul‖ para comunicá-la a Deus. Chegando ao céu, é 
barrado na entrada pelos serafins que engrinaldavam um ―recém-
chegado‖. Deus e Diabo entabulam uma conversa, na qual este último 
afirma que, após a execução de seu plano recente, o céu não tardaria em 
―ficar semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto‖. τ 
Diabo afirma, então, que pretende fundar uma igreja, por estar cansado 
de seu ―reinado casual e adventício‖, e assim obter uma ―vitória final e 
completa‖. Dito isto, o Senhor pergunta-lhe o porquê de só então essa 
ideia ter-lhe ocorrido. Ao que responde o Diabo ter sido somente agora 
que teria ―concluído uma observação, começada desde alguns séculos‖, 
a saber, que ―as virtudes, filhas do céu, são em grande número 
comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de 
algodão‖ e que, por isso, ele se proporia agora a ―puxá-las por essa 
franja, e trazê-las todas para a [sua] igreja‖. τ diálogo se desenrola mais 
um pouco e, cansado das ―ladainhas‖ de Satã, o Senhor ordena-lhe que 
se vá. 
Uma vez na terra, o Diabo se apressa em ―enfiar a cogula 
beneditina‖ e a ―espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma 
voz que reboava nas entranhas do século‖. Passou, então, a retificar sua 
imagem e a prometer ―aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, 
 
200 Cf. MAGALHÃES JR., 2008a, p. 63. Nota de rodapé n.º 1. 
 104 
 
todas as glórias, os deleites mais íntimos‖, a fim de trazer ―as multidões 
ao pé de si‖. σão demorou muito tempo para que conseguisse seu 
intento e sua previsão se verificasse, pois ―[t]odas as virtudes cuja capa 
de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, 
deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova‖. 
Vangloriando-se, o Diabo alçou brados de triunfo. Contudo, passado 
certo tempo, ele percebe que ―muitos dos seus fiéis, às escondidas, 
praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem 
integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas.‖. Essa 
―descoberta assombrou o Diabo‖, e ele passou a investigar o mal que lhe 
acometia. Ao comprovar sua descoberta, ―[n]ão se deteve um instante‖; 
e o ―pasmo‖ que isso lhe causou ―não lhe deu tempo de refletir, 
comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao 
passado‖. Em seguida, subiu rapidamente aos céus, ―trêmulo de raiva‖ e 
―ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno‖. Contou 
sua história ao Senhor, que o ouviu 
 
com infinita complacência; não o interrompeu, 
não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela 
agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse: 
— Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de 
algodão têm agora franjas de seda, como as de 
veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? 
É a eterna contradição humana. (MACHADO DE 
ASSIS, 1994, v. II, p. 374) 
 
Tendo visto o que ocorre na narrativa, podemos, agora, com mais 
facilidade, reconhecer alguns aspectos da própria personagem. No 
entanto, antes de chegarmos a isso, enquanto este último diálogo ainda 
ressoa em nossos ouvidos, gostaria de, rapidamente, tecer um 
comentário sobre as visões de Afrânio Coutinho e John Gledson acerca 
do conto. Já mencionei que, enquanto Coutinho vê neste conto ―o 
conceito pascaliano da causa secreta das ações humanas‖, uma vez que 
―[t]odas as virtudes têm a sua ponta inicial em algum motivo 
inconfessável, geralmente inspirado no egoísmo, na sensualidade, no 
amor-próprio.‖201, e que Gledson, por sua vez, o encara como ―uma 
adaptação da doutrina de Schopenhauer, em todo o seu vigor, ao 
contexto da vida cotidiana‖, levando em conta que ―[o] Mal – ou o 
egoísmo – é o motor básico da maioria das ações do homem, e nada no 
 
201 COUTINHO, 1959, p. 104. 
 105 
 
conto (menos que nada, as ―virtudes‖ aparentes que tanto aborrecem o 
diabo) pode negá-lo.‖202. Certo, podemos enxergar o egoísmo intrínseco 
nas ações das pessoas enquanto ainda seguiam os preceitos divinos, a 
franja de algodão em capa de veludo, mas se fosse só isso, pergunto eu, 
por que os ―seguidores‖ do Diabo acabam, por sua vez, tentando 
ludibriá-lo e praticando boas ações? Compreendo que Gledson negue as 
―‗virtudes‘ aparentes‖, mas, tendo em vista que as ações altruístas das 
pessoas chegam ao ponto de aborrecer o Diabo, me parece ser 
necessário levá-las em conta. Nesse sentido, penso que seria muito mais 
sensato um paralelo com as palavras de Fausto, no livro de Goethe, 
quando afirma ―Vivem-me duas almas, ah! no seio,/Querem trilhar em 
tudo opostas sendas;/ Uma se agarra, com sensual enleio/ É órgãos de 
ferro, ao mundo e à matéria;/ A outra, soltando à força o térreo freio,/ 
De nobres manes busca a plaga etérea.‖203. Em outras palavras, o conto 
me parece muito mais realçar os dois ―impulsos‖ ou as duas ―almas‖ 
que o homem traz em si do que essa ―causa secreta das ações‖ inspirada 
em Pascal ou a doutrina schopenhaueriana. Dito isto, voltemos à 
personagem. 
Em primeiro lugar, vejamos suas características físicas. No conto, 
lemos que ele ―sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto 
magnífico e varonil‖; que seus olhos, quando pensa no diálogo que terá 
com Deus, ficam ―acesos de ódio‖ e ―ásperos de vingança‖; que possui 
asas, embora não fique especificado de que tipo são, se emplumadas ou 
tal qual a dos morcegos; além disso, pode-se inferir que seu corpo é 
material, porquanto consegue vestir uma ―cogula beneditina‖. Com tais 
características, é possível imaginar que sua forma tende a ser 
humanoide, o que leva a crer que Satã não teria perdido a sua forma 
―angelical‖, por assim dizer – isto se admitirmos que os anjos também 
possuem forma humanoide, é claro. Outro ponto que pode contribuir 
para a plausibilidade dessa hipótese é a ausência de uma menção de 
espanto nas pessoas, o que, se fosse o caso, teria provavelmente sido 
incluído na narrativa. Mas, deixemo-la em suspenso e prossigamos em 
nossa investigação. 
No conto, também podemos perceber uma série de atitudes e 
sentimentos que caracterizam a personagem. Vemos nele o sentimento 
de humilhação; o sentimento de cansaço, por conta de seu ―reinado 
casual e adventício‖; vemo-lo se gabar de possuir ―amor-próprio‖, bem 
como rir e sorrir ―com certo ar de escárnio e triunfo‖; vemo-lo sentindo-
 
202 GLEDSON, 1991, p. 149. 
203 GOETHE, 1981, p. 64. 
 106 
 
se, mesmo que por um instante, ―superior ao próprio Deus‖; também 
podemos vê-lo alçando ―brados de triunfo‖; em seguida, no capítulo 
final da narrativa, no momento em que percebe o desmoronar de seu 
plano, nós o vemos, a partir das falas do narrador, sentindo-se 
―assombrado‖, ―desorientado‖, ―pasmo‖, ―trêmulo de raiva‖, ―ansioso‖ 
e ―agoniado‖. Todas estas atitudes e sentimentos, diga-se de passagem, 
são um tanto quanto humanas. 
Ao vê-las assim, todas juntas e seguindo a ordem em que 
aparecem no conto, tem-se a percepção de um movimento bastante 
interessante em seus ―estados de espírito‖, pois ele sai inicialmente de 
um sentimento de humilhação, passa pelo sentimento de triunfo e 
retorna novamente ao de fracasso, agora parecendo um pouco mais 
amargo, logo após ter saboreado o doce gosto da vitória. Embora certa 
imaginação seja necessária, existe a possibilidade de se traçar um 
paralelo entre seus sentimentos finais, quando começa a perceber sua 
derrota, e os cinco estágios ou as cinco fases do luto – isto é, negação, 
raiva, depressão, barganha e aceitação204. O paralelo é possível se 
tivermos em vista que, em primeiro lugar, ele não acredita no que está 
acontecendo e fica assombrado, desorientado e pasmo, o que poderia ser 
visto como a fase da negação; passa rapidamente pela raiva; sente-se 
ansioso e agoniado, o que poderia ser visto como a fase da depressão; 
vai até Deus para tentar compreender sua situação, o que, apesar de não 
caracterizar especificamente a barganha, pode ser interpretado como tal; 
a última fase, a da aceitação, não é relatada no conto, mas, tendo em 
vista a forma como a narrativa termina, é possível inferir que ela exista, 
isto é, que ele tenha aceitado sua condição. 
Mas, voltando aos aspectos de nossa personagem, também 
encontramos no conto aquilo que as próprias personagens dizem sobre 
ela, isto é, o que o Diabo fala sobre si, o que Deus fala acerca dele. Este 
último chama-lhe vulgar, acusa-lhe a falta de originalidade e o chama 
por duas vezes de (velho) retórico, apesar de reconhecer certa sutileza 
em sua fala. O Diabo, falando em relação a si mesmo, afirma ser um 
espírito de negação; também o vemos intitular-se como ―gênio da 
natureza‖, assim como chamar a atenção para a sua gentileza e 
airosidade205, isto é, sua nobreza ou boa feição (seria belo?); intitula-se 
 
204 Esse paralelo só é plausível se tivermos em conta que cada indivíduo leva 
seu próprio tempo para passar por cada uma dessas fases, uma vez que, pelo 
desenrolar da narrativa, há algumas que o Diabo passa de forma assaz rápida. 
205 No site da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin estão disponíveis 
online alguns antigos dicionários de língua portuguesa. De acordo com o 
 107 
 
também como o ―verdadeiro pai‖ da humanidade, o que pode ser 
compreendido tanto em sentido literal, isto é, no sentido de que teria 
sido o Diabo o criador dos homens206, quanto em sentido figurado, ou 
seja, tal como quando dizemos que ―Deus é pai, não é padrasto‖, 
querendo sinalizar sua bondade – força é dizer que, neste conto, entre as 
duas alternativas, a segunda parece-me a mais plausível, tendo em vista 
a oferta que vem logo adiante, na qual o Diabo incita a multidão a tomar 
do nome que foi ―inventado para [s]eu desdouro‖ e fazer dele ―um 
troféu e um lábaro‖, a fim de que ele lhes dê ―tudo, tudo, tudo, tudo, 
tudo, tudo…‖. 
Se o considerarmos como tal, há ainda outra personagem cuja voz 
deve ser ouvida, a saber, o narrador. Além de seus comentários sobre a 
aparência do Diabo, o narrador também fornece algumas pistas sobre o 
que devemos pensar acerca de nosso personagem. Assim como o 
próprio Diabo o fez, o narrador também lhe atribui o epíteto de ―espírito 
de negação‖; sobre a sua fala para as multidões, ele explica que, embora 
a substância, isto é, o conteúdo daquilo que o Coisa-Ruim pregava fosse 
―a que podia ser na boca de um espírito de negação‖, a forma, 
entretanto, ―era umas vezes sutil, outras cínica e deslavada‖, o que, em 
certa medida, corrobora com a acusação anteriormente feita por Deus; o 
narrador menciona a eloquência do Diabo e a exemplifica, dando 
mostras também da erudição de nosso personagem, que se utiliza de 
referências históricas e literárias, como Homero, Rabelais, António 
Diniz207, as ceias de Luculo, bem como as cartas do Abade Ferdinando 
Galiani208 para justificar sua nova doutrina. 
 
Vocabulário Portuguez e Latino (1728), de Raphael Bluteau, o termo 
―airosamente‖ significa: ―Com modo nobre, com boa graça.‖, enquanto que o 
termo ―airoso‖ significa: ―τ que tem donaire, & boa graça.‖. τ Diccionário da 
Língua Portugueza (1789), de Antonio de Moraes Silva, acusa o advérbio 
―airosamente‖ como significando: ―Com bom ar, graça, garbo. § σobre, 
gentilmente.‖, e o adjetivo ―airoso‖ como: ―Que tem bom ar, boa feição do 
rosto, e corpo, garboso, engraçado.‖. τ Diccionário da Língua Brasileira 
(1832), de Luiz da Silva Maria Pinto, traz o termo ―airosamente‖ significando: 
―Com graça. σobremente.‖; e o termo ―airoso‖ significando: ―Que tem bom ar 
de corpo, bom parecer, engraçado.‖. Disponível em: 
<http://dicionarios.bbm.usp.br/en/dicionario/1%2C2%2C3/airoso>. Acesso em: 
14 jan. 2019. 
206 Que, diga-se de passagem, é exatamente o que ocorre no conto ―Adão e 
Eva‖. 
207 António Diniz da Cruz e Silva é o autor do Hissope, citado pelo Diabo em 
sua argumentação. O Hissope é o ―primeiro poema ‗heroico-cômico‘ criado em 
 108 
 
Mas, ao cabo de tudo, a partir daquilo que é exposto no conto, 
além do que já vimos, também podemos inferir certa ingenuidade em 
nossa personagem, uma vez que ela acaba acreditando que conseguiria 
atingir a ―vitória final e completa‖ sem levar em conta que seu 
argumento é uma via de mão dupla, isto é, que funcionam para ambos os 
lados, pois se as virtudes são tais como capas de veludo que rematam 
em franjas de algodão, os vícios, por sua vez, se mostraram como capas 
de algodão rematadas em franjas de veludo.3.1.2 ―Foi o Diabo que criou o mundo‖ – Adão e Eva (1885) 
 
― Sem Contrários não há evolução. 
Atração e Repulsão, Razão e 
Energia, Amor e Ódio são 
necessários à existência Humana.‖ 
(William Blake) 
 
Portugal, gênero, hoje desaparecido, que se caracterizava por celebrar (e de 
igual forma satirizar) em tom épico um acontecimento sem qualquer 
importância, como era o presente caso. A crítica incisiva que Diniz fazia às 
vaidades eclesiásticas (retratando um clero ignorante, mundano e soberbo) não 
agradou à censura da Intendência Geral da Polícia – note-se que a Inquisição, 
apesar de continuar a existir, tinha perdido muita da sua força desde o tempo do 
Marquês de Pombal –, que proibiu a obra de ser publicada em Portugal. 
Contudo, não se conseguiu impedir que proliferassem e circulassem diversas 
cópias manuscritas.‖. Disponível em: 
<http://asinvasoesfrancesas.blogspot.com.br/2011/01/o-hissope-poema-heroico-
comico.html>. Acesso em: 14 jan. 2019. 
208 Embora existam dois Galiani famosos, o Arcebispo Celestino Galiani e o 
Abade Ferdinando Galiani (sobrinho do primeiro), e os dois terem sido eruditos, 
é bastante provável que Machado de Assis se refira a este último, uma vez que 
além de ter sido este a obter maior fama devido a sua magna publicação, o Della 
Moneta (1ι51), o Abade teve em 1κ1κ sua ―correspondência com Madame 
D‘Épinay, Madame σecker, Madame Geoffrin, etc…‖ publicada em francês. 
Pelo que pude encontrar em minhas pesquisas, no ano de 1881 saiu uma 
segunda edição, o que faz com que seja ainda mais provável seu conhecimento 
pelo nosso autor. Encontram-se na internet versões digitalizadas do livro de 
1818. Ela está disponível em: 
<https://books.google.com.br/books?id=ad3TAAAAMAAJ&printsec=frontcove
r&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false>. 
Acesso em: 14 jan. 2019. Sobre a versão de 1881, não consegui encontrar o 
livro, mas a ―prova‖ de sua existência está disponível em: 
<https://books.google.com.br/books?id=OnQtAAAAMAAJ&redir_esc=y>. 
Acesso em: 14 jan. 2019. 
 109 
 
 
Nosso segundo conto, chamado Adão e Eva foi originalmente 
publicado na Gazeta de Notícias em 1º de março de 1885209, e reeditado 
mais tarde juntamente com outros contos no livro Várias Histórias, de 
1896. Assim como fizemos anteriormente, vejamos de que forma se 
desenrola a narrativa para que tenhamos uma visão mais ampla da 
personagem. 
O conto se inicia com um narrador explicando que, por volta de 
―mil setecentos e tanto‖, uma senhora de engenho da Bahia ofereceu a 
um de seus convivas, adjetivado de ―grande lambareiro‖, certo doce em 
particular. Ao perguntar do que seria feito o tal doce, a dona da casa o 
chama de ―curioso‖, o que entabula uma discussão para se saber se a 
curiosidade ―era masculina ou feminina‖ e ―se a responsabilidade da 
perda do paraíso devia caber a Eva ou a Adão‖. Ambos, homens e 
mulheres, acusam-se reciprocamente. Dois convivas, no entanto, 
permanecem calados: um deles era o juiz-de-fora, o Sr. Veloso, e o 
outro o Frei Bento, um carmelita, que, uma vez interrogado pela dona da 
casa esquiva-se de responder diretamente e afirma que apenas ―toc[a] 
viola‖. Quando perguntam ao Sr. Veloso, este responde que 
 
não havia matéria para opinião; porque as coisas 
no paraíso terrestre passaram-se de modo 
diferente do que está contado no primeiro livro do 
Pentateuco, que é apócrifo. Espanto geral, riso do 
carmelita que conhecia o juiz-de-fora como um 
dos mais piedosos sujeitos da cidade, e sabia que 
era também jovial e inventivo, e até amigo da 
pulha, uma vez que fosse curial e delicada; nas 
coisas graves, era gravíssimo. (MACHADO DE 
ASSIS, 1994, v. II, p. 525) 
 
Ao ouvir tal comentário, D. Leonor protesta e pede ao carmelita 
que ―faça calar o Sr. Veloso‖, ao que responde o Frei que não o faria, 
pois sabia que de sua boca haveria ―de sair tudo com boa significação‖. 
Após uma rápida discussão, o juiz-de-fora retoma a palavra e inicia sua 
narrativa, explicando a forma ―como as coisas se passaram‖ na criação. 
Segundo ele, ―[e]m primeiro lugar, não foi Deus que criou o mundo, foi 
o Diabo…‖. Interrompido novamente e solicitado a que não utilizasse 
tal nome, o sr. Veloso prossegue assim 
 
 
209 Cf. MAGALHÃES JR., 2008a, p. 90. 
 110 
 
— Seja o Tinhoso. Foi o Tinhoso que criou o 
mundo; mas Deus, que lhe leu no pensamento, 
deixou-lhe as mãos livres, cuidando somente de 
corrigir ou atenuar a obra, a fim de que ao 
próprio mal não ficasse a desesperança da 
salvação ou do benefício. E a ação divina 
mostrou-se logo porque, tendo o Tinhoso criado 
as trevas, Deus criou a luz, e assim se fez o 
primeiro dia. No segundo dia, em que foram 
criadas as águas, nasceram as tempestades e os 
furacões; mas as brisas da tarde baixaram do 
pensamento divino. No terceiro dia foi feita a 
terra, e brotaram dela os vegetais, mas só os 
vegetais sem fruto nem flor, os espinhosos, as 
ervas que matam como a cicuta; Deus, porém, 
criou as árvores frutíferas e os vegetais que 
nutrem ou encantam. E tendo o Tinhoso cavado 
abismos e cavernas na terra, Deus fez o sol, a 
lua e as estrelas; tal foi a obra do quarto dia. No 
quinto foram criados os animais da terra, da água 
e do ar. Chegamos ao sexto dia, e aqui peço que 
redobrem de atenção. 
Não era preciso pedi-lo; toda a mesa olhava para 
ele, curiosa. 
Veloso continuou dizendo que no sexto dia foi 
criado o homem, e logo depois a mulher; 
ambos belos, mas sem alma, que o Tinhoso não 
podia dar, e só com ruins instintos. Deus 
infundiu-lhes a alma, com um sopro, e com outro 
os sentimentos nobres, puros e grandes. Nem 
parou nisso a misericórdia divina; fez brotar um 
jardim de delícias, e para ali os conduziu, 
investindo-os na posse de tudo. Um e outro 
caíram aos pés do Senhor, derramando lágrimas 
de gratidão. "Vivereis aqui", disse-lhes o Senhor, 
"e comereis de todos os frutos, menos o desta 
árvore, que é a da ciência do Bem e do Mal‖. 
(MACHADO DE ASSIS, 1994, v. II, p. 525-526 
– grifos meus) 
 
Quando o Diabo soube que o casal havia sido transportado para o 
jardim, ele ―ficou danado‖, pois ―[n]ão podia ir ao paraíso, onde tudo 
lhe era avesso, nem chegaria a lutar com o Senhor‖. Ao ouvir um rumor 
no chão, viu que era a serpente, sua filha. Ele a chama e lhe concede o 
 111 
 
dom da fala; em seguida solicita a ela que vá ao tal jardim das delícias e 
faça com que o casal coma dos frutos da árvore da ciência do Bem e do 
Mal. A serpente, então, vai até o jardim, enrosca-se na tal árvore e, 
quando Eva ia passando, a serpe arranca um fruto e chama-lhe a 
atenção. A primeira mulher mostra-se indignada, mas a serpente tenta 
mostrar-lhe que sua obediência é cega e sem razão. Levando em conta o 
lirismo210 de sua fala, vale a pena trazê-la em toda a sua extensão. Diz 
ela o seguinte: 
 
— Néscia! Para que recusas o resplendor dos 
tempos? Escuta-me, faze o que te digo, e serás 
legião, fundarás cidades, e chamar-te-ás 
Cleópatra, Dido, Semíramis; darás heróis do teu 
ventre, e serás Cornélia; ouvirás a voz do céu, e 
serás Débora; cantarás e serás Safo. E um dia, se 
Deus quiser descer à terra, escolherá as tuas 
entranhas, e chamar-te-ás Maria de Nazaré. Que 
mais queres tu? Realeza, poesia, divindade, tudo 
trocas por uma estulta obediência. Nem será só 
isso. Toda a natureza te fará bela e mais bela. 
Cores das folhas verdes, cores do céu azul, vivas 
ou pálidas, cores da noite, hão de refletir nos teus 
olhos. A mesma noite, de porfia com o sol, virá 
brincar nos teus cabelos. Os filhos do teu seio 
tecerão para ti as melhores vestiduras, comporão 
os mais finos aromas, e as aves te darão as suas 
plumas, e a terra as suas flores, tudo, tudo, tudo... 
(MACHADO DE ASSIS, 1994, v. II, p. 527-528) 
 
Mesmo com tal discurso poético (e profético), ainda assim Eva 
resiste. É válido mencionar que sua resistência a esse discurso é bastanteimpressionante, se levarmos em conta a diferença entre a fala elaborada 
por Machado e pelo diálogo que aparece em Gênesis 3: 1-7. Além disso, 
conforme argumentei em outra ocasião, a carga poética do discurso da 
serpente não está apenas no conteúdo, mas também em sua forma. 
 
Afinal, se prestarmos bastante atenção ao discurso 
de nosso poético ofídio – que não é Ovídio mas 
tem seu talento –, perceberemos as suas 
aliterações sibilantes, que nos fazem lembrar os 
 
210 Conforme bem apontado pela professora Salma Ferraz em seu mencionado 
artigo de 2008. 
 112 
 
silvos do próprio animal. Sugerimos ao leitor que 
faça a experiência de ler novamente o discurso da 
Serpe, desta vez em voz alta marcando os ―S‘s‖ e 
―Z‘s‖ que aparecem e perceba por si mesmo que 
até neste pequeno detalhe o nosso contista prestou 
bastante atenção. (PIERI, 2016, p. 66 – itálicos no 
original) 
 
Mas, voltemos à narrativa. Quando Adão chega, a recusa é 
reiterada. Vendo que o casal havia resistido bravamente, o Senhor pede 
que Gabriel traga-os para junto de si, para ―a eterna bem-aventurança‖. 
E foi assim que o casal entrou no céu, ―ao som de todas as cítaras, que 
uniam as suas notas em um hino aos dois egressos da criação‖. É aí que 
se encerra a narrativa do sr. Veloso, mas não o conto. Este último 
prossegue por mais algumas linhas, nas quais a conversa é retomada e – 
perdoe-me leitor pelo spoiler – os convivas constatam que tudo havia 
sido uma brincadeira, um logro de seu bem humorado narrador. 
(Neste momento, mesmo tendo dito que tentaria evitar discussões com a 
crítica, abro um parêntese para dialogar brevemente com as palavras de 
Afrânio Coutinho, para quem a concepção do conto possui um ―tom 
jansenista‖. De acordo com o crítico, vemos no conto o 
 
dualismo da explicação do mundo, o Mal, obra do 
Demônio, e o Bem, obra de Deus. Vemos que no 
mundo só há lugar para o Mal, e que devemos 
procurar o Céu pelo abandono dele, na 
contemplação, preparando a bem-aventurança 
futura, prêmio eterno da vida de ascetismo e 
renúncias. Na terra imperam vícios e maldades, 
uma abominação completa, a que nada empresta a 
nota da esperança e da piedade. (COUTINHO, 
1959, p. 100 – grifo meu) 
 
Ainda segundo o autor, ―[e]ra uma ideia fixa em Machado a de 
que o mundo era o domínio do diabo, que regula as ações e os caracteres 
dos homens.‖211. Trouxe sua fala aqui, pois, força é dizer que discordo 
veementemente do crítico. Tanto que, com o perdão da palavra, parece 
que não lemos o mesmo conto ou, quiçá, que o crítico não o tenha lido 
por inteiro. No que tange ao dualismo entre Bem e Mal, vá lá. Mas, daí a 
dizer que, para Machado, ―no mundo só há lugar para o Mal‖ e que ―na 
 
211 COUTINHO, 1959, p. 101. 
 113 
 
terra imperam vícios e maldades...‖ é de um descabimento gritante. Digo 
isso, pois, embora os anjos, nas palavras finais da narrativa de Veloso, 
afirmem que a ―terra fica entregue às obras do Tinhoso‖ e às suas outras 
criações, Coutinho parece ter esquecido que, logo no início de sua 
narrativa, o sr. Veloso afirma que Deus havia tomado o cuidado 
―somente de corrigir ou atenuar a obra, a fim de que ao próprio mal não 
ficasse a desesperança da salvação ou do benefício.‖. Além disso, 
mesmo que levássemos em conta somente a fala dos anjos, a terra só 
ficaria assim por não contar mais com o casal, pois, caso eles ficassem, 
tudo ocorreria de forma diversa, isto é, tal como a narrativa de Gênesis. 
Sendo assim, de acordo com a o conto, mesmo que a terra tenha sido 
criada pelo Diabo, ainda assim há nela coisas boas, uma vez que o 
Senhor corrigiu as obras daquele, e, além disso, fez com que o próprio 
casal (e sua prole) pudesse dar (e aumentar) a esperança de salvação 
desse mundo. Para corroborar esta interpretação, é interessante trazer a 
fala de Paul Dixon em seu artigo ―Adão e Eva de acordo com Eça e 
Machado‖212 quando explica que 
 
Machado parece interessado em uma lógica mais 
binária, pois em sua estória Deus cria deliciosas 
alternativas como melhorias editoriais. Esta 
visão cósmica composta de opostos balanceados 
é a mesma que Machado, notoriamente, oferecerá 
em seu romance Dom Casmurro, onde a vida é 
uma ópera, em que a música foi escrita pelo Diabo 
e o libreto por Deus. 213 (DIXON, 2016, 166 – 
tradução e grifos meus) 
 
Nesse sentido, conforme argumenta Dixon, ―[a] estória insiste na 
doçura da vida. Para seguir a lógica do relato da estória da criação, 
somos estimulados a reconhecer que, sim, a terra tem suas ervas 
 
212 DIXτσ, Paul. ―Adam and Eve according to Eça and Machado.‖ Revista de 
Estudos Literários, vol. 6, p. 157-173, 2016. 
213 σo original: ―Machado seems interested in a more binary logic, for in his 
story God creates delicious alternatives as editorial improvements. This cosmic 
vision composed of balanced opposites is the same one that Machado will 
famously offer in the novel Dom Casmurro, where life is an opera, in which the 
music has been composed by the devil and the libretto by God.‖. 
 114 
 
daninhas, mas que também possui doces e agradáveis frutos.‖214. Além 
desse ponto, gostaria de ressaltar alguns outros. 
Em primeiro lugar, conforme assinalamos no tópico sobre a 
Fortuna Crítica, Coutinho confunde as opiniões da personagem com as 
do autor, atribuindo aquilo que o sr. Veloso narra àquilo que Machado 
de Assis, pessoa física, pensa sobre o mundo. Em segundo lugar, 
Coutinho parece não ter visto aquilo que acabamos de assinalar no final 
do parágrafo anterior ao parêntese, isto é, que o conto prossegue por 
mais algumas linhas e que, nelas o sr. Veloso desmente toda a sua 
narrativa, e, além do mais, afirma que ―nada disso aconteceu‖, e que ―se 
tivesse acontecido, não estaríamos aqui saboreando este doce‖. Nesse 
sentido, conforme aponta Paul Dixon em seu mencionado artigo sobre o 
conto, ―[o] magistrado é apenas um dos muitos narradores 
problemáticos que encontramos em Machado de Assis, que se envolve 
em uma versão do paradoxo do mentiroso. Essencialmente, o narrador 
nos diz que ele é um mentiroso, nos deixando, enquanto receptores, em 
uma posição impossível, onde devemos acreditar nele a fim de 
desacreditar nele, ou vice-versa.‖215. Em terceiro lugar, o problema 
levantado pelo conto não parece ser acerca da dicotomia entre Bem e 
Mal, mas sobre a dicotomia entre ―obediência cega‖ e ―curiosidade‖216, 
cuja polaridade parece estar invertida em relação à concepção cristã – 
sendo a ―obediência cega‖ algo ruim e a ―curiosidade‖ uma coisa boa –, 
uma vez que, no conto, pelo que podemos ver, o casal só alcança o Céu 
por obedecer cegamente àquilo que Deus lhes havia ordenado, fazendo 
ouvidos moucos até para as mais belas promessas da Serpe (―Realeza, 
 
214 σo original: ―The story insists on life‟s sweetness. To follow the logic of the 
story‟s account of the creation, we are prodded into acknowledging that, yes, 
the earth has its noxious weeds, but it also has its sweet and pleasant fruits.‖ 
(DIXON, 2016, p. 169 – tradução minha) 
215 σo original: ―The magistrate is just one of many problematic narrators found 
in Machado de Assis, who engage in a version of the liar paradox. Essentially, 
the narrator tells us that he is a liar, leaving us as receptors in an impossible 
position, where we must believe him in order to disbelieve him, or vice versa‖ 
(DIXON, 2016, p. 168 – tradução minha). 
216 Vale dizer que o conto está repleto de pessoas curiosas. O conviva adjetivado 
de ―grande lambareiro‖, que quer saber qual é o doce; os outros convidados, que 
querem saber se a culpa era de Adão ou de Eva; o Frei Bento, que parece estar 
ávido por ouvir a narrativa do sr. Veloso; bem como o próprio leitor, parte 
fundamental da narrativa, que prossegue sua leitura para ver como as coisas se 
passam. 
 115 
 
poesia, divindade, tudo trocaspor uma estulta obediência.‖), coisa que, 
como sabemos, na narrativa bíblica acontece de forma diversa. 
No conto, entretanto, a curiosidade (e, por conseguinte, a 
desobediência) parece(m) ser tida(s) como algo bom, pois é a partir 
dela(s) que nasce a humanidade e, com ela, suas benesses, tendo em 
vista que se alcançasse diretamente o Céu, a ―eterna bem-aventurança‖, 
o casal não procriaria, o que acarretaria a inexistência da humanidade, 
bem como a inexistência de todas as coisas boas de nosso mundo. Nesse 
sentido, Paul Dixon faz uma interpretação semelhante (ou seria eu que 
faço uma interpretação parecida com a dele?). De acordo com o autor, 
―Ao eliminar o pecado original, a estória de Machado problematiza 
radicalmente a noção de culpabilidade, que é uma característica tão 
proeminente da compreensão tradicional de Gênesis. O texto parece 
clamar ao leitor que considere a narrativa em uma luz totalmente 
diferente.‖217. Conforme argumenta o autor, 
 
De acordo com os ensinamentos bíblicos, todos os 
humanos são descendentes de Adão e Eva. Mas, 
se, como o magistrado disse, os primeiros pais 
foram removidos da terra por sua obediência, 
diretamente elevados à sua recompensa celestial e 
escaparam do plano terrestre, onde isso deixa a 
raça humana? Onde de fato deixa os convidados 
da soirée (reunião) na estória, para não mencionar 
a nós enquanto leitores? Como podemos todos 
estar vivos e na terra, quando a terra despovoada 
supostamente deveria ter sido entregue aos 
animais ferozes e às plantas nocivas? 218 (DIXON, 
2016, p. 167-168 – tradução minha) 
 
217 σo original: ―By eliminating the original sin, Machado‟s story radically 
problematizes the notion of culpability, which is such a prominent feature of the 
traditional understanding of Genesis. The text seems to call for the reader to 
consider the narrative in an entirely different light.” (DIXON, 2016, p. 167 – 
tradução minha). 
218 σo original: ―According to Biblical teachings, all humans are descendants of 
Adam and Eve. But if as the magistrate has said the first parents were removed 
from the earth for their obedience, directly elevated to their celestial reward 
and bypassing the terrestrial plane, where does that leave the human race? 
Where indeed does it leave the guests at the soirée in the story, not to mention 
us as readers? How can we all be alive and on earth, when the unpopulated 
earth was supposed to have been turned over to ferocious animals and noxious 
plants?”. 
 116 
 
 
σo que tange à ―ideia fixa em Machado‖ de que ―o mundo era o 
domínio do diabo, que regula as ações e os caracteres dos homens‖, 
apontada por Coutinho, pode-se dizer que, aqui, ela se aplica somente 
em parte, tendo em vista que embora o mundo seja ―domínio do diabo‖, 
uma vez que ele mesmo o fez, não é ele, no entanto, que ―regula as 
ações e os caracteres dos homens‖. Tornarei a essa assertiva quando 
estiver falando da ―ópera‖ em Dom Casmurro. Tecidas estas 
considerações, podemos fechar este parêntese e voltar agora a discutir as 
características de nossa personagem.) 
Conforme assinalei em estudo anterior219, é interessante perceber 
que, diferentemente de ―A igreja do Diabo‖, neste conto, assim como 
nos Evangelhos, não encontramos uma descrição física do Diabo220, mas 
uma descrição de suas ações e daquilo que ele é capaz de fazer ou, 
melhor dizendo, de seus poderes. Aqui falo em poderes no sentido de 
poder criador, tal como aquele que na Bíblia221 e no Catecismo222 é 
imputado a Deus, isto é, o poder de criação ex nihilo, de criar a partir do 
nada. Ligado a isso, é preciso notar que, de forma semelhante ao conto 
anterior, o Diabo está relacionado a tudo que é considerado mal e 
nefasto, isto é, às trevas, às tempestades e furacões, aos vegetais sem 
fruto nem flor e que são venenosos; aos animais peçonhentos, etc. 
Também é válido chamar a atenção para a criação do casal, ambos 
criados ―sem alma, que o Tinhoso não podia dar, e só com ruins 
instintos.‖. 
Prosseguindo na narrativa, lemos que o ―Tinhoso ficou danado‖ 
quando soube que o casal havia sido transportado para o jardim; e, logo 
em seguida, temos uma constatação que considero deveras pertinente e 
interessante, a saber, que o Diabo ―não podia ir ao paraíso, onde tudo lhe 
era avesso‖, e que não ―chegaria a lutar com o Senhor‖. τra, tendo em 
vista que em momento algum é expresso que o Diabo seja o anjo caído 
que provocou a ―revolta no céu‖ e que levou seus anjos consigo ou que 
seja realmente o inimigo de Deus – embora, claro, as duas coisas 
 
219 Cf. PIERI, 2016, p. 61 e ss. 
220 Assim como não encontramos uma descrição física de Deus ou de Jesus em 
toda a Bíblia. 
221 Cf. Gênesis 1. 
222 De acordo com o §31κ do CATECISMτ (1λλκ, p. κ5), ―Nenhuma criatura 
tem o poder infinito que é necessário para „criar‟ no sentido próprio da 
palavra, isto é, produzir dar o ser àquilo que não o tinha de modo algum 
(chamar à existência „ex nihilo‟).‖. 
 117 
 
possam ser inferidas levando-se em conta não apenas as narrativas 
bíblicas, mas todo o histórico que pesa no pensamento ocidental –; 
entretanto, ainda assim, gostaria de manter o foco na materialidade do 
discurso. Conforme já argumentei em estudo anterior, ―se pensarmos na 
tradição católica, o Diabo não poderia ir ao Paraíso por ordem divina, 
por lhe ser proibido.”223. Aqui, no entanto, não é o Senhor quem o 
proíbe, mas a própria aversão do Diabo, isto é, o seu próprio sentimento 
de contrariedade àquele lugar que o mantém de fora e o faz enviar uma 
emissária. Também cabe chamar a atenção para o fato, bem apontado 
por Ferraz (2008), de que ele e sua emissária, a serpente, diferentemente 
do que dá a entender o Livro do Apocalipse224 não são a mesma pessoa, 
mas dois seres distintos. 
Dito isto, passemos à suposta ou, pelo menos, pressuposta 
inimizade entre Deus e o Diabo. Chamo a inimizade de suposta (e abro a 
possibilidade de pressuposição), pois, conforme dito, em nenhum 
momento ela é expressa verbalmente, embora possamos observar certo 
antagonismo, certo contraste entre as personagens. Claro que a 
possibilidade existe – isto é, se novamente for levado em conta o 
histórico que pesa sobre o Diabo –, mas, textualmente falando, a 
recíproca parece não ser verdadeira, pois o que podemos observar no 
conto é que o Diabo, e apenas ele, parece trazer para si essa condição, 
uma vez que a criação, conforme narrada pelo sr. Veloso, é feita a 
quatro mãos, com Deus deixando as mãos do Diabo livres e ―cuidando 
somente de corrigir ou atenuar a obra, a fim de que ao próprio mal não 
ficasse a desesperança da salvação ou do benefício‖. σesse sentido, 
Deus aparece muito mais como ―um mestre que conserta, isto é, que 
corrige as falhas na obra de seu pupilo do que especificamente como seu 
[do Diabo] inimigo.‖225. 
Por fim, outro ponto a ser observado é o fato de que, aqui, o 
Diabo não é o ―grande inimigo da humanidade‖, o grande 
 
223 PIERI, 2016, p. 64 – itálicos no original. 
224 σo qual se lê o seguinte: ―Foi expulso o grande Dragão, a antiga serpente, 
o chamado Diabo ou Satanás, sedutor de toda a terra habitada — foi expulso 
para a terra, e seus Anjos foram expulsos com ele.‖ (Ap 12:λ – grifo meu) 
225 PIERI, 2016, p. 64. Veremos adiante, quando for a vez do capítulo IX de 
Dom Casmurro, que, embora Deus também tenha sua parte na criação, as coisas 
se passam de forma diferente. 
 118 
 
―adversário‖226 dos homens, como se era de esperar. É possível perceber 
isso na medida em que, em primeiro lugar, a criação do casal é coisa 
sua, ambos criados quase que ―à sua imagem e semelhança‖ (e, 
posteriormente, ―melhorados‖ por Deus); em segundo lugar e em 
extensão ao dito, seu sentimento para com o casal é mais de posse do 
que de ódio ou de inveja, conforme aventam algumas das hipóteses 
cristãs sobre o motivo que o levou a fazer o casal cair emtentação. 
Assim, quando o Tinhoso enviou sua emissária para fazê-los sucumbir, 
sua intenção foi a de reaver o que, ―por direito‖, deveria ser seu. 
 
3.2 Crônicas infernais: 
 
3.2.1 Um breve caso de possessão – Crônica de 5 de outubro de 1885 
 
―Vi o meu corpo sentado e rindo. 
Parei, recuei, avancei e disse-lhe que 
era meu, que, se estava ocupado por 
alguém, esse alguém que saísse e mo 
restituísse.‖ (Machado de Assis) 
 
A crônica que ora veremos foi originalmente publicada na série 
de croniquetas da Gazeta de Notícias intitulada ―Balas de Estalo‖, na 
qual, conforme explica R. Magalhães Jr. , ―vários colaboradores se 
alternavam, sob vários pseudônimos‖227. Nessa seção da Gazeta, ainda 
segundo o biógrafo, Machado de Assis assinava com o pseudônimo de 
Lélio, ―personagem da comédia italiana naturalizado por Molière em 
L‟Étourdi, misto de audácia e estouvamento‖228. Além do uso do Diabo 
na condição de personagem e de ser praticamente um conto, devido ao 
seu teor narrativo, talvez o que mais chame atenção nessa crônica é o 
tom jocoso utilizado pelo autor para com o espiritismo, algo que acaba 
por se tornar comum em sua pena de cronista229. Mas, vejamos o que ele 
diz. 
 
226 STN (ou Shatan) em hebraico significa ―adversário‖; diabolos, por sua vez, 
significa ―acusador‖ ou ―difamador‖. Para referências sobre a etimologia dos 
nomes de Satã, cf. nota de rodapé n. 27. 
227 MAGALHÃES JR., 2008a, p. 61. 
228 MAGALHÃES JR., 2008a, p. 61. 
229 Pode o leitor encontrar não apenas opiniões semelhantes, mas também o 
mesmo tom jocoso nas seguintes crônicas: 11 de outubro de 1885 (Balas de 
Estalo); 19 de julho de 1888 (Bons Dias!); 7 de junho de 1889 (Bons Dias!), 29 
de agosto de 1889 (Bons Dias!); 3 de julho de 1892 (A semana); 2 de outubro de 
 119 
 
Ele inicia a sua crônica afirmando que os leitores não irão 
adivinhar onde ele estava na última sexta-feira, para, logo em seguida, 
afirmar que estava ―na sala da Federação Espírita Brasileira‖, onde teria 
ouvido uma conferência sobre o espiritismo. O cronista supõe, então, 
além da surpresa de seus leitores, também a surpresa do pessoal da 
própria Federação, que não o viu e nem o havia convidado. Ele explica o 
motivo de sua ida dizendo que, desde que havia lido em um artigo de 
um ilustre amigo seu ―a lista das pessoas eminentes que na Europa 
acreditam no espiritismo‖, começara a duvidar de sua própria dúvida. 
Assim, estando em casa, disse consigo ―dentro d‘alma, que se [lh]e 
fosse dado ir em espírito à sala da Federação, assistir à conferência, 
jurava converter-[s]e à doutrina nova.‖. Dito e feito. τ cronista, de 
repente, sente ―uma coisa subir-[lh]e pelas pernas acima, enquanto outra 
descia pela espinha abaixo‖, foi quando percebeu que estava no ar como 
um espírito. Então, ele voa até a sala da conferência e assiste à palestra, 
na qual, conforme relata o cronista, o 
 
orador combateu as religiões do passado, que têm 
de ser substituídas todas pelo espiritismo, e 
mostrou que as concepções delas não podem 
mais ser admitidas, por não permiti-lo a 
instrução do homem; tal é, por exemplo, a 
existência do diabo. Quando ouvi isto, acreditei 
deveras. Mandei o diabo ao diabo, e aceitei a 
doutrina nova, como a última e definitiva. 
(MACHADO DE ASSIS, 1994, v. III, p.473 – 
grifo meu) 
 
Logo após, para não ser percebido, ele sai de mansinho, pelo 
buraco da fechadura. Ao chegar em casa, quando vai retornar ao seu 
corpo, ele o vê ―sentado e rindo‖. Percebe, então, que seu corpo está 
ocupado e pede a quem quer que seja que o esteja ocupando que o 
restitua logo, e o ocupante lhe responde: 
 
— Já lhe restituo o corpo. Nem entrei nele senão 
para descansar um bocadinho, coisa rara, agora 
que ando a sós... 
— Mas quem é você? 
 
1892 (A Semana); 20 de agosto de 1893 (A Semana); 20 de maio de 1894 (A 
Semana); 23 de setembro de 1894 (A Semana); 27 de outubro de 1895 (A 
Semana). 
 120 
 
— Sou o diabo, para o servir. 
— Impossível! Você é uma concepção do 
passado, que o homem... 
— Do passado, é certo. Concepção vá ele! Lá 
porque estão outros no poder, e tiram-me o 
emprego, que não era de confiança, não é motivo 
para dizer-me nomes. 
— Mas Allan-Kardec... (MACHADO DE ASSIS, 
1994, v. III, p.473-474 – grifos meus) 
 
Em seguida, o Diabo levanta-se e dirige-se à mesa, ―onde 
estavam as folhas do dia‖. Ele pega uma das folhas, na qual constava ―o 
anúncio de um medicamento novo, o rábano iodado‖ e mostra ao 
cronista. Este lê a declaração que consta no alto do anúncio, que dizia 
em letras grandes: ―σão mais óleo de fígado de bacalhau‖. Foi aí que o 
Diabo leu a ele ―que o rábano curava todas as doenças que o óleo de 
fígado já não podia curar‖, coisa, que, segundo o cronista, é a ―pretensão 
de todo medicamento novo‖ e pondera que talvez com isso o Diabo 
quisesse fazer ―alguma alusão ao espiritismo‖. Antes de o Diabo 
devolver-lhe o corpo, eles se despedem ―como amigos velhos‖. 
Conforme dito, essa crônica talvez chame mais atenção pelo que 
diz acerca do espiritismo do que sobre o Diabo em si, afinal, pelo teor 
da conversação e do parágrafo final fica patente que a intenção é discutir 
(e satirizar) a pretensão da ―doutrina nova‖. σo entanto, ainda assim, 
podemos encontrar nela algumas características atribuídas à nossa 
personagem. A mais chamativa é a ―espiritualidade‖ do Diabo (ou 
deveria dizer sua falta de materialidade?), isto é, sua capacidade de 
entrar no (ou de possuir o) corpo do cronista-narrador. No entanto, 
diferentemente do que se esperaria que acontecesse, como nos casos 
(comuns?) de possessão – em que a personalidade do possuído é 
suprimida e resta-lhe apenas a agressividade juntamente com uma 
espécie de loucura ou transe, além de uma força descomunal – temos 
aqui a situação incomum de um Diabo bastante polido e cordial 
conversando com o dono do corpo e pedindo-lhe um pouco de 
paciência, pois já irá devolvê-lo. 
Outra característica que se pode observar na crônica é o riso230, 
por três vezes mencionado, embora a última faça menção a um sorriso 
 
230 Conforme explica George Minois em sua História do Riso e do Escárnio 
(2003, p. 111), o cristianismo, ―religião séria por excelência‖ – influenciado 
principalmente pelas concepções dos ―pais da Igreja‖ – teria visto no riso uma 
manifestação diabólica e uma expressão da decadência humana. Para mais 
 121 
 
triste (―o diabo sorriu tristemente‖). Por fim, também é preciso perceber 
que, aqui, o Diabo não parece ser o ―adversário‖ de Deus, mas seu servo 
(ou empregado, pelo menos), uma vez que ele fala em ―perder o 
emprego‖. Essa concepção de que o Diabo trabalha para Deus, embora 
não seja nova na história do Diabo, é diferente da que vimos nos dois 
contos abordados anteriormente. Digo isso, pois existem algumas 
vertentes no pensamento e na cultura popular, não de todo 
contraditórias, acerca da posição do Diabo em relação a Deus e à 
humanidade. Uma delas é que, sendo o adversário de Deus, ele faz de 
tudo para afastar as pessoas da ―bem-aventurança‖ pelo simples prazer 
de levá-las à perdição; uma variante dessa concepção, é que o Diabo 
agiria dessa forma, porém, com a devida permissão de Deus para testar 
as pessoas, para ver se elas resistem à tentação; ainda outra concepção, 
uma espécie de variante desta última (ou vice-versa), é que o Diabo 
agiria dessa forma a mando de Deus, isto é, ele é executor da ordem 
divina; e, outra ainda, é que o Diabo, no inferno, pune os pecadores 
(embora ele mesmo também esteja sendo punido lá). Vale dizer que 
existe um limiar muito estreito entre todas elas, e muitas vezes elas se 
confundem. Nesse sentido, é interessante trazer as palavras de Espinosa, 
filósofo holandês seiscentista, para quem parecia absurdo imaginar um 
Diabo 
 
que, contra a vontade de Deus, arma ciladas e 
ilude muitoshomens (raramente bons, sem 
dúvida), os quais Deus, em consequência, entrega 
a esse senhor do mal para serem torturados por 
toda a eternidade. A justiça divina, por 
conseguinte, permite ao Diabo enganar os homens 
e permanecer impune, mas de maneira alguma 
permite que os homens fiquem impunes, os quais 
foram miseravelmente enganados e apanhados na 
armadilha pelo mesmo Diabo. (ESPINOSA apud 
LINK 1998, p. 21) 
 
 Luther Link, logo em seguida, comenta que Espinosa ―indica 
uma característica definidora do Diabo: é a ele que Deus entrega os 
 
informações sobre o riso como manifestação diabólica, cf. o quarto capítulo – 
intitulado ―A Diabolização do Riso na Alta Idade Média – Jesus nunca riu‖ – do 
supracitado livro de Minois. 
 122 
 
pecadores. Por inferência, o Diabo é usado por Deus, trabalha para Deus 
e, em certo sentido, não está em conflito com ele.‖231. 
 
3.2.2 O Evangelho segundo o Diabo – O Sermão do Diabo (1892) 
 
―σem sempre respondo por papéis 
velhos: mas aqui está um que parece 
autêntico; e, se o não é, vale pelo texto, 
que é substancial. É um pedaço do 
evangelho do Diabo, justamente um 
sermão da montanha, à maneira de São 
Mateus.‖ (Machado de Assis) 
 
σossa próxima crônica traz ―um pedaço do evangelho do Diabo, 
justamente um sermão da montanha, à maneira de São Mateus.‖. 
Originalmente publicada no jornal A Semana, no dia 4 de setembro de 
1892, esta crônica foi posteriormente anexada ao livro Páginas 
Recolhidas, publicado em 1899. Diferentemente da crônica anterior, esta 
crônica não ocorre especificamente em forma de narrativa232, embora 
seja possível dizer que há nela duas histórias (ou estórias): a do 
recebimento do Sermão do Diabo pelo cronista e a de quando o Diabo 
se apresentou no Corcovado para trazer as ―boas novas‖ ao povo do Rio 
de Janeiro. 
Esta crônica, conforme bem observado pelas professoras Vera 
Casa Nova (2008) e Aurora G. R. Alvarez (2009), mostra o século XIX 
sob o ponto de vista de Machado de Assis, no sentido de que nos 
―aforismos do sermão incluem-se probabilidades que podem e devem 
ser integradas num sistema conceitual. Trata-se de opiniões do narrador-
autor sobre o mundo e a doxa.‖233. O que se doutrina na crônica, explica 
a professora Alvarez, ―é a concepção ideológica de que o sucesso ocorre 
devido à falta de escrúpulos, à ganância, à má-fé nos negócios; enfim, 
todas as qualidades que enformam o homem do mundo capitalista.‖234. 
No entanto, ainda nas palavras dessa professora, é preciso notar 
 
a ironia perpassando a fala desse narrador: ao 
mesmo tempo em que afirma não ter nada com 
 
231 LINK, 1998, p. 21. 
232 Sendo lida, inclusive, como o avesso de uma narrativa, conforme a proposta 
da professora Vera Casa Nova (2008). 
233 CASA NOVA, 2008, p. 181. 
234 ALVAREZ, 2009, p. 396. 
 123 
 
tais ―papeis‖, vale-se deles para desferir a sua 
crítica contundente. É o jogo da ironia que 
começa a se articular no texto, criando uma 
confiabilidade de que ele, narrador, não é 
―responsável‖ por aquilo que será dito, mas, ao 
mesmo tempo, provoca o outro, as ―almas 
católicas‖, com uma advertência. (ALVAREZ, 
2009, p. 394) 
 
Além disso, ainda seguindo a argumentação de Alvarez, nesse 
sermão, ―reconstrói-se um ethos que critica o legado ideológico do 
homem do final do século XIX, estabelecendo um diálogo com as 
doutrinas do cristianismo, desvirtuado, muitas vezes, nas ações 
burguesas.‖235. Assim, prossegue ela um pouco adiante, ―[g]raças à 
ambivalência da paródia, o eu assimila a alteridade, reinventando-a, para 
compreender o mundo que o cerca. Dessa forma, a voz narrativa 
reproduz o discurso que assimila seu momento histórico, revelando o 
descompasso entre a retórica e as práticas da burguesia.‖236 . Em certa 
medida, além disso, talvez seja possível pensar no ―Sermão‖ como 
assinalando o momento de ruptura das relações paternalistas (muito bem 
apontadas por Roberto Schwarz em Ao vencedor as batatas) – isto é, 
baseada na escravidão e nas relações de dependência e de favor para 
com as classes mais baixas (tanto brancos quanto ex-escravos) –, para a 
lógica do capitalismo, ou seja, a lógica de exploração tanto mercantil 
quanto da mão-de-obra proletária. 
Mas, deixemos as considerações sobre a crônica de um modo 
geral e voltemos nossos olhos ao tema deste capítulo, isto é, a forma 
como o Diabo é apresentado nos escritos machadianos. Textualmente 
falando, nessa crônica temos poucas descrições das características da 
personagem. Diz-se apenas que ele, o Diabo, é ―alto‖, ―magro‖, que tem 
―barbícula ao queixo‖ e que possui um ―ar de Mefistófeles‖. Embora, 
conforme propõe a professora Casa Nova, o sinal da cruz que o cronista 
diz ter feito seja uma espécie de ―gesto teatral‖237, dele é possível inferir 
outra característica da personagem, característica bastante presente no 
imaginário popular, que é a de fazer o Diabo desaparecer com um 
simples esboço desse sinal. Outra característica que não é explicitamente 
referida, mas que é possível de ser observada, seria a eloquência do 
Diabo que vem à luz a partir de sua retórica. 
 
235 ALVAREZ, 2009, p. 400. 
236 ALVAREZ, 2009, p. 400 – negrito no original. 
237 CASA NOVA, 2008, p. 182. 
 124 
 
Além disso, ao desclassificar o discurso da igreja e exaltar os 
pecados, conforme bem aponta a professora Casa σova, ―o discurso do 
Diabo tenta desclassificar a influência divina. Em seu sermão, o Diabo 
trabalha com a semelhança, via diferença. Ou seja, a retórica é 
semelhante à do Evangelho e a argumentação é diferente, por ser 
contrária ao que é proposto pelo discurso cristão.‖238. Nesse sentido, 
assim como em ―A igreja do Diabo‖, a personagem desta crônica pode 
ser assinalada como um espírito de negação. 
 
3.3 Romance diabólico: 
 
3.3.1 O mundo inteiro é um palco – Dom Casmurro. (1899) 
 
―τ cara mais underground que eu 
conheço é o Diabo,// Que no inferno 
toca cover das canções celestiais. // 
Com sua banda formada só por anjos 
decaídos // A galera pega fogo quando 
rolam os festivais.‖ (Zeca Baleiro) 
 
Nosso último texto, diferentemente de todos os outros, não veio a 
lume sozinho, mas como parte de um dos mais discutidos romances de 
Machado de Assis, a saber, Dom Casmurro, publicado em 1899 pela 
Editora Garnier239. Trata-se aqui do nono capítulo do referido romance, 
o qual é intitulado ―A ópera‖. Além do fato de trazer a personagem-tema 
deste estudo, o capítulo é interessante na medida em que apresenta uma 
espécie de resumo do livro, tendo em vista que Bento Santiago, o 
Bentinho, aceitando a teoria do tenor Marcolini de que ―a vida é uma 
ópera‖, declara no capítulo XI que sua ―vida se casa muito bem à 
definição‖, pois começou cantando ―um duo terníssimo, depois um trio, 
depois um quatuor…‖. 
Somos apresentados à teoria ainda no pequeno capítulo VIII, 
quando Bentinho resolve voltar a falar de certa tarde do mês de 
novembro, mencionada no terceiro capítulo. Diz ele ter sido nesse 
momento que principiou sua vida, pois, em suas palavras, ―tudo o que 
sucedera antes foi como o pintar e vestir das pessoas que tinham de 
entrar em cena, o acender das luzes, o preparo das rabecas, a sinfonia… 
 
238 CASA NOVA, 2008, p. 181. 
239 Segundo conta R. Magalhães Jr. (2008b), embora date de 1899, o romance só 
teria chegado ao Brasil em 1900 devido a um atraso na entrega. 
 125 
 
Agora é que eu ia começar a minha ópera.‖. É aí que ele fecha o capítulo 
e começa a explicar a teoria do velho tenor italiano. Segundo Marcolini, 
 
— A vida é uma ópera e uma grande ópera. O 
tenor e o barítono lutam pelo soprano, em 
presença do baixo e dos comprimários, quando 
não são o soprano e o contralto que lutam pelo 
tenor, em presença do mesmo baixo e dos mesmos 
comprimários. Há coros numerosos, muitos 
bailados,e a orquestração é excelente... 
(MACHADO DE ASSIS, 1994, v. I, p. 817) 
 
Após ouvir essa explicação, o jovem Bentinho esboça uma 
objeção e Marcolini, aparentemente, finge não ter entendido; após beber 
um gole de licor, pousou o cálice e começou a expor sua versão da 
criação. Segundo ele, 
 
Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem 
maestro de muito futuro, que aprendeu no 
conservatório do céu. Rival de Miguel, Rafael e 
Gabriel, não tolerava a precedência que eles 
tinham na distribuição dos prêmios. Pode ser 
também que a música em demasia doce e mística 
daqueles outros condiscípulos fosse aborrecível ao 
seu gênio essencialmente trágico. Tramou uma 
rebelião que foi descoberta a tempo, e ele 
expulso do conservatório. Tudo se teria passado 
sem mais nada, se Deus não houvesse escrito um 
libreto de ópera, do qual abrira mão, por entender 
que tal gênero de recreio era impróprio da sua 
eternidade. Satanás levou o manuscrito consigo 
para o inferno. Com o fim de mostrar que valia 
mais que os outros, — e acaso para reconciliar-
se com o céu, — compôs a partitura, e logo que 
a acabou foi levá-la ao Padre Eterno. 
(MACHADO DE ASSIS, 1994, v. I, p. 817-818 – 
grifos meus) 
 
O Senhor, entretanto, não quis ver nem ouvir a partitura. Satanás 
suplicou, mas sem obter sucesso. Deus, no entanto, ―cansado e cheio de 
misericórdia, consentiu em que a ópera fosse executada, mas fora do 
céu. Criou um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia 
inteira, com todas as partes, primárias e comprimárias, coros e 
 126 
 
bailarinos.‖. Apesar dos pedidos para que ouvisse alguns ensaios, o 
Padre Eterno, todavia, continuava impassível aos pedidos de Satanás, 
retorquindo que não queria saber de ensaios, que bastava-lhe ―haver 
composto o libreto‖ e, ainda, que estava disposto a dividir ―os direitos 
de autor‖. Esta recusa, segundo alguns, foi um mal, pois dela é que 
―resultaram alguns desconcertos que a audiência prévia e a colaboração 
amiga teriam evitado.‖, tendo em vista que há momentos em que ―o 
verso vai para a direita e a música, para a esquerda‖, embora também 
haja quem diga que ―nisso mesmo está a beleza da composição, fugindo 
à monotonia‖. τs amigos do maestro, isto é, de Satanás, dizem que 
―dificilmente se possa achar obra tão bem acabada‖; os do poeta, em 
contrapartida, ―[j]uram que o libreto foi sacrificado, que a partitura 
corrompeu o sentido da letra, e, posto que seja bonita em alguns lugares, 
e trabalhada com arte em outros, é absolutamente diversa e até contrária 
ao drama.‖, e ainda que ―[o] grotesco por exemplo, não está no texto do 
poeta‖. τ velho tenor, por fim, explica ainda que esta peça ―durará 
enquanto durar o teatro, não se podendo calcular em que tempo será ele 
demolido por utilidade astronômica‖ e que tanto o músico quanto o 
poeta ―recebem pontualmente os seus direitos autorais‖, este recebendo 
em ouro e aquele em papel. 
Antes de tratar especificamente de nossa personagem, vale a pena 
fazer um parêntese e chamar a atenção para certa semelhança entre o 
relato de Marcolini e aquele narrado pelo sr. Veloso, de ―Adão e Eva‖. 
O ponto de contato mais evidente seria a criação a quatro mãos, bem 
como a divisão no recebimento dos direitos autorais, que no caso de 
―Adão e Eva‖ o Diabo fica apenas com a terra e o que há nela. É preciso 
perceber, no entanto, que enquanto lá, em ―Adão e Eva‖, o mundo havia 
sido criado pelo Diabo e ―melhorado‖ por Deus, aqui, todavia, o palco 
foi criado pelo próprio Deus. Chamo a atenção para este pormenor pelo 
fato de que enquanto em ―Adão e Eva‖ os diversos males espalhados 
pela criação (tempestades, furacões, ervas venenosas, etc.) são obra do 
Diabo, na criação narrada por Marcolini, em contrapartida, tanto o palco 
quanto as personagens foram criados por Deus. 
O que deve ser levado em conta é que, de acordo com a narrativa 
do tenor italiano, os possíveis problemas que aparecem no teatro, os 
males espalhados pela criação, seriam de responsabilidade divina, 
enquanto que ao Diabo, pelo que parece, caberia apenas a parte moral, 
conforme sugere a passagem em que o narrador explica sobre os lugares 
―em que o verso vai para a direita e a música, para a esquerda‖, e 
fornece como exemplo o ―terceto do Éden, a ária de Abel, os coros da 
guilhotina e da escravidão.‖, possuindo todos eles em comum as 
 127 
 
transgressões da regra de conduta. Nesse sentido, o Diabo, com sua 
música, seria o responsável pelas maldades cometidas pela humanidade, 
mas não pelas calamidades que ocorrem mundo afora. Eis que é chegado 
o momento de tornar às palavras de Afrânio Coutinho, mencionadas 
acima, quando este afirma que ―era uma ideia fixa em Machado a de que 
o mundo era o domínio do diabo, que regula as ações e os caracteres dos 
homens.‖240. Aqui, tal como em ―Adão e Eva‖, ela não se aplica 
completamente. Neste texto, no entanto, temos uma inversão, pois, 
embora o mundo não seja especificamente o ―domínio do diabo‖, 
aparentemente, é ele quem ―regula as ações e os caracteres dos 
homens‖, uma vez que, conforme dizem os partidários do poeta, a 
partitura teria corrompido o sentido da letra e que o grotesco não estava 
no texto original. Nesse sentido, John Gledson parece ter opinião 
semelhante, pois, segundo o autor, ―Deus escreve o libreto, ou seja, o 
sentido oficial e superficial da peça, ao passo que Satã, o compositor, 
embora jamais seja capaz de se exprimir de maneira aberta e lógica, 
tem, não obstante, o controle do âmago da questão, a música.‖241. 
Vale dizer que, segundo Gledson, a doutrina schopenhaueriana teria 
afetado o ―mito‖ da criação expresso por Marcolini, e, conforme 
explica, ―nessa filosofia, a música está muito intimamente ligada com a 
vontade, a ‗coisa-em-si‘, que constitui a realidade fundamental do 
universo, e também se identifica com a dor, o sofrimento e o 
egoísmo.‖242. 
Sendo assim, ainda consoante às palavras de Gledson, ―sob a 
irrisão e a frivolidade da metáfora de Marcolini, jaz, como certamente 
em ‗τ delírio‘, a nota mais baixa do pessimismo filosófico. Quaisquer 
boas intenções serão inevitavelmente distorcidas pela natureza da 
própria humanidade, justamente como as palavras de Deus são abafadas 
pela música de Satã.‖243. Não posso dizer que concordo com a asserção 
de que ―quaisquer boas intenções serão inevitavelmente distorcidas pela 
natureza da própria humanidade‖, uma vez que ela possui a 
pressuposição metafísica de que somos inerentemente maus. Porém, no 
que tange à segunda parte, sobre as palavras de Deus serem abafadas 
pela música de Satanás, bom, quanto a isto nada tenho a acrescentar, 
pois o próprio texto machadiano nos permite afirmar. Feitas estas 
considerações, podemos prosseguir. 
 
240 COUTINHO, p. 101. 
241 GLEDSON, 1991, p. 151 – grifo meu. 
242 GLEDSON, 1991, p. 151. 
243 GLEDSON, 1991, p. 152. 
 128 
 
Voltando agora os olhos para aquilo que o texto diz 
explicitamente sobre a personagem, vale notar que, também nesta 
narrativa, não se diz nada acerca da aparência física de Satã, o que pode 
ser fruto da concisão narrativa, uma vez que fornecer essas 
características não faria diferença para a história de Marcolini; além 
disso, desta forma, cabe ao leitor imaginar sua própria concepção de 
Satã. Ainda assim, no entanto, encontramos algumas características 
fornecidas por Marcolini. Diz este último que Satanás, naquela época, 
era um ―jovem maestro‖; que estudou no ―conservatório do céu‖; que lá 
ele era ―rival de Miguel, Rafael e Gabriel‖; que possui um ―gênio 
essencialmente trágico‖; que ―[t]ramou uma rebelião‖ e, por conta dela, 
foi ―expulso do conservatório‖; que ele se considerava mais valoroso (e 
virtuoso) que seus rivais; que gostaria se ser readmitido no 
conservatório, isto é, de se reconciliar com o céu. 
Há ainda certas coisas que precisam de um pouco de reflexão 
para que sejam percebidas. Quando Marcolini menciona a rivalidade 
entre Satanás e os outros três, ele afirma queeste ―não tolerava a 
precedência que eles tinham na distribuição dos prêmios‖, e, logo em 
seguida, explica que sua intolerância para com os rivais poderia ser por 
conta de sua música demasiadamente doce e mística para ―seu gênio 
essencialmente trágico‖. τra, será que Satanás, assim como depois o fez 
Caim244, teria se sentido injustiçado com a leviana arbitrariedade divina? 
 
244 Cf. Gênesis 4. Nesse sentido, vale mencionar uma das mais belas passagens 
do romance Caim, de José Saramago, na qual, logo após o assassinato de seu 
irmão, Deus aparece para ele e ocorre o seguinte diálogo: ―Que fizeste com o 
teu irmão, perguntou, e caim respondeu com outra pergunta, Era eu o guarda-
costas de meu irmão, Mataste-o, Assim é, mas o primeiro culpado és tu, eu 
daria a vida pela vida dele se tu não tivesses destruído a minha, Quis pôr-te 
à prova, E tu quem és para pores à prova o que tu mesmo criaste, Sou o dono 
soberano de todas as coisas, E de todos os seres, dirás, mas não de mim nem da 
minha liberdade, Liberdade para matar, Como tu foste livre para deixar que 
eu matasse a abel quando estava na tua mão evitá-lo, bastaria que por um 
momento abandonasses a soberba da infalibilidade que partilhas com todos 
os outros deuses, bastaria que por um momento fosses realmente 
misericordioso, que aceitasses a minha oferenda com humildade, só porque 
não deverias atrever-te a recusá-la, os deuses, e tu como todos os outros, 
têm deveres para com aqueles a quem dizem ter criado, Esse discurso é 
sedicioso, É possível que o seja, mas garanto-te que, se eu fosse deus, todos os 
dias diria Abençoados sejam os que escolheram a sedição porque deles será o 
reino da terra, Sacrilégio, Será, mas em todo o caso nunca maior que o teu, 
que permitiste que abel morresse, Tu é que o mataste, Sim, é verdade, eu 
 129 
 
Teria ele vislumbrado um sistema de premiações corrompido, no qual o 
juiz julga favoravelmente apenas ao estilo que lhe apraz? Ou será que 
Satanás seria apenas um mero invejoso, que, embora pudesse ser um 
músico aplicado, ainda assim não conseguia ser tão bom quanto os 
outros três? Como essas questões não podem ser respondidas a contento 
apenas por aquilo que o texto diz e nem sem um pouco de 
arbitrariedade, uma vez que ambas são igualmente possíveis e 
plausíveis, deixo-as em aberto. 
 
3.4 Uno, múltiplo ou múltiplo e comum? 
 
Após observar cinco faces do Diabo na obra de nosso Bruxo do 
Cosme Velho, chegamos ao final deste capítulo. Cabe agora tentar 
responder, mesmo que parcialmente, uma das perguntas propostas no 
início desta dissertação, isto é, seria o diabo uno, múltiplo ou múltiplo e 
comum? Mesmo após a investigação, a pergunta ainda parece um pouco 
difícil de responder, uma vez que nem sempre contamos com descrições 
físicas da personagem. No entanto, farei um esforço para, pelo menos, 
deixar mais claro ao leitor a opinião que tenho das semelhanças e 
diferenças apontadas neste estudo. 
Vimos neste capítulo que as características do Diabo, quando 
descritas, nem sempre são exatamente iguais. Foi exatamente este o 
motivo que me levou a desconfiar de sua falta de unidade, no sentido de 
que ele poderia ser interpretado como diferentes personagens, apesar do 
nome comum. Façamos um pequeno balanço. 
A partir do que foi visto e levando em conta a falta de menção a 
algo que contradiga explicitamente, excetuando (talvez) quando aparece 
em forma não material e se ―apossa‖ do corpo do cronista-narrador, 
temos um Diabo que, aparentemente, possui uma forma humanoide, 
conservando sua forma angelical, por assim dizer. Além disso, embora 
vejamos o Diabo, tanto em ―A igreja do Diabo‖ quanto em ―τ sermão 
do Diabo‖, como um espírito de negação, não é possível afirmar que ele 
o seja nos três outros textos, apesar de demonstrar certo antagonismo em 
relação ao Padre Eterno. Enquanto nós o vemos fazer diferentes usos da 
retórica em ―A igreja do Diabo‖ e em ―τ sermão do Diabo‖ – sendo 
mais irônico no primeiro e mais cínico no segundo –, nos outros textos 
 
fui o braço executor, mas a sentença foi ditada por ti, O sangue que aí está 
não o fiz verter eu, caim podia ter escolhido entre o mal e o bem, se escolheu o 
mal pagará por isso, Tão ladrão é o que vai à vinha como aquele que fica a 
vigiar o guarda, disse caim [...]‖ (SARAMAGτ, 200λ, p. 34-35 – grifos meus) 
 130 
 
nós quase não o vemos tomar a palavra para si, o que não facilita traçar 
uma interpretação. Outro ponto interessante, porém divergente entre os 
textos, é o poder criador do Diabo, o qual só consta no conto ―Adão e 
Eva‖, pois, mesmo que em ―A Ópera‖ os direitos autorais da criação 
sejam compartilhados, ao Diabo cabe apenas a parte referente à música, 
isto é, o andamento das personagens. 
Ainda outro ponto a ser observado é o papel do Diabo em relação 
a Deus; este ponto é importante, pois é aí que as diferenças são mais 
perceptíveis. Enquanto em ―A igreja do Diabo‖ nós vemos um Diabo 
que é inimigo de Deus e (quase que) amigo da humanidade, tentando 
trazer todos para si a partir das benesses que poderia lhes prover245; em 
―Adão e Eva‖, por sua vez, vemos um Diabo que é, literalmente, o pai 
da humanidade, e que, apesar de antagônico e avesso a Deus, não é 
exatamente seu adversário, porquanto só haja briga se os dois lados 
estiverem dispostos; já na crônica de 5 de outubro de 1885, o Diabo 
parece ser um ex-empregado de Deus, que foi destituído de seu cargo e 
agora vaga pelo mundo sem ter muito o que fazer; em ―τ sermão do 
Diabo‖, ele aparece, realmente, não apenas como o opositor, isto é, 
como contrário a Deus, mas como o seu oposto, sua contraface, o outro 
lado da moeda; e, por fim, em ―A Ópera‖, o Diabo não era e nem se 
torna o oposto de Deus, ele estaria mais para uma espécie de ―gênio 
incompreendido e injustiçado‖, que é expulso por se rebelar contra a 
arbitrariedade de seu mestre, e que por fim acaba aceitando sua situação 
de degredo e de maestro desta grande ópera-bufa que é o mundo. 
Levando em conta esses aspectos, pode-se dizer que, embora 
encontremos algumas semelhanças, é possível dizer que não 
encontramos apenas um, mas alguns Diabos. Sendo assim, também é 
possível a afirmar que o Diabo, nos textos machadianos, é uma figura 
múltipla. Mas, será que ele é uma figura múltipla, no sentido de que, a 
cada vez, ele é alguém diferente ou será que ele é múltiplo e comum, no 
 
245 Certo, é preciso lembrar que o Diabo faz isso com o intuito de levá-los para o 
inferno, mas, como não sabemos exatamente o que lá se encontra – se apenas o 
vazio e o exílio da presença divina cantados por Milton ou se a infinidade de 
torturas cantada por Dante –, não é possível dizer se ―trocamos gato por lebre‖, 
como diria o ditado popular. No caso de Dante estar correto, ir para o inferno 
não seria uma boa alternativa, mas, em caso de a visão miltoniana a correta, 
talvez não houvesse um problema muito grande de escolher o inferno. No 
entanto, ao cabo de tudo, independente de qual inferno seja o ―verdadeiro‖, tudo 
parece se resumir à escolha de ―sofrer aqui‖ ou ―sofrer lá‖, embora o sofrimento 
de ―lá‖ seja por muito mais tempo. 
 131 
 
sentido de que, apesar das diferenças, tal como argumenta Luther Link, 
ele é ―uma máscara sem rosto‖, isto é, um ser que, apesar de sua forma 
proteica, mantém uma ―essência‖? Penso que, por ora, levando em conta 
o peso que o imaginário ocidental possui, é possível e bastante provável 
que a personagem seja a mesma, ou, para ser mais preciso, a mesma em 
―substância‖, no sentido dado por Luther Link. Sendo assim, podemos, 
sem receio, chamá-lo de múltiplo e comum. Todavia, é sempre válido 
lembrar que embora possamos dizer que é ―o mesmo em substância‖, 
isto é, que se trata da mesma personagem, não podemos afirmar que seja 
igual, pois, assim como o Mal, ele possuivárias formas. 
 
 132 
 
 
 
 133 
 
4 CAPÍTULO III: Machado de Assis e a tradição diabólica. 
 
―Grandeza significa: dar direção. – 
Nenhum rio é por si mesmo grande e 
abundante; é o fato de receber e levar 
adiante muitos afluentes que o torna 
assim. O mesmo sucede com todas as 
grandezas do espírito.‖ (Nietzsche) 
 
Agora que vimos de que forma Machado de Assis descreve o 
Diabo em seus textos, podemos adentrar em nosso próximo círculo 
infernal. Nele, iremos encontrar o Diabo de outros grandes nomes da 
Literatura Ocidental, como Dante Alighieri, Gil Vicente, John Milton, 
Johann W. von Goethe e, mais próximo de nós, Álvares de Azevedo. O 
intuito deste capítulo é comparar a descrição feita pelo nosso Bruxo do 
Cosme Velho com a descrição feita pelos mencionados escritores. Vale 
lembrar que a opção por tais autores se deu tanto pelo fato de que o 
autor de Dom Casmurro teria conhecido (e possivelmente sido 
influenciado por) suas obras, quanto por eles me serem mais 
―familiares‖. Segundo penso, Machado de Assis, juntamente com esses 
e diversos outros escritores, faz parte daquilo que chamei de tradição 
diabólica. Conforme mencionado, essa expressão tem a finalidade de 
abarcar a grande quantidade de autores/artistas da cultura ocidental cujo 
Diabo, de alguma forma ou em algum momento, se fez presente em 
sua(s) obra(s). Mas, o que me levou a falar em ―tradição diabólica‖ e por 
que vejo Machado de Assis inserido nessa tradição? 
Para responder a esta última pergunta, talvez bastasse apontar a 
epígrafe que encabeça este capítulo, na qual, com sua metáfora do rio e 
seus afluentes, Nietzsche comenta aquilo que entende por grandeza. De 
acordo com o filósofo, para que seja grandioso, é preciso que o 
pensador/escritor/artista seja alimentado por diversas fontes e que, ao 
fazê-lo, ele deve dar direção àquilo que traz em si. A meu ver, esse é 
justamente o caso de Machado de Assis, que recebeu as águas de 
diversos rios que compõem a cultura ocidental e a elas deu seu próprio 
rumo. Vale mencionar, no entanto, que nem todos os rios correm pela 
superfície. O que quero dizer é que embora o Diabo faça parte da cultura 
ocidental, seja por meio da religião cristã seja por meio das artes, ele 
não é muito aceito (ou lembrado) como tal. Assim, talvez seja possível 
continuar a metáfora e dizer que essa tradição diabólica é um rio 
subterrâneo que também alimenta esse imenso rio chamado cultura 
ocidental. Muitos, embora não todos, mergulharam nessas águas 
 134 
 
profundas e de lá voltaram para nos mostrar o que viram, seja por meio 
de pinturas, esculturas ou escrituras, como é o caso de nosso Bruxo. 
Mas, deixando a metáfora um pouco de lado, voltemos à primeira 
pergunta – o que me levou a falar em tradição diabólica –, pois ela pode 
nos ajudar a esclarecer tudo. Para respondê-la, gostaria de abordar as 
concepções de três autores acerca daquilo que costumeiramente 
chamamos tradição e que me instigaram a utilizar tal expressão. 
Um deles foi T. S. Eliot, com seu ensaio ―Tradição e talento 
individual‖, de 1919. Ao comentar sobre o grande apreço que 
comumente se tem sobre a inovação, a individualidade de um escritor, o 
autor explica que somente elas não bastam, pois, caso nos aproximemos 
de um poeta246 sem essas pré-concepções, talvez fosse possível perceber 
que ―não apenas o melhor mas também as passagens mais individuais de 
sua obra podem ser aquelas em que os poetas mortos, seus ancestrais, 
revelam mais vigorosamente sua imortalidade.‖247. Como veremos, esta 
opinião está em consonância com a de outros autores. No entanto, é 
válido explicar que para Eliot a tradição ―não pode ser herdada‖, e que 
―se alguém a deseja deve conquistá-la através de um grande esforço‖. 
Essa conquista da tradição, prossegue o autor, 
 
envolve, em primeiro lugar, o sentido histórico, 
que podemos considerar quase indispensável a 
alguém que pretenda continuar poeta depois dos 
vinte e cinco anos; e o sentido histórico implica 
a percepção, não apenas da caducidade do 
passado, mas de sua presença; o sentido 
histórico leva um homem a escrever não 
somente com a própria geração a que pertence 
em seus ossos, mas com um sentimento de que 
toda a literatura europeia desde Homero e, 
nela incluída, toda a literatura de seu próprio 
país têm uma existência simultânea e 
constituem uma ordem simultânea. (ELIOT, 
1989, 38-39 – grifos meus) 
 
Vale dizer que essa conquista da tradição não tem um sentido de 
sobrepujá-la, de deixá-la para trás; conquistá-la significa fazer parte 
dela, modificar sua configuração para que nela se possa adentrar. Assim, 
 
246 Embora Eliot o faça em um sentido mais estrito, aqui eu uso o termo ―poeta‖ 
em sentido lato. 
247 ELIOT, 1989, 38. 
 135 
 
para que faça parte da tradição, o escritor precisa estar atento não apenas 
ao seu tempo (às novidades) ou à sua própria individualidade (ao seu 
―gênio‖), mas também ao passado, não para rejeitá-lo como algo 
obsoleto, mas para incorporá-lo em sua própria obra, renovando-o. Para 
Eliot, o que torna um escritor tradicional é esse ―sentido histórico, que é 
o sentido tanto do atemporal quanto do temporal e do atemporal e do 
temporal reunidos‖248. Em outras palavras, tanto o que é efêmero quanto 
o que é perene devem fazer parte dessa combinação. Conforme explica o 
autor, esse sentido histórico é necessário, pois, 
 
Nenhum poeta, nenhum artista, tem sua 
significação completa sozinho. Seu significado e 
a apreciação que dele fazemos constituem a 
apreciação de sua relação com os poetas e os 
artistas mortos. Não se pode estimá-lo em si; é 
preciso situá-lo, para contraste e comparação, 
entre os mortos. (ELIOT, 1989, p. 39 – grifos 
meus) 
 
Essa explanação sobre a tradição nos leva, quase que diretamente, 
a outro autor que nos fornece uma visão semelhante à de Eliot; penso 
aqui em Fernando Pessoa, ou melhor, em um de seus heterônimos, a 
saber, Ricardo Reis. Embora não a nomeie neste texto, sua concepção de 
tradição, além de interessante, está em consonância com a que acabamos 
de ver. De acordo com o heterônimo pessoano, ―Deve haver, no mais 
pequeno poema de um poeta, qualquer coisa por onde se note que 
existiu Homero.‖249, afinal, prossegue ele, 
 
A novidade, em si mesma, nada significa, se 
não houver nela uma relação com o que a 
precedeu. Nem, propriamente, há novidade 
sem que haja essa relação. Saibamos distinguir o 
novo do estranho, o que, conhecendo o conhecido, 
o transforma e varia, e o que aparece de fora, sem 
conhecimento de coisa nenhuma. Entre os 
escritores que descendem com novidade da velha 
estirpe e os que aparecem por novos por pertencer 
 
248 ELIOT, 1989, 39. 
249 PESSOA, 1996. p.393. Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. 
Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e 
Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996. p.393. Disponível em: 
<http://arquivopessoa.net/textos/2902>. Acesso em: 14 jan. 2019. 
 136 
 
a uma estirpe incógnita há a mesma diferença que 
há entre o homem que nos dá uma sensação de 
novidade por frases novas que diz e o que nos dá 
uma sensação de novidade, por, falando mal nossa 
língua, nos dizer estropiadamente qualquer frase 
dela. (PESSOA, 1996, p.393 – grifo meu)250 
 
Nesse sentido, é possível dizer que a grandeza de um escritor só 
existe por aquilo que ele traz, ou melhor, que ela só existe na medida em 
que o escritor renova, pelo(s) novo(s) sentido(s) que dá, aquilo que traz 
da tradição, ou, para voltar à metáfora nitzscheana, pela direção que ele 
dá às águas que carrega em si. 
Apenas para finalizar esta breve explanação sobre o que quero 
dizer quando falo em tradição e o motivo que me fez utilizar essa 
expressão, gostaria de trazer ainda mais um autor, o qual me chamou a 
atenção não apenas pela mesma ideia expressa em outras palavras, mas 
também pela distância que há entre ele e os dois últimos,distância esta 
que é tanto temporal quanto geográfica. Tal autor é ninguém menos que 
o próprio Machado de Assis, em sua ―Introdução‖ ao livro Harmonias 
Errantes (1878), de Francisco de Castro. Nessa introdução, nosso autor 
explica ao jovem poeta que, independente dos rumos que seguirá a nova 
poesia (1870-80), é importante que essa nova geração não perca de vista 
 
o que ha [de] essencial e eterno nessa expressão 
da alma humana. Que a evolução natural das 
cousas modifique as feições, a parte externa, 
ninguem jamais o negará; mas ha alguma cousa 
que liga, atravez dos seculos, Homero e lord 
Byron, alguma cousa inalteravel, universal e 
comum, que fala a todos os homens e a todos os 
tempos. (MACHADO DE ASSIS, 1878, p. X – 
grifo meu)251 
 
Embora, assim como T. S. Eliot e Ricardo Reis, nosso escritor se 
referisse à poesia em um sentido mais específico, é possível ampliar o 
escopo para que o termo possa abranger toda a literatura, afinal, 
lembrando o que disse Ricardo Reis, não poderia haver novidade em 
literatura sem aquilo que a precedeu, isto é, não teríamos novas formas 
literárias, sejam elas poéticas ou romanescas, sem as formas anteriores. 
 
250 PESSOA, 1996. p.393. 
251 Mantive a grafia do original. 
 137 
 
E, afinal, o que é a grande literatura, senão um enorme diálogo, uma 
conversa infinita entre as várias obras que foram e as que ainda serão 
escritas? Foi por pensar justamente nesse grande diálogo, nessa 
conversa infinita que acabei por falar em tradição. Vale lembrar que esta 
tradição é diabólica, o que, a meu ver, torna a concepção (ou a 
conversa) um pouco mais restrita, tornando o círculo, ainda que seja 
grande, mais estreito. 
Dito isto, penso que esteja esclarecida a inserção de Machado de 
Assis nessa tradição, uma vez que sua obra dialoga – seja na forma de 
citação (direta ou indireta), seja na forma de alusão – com inúmeras 
outras que também se utilizaram do Diabo como uma personagem, a 
exemplificar pelas que aqui veremos. 
Apenas para situar o leitor, vale dizer que nossa jornada neste 
capítulo se inicia pela descrição do Diabo dos referidos autores e 
finaliza com a comparação entre eles e o(s) Diabo(s) machadiano(s). 
Feitas essas considerações, não mais nos detenhamos neste intróito, 
passemos logo ao próximo tópico. 
 
4.1 O Diabo em autores da tradição – ―Pois o demo não é de 
todos??!‖ 
 
―Explico ao senhor: o diabo vige dentro do 
homem, os crespos do homem – ou é o 
homem arruinado, ou o homem dos avessos. 
Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo 
nenhum. Nenhum! – é o que digo. O senhor 
aprova? Me declare tudo, franco – é alta 
mercê que me faz: e pedir posso, encarecido. 
Este caso – por estúrdio que me vejam – é 
de minha certa importância. Tomara não 
fosse... Mas, não diga que o senhor, assisado 
e instruído, que acredita na pessoa dele?! 
Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião 
compõe minha valia.‖ (Guimarães Rosa) 
 
4.1.1 ―Lo’mperador del doloroso regno‖ – O Lúcifer de Dante. 
 
―‗Vexilla regis prodeunt inferni 
verso di noi; però dinanzi mira‘, 
 138 
 
disse 'l maestro mio, ‗se tu 'l discerni‘.‖252 
(Dante Alighieri) 
 
O primeiro de nossos convivas deste festim diábólico é o Lúcifer 
de Dante. Mas, como falar acerca do ―imperador do doloroso reino‖ sem 
antes comentar, mesmo que de passagem, sobre o primeiro livro da 
Comédia dantesca? Missão praticamente impossível. Dividido em 34 
cantos (ou Introdução + 33), o primeiro livro da Divina Comédia traz 
uma descrição, um mapeamento da geografia desse grandioso lugar, 
esse imenso ―nada‖, que, nas palavras de τ. M. Carpeaux (comentando 
sobre o julgamento ―dos leitores de todos os séculos‖), é ―a parte mais 
‗interessante‘, mais humana do Cosmos dantesco‖253. É neste lugar que 
estão situados os mais diversos tipos de pecadores condenados pela 
justiça divina, ou, talvez fosse melhor dizer, pela pena galhofeira de 
Dante254. Vejamos, então, rapidamente de que forma o escritor 
florentino traça a topografia do Inferno. Antes de passar à geografia, um 
breve comentário sobre a obra. 
O poema, grosso modo, narra a passagem de Dante (a 
personagem) da perdição à salvação, isto é, desde uma vida cheia de 
vícios até o Paraíso. Ele se inicia com o poeta-personagem envolvido 
em uma ―selva escura‖, isto é, afastado da luz divina e imerso em 
pecados. Perdido nessa selva, o florentino se depara com três animais 
selvagens – um leopardo, um leão e uma loba255 –, os quais simbolizam 
três tipos de pecados: a incontinência, a violência e a fraude. Eis que, a 
 
252 ―Vexilla regis prodeunt inferni* / pra cá, portanto tu pra frente mira‖ / 
Começou o mestre meu, ―e bem discerne.‖. *―As bandeiras do rei do inferno 
avançam‖. Traduções de Ítalo Eugênio Mauro. 
253 CARPEAUX, 2011, p. 9. 
254 Digo isso, pois, conforme explicam alguns de seus comentadores (e também 
pelas notas de rodapé do tradutor para o português), o escritor florentino teria 
situado diversos de seus inimigos nos mais diferentes suplícios de seu 
―Inferno‖. Em seu texto ―Sobre a Divina Comédia‖, que serve de prefácio ao 
texto de Dante na edição utilizada para esta dissertação, Otto Maria Carpeaux 
afirma que ―σo fundo, a Comédia é um panfleto político como nenhum outro 
foi escrito, antes ou depois, uma tentativa de aprisionar nas ‗flamas cantantes 
das suas terzinas‘ os inimigos vitoriosos, o Papa e os seus aliados, os 
‗republicanos‘ dos ‗comuni‘.‖ (CARPEAUX, 2011, p. 13) 
255 Ítalo Eugênio Mauro, tradutor da edição utilizada, seguiu o original e 
traduziu os termos lonza, leone e lupa por onça, leão e loba. No entanto, ao 
traduzir fielmente os animais, perde-se o ―L‖ inicial de seus nomes, que parece 
ser uma alusão ao ―L‖ de Lúcifer. 
 139 
 
pedido de Beatriz (a musa de Dante), Virgílio (o poeta latino), aparece 
para salvá-lo e guiá-lo dali até o Purgatório – limite que lhe é imposto –, 
ponto em que ela passa a ser sua guia. Para chegar até lá, no entanto, é 
necessário que os viajantes passem antes pelo Inferno. 
Conforme explica Ítalo Eugênio Mauro em sua ―Introdução‖, o 
Inferno em que eles adentram ―é constituído por uma imensa cratera 
escavada nas profundezas do globo terrestre na queda do corpo do anjo 
rebelde expulso do Paraíso.‖256. Essa imensa cratera começa perto da 
―selva oscura‖ e vai se afinando até o centro da Terra. Dos portões de 
entrada – onde se encontra a tão famosa inscrição ―Deixai todas as 
esperanças, ó vós que aqui entrais‖ – até o último círculo, onde Lúcifer 
está localizado, o Inferno, tal como Dante o descreve, possui nove 
círculos e um Vestíbulo (Canto III). Este último, embora esteja situado 
depois dos portões infernais, fica antes do primeiro círculo, e nele estão 
os ―ignavos‖, aqueles que, por não terem se posicionado em vida, não 
pertencem nem ao Paraíso nem ao Inferno, isto é, foram rejeitados tanto 
por Deus quanto pelo Diabo. A partir daí, a divisão fica da seguinte 
forma. 
No 1º círculo (Canto IV) fica o Limbo, onde estão aqueles que, 
embora tenham sido bons em vida, não foram batizados e por isso não 
podem ir para o Paraíso. No 2º círculo (Canto V) fica o Vale dos 
Ventos, onde estão os luxuriosos. No 3º círculo (Canto VI) fica o Lago 
de Lama, onde estão os gulosos. No 4º círculo (Canto VII) ficam as 
Colinas de Rocha, onde estão os avaros e os pródigos. No 5º círculo 
(Cantos VII-VIII) fica o Rio Estige, onde estão os irados. Passado este 
círculo, chega-se à cidade de Dis/Dite (Lúcifer) onde se encontra o 6º 
círculo (Cantos IX-X) com o Cemitério de Fogo, no qual estão os 
hereges. No 7º círculo (Cantos XII-XVII) fica o Vale do Flegetonte, 
onde estão os violentos e bestiais; este círculo é dividido em três giros, 
no primeiro estão aqueles que pecaram contra o próximo (tiranos e 
assaltantes), no segundo os que pecaram contra si (suicidas e 
gastadores), e no terceiro os que pecaram contra Deus (blasfemos, 
sodomitas e usurários). No 8º círculo(Cantos XVIII-XXX) fica o 
Malebolge, onde estão os fraudadores; aqui também há uma divisão 
interna, sendo este círculo dividido em dez valas: na primeira estão os 
sedutores e rufiões; na segunda, os aduladores e lisonjeadores; na 
terceira, os simoníacos; na quarta, os magos e adivinhos; na quinta, os 
traficantes; na sexta, os hipócritas; na sétima, os ladrões; na oitava, os 
 
256 MAURO, 2011, p. 29. Vale dizer que, com isso, Dante sugere que a queda 
de Lúcifer e seus anjos tenha ocorrido após a criação do mundo. 
 140 
 
maus conselheiros; na nona, os cismáticos e intrigantes; e na décima, os 
falsários. No 9º círculo (Cantos XXXII-XXXIV), o último do Inferno, 
fica o Lago Cocito, um lago congelado onde estão os traidores; também 
aqui há uma divisão entre os danados, dispostos em quatro giros, 
conforme o seu pecado: no primeiro, Caína, os traidores de parentes; no 
segundo, Antenora, os traidores da pátria; no terceiro, Ptolomeia, os 
traidores de seus hóspedes; no quarto e último, Judeca (ou Giudeca), os 
traidores de seus benfeitores. Conforme dito, é aqui, no último giro do 
nono círculo (canto XXXIV), no centro da Terra, que encontramos o 
Diabo congelado da cintura para baixo. Vejamos agora de que forma 
Dante descreve ―o ser que teve tão belo semblante‖: 
 
E agora o rei do triste reino eu vejo, 
de meio peito do gelo montante; 
e mais com um gigante eu me cotejo 
 
que um braço seu co‘ um inteiro gigante; 
imagina o que dele é então o todo 
pra de tal parte não ser aberrante. 
 
Se belo foi quão feio ora é o seu modo, 
e contra o seu feitor ergueu a frente, 
só dele proceder deve o mal todo. 
 
Mas foi o meu assombro inda crescente 
quando três caras vi na sua cabeça: 
toda vermelha era a que tinha à frente, 
 
e das duas outras, cada qual egressa 
do meio do ombro, que em cima se ajeita 
de cada lado e junta-se com essa, 
 
branco-amarelo era cor da direita 
e, a da esquerda, a daquela gente estranha 
que chega de onde o Nilo ao vale deita. 
 
Um par de grandes asas acompanha 
cada uma, com tal ave consoantes: 
– vela de mar vira eu jamais tamanha – 
 
essas, sem pena, semelhavam antes 
às dos morcegos, e ele as abanava, 
assim que, co‘ os três ventos resultantes, 
 
 141 
 
as águas do Cocito congelava. 
Por seis olhos chorava, e dos três mentos 
sangrenta baba co‘ o pranto pingava. 
 
Em cada boca um pecador, com cruentos 
dentes, moía à feição de gramadeira, 
aos três prestando, de vez seus tormentos. 
(ALIGHIERI, XXXIV, v. 28-57 – grifos meus) 
 
Sintetizando, o Lúcifer de Dante está congelado da cintura para 
baixo; ele é gigantesco e horrendo (tanto quanto um dia já fora belo); 
possui uma cabeça com três faces (uma branca/amarela, uma vermelha e 
uma preta), cada qual com um par de olhos lacrimejantes e uma boca 
mastigando continuamente um pecador257 (Brutus, Cássio e Judas); há 
também, para cada face, um imenso par de asas sem penas, tal como a 
dos morcegos. Antes de prosseguir, gostaria de trazer alguns 
comentários dos estudiosos sobre alguns pontos. 
Conforme explica Peter Stanford, ―[e]mbora o Inferno de Dante 
apresente em certos momentos algumas imagens do que eram o inferno 
e a danação tradicionais, o tratamento que ele dá ao Diabo era muito 
pouco convencional para sua época.‖258. Ainda de acordo com este 
autor, o fato de o Diabo estar nos ―bastidores‖ de praticamente toda a 
narrativa gera um ―contraste com o Satã onipresente dos púlpitos 
medievais‖259; além disso, quando finalmente o encontramos, ―percebe-
se que dificilmente ele poderia ser equiparado com outra entidade 
diabólica, astuta e velhaca que está por trás de toda a histeria que 
ponteou a caça às bruxas.‖260. Nesse sentido, prossegue Stanford, pode-
se dizer que ―o Lúcifer de Dante é um vulcão extinto, que deixa em seu 
lugar um vazio trágico, ou quem sabe, ele é um personagem tolo e 
desvalido que, em lágrimas, se tornou prisioneiro do gelo.‖261. A opinião 
 
257 Os olhos lacrimejantes e a boca ruminante me parecem uma alusão à 
passagem do Evangelho segundo São Mateus, 13: 2κ. ―Lá haverá choro e ranger 
de dentes…‖. 
258 STANFORD, 2003, p. 256. 
259 STANFORD, 2003, p. 256. De acordo com o historiador Jeffrey Burton 
Russell, em seu Lúcifer: o Diabo na Idade Média, ―A ausência formal de 
Lúcifer nas grandes áreas da Comédia e do próprio Inferno indica o acordo de 
Dante com a teologia escolástica, limitando o papel do Diabo.‖ (RUSSELL, 
2003, p. 217) 
260 STANFORD, 2003, p. 256. 
261 STANFORD, 2003, p. 256. 
 142 
 
de Stanford faz coro à de Jeffrey Burton Russell, para quem o Diabo 
dantesco é ―mais patético e repulsivo do que assustador‖262. Segundo o 
historiador, no entanto, Dante teria apresentado um ―Lúcifer vazio, tolo 
e desprezível‖ a fim de mostrá-lo como ―um contraste fútil para a 
energia de Deus.‖263. 
Sua imobilidade, nesse sentido, também realça o contraste com 
Deus e seus anjos, uma vez que Deus, segundo a escolástica medieval, 
seria o equivalente ao ―primeiro motor imóvel‖ de Aristóteles; em 
outras palavras, enquanto Deus move o mundo mesmo estando 
―imóvel‖, Satanás, por sua vez, não é capaz de fazer nada além de 
chorar, bater suas gigantescas asas e mastigar os três piores 
pecadores264. J. B. Russell dirá que ―[a] imobilidade de Satanás é o 
oposto da mobilidade dos anjos e dos espíritos santificados, o ódio 
congelado dele oposto ao amor de Deus que move o mundo‖265. Outro 
contraponto interessante é sua imersão no gelo, pois enquanto Jesus foi 
―imergido até a cintura na água viva do Jordão‖, o Diabo, por sua vez, 
―está preso até a cintura no gelo mortal, água que está morta e enterrada, 
distinta das águas mornas e vivas do amor de Deus‖266. 
Sobre a estatura do Diabo, é interessante mencionar que, de 
acordo com R. Muchembled (2001), ela só teria se tornado colossal a 
partir do século XIV. Nesse sentido, é válido lembrar que Dante 
provavelmente se inspirou no Juízo Final de Giotto (Figura 08), obra 
em que se vê um gigantesco Diabo devorador de pecadores. Para Jeffrey 
B. Russell, a estatura gigantesca do Diabo em Dante manifesta sua 
inexistência de forma ainda mais acentuada, uma vez que Satanás é uma 
―grande massa de matéria moribunda.‖267. Para esclarecer esta opinião, é 
válido trazer outro trecho da explicação de Jeffrey B. Russell. Segundo 
ele, ―τ esquema neoplatônico, do qual a teologia cristã derivou em 
grande parte, estava em sua origem vertical e linear com o Um no topo, 
emanando para o Cosmos abaixo, grau através de grau; ao fundo estava 
hyle, matéria pura, mais longe do Um e menos real.‖268 É nesse sentido 
 
262 RUSSELL, 2003, p. 217. 
263 RUSSELL, 2003, p. 217. 
264 σesse sentido, Henry A. Kelly dirá que o Lúcifer de Dante ―é uma máquina 
de tortura estúpida, chorosa e rancorosa, ruminando constantemente os três 
piores pecadores no Inferno.‖ (KELLY, 2008, p. 311). 
265 RUSSELL, 2003, p. 221. 
266 RUSSELL, 2003, p. 221. 
267 RUSSELL, 2003, p. 217. 
268 RUSSELL, 2003, p. 210 
 143 
 
que, estando Satanás o mais longe possível de Deus, quanto maior a sua 
―massa de matéria moribunda‖, mais ele expressa sua não existência. 
No que tange à sua feiura, J. B. Russell dirá que ela está ―em 
contraste completo à beleza de Deus (Par. 7.64-66). Por orgulho, ousou 
ele desafiar o seu criador, e o mergulho do céu transformou toda a sua 
beleza em feiura.‖269. Ainda segundo o autor, seu corpo felpudo e bestial 
―enfatiza que ele é o oposto polar da razão, verdade, e espírito.‖270. 
Antes de passar para as representações imagéticas do Diabo 
dantesco, há ainda dois pontos que gostaria de comentar: eles se referem 
às suas três faces e suas seis asas (um par para cada face). Comecemos 
por estas últimas. Tal característica, comumente atribuída aos Serafins, 
parece indicar sua posição hierárquica antes da queda. Suas asas, no 
entanto, diferentemente das dos anjos, não são emplumadas, mas sempenas, como as de um morcego, o que, nas palavras de J. B. Russell, 
seria ―um símbolo da sua escuridão e cegueira.‖271. No que tange às suas 
três faces, elas parecem ser uma paródia da Santíssima Trindade e, 
conforme menciona J. B. Russell, numerosas teorias foram elaboradas 
para explicar suas três cores (branco-amarelado, vermelho e preto). A 
partir da análise de John Freccero, o historiador explica que as cores, 
provavelmente vêm da fruta amora. Tudo se inicia com uma passagem 
do Evangelho segundo São Lucas, no qual 
 
[...] Cristo diz que com fé profunda o bastante a 
pessoa poderia pedir para uma amoreira se mover 
e ela se moveria. Santo Ambrósio usou amoreira 
como um símbolo do Diabo, pois da mesma 
maneira que sua fruta começa branca, amadurece 
e fica vermelha, e então fica preta, assim o Diabo 
começa glorioso e branco, brilha vermelho no 
poder dele, e então fica preto com o pecado. 
(RUSSELL, 2003, p. 224) 
 
Feitas estas considerações, vejamos agora a representação de 
alguns artistas para ―o imperador do doloroso reino‖. A primeira delas é 
de Botticelli (Figura 26), a segunda de William Blake (Figura 27), e a 
terceira de Gustave Doré (Figura 28). É válido apontar para o leitor, 
desde já, que, embora sua figura ainda seja um tanto quanto bestial, a 
 
269 RUSSELL, 2003, p. 217. 
270 RUSSELL, 2003, p. 222. 
271 RUSSELL, 2003, p. 221. 
 144 
 
partir do século XVIII se vê uma retomada da ―humanização‖ de seu 
semblante. Falo em ―retomada‖ pois, segundo J. B. Russell, 
 
No século XI o Satanás é normalmente humano ou 
humanóide; a partir do século XI é mais provável 
que ele seja animal ou um monstro humano-animal; 
a partir do século XIV ele fica crescentemente 
grotesco. [...] antes do século XII ele é apresentado 
ocasionalmente bonito ou agradável. Ele muito 
raramente é feminino, mas pode se disfarçar em 
qualquer forma que queira. Como animal, 
frequentemente é mais um dragão ou uma serpente. 
(RUSSELL, 2003, p. 203 – grifos meus) 
 
 Dito isto, passemos então às representações. 
 
 
 
Figura 26: Detalhe de Lúcifer, de Botticelli. 
 
Fonte: http://www.florenceinferno.com/wp-content/uploads/2013/09/Botticelli-
divine-comedy.jpg Acesso em: 14/01/2019. 
 
 
 
 
 
 145 
 
Figura 27: Lúcifer, William Blake. 
 
Fonte: https://www.ngv.vic.gov.au/explore/collection/work/26903/ Acesso em: 
14/01/2019.272 
 
 
 
 
272 Disponível em: < > . Acesso em: 14 jan. 2019. 
 146 
 
Figura 28: Morada de Lúcifer, de Gustave Doré. 
 
Fonte: http://4.bp.blogspot.com/-
WK7nhWqKAPI/TlS4lFKVAsI/AAAAAAAAA40/KM-
iakN3JjA/s1600/Canto%2BXXXIV%2B-%2B1.jpg Acesso em: 14/01/2019. 
 
4.1.2 Um Diabo zombeteiro – Gil Vicente e o Auto da Barca do 
Inferno 
―À barca, à barca, boa gente, 
que queremos dar a vela! 
Chegar a ela! Chegar a ela! 
Muitos e de boa mente! 
Oh! que barca tão valente!‖ 
(Gil Vicente) 
 
Nosso próximo convidado para esse festim diabólico é ninguém 
menos que o Diabo do Auto da Barca do Inferno (1517), de Gil Vicente, 
autor que pode ser considerado tanto como o último dramaturgo 
medieval quanto como o primeiro dramaturgo moderno. Conforme 
apontou Francisco Achcar em sua ―Introdução‖ à referida peça, 
podemos considerá-lo medieval na medida em que não apenas seu 
coração estava voltado para a antiga sociedade medieva, a qual ele 
―imaginava estável e bem regrada‖273, mas também pelo fato de que ―se 
manteve fiel às formas poético-dramáticas do fim da Idade Média: o 
 
273 ACHCAR, 1999, p. 11. 
 147 
 
modelo teatral do auto e os versos redondilhos‖274; no entanto, também 
podemos considerá-lo moderno ―pelo uso estético que faz da variedade 
de línguas, pela reprodução virtuosística dos diversos discursos que 
corriam na sociedade; pela estrutura de representação não-clássica, ‗não-
aristotélica‘; pelo tom e teor de sua sátira‖275. 
A peça escolhida para apresentar uma de suas concepções do 
Diabo276 foi o mencionado Auto da Barca do Inferno, representada pela 
primeira vez em 1517, e publicada em 1518. Diz seu nome que se trata 
de um ―auto‖, mas que tipo de peça seria essa? Conforme explica João 
Adalberto Campato Júnior no E-dicionário de termos literários de 
Carlos Ceia, a definição do termo é bastante problemática, em virtude 
de que na Idade Média o termo era utilizado indiscriminadamente para 
se referir a todos os tipos de peça de teatro e ―poderia denominar uma 
farsa, uma moralidade, um mistério, um milagre, uma tragicomédia 
etc.‖277. Nesse caso, apesar dessa dificuldade de definição, o ―prefácio‖ 
da obra nos ajuda a entender que tipo de obra se trata, explicando que 
ela é um auto de moralidade. τ mesmo ―prefácio‖ também nos fornece 
o enredo, descrito da seguinte forma: 
 
no presente auto, se fegura* que, no ponto que** 
acabamos de expirar,*** chegamos 
supitamente**** a um rio, o qual per força 
havemos de passar em um de dous batéis***** 
que naquele porto estão, scilicet,****** um deles 
passa pera o Paraíso, e o outro pera o Inferno; os 
quais batéis tem cada um seu arrais******* na 
proa: o do Paraíso um Anjo, e o do Inferno um 
Arrais infernal e um Companheiro. (VICENTE, 
1999, p. 27)278 
 
274 ACHCAR, 1999, p. 11. 
275 ACHCAR, 1999, p. 9. 
276 Digo que é ―uma de suas concepções do Diabo‖, pois esta não é a única peça 
em que Gil Vicente se utiliza de tal personagem e, tampouco, a única forma em 
que ela aparece. Como exemplo, podemos trazer também o Auto da Alma, em 
que o Diabo é retratado mais como o tentador, isto é, aquele que faz de tudo 
para afastar a Alma (com maiúscula, por se tratar de uma personagem da peça) 
dos preceitos da religião e, consequentemente, de Deus. 
277 Para uma definição acerca do vocábulo ―Auto‖, consultar o E-dicionário de 
termos literários, de Carlos Ceia. Disponível em: 
<http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/auto/>. Acesso em: 14 jan. 2019. 
278 Notas da edição utilizada: * Fegura: representar figurativamente (isto é, por 
meio de figura, símbolo ou alegoria). ** No ponto que: no momento em que. 
 148 
 
 
Vale mencionar que, segundo J. B. Russell, em seu Lúcifer – o 
Diabo na Idade Média (2003), uma das características das peças de 
moralidade que floresceram no século XV e início do XVI é que elas se 
 
utilizaram de sermões e literatura penitencial. Elas 
descreveram a tensão entre o bem e o mal na 
vida de um ser humano comum que faz livres 
escolhas morais. Todo homem começa a vida 
na inocência; ele cai em pecado e corrupção; 
com ajuda da graça se arrepende, é salvo. O 
Diabo está frequentemente presente no palco 
nas peças sobre moralidade e espreitando 
sempre fora do palco, porque ele é a última fonte 
do pecado, que nos arrasta para longe de Deus; ele 
pode aparecer pessoal ou indiretamente na forma 
de vícios ou caráter associado com os vícios. 
(RUSSELL, 2003, p. 238 – grifo meu) 
 
Embora esta descrição pareça se adequar mais ao Auto da Alma 
do que ao Auto da Barca do Inferno propriamente dito, ela é importante 
por nos trazer alguns pontos importantes da peça: essa ―tensão entre o 
bem e o mal‖, as ―livres escolhas morais‖, o contraponto entre ―a 
inocência‖ e ―o pecado e a corrupção‖, a questão do ―arrependimento‖ e 
a possibilidade de salvação, bem como a presença do Diabo. Nesta peça, 
no entanto, como nenhum dos pecadores se arrependeu de suas atitudes 
em vida, mas somente após seu encontro com o Diabo e sua condução 
para o Inferno, a nenhum deles é concedido o embarque no batel da 
salvação, com exceção do ―Parvo‖, o qual, em vida, não teria errado por 
malícia, conforme a fala do Anjo (v. 299-307). Mas, passemos agora à 
figura do Diabo, que é o motivo que nos trouxe até aqui. 
Gil Vicente, infelizmente, não nos legou uma descrição detalhada 
da figura dessa personagem, nem sequer nas didascálias de sua peça; 
tampouco temos como saber de que forma eram caracterizados os atoresquando a representaram em sua época. No entanto, algumas das falas 
das personagens e do próprio Diabo nos fornecem pistas sobre a forma 
pela qual ela seria apresentada, bem como algumas de suas 
características. 
 
*** Expirar: morrer. **** Supitamente: subitamente. ***** Batel: navio, 
barco. ****** Scilicet: (latim) isto é, a saber. ******* Arrais: comandante, 
marinheiro. 
 149 
 
Uma das primeiras falas que nos fazem imaginar sua forma é a de 
dom Anrique (Henrique), quando este chega ao batel infernal e chama o 
Diabo de ―senhora‖ (v. 2λ). Este logo o corrige, afirmando ser um 
senhor e se colocando à disposição para levá-lo (v. 30). A partir desse 
início do diálogo é possível supor que, na peça, o Diabo teria feições 
andróginas, e que, quem sabe, talvez fosse interpretado por uma mulher, 
o que possivelmente realçaria a comicidade279. Outro ponto interessante 
é que na peça temos um Diabo poliglota, que fala português, espanhol 
(v. 110-111) e latim (v. 623, 642, 648-650). Há, ainda no diálogo com o 
fidalgo, dois pontos que não podem passar despercebidos: o fato de o 
Diabo rejeitar a cadeira ―que esteve na igreja‖ (v.1ι0) e que a danação 
se inicia na própria barca do Inferno (Cá lha darão de marfim [a 
cadeira],/ marchetada de dolores,/ com tais modos de lavores,/ que 
estará fora de si… – v. 172-175), procedimento que também será 
aplicado aos outros condenados. 
Vale mencionar que, de todos os personagens (Fidalgo, 
Onzeneiro, Judeu, Alcoviteira, etc.), é o Parvo Joane280 quem nos 
fornece mais pistas sobre a forma que o Diabo estava presente no 
imaginário popular. Em sua longa lista de insultos ao Diabo (v. 268-
295), o Parvo aponta recorrentes características da personagem281. 
Vejamos algumas delas282: ―cornudo‖, pelo fato de ter chifres; ―Pero 
Vinagre‖283; ―beiçudo‖; ―sapateiro da Candosa284‖; ―antrecosto [costas] 
 
279 Vale dizer, no entanto, que, conforme explica J. B. Russell, o Diabo 
raramente era uma fêmea. Ele ―quase sempre é visto como masculino pela razão 
masculina que é a regra do inferno, como o rei do céu deve ser masculino‖, 
embora ele geralmente tenha sido ―assistido e sustentado por espíritos femininos 
a quem o folclore transforma em bruxas.‖ (RUSSELL, 2003, p. 142) 
280 Forma antiga de João. 
281 É preciso esclarecer que não se pode dizer com certeza que estas 
características sejam utilizadas na ―fantasia‖ do ator, mas, conforme dito, 
servem como indícios de suas características presentes no imaginário da época. 
282 Quando necessário para a compreensão, acrescento as explicações 
paratextuais de Francisco Achcar entre colchetes. 
283 ―Pero‖, aparentemente, pode ser uma corruptela de ―Pedro‖. Quanto ao 
―Vinagre‖, o dicionário Priberam indica que, em sentido figurado, também 
serve para uma ―pessoa de modos ásperos, desabridos‖. Disponível em: 
<https://dicionario.priberam.org/vinagre>. Acesso em: 14 jan. 2019. 
284 De acordo com o site da Freguesia de Candosa, o lugar teria sido ―um 
pequeno concelho medieval. [...] A 12 de Setembro de 1514, D. Manuel 
concedeu-lhe foral, passando a ser vila e sede de concelho entre 1514 e 1κ42.‖ 
Disponível em: <http://freguesiacandosa.pt/historia/>. Acesso em: 14 jan. 2019. 
 150 
 
de carrapato‖; ―filho da grande aleivosa [mulher traidora, falsa]‖, talvez 
em alusão à Lilith, que alguns dizem ser a primeira mulher de Adão e 
que é comumente associada como mãe do Diabo; ―tua mulher é tinhosa 
[nojenta] e há de parir um sapo chentado [colocado] num guardanapo‖; 
―neto de cagarrinhosa [―cagona‖, medrosa]‖; ―furta-cebola‖, isto é, 
ladrão barato; ―escomungado [sic] nas erguejas‖; ―Burrela285, cornudo 
sejas! / Toma o pão que te caío [caiu]!/ A mulher que te fugio/ pera a 
Ilha da Madeira!‖, versos em que, ao que tudo indica, o Diabo seria 
enganado por sua ―esposa‖. 
Para sintetizar de forma bastante geral, é possível dizer que Diabo 
do Auto da Barca do Inferno, tal como o Diabo da cultura e dos ritos 
populares, é irônico, zombeteiro e bastante loquaz. É preciso esclarecer, 
no entanto, que, aqui, diferentemente de outras peças e histórias (como 
as hagiográficas, por exemplo), ele não é ludibriado por ninguém e 
tampouco seria o responsável pelos fracassos e males da humanidade. 
Nesse sentido, pode-se dizer que seu papel está mais para um juiz ou, 
melhor seria dizer, um advogado de acusação286 do que para o de 
tentador da humanidade. Pode-se dizer, então, que sua função na peça é 
a de trazer à tona as mais profundas faltas de cada personagem, exibindo 
o que elas tentam esconder. Também vale mencionar que esse papel do 
Diabo como acusador das almas não é inovação de Gil Vicente, pois, 
nas artes plásticas, já existiam diversas representações do Diabo em 
disputa com Miguel sobre o peso de uma balança, o que, segundo Link, 
é provavelmente uma incorporação da pesagem das almas egípcia287. 
Para finalizar, vejamos algumas ilustrações que o Diabo vicentino 
recebeu. 
 
 
 
 
 
 
285 Francisco Achcar traz em nota de rodapé a explicação de A. Saraiva para 
este termo. De acordo com os autores, o vocábulo ―parece ter origem numa 
cerimônia pela qual as mulheres acusadas de menos honestidade eram expostas, 
montadas num burro, aos apuros [vaias] dos rapazes.‖ (VICEσTE, 1λλλ, p. 42) 
286 Vale lembrar que, em sua etimologia, a palavra grega diabolos também 
significa ―acusador‖. 
287 Sobre este ponto, conferir o tópico ―A pesagem das almas‖ (p. 125-129), no 
terceiro capítulo (Heresia e Inferno), do livro O Diabo: a máscara sem rosto, de 
Luther Link. 
 151 
 
Figura 29: Capa Ed. Ática. 
 
Fonte: https://http2.mlstatic.com/l1751-auto-da-barca-do-inferno-farsa-de-ins-
pereira-vicente-D_NQ_NP_652411-MLB20533819814_122015-F.jpg Acesso 
em: 14/01/2019. 
 
Figura 30: Capa Ed. Objetivo. 
 
Fonte: https://www.portaldoslivreiros.com.br/imagens/71801/auto.jpg Acesso 
em: 14/01/2019. 
 
 
 152 
 
 Figura 31: Capa Porto Editora. 
Figura 32: Capa Ed. Brasiliense . 
 
Fontes: 
https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcSAKf09jJxSaytDXI 
92vbZw-qvi7Zku8Si_taYjjEwzFvdjQi0Y Acesso em: 14/01/2019. 
https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcRaBQqvLpx_WiSH 
buVZ_xnQ0lRGqMJe5gnSPKrxlRJOMJA1hVhsog Acesso em: 14/01/2019. 
 
Figura 33: Ilustração do Diabo. 
 
Fonte: VICENTE, Gil. Autos e Farsas de Gil Vicente. São Paulo: Ed. 
Melhoramentos Ltda., 2014. 
 
 153 
 
Embora não sejam traçadas a partir das características descritas 
no texto vicentino, trago essas diferentes ilustrações para que se perceba 
a diversidade de formas em que o mesmo Diabo foi representado, sendo 
o artista praticamente livre na hora de sua confecção. É interessante 
perceber que, embora o primeiro (Figura 29) possua uma face no 
estômago, provavelmente remetendo ao demônio da gula, e o segundo 
(Figura 30) seja uma criatura bestial, toda cheia de pelos, algo que lhes 
confere uma aparência mais ao sabor do medievo, nenhum dos dois 
possui chifres. No que tange aos outros três (Figuras 31, 32 e 33), é 
válido notar que, salvo algumas pequenas diferenças, praticamente todos 
possuem as mesmas características: os chifres, as asas (escondidas ou 
inexistentes no primeiro), a barbicha (inexistente no primeiro), o tridente 
(que, no segundo, parece um forcado), a cor vermelha (que, no último, 
por ser uma ilustração em preto e branco, não consta). 
 
4.1.3 Melhor ser rei no inferno do que servir no céu – O Satã de 
John Milton 
 
Here at least 
We shall be free; the almighty hath not built 
Here for his envy, will not drive us hence: 
Here we may reign secure, and in my choice 
To reign is worth ambition though in hell: 
Better to reign in hell, than serve in heaven. 
(John Milton)288 
 
Encontrei a definição de beleza, da minha 
beleza. É uma coisa apaixonada e triste [...] 
Não consigo imaginar a belezaonde não 
haja adversidade [...] É difícil para mim 
concluir que o tipo mais perfeito de beleza 
viril é Satã — ao modo de Milton. 
(Baudelaire)289 
 
288 ―Aqui seremos livres; o magnânimo/ σão alçou cá a inveja, nem daqui/ σos 
levará. A salvo reinaremos,/ Que é digna ambição mesmo se no inferno:/ 
Melhor reinar no inferno que no Céu/ Servir.‖ (I, 25λ-264). Salvo quando 
sinalizado em contrário, utilizarei sempre a tradução de Daniel Jonas. Desta 
forma, para facilitar a localização das passagens citadas, utilizarei sempre os 
numerais romanos para os livros (I-XII) e os numerais arábicos para os versos. 
289 Citado por Luther LINK, 1998, p. 192. 
 154 
 
Nosso terceiro representante da tradição diabólica é ninguém 
menos que o Satã de Paradise Lost (1667), de John Milton. Sua 
presença aqui justifica-se tanto pelo aspecto singular e revolucionário 
que recebeu através da pena de Milton quanto pela influência que 
exerceu sobre a literatura (ampliando-se pela cultura) ocidental. No que 
tange ao primeiro ponto, penso nas palavras de P. Stanford, quando 
afirma que ―o que há de singular em Milton é sua poética, e também a 
forma inédita de retratar o Diabo. Nela esse personagem é 
equilibrado, crível, muitas vezes simpático, e sempre sedutor.‖290. 
Além disso, ainda segundo o autor, 
 
Inicialmente, o aspecto mais revolucionário do 
Paraíso Perdido encontra-se no papel de herói 
que é dado ao Diabo, como primeiro rebelde. 
Independente das descrenças ou suspeitas que o 
leitor possa ter com relação ao Diabo, para ele é 
quase impossível não admitir que o ser 
diabólico é magnífico nas mãos de Milton. Na 
sua pintura desse personagem não existem cascos 
fendidos, assim como não aparecem sinais que o 
identifiquem como malévolo — salvo os traços do 
rosto, quando realçados pela luz. (STANFORD, 
2003, p. 259-260 – grifos meus) 
 
Sua influência, por sua vez, tem estreita relação com a forma 
dada por Milton à sua personagem. Tanto a descrição quanto a 
centralidade traçadas nos dois livros iniciais, fizeram com que a 
recepção de seus primeiros críticos (incluindo-se aí românticos como 
Byron, Shelley, Coleridge, etc.) o alçassem à condição de herói épico. 
No entanto, vale dizer que, atualmente, muitos críticos questionam tal 
papel para Satã no poema291, afirmando que ele não seria seu herói. 
Nesse sentido, vale lembrar as palavras de Luther Link quando explica 
que mesmo que essa interpretação seja ―errônea‖ e Milton tenha 
mostrado a ―cegueira moral e as imperdoáveis violações de Satã‖292, 
ainda assim 
 
 
290 STANFORD, 2003, p. 259 – grifo meu. 
291 Sobre esta discussão, cf. o interessante artigo de Fabiano Seixas Fernandes, 
intitulado ―τ Satã de John Milton‖, no livro O demoníaco na literatura (2012). 
292 LINK, 1998, p. 191. 
 155 
 
os poetas e escritores do século XIX viam Satã de 
outro modo. Para Coleridge, Byron, Hazlitt, e 
Shelley, por exemplo, o Satã heroico foi uma das 
maiores realizações de Milton. Para William 
Blake, Milton escreveu em liberdade quando 
escreveu sobre Satã, pois ―foi um verdadeiro 
poeta e do partido do Diabo sem o saber‖. O 
partido do Diabo era o partido da liberdade 
humana lutando contra uma sociedade 
repressiva. (LINK, 1998, p. 191 – grifos meus) 
 
Dito isto, passo a seguir a mesma linha expositiva que venho 
traçando, isto é, apresentarei a obra e, em seguida, teço/trago 
comentários sobre os traços da personagem. 
Dividido em XII livros (ou cantos), o poema de Milton é escrito 
em versos brancos e heroicos, isto é, sem rimas e em pentâmetro 
jâmbico293. Os versos heroicos são utilizados em virtude do tema 
narrado, que pede um estilo elevado; e é escrito em versos brancos, pois, 
de acordo com o poeta, as rimas seriam um ―complemento 
desnecessário ao bom poema e ao verso capaz e, enquanto ornamento, 
dispensável, especialmente nas obras mais longas‖294. Falando de forma 
bastante geral, pode-se dizer que a épica miltoniana tem como tema 
central a queda do primeiro casal, Adão e Eva; mas, para ser um pouco 
menos sintético, me parece interessante trazer o ―Argumento‖ do 
primeiro livro, no qual o poeta resume de que forma se inicia a trama. A 
citação é longa, mas além de nos fornecer um panorama mais vasto 
sobre a obra, ela traz alguns pontos importantes acerca da concepção de 
 
293 Em português, o verso heróico é reconhecido pela tônica na sexta e na 
décima sílabas. Em inglês, no entanto, o verso heróico é o pentâmetro jâmbico, 
isto é, um decassílabo com sílabas alternadas entre fraco (-) e forte (/), isto é, 
cinco vezes de ―- /‖. Vale dizer que, embora este seja o padrão ―básico‖, ele 
pode ser substituído por outros ritmos — como o anapesto (- - /), o troqueu (/ -), 
o espondeu (/ /) ou o pírrico (- -) — a fim de fugir da monotonia causada pela 
eterna repetição do mesmo ritmo. Para uma discussão sobre formas de tradução 
para o pentâmetro jâmbico, cf. BRITTτ, Paulo Henrique. ―Padrão e desvio no 
pentâmetro jâmbico inglês: um problema para a tradução.‖. In: X Congresso da 
ABRALIC, 2006. Rio de Janeiro [Anais…]. Rio de Janeiro: UERJ, 2006. 
(inédito). Disponível em: <http://www.letras.puc-
rio.br/media/filemanager/professores/paulo_britto/Britto%20-
%20Padrao%20e%20desvio%20no%20pentametro%20jambico.pdf>. Acesso 
em: 14 jan. 2019. 
294 MILTON, 2015, p. 27. 
 156 
 
Milton sobre a queda, seja dos anjos seja do casal edênico. Diz o poeta o 
seguinte: 
 
Este livro propõe, primeiro em resumo, o assunto 
geral, a desobediência do homem, e a respectiva 
perda do Paraíso onde fora posto. Depois aborda a 
primeira causa da sua queda, a Serpente, ou 
antes Satanás na Serpente; o qual, rebelando-se 
contra Deus, e acompanhado por muitas 
legiões de anjos, foi por ordem de Deus expulso 
do Céu e lançado ao grande fosso. Ultrapassada 
esta ação, ocupa-se o poema com o meio das 
coisas, apresentando Satanás e os seus anjos 
agora caídos no inferno, descrito aqui não no 
centro (pois céu e terra ainda se dão como não 
criados, certamente não amaldiçoados) mas 
num lugar de trevas profundas, daí chamado 
Caos. Aqui Satanás, com os seus anjos boiando 
no lago de fogo, atordoados e atingidos por raios, 
recupera após certo tempo, como que de 
perplexidade, chama o seu imediato em hierarquia 
e dignidade e que também por perto jaz; 
conferenciam acerca da malograda queda. 
Satanás acorda todas as suas legiões, que até ali 
estavam igualmente aturdidas; levantam-se, 
seus números, ordem de batalha, os principais 
chefes chamados, de acordo com os ídolos 
conhecidos mais tarde em Canaã e nas terras 
adjacentes. A estes discursa Satanás, conforta-
os na esperança de ainda reconquistarem o 
Céu, mas diz-lhes por último do novo mundo e 
nova criatura a serem criados, segundo uma 
antiga profecia ou relatos no Céu; pois que a 
existência de anjos era bem anterior à criação 
visível na opinião de muitos Pais da igreja. Para 
saber a veracidade desta profecia, e o que 
deliberar em relação a ela, recorre a um conselho 
pleno. O que então empreendem os seus 
companheiros. Subitamente surge Pandemônio, o 
palácio de Satanás, erguido das funduras: os 
infernais pares lá se sentam em conselho. 
(MILTON, 2015, p. 29 – grifos meus) 
 
 157 
 
Vejamos agora alguns pontos desse resumo do Livro I. O 
primeiro ponto que merece atenção é que Milton apenas parece seguir 
de forma fiel a união entre a Serpente, da narrativa de Gênesis 3295, e 
Satanás, conforme feita em Apocalipse 12:9296. Na narrativa de Milton, 
no entanto, Satanás não é a Serpente, ele entra nela, quase que como 
numa ―possessão‖, e com isso consegue enganar Eva. τutro ponto que 
merece menção é que, enquanto Dante sugere que o Inferno esteja 
situado no centro da Terra, para Milton, o Inferno fica ―num lugar de 
trevas profundas, daí chamado Caos‖297. Além disso, vale frisar que 
Satanás não almeja retornar ao Céu para ser novamente subservientea 
Deus, mas para tomar sua posição, isto é, para ficar em seu lugar e 
reinar sobre todos. Ainda outro ponto interessante é que Satanás recorre 
a um ―conselho‖, isto é, a uma discussão entre seus pares, tanto para 
descobrir qual o melhor meio de atacar o Onipotente (se por confronto 
direto ou por artimanhas) quanto para saber quem deverá executar a 
dificílima tarefa de sair do Abismo para confirmar ―a veracidade da 
profecia‖ acerca das novas criaturas e do novo mundo que foram/serão 
criados, o que sugere uma espécie de organização democrática do 
Inferno. Feitas estas considerações, vejamos agora de que forma o poeta 
narra e descreve as atitudes e feições de sua personagem. 
Antes, porém, vale explicar o motivo pelo qual, para Milton, Satã 
teria caído: de acordo com o poeta, teria sido ―o orgulho‖ que ―Do Céu 
o expulsou, com sua hoste/ De anjos rebeldes‖ (I, 36-38). É preciso 
esclarecer, no entanto, que seu orgulho nasce apenas quando o Altíssimo 
anuncia a concepção ―daquele que declara ser seu único Filho‖298 e o 
nomeia como líder dos anjos299, asseverando que quem negar-lhe 
obediência, nega-O também e quebra a união e, uma vez assim, cairá 
 
295 ―A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos, que Iahweh 
Deus tinha feito.‖ (Gênesis 3:1) 
296 ―Foi expulso o grande Dragão, a antiga serpente, o chamado Diabo ou 
Satanás, sedutor de toda a terra habitada — foi expulso para a terra, e seus 
Anjos foram expulsos com ele.‖ (Apocalipse 12:9 – grifo meu) 
297 ―Longe de Deus e luz celeste quanto/ Do centro três vezes aquém do polo.‖ 
(I, 73-ι4) Conforme explica o tradutor em nota de rodapé, ―Enquanto Homero 
posiciona o Hades abaixo da terra em proporcionalidade direta com a distância 
desta ao Céu acima, e Virgílio o Tártaro duas vezes abaixo daquela, Milton 
estabelece uma relação geométrica através da qual chama a atenção para a 
proporção numérica de Céu/terra, terra/inferno. A terra divide o intervalo entre 
Céu e inferno. ‗Três vezes‘ é apenas modo intensivo.‖ (MILTON, 2015, p. 39) 
298 ―whom I declare/ My only Son‖ (V, 603-604). Tradução minha. 
299 ―your head I him appoint‖ (V, 606). Tradução minha. 
 158 
 
―[à]s trevas exteriores, no abismo,/ Seu lar sem redenção nem fim p‘ra 
dores.‖300. Em outras palavras, mesmo que Satã desejasse algum tipo de 
―redenção‖, o Deus miltoniano não a concederia301. Após tais 
declarações, Satã se considera injustiçado e resolve aliciar outros anjos 
para tentar tomar aquilo que acredita ser seu por direito. Nesse sentido, 
concordo com Luther Link quando este declara que ―τ Satã de Milton 
arrebata nossa imaginação porque está convencido de que ele foi 
injustiçado, e seu desafio a Deus é infindável.‖302 
Vejamos agora algumas passagens do poema para observar de 
que forma Milton descreve seu anti-herói. É ainda no Livro I que 
encontramos a primeira descrição acerca de sua personagem. 
Levantando-se da queda, Satã aparece ―Soerguendo da onda a fronte e 
olhos/ Que chispantes ardiam, e outras partes/ De borco na corrente, 
ao longo e ao largo/ De muitas milhas, em tamanho porte/ Como o 
que chamam fábulas de monstro,/ Titânico ou gigante, [...]‖303. Um 
pouco mais adiante, diz o poeta que 
 
Alongado o imenso arcanjo mau/ Nos grilhões do 
lago folhão, não mais/ Erguera a cerviz, mas isso a 
vontade/ E alto favor do Céu que tudo rege/ 
Deixou à solta aos seus negros desígnios,/ Que 
p‘los recalcitrantes crimes viesse/ Sobre si 
maldição, ao intentar/ Mal p‘ra outros, e visse 
enraivecido/ Como o seu mal apenas promovera/ 
Um bem infindo, graça e mercê vistas/ No 
homem que tentou, contudo nele/ Aguda 
confusão, ira e vingança. (I, 209-220, p. 49 – 
grifos meus) 
 
Nesta passagem, conforme aponta Daniel Jonas em nota de 
rodapé, ―É Deus quem permite mobilidade a Satã para fora do abismo e, 
nessa medida, promove a tentação do Homem e o pecado do iníquo, 
 
300 No original: ―[...] him who disobeys/ Me disobeys, breaks union, and that 
day/ Cast out from God and blessed vision, falls/ Into utter darkness, deep 
engulfed, his place/ Ordained without redemption, without end.‖ (V, 611-615). 
301 Por motivos diferentes, o Deus de José Saramago em O Evangelho segundo 
Jesus Cristo também nega o perdão ao Diabo. Nesse sentido, talvez fosse 
interessante traçar uma comparação entre ambos e suas motivações. 
302 LINK, 1998, p. 175. 
303 I, 193-202 – grifos meus. 
 159 
 
apesar de inocente em todo este processo.‖304 Seguindo a narrativa, o 
poeta compara a dimensão do escudo de Satã com o tamanho da Lua e 
diz que sua lança é semelhante a um ―alto pinho‖ (I, 2κ4-298). É preciso 
mencionar que, embora caído, Satã mantém sua forma e mostra todo o 
seu brilho de origem, apesar de ter perdido um pouco de seu esplendor 
(I, 591-594). Além disso, sua face agora ostenta as marcas dos trovões 
recebidos em batalha (I, 600-602). Ainda no primeiro livro, 
encontramos Satã e suas hostes explorando e forjando sua nova morada 
com aquilo que encontram. No segundo livro, por sua vez, vemos Satã 
afirmar ser o líder dos rebeldes, no início pelas leis fixas do céu, isto é, 
pela hierarquia existente, mas depois por seu livre arbítrio (II, 18-20). É 
também neste livro que vemos Satã se oferecendo para levar a cabo a 
missão de confirmar a profecia e colocar as novas criações em perdição. 
Nesse sentido, conforme aponta Fabiano S. Fernandes, devido à sua 
apresentação inicial, isto é, a que é feita nos dois primeiros livros 
 
é a missão de Satã que nos é inicialmente 
apresentada como a missão ―épica‖ do poema: 
desbravar um mundo novo em sua luta contra o 
Criador. Esta missão faz com que desempenhe 
papéis semelhantes aos de heróis da épica 
clássica: guerreiro intrépido (lembrando Aquiles 
ou Heitor), líder militar (como Enéias), 
estrategista (como Odisseu), viajante, como 
todos os três, e mesmo como aponta Steadman, 
espião e mestre dos disfarces (como Odisseu) 
(1976: p.269). A ira de Satã – ultrajado pela 
ascensão do Filho – é semelhante à de Aquiles; 
sua busca por um novo lar (o novo mundo) em 
meio ao Caos ecoa a de Enéias, e sua astúcia a de 
Odisseu. (FERNANDES, 2012, p. 127 – grifos 
meus) 
 
Não é nosso intuito comentar a narrativa miltoniana, mas é 
interessante perceber que a partir do terceiro livro ela muda de foco e o 
poeta de atitude. Enquanto nos dois primeiros livros vemos o poeta em 
atitude quase que favorável ao anjo caído, do terceiro em diante vemos o 
poeta adotar o lado de Deus e a observar Satã por outro prisma. Neste 
terceiro livro, é Deus quem dá o enfoque para a narrativa. Sob seu olhar, 
vemos Satã como um viajante bastante solitário, cruzando o caminho do 
 
304 MILTON, 2015, p. 49. 
 160 
 
Caos até a Terra – com a permissão divina, que a tudo observa –, onde 
encontrará o casal edênico. Uma vez na terra, Satã põe-se a lamentar 
sobre sua nova condição, mas logo torna ao seu rancor (IV, 32-113). 
Vale relembrar aquilo que foi dito no primeiro capítulo, a saber, 
que sua empresa, no entanto, se mostra no poema como exitosa e 
frustrada de antemão. Exitosa porque sabemos que ele conseguirá fazer 
com que o casal caia em tentação, frustrada, pois sua ação acaba criando 
condição tanto para a demonstração do livre arbítrio305 quanto pela 
expiação dos pecados do casal (e, consequentemente, da humanidade), 
uma vez que, enquanto Satã ainda estava a caminho, o Onipotente (e 
Onisciente) já sabia de tudo e discutia o destino da criação com seu 
Filho; para dizer de outro modo, é pelo mal executado por Satã que, em 
contrapartida, advém o bem feito pelo Filho. Nesta cena do diálogo 
entre Nume-Pai e Nume-Filho, este, ao saber o que se passa, questiona 
sobre a decisão de deixar que a nova criação pereça (III, 144-166), ao 
que o Nume-Pai responde que, para que a graça seja oferecida ao casal, 
é preciso que haja satisfação da justiça divina; em outras palavras, suaofensa teria sido tão grande, que o seu extermínio seria necessário para 
que a justiça fosse restaurada. A única saída seria encontrar alguém que 
fosse suficientemente nobre para responder por sua ofensa, sujeitando-se 
ao castigo divino. Então, o Onipotente pergunta às suas hostes celestiais 
se alguém gostaria de se tornar mortal para redimir tal crime (III, 168-
216), e é, como se sabe, o Nume-Filho quem se oferece para expiar o 
pecado do casal (III, 227-265). 
Encerro neste ponto a narrativa, pois não seria proveitoso ao 
leitor que eu a continuasse. Mas, rumando para o fim deste subcapítulo, 
gostaria de sintetizar as principais características que vimos e algumas 
outras que se encontram no poema. Vemos que, após a queda, Satã 
continua com seu brilho e semblante, embora obscurecido e marcado 
pelos raios (I, 591-594); apesar de ter sido lançado ao Abismo como 
punição, Deus permite a Satã se mova livremente (I, 209-220); nós o 
vemos como intrépido viajante (II, 466-1055); seu tamanho é, 
inicialmente, colossal, tanto que poderia ser comparado a um Titã ou um 
gigante (I, 193-202), mas, posteriormente, nós o vemos ficar cada vez 
 
305 Embora esta fala de Deus se refira aos anjos caídos, ela também se adequa 
perfeitamente ao casal: ―σão livres, que cabal prova dariam/ De lealdade veraz, 
amor, fé firme,/ Onde só o que devem fazer fazem,/ Não o que querem? Que 
louvor há nisso?‖ (III, 103-106) 
 161 
 
menor, a ponto de ―caber‖ dentro da Serpente (IX, 1κκ-191306); em 
outro ponto do poema vemos que ele é capaz de mudar de forma (ele se 
transforma em ―corvo-marinho‖ – IV, 196 – e, posteriormente, em 
neblina – IX, 70-1κι); trama sua vingança ―por fraude e mentira‖ (V, 
243), menção que parece ecoar as palavras do Evangelho segundo São 
João 8:44307; nós o vemos como líder militar e guerreiro intrépido (VI, 
188-405); engenhoso estrategista (VI, 470-514), etc. 
Para finalizar, vejamos algumas das ilustrações que recebeu a 
personagem. 
 
Figura 34: Satã encontra sua prole, Pecado e Morte, nos portões do Inferno, de 
John B. Medina (1688). 
 
Fonte: 
https://i.pinimg.com/originals/8e/3d/41/8e3d4159dda06a2636d05a5e4ddb1030.j
pg Acesso em: 14/01/2019. 
 
306 ―P‘la boca entrou-lhe o mau, e os seus instintos,/ Fronte e coração, tomando-
os encheu/ Com intelecto ato; mas seu sono/ Não perturbou, à espera da 
manhã.‖ 
307 ―Vós sois do diabo, vosso pai, e quereis realizar os desejos de vosso pai. Ele 
foi homicida desde o princípio e não permaneceu na verdade, porque nele 
não há verdade: quando ele mente, fala do que lhe é próprio, porque é 
mentiroso e pai da mentira.‖ (Grifo meu) 
 162 
 
Figura 35: Satã despertando os anjos rebeldes, de William Blake (1808). 
 
Fonte: https://i2.wp.com/www.brainpickings.org/wp-
content/uploads/2014/02/blake_paradiselost_butts3.jpg?w=680&ssl=1 Acesso 
em: 14/01/2019. 
 
 
 
 163 
 
Figura 36: Satã no Éden, de Gustave Doré (1866). 
 
Fonte: 
https://i.pinimg.com/originals/0d/f8/ac/0df8ac88e45b7299c236344e6416f46e.jp
g Acesso em: 14/01/2019. 
 
4.1.4 O gênio que sempre nega – O Mefistófeles goetheano 
 
―Digo ao senhor: o diabo não existe, 
não há, e a ele eu vendi a alma... Meu 
medo é este. A quem vendi? Medo 
meu é este, meu senhor: então, a alma, 
a gente vende, só, é sem nenhum 
comprador…‖ (Guimarães Rosa) 
 
Diferentemente de todos os outros, não podemos dizer que nosso 
penúltimo convidado seja exatamente o Diabo; por isso, talvez fosse 
 164 
 
melhor dizer que ele é um diabo308. O leitor sabe, pelo título do tópico, 
que estou tratando aqui do Mefistófeles do Fausto (1808309) de Goethe e 
que, mesmo que ele não seja ―Satã em pessoa‖, este estudo não estaria 
completo sem a sua presença. Digo isso, pois tanto a obra quanto a 
personagem são mencionadas e citadas em algumas das mais marcantes 
passagens dos escritos de nosso Bruxo do Cosme Velho, como a 
menção ao par de figuras de Fausto e Mefistófeles entalhadas em bronze 
na sala de Rubião, em Quincas Borba; a citação truncada de Bentinho 
(―Aí vindes outra vez, inquietas sombras?‖) tomada da ―Dedicatória‖ do 
poema (―Tornais, vós, trêmulas visões, que outrora/ Surgiram já à 
lânguida retina./ Tenta reter-vos minha musa agora?‖310), em Dom 
Casmurro; o pedido do narrador à Clara (―Cita Goethe, amiga minha, 
cita um verso do Fausto, adequado: Ai, duas almas no meu seio 
moram!‖), em Esaú e Jacó; ao comentário do Conselheiro Aires à sua 
irmã, no Memorial de Aires (―- Mana, você está a querer fazer comigo a 
aposta de Deus e de Mefistófeles; não conhece?‖), etc. 
A história/estória de Fausto, um mago andarilho que vende sua 
alma ao Diabo em troca de conhecimento, é lendária e assaz conhecida. 
De acordo com o historiador Henry A. Kelly, sua lenda remete à de 
Teófilo, uma das primeiras histórias existentes acerca de pactos com o 
Demônio311. Há indícios de que, para além da lenda, tenha realmente 
 
308 Esta, pelo menos, é a forma como interpreto a personagem. É difícil afirmar 
com certeza, pois, diferentemente do português, em alemão todos os 
substantivos (comuns e próprios) se iniciam com letra maiúscula. Além disso, é 
possível que Goethe não fizesse uma distinção precisa entre Mefistófeles e o 
próprio Satã, uma vez que, em algumas passagens, Mefistófeles afirma ser o 
próprio Diabo, e não um diabo. Um exemplo disso é sua última fala no ―Prólogo 
do Céu‖, na qual se lê o seguinte: ―É, de um grande Senhor, louvável proceder/ 
Mostrar-se tão humano até pra com o demônio.‖ (GτETHE, 1λκ1, p. 3λ – 
grifo meu). σo original: ―Es ist gar hübsch von einem großen Herrn,/ So 
menschlich mit dem Teufel selbst zu sprechen.‖ (GτETHE, 2004, p. κ – grifo 
meu) 
309 Esta data corresponde à publicação da primeira parte, intitulada Faust, eine 
Tragödie (Fausto, uma tragédia). A segunda parte, intitulada Faust. Der 
Tragödie zweiter Teil in fünf Akten (Fausto. Segunda parte da tragédia, em 
cinco atos), só apareceria em 1832. Utilizo apenas a primeira parte pelo fato de 
ela conter dados suficientes para a caracterização da personagem. 
310 GOETHE, 1981, p. 27. 
311 Tal lenda pode ser encontrada no livro de Jacopo de Varazze, a Legenda 
Aurea ou Lenda Dourada. De acordo com Hilário Franco Jr., na 
―Apresentação‖ de sua tradução, a história seria conhecida em grego desde o 
século VII e teria sido traduzida para o latim no século IX. Ainda na 
 165 
 
existido o ―indivíduo de nome Georg Faust, de duvidosa reputação, 
natural de Knittlingen.‖312, mas esta é uma questão a parte. 
Segundo P. Stanford, sua história teria sido inicialmente 
transposta para livro em 1540 por Melancton, um dos seguidores de 
Lutero. Décadas depois, em 1587, o tema foi retomado por Johann 
Spiess, em sua Historia von Dr. Fausten – livro que ficou popularmente 
conhecido como Faustbuch (O livro de Fausto) – e por Christopher 
Marlowe, em sua peça The tragical history of Doctor Faustus (A trágica 
história do Doutor Fausto), apresentada pela primeira vez em 1588 ou 
1592. Ainda de acordo com Stanford, Goethe, em sua versão, teria dado 
―um novo rumo para essa história, aproximando-a do Iluminismo da 
época.‖313. Além disso, também vale dizer que, tal como o Satã de 
Milton, ―seu Mefistófeles bebe em fontes bem diferentes da tradição 
cristã‖314. Mas, antes que passemos a ele, vejamos rapidamente alguns 
elementos da obra. 
τ livro, propriamente falando, é aberto com a ―Dedicatória‖ 
(Zueignung) e o ―Prelúdio no Teatro‖ (Vorspiel auf dem Theater), mas 
sua narrativa tem início com o famoso ―Prólogo no Céu‖ (Prolog im 
Himmel), onde os três arcanjos Rafael, Gabriel e Miguel cantam 
louvores acerca da criação. Mefistófeles, em um claro intertexto com os 
dois capítulos iniciais do Livro de Jó315, está presente entre os ―Filhos de 
 
―Apresentação‖, o historiador/tradutorexplica sinteticamente que ―o clérigo 
Teófilo, através de um contrato escrito, entregou sua alma ao Diabo em troca de 
favores materiais, porém ao se arrepender pôde, com a ajuda da Virgem, 
rescindir tal contrato e salvar-se (capítulo 126, item λ)‖ (VARAZZI, 2003, p. 
19). 
312 THEODOR, 1981, p. 1. Para mais detalhes sobre este ponto, cf. os prefácios 
de Erwin Theodor e Antônio Houaiss para a tradução de Jenny Klabin Segall 
(Ed. Itatiaia, 1981), bem como o interessante livro de Jayme Mason, intitulado 
O doutor Fausto e seu pacto com o demônio: o Fausto histórico, o Fausto 
lendário e o Fausto literário (1989). 
313 STANFORD, 2003, p. 271. 
314 STANFORD, 2003, p. 271. 
315 ―No dia em que os Filhos de Deus vieram se apresentar a Iahweh, entre 
eles veio também Satanás. Iahweh então perguntou a Satanás: "Donde vens?" 
— "Venho de dar uma volta pela terra, andando a esmo", respondeu Satanás. 
Iahweh disse a Satanás: "Reparaste no meu servo Jó? Na terra não há outro 
igual: é um homem íntegro e reto, que teme a Deus e se afasta do mal." Satanás 
respondeu a Iahweh: "É por nada que Jó teme a Deus? Porventura não 
levantaste um muro de proteção ao redor dele, de sua casa e de todos os seus 
bens? Abençoaste a obra das suas mãos e seus rebanhos cobrem toda a região. 
Mas estende tua mão e toca nos seus bens; eu te garanto que te lançará 
 166 
 
Deus‖ e com este faz uma aposta sobre seu servo Fausto. Menciono a 
questão da aposta, pois o livro gira ao seu redor, uma vez que não 
apenas Deus e Mefistófeles fazem uma acerca do destino de Fausto, 
como também este aposta com Mefistófeles – vale dizer, além disso, que 
ambas têm a alma de Fausto como prêmio. O teor desta última aposta é 
o seguinte: Fausto, em sua ânsia de superar a insatisfação que sente – 
tanto no que tange aos seus conhecimentos quanto no que tange às 
sensações316 –, sustenta que Mefistófeles seria incapaz de lhe dar um 
momento tão gratificante, tão pleno de satisfação, que o fizesse 
manifestar o desejo de que aquele instante fosse eterno317. Após o 
―Prólogo no Céu‖, adentramos na tragédia (ou, mais precisamente, no 
drama) em si, a qual, nesta primeira parte, pode-se dizer que gira em 
torno de três grandes eixos: i) a frustração de Fausto com sua vida; ii) a 
aposta (e/ou o pacto) com Mefistófeles; e iii) o ―romance‖ com 
Margarida (Margarette ou Gretchen). Dito isto, passemos à forma como 
Mefistófeles se mostra na trama. 
Sua primeira aparição, conforme dito, ocorre ainda no ―Prólogo 
no Céu‖ e ecoa o início do Livro de Jó; porém, diferentemente deste, no 
qual Satã parece estar em pé de igualdade com os ―Filhos de Deus‖, 
naquele, ele aparece ―rebaixado‖, escarnecido pelos outros anjos por não 
se utilizar da mesma linguagem elevada e não cantar louvores à criação. 
É interessante mencionar, ainda em sua primeira fala, o desdém que 
mostra pela humanidade e seu escárnio para com o uso pobre que ela faz 
da luz divina (a Razão) que lhe foi conferida. Ao que responde o 
 
maldições em rosto." Então Iahweh disse a Satanás: "Pois bem, tudo o que 
ele possui está em teu poder, mas não estendas tua mão contra ele." E 
Satanás saiu da presença de Iahweh.‖ (Jó, 1: 6-12) 
316 ―Mefistófeles: Queres, sem freio ou mira estreita,/ Provar de tudo sem 
medida,/ Petiscar algo de fugida?/ Bem te valha, o que te deleita!/ Porém, 
agarra-o, sem pieguice!// Fausto: Não penso em alegrias, já to disse./ Entrego-
me ao delírio, ao mais cruciante gozo,/ Ao fértil dissabor como ao ódio 
amoroso./ Meu peito, da ânsia do saber curado,/ A dor nenhuma fugirá do 
mundo,/ E o que a toda a humanidade é doado,/ Quero gozar no próprio Eu, a 
fundo,/ Com a alma lhe colher o vil e o mais perfeito,/ Juntar-lhe a dor e o bem 
estar no peito,/ E, destarte, ao seu Ser ampliar meu próprio Ser,/ E, com ela, 
afinal, também eu perecer.‖ (GOETHE, 1981, p. 85) 
317 σo original: ―Werd‘ ich zum Augenblick sagen:/ Verweile doch! Du bist so 
schön!/ Dann magst du mich in Fesseln schlagen,/ Dann will ich gern zugrunde 
gehn!‖ (GτETHE, 2004, p. 33). σa tradução de Jenny K. Segall: ―Se vier um 
dia em que ao momento/ Disser: Oh, pára! és tão formoso!/ Então algema-me a 
contento,/ Então pereço venturoso!‖ (GτETHE, 1λκ1, p. κ3) 
 167 
 
Altíssimo: ―σada mais que dizer-me tens?/ Só por queixar-te, sempre 
vens?/ σada, na terra, achas direito enfim?‖318; e o primeiro ―σão, 
Mestre! acho-o tão ruim quão sempre; vendo-o assim/ Coitados! em seu 
transe os homens já lamento,/ Eu próprio, até, sem gosto os 
atormento.‖319. Destas palavras é possível compreender duas coisas: a 
primeira, que Mefistófeles costuma fazer visitas ao Altíssimo (mesmo 
que esporádicas, conforme ele mesmo diz nos versos finais do 
―Prólogo‖); a segunda, que os seres humanos se incumbem de seus 
próprios males, tanto que até mesmo o demônio perdeu o gosto de 
atormentá-los, embora ainda o faça. Também no ―Prólogo‖, sua 
penúltima fala nos traz uma informação interessante, na qual, já feita a 
aposta, Mefistófeles pede ao Altíssimo que, caso alcance o seu 
propósito, lhe seja permitido exaltar seu triunfo a plenos pulmões320, e 
que Fausto se deleite comendo poeira, ―como a Serpente, minha ilustre 
prima‖321. Assim, diferentemente da exegese cristã e também de Milton, 
Goethe descreve a Serpente como prima do Diabo, e não como sendo 
ele mesmo ou como mero receptáculo de Satã322. Logo abaixo, vemos 
uma das ilustrações de E. Delacroix para a obra de Goethe (Figura 37). 
Um detalhe interessante nela é que Mefistófeles, diferentemente da 
concepção que desde Dante vem sendo propagada, tem asas de anjo, 
emplumadas, e não de morcego. 
A próxima aparição de Mefistófeles ocorre na cena em que 
Fausto e Wagner, seu discípulo (ou orientando, como diríamos hoje), 
estão dando um passeio pela cidade e percebem um ―cão negro a errar 
 
318 GOETHE, 1981, p. 36. 
319 GOETHE, 1981, p. 37. 
320 Que vai ecoar em Machado de Assis no conto ―A igreja do Diabo‖, quando o 
narrador afirma que ―τ Diabo alçou brados de triunfo.‖. 
321 GOETHE, 1λκ1, p. 3κ. σo original: ―Wenn ich zu meinem Zweck gelange,/ 
Erlaubt Ihr mir Triumph aus voller Brust./ Staub soll er fressen, und mit Lust,/ 
Wie meine Muhme, die berühmte Schlange.‖ (GOETHE, 2004, p. 8 – grifo 
meu). O que, traduzindo ao pé da letra fica assim: ―Se meu objetivo for 
alcançado,/ Permita Vós que meu triunfo a viva voz seja exaltado./ Pó deveria 
ele comer, e com deleite,/ Como minha prima, a ilustre (ou célebre) 
Serpente.‖.Vale mencionar que, mais adiante, na cena em que, usando a 
aparência de Fausto, Mefistófeles conversa com um Estudante que veio pedir 
conselhos, ele repete a afirmação de que a Serpente é sua prima. 
322 Torno a dizer que não há como saber se Goethe faz, efetivamente, uma 
distinção entre Mefistófeles e Satã. No entanto, ao chamá-la de ―prima‖ 
(Muhme), Mefistófeles parece excluir a possibilidade de que ela seja Satã. 
 168 
 
pelo restolho e seara‖323, que está a rondá-los (Figura 38). Fausto 
desconfia do perro, mas Wagner o dissuade da ideia e eles logo 
chamam-no para perto. 
 
Figura 37: Mefistófeles voando sobre Wittenberg, de E. Delacroix (1828). 
 
Fonte: http://cdn8.openculture.com/wp-content/uploads/2015/06/faust-
princeton.jpg Acesso em: 14/01/2019. 
 
 
 
 
323 GOETHE, 1981, p. 65. 
 169 
 
Figura 38: Wagner, Fausto e o cão negro, de Delacroix. 
 
Fonte: http://4.bp.blogspot.com/--
Q4xbJQ6MAc/TxSXu_nKrjI/AAAAAAAACug/4LrihSFt5ZM/s1600/faust.wag
ner.meph.jpg Acesso em: 14/01/2019. 
 
σa cena seguinte, Fausto está retornando ao seu ―gabinete‖ com o 
cão junto a si. Uma vez lá, Fausto passa a discorrer sobre seu atual 
estado de espírito324 e o animal a farejar o aposento, tão agitado que 
chega a incomodar o doutor. Ele manda que o perro se cale e começa a 
trabalhar na tradução do Evangelho segundo São João, quando, de 
repente,o cão começa a uivar e a ganir. Fausto manda que ele se vá, mas 
algo espantoso acontece. Eis sua fala: 
 
Mas que me surge à vista?/ Não é possível que 
isso exista!/ Meu perro! que alto fica e enorme!/ 
Que violento se ergue do chão!/ Isto não é forma 
para um cão!/ Que assombração trouxe eu pra 
casa!/ Um hipopótamo parece já,/ Com guela 
atroz, olhos em brasa. (GOETHE, 1981, p. 68 – 
grifos meus) 
 
 
324 Pouco antes de seu passeio com Wagner, Fausto havia levado uma taça de 
veneno à boca para cometer suicídio, mas foi interrompido pelo ―Coro dos 
anjos‖ e o ―Coro das mulheres‖, que celebravam a Páscoa, isto é, a ressurreição 
de Cristo. Na cena de agora, logo no início, vemos sua esperança sendo 
reanimada aos poucos. 
 170 
 
Fausto procura dominar a situação com um feitiço de um 
grimório chamado Chave ou Clavícula de Salomão. Ele tenta se valer de 
um encanto cujo efeito recai sobre os quatro elementos, mas, como 
Mefistófeles não é feito de nenhum deles, ele não reage. Fausto apela 
para outro feitiço mais poderoso (ou mais adequado para o exorcismo), e 
então o perro 
 
Preso atrás do fogão, gigante/ Incha-se como um 
elefante,/ Sobe alto, enchendo o quarto inteiro,/ 
Tende a dissolver-se em nevoeiro./ Não subas 
para o teto em esparramo!/ Deita-te aos pés de teu 
mestre, de teu amo!/ Já vês que em vão eu não te 
ameaço./ Com luz sagrada em pó te faço!/ Não 
chames, não,/ O tríplice flâmeo clarão!/ Não 
chames, não./ Meu lance mais devastador! 
(GOETHE, 1981, p. 70 – grifo meu) 
 
Logo após, ―a neblina se dissolve‖ e ―Mefistófeles sai por detrás 
do fogão, vestido como um escolar viandante‖325. Em sua primeira fala 
dirigindo-se a Fausto, pergunta: ―Por que o barulho? Estou às ordens do 
senhor!‖326 (Figura 39). Eles trocam algumas palavras, e Fausto 
pergunta-lhe o nome. Mefistófeles se esquiva da resposta, mas o doutor 
insiste em perguntar-lhe quem é. Embora as partes importantes da 
resposta de Mefistófeles pudessem ser mencionadas em pequenas 
citações, trago o trecho em quase toda sua extensão a fim de dar ao 
leitor uma visão mais detalhada do diálogo que se trava entre eles. Ei-lo: 
 
MEFISTÓFELES: 
Sou parte da Energia 
Que sempre o Mal pretende e que o bem 
sempre cria.327 
 
325 GOETHE, 1981, p. 70 – grifo meu. σo original: ―wie ein/ fahrender 
Scholastikus‖. (GτETHE, 2004, p. 25-26) 
326 GOETHE, 1981, p. 70. 
327 σo original: ―Ein Teil von jener Kraft,/ Die stets das Böse will und stets das 
Gute schafft.‖ (GOETHE, 2004, p. 26). Trago a frase no original, para ajudar na 
compreensão. Se entendi corretamente, Mefistófeles está dizendo que é parte do 
Poder (Kraft) que quer fazer o mal, mas que acaba criando o bem. Se assim for, 
sua resposta parece ser um eco invertido da fala de Satã a Belzebu em Paraíso 
Perdido, na qual se lê o seguinte: ―τ bem jamais será nossa tarefa,/ Mas o mal 
nosso único prazer,/ Como o oposto da altíssima vontade/ Que combatemos. Se 
então a presciência/ Propuser outro bem do nosso mal,/ Deve ser mister 
 171 
 
FAUSTO: 
Com tal enigma, que se alega? 
MEFISTÓFELES: 
O Gênio sou que sempre nega! 
E com razão; tudo o que vem a ser 
É digno só de perecer; 
Seria, pois, melhor, nada vir a ser mais. 
Por isso, tudo a que chamais, 
De destruição, pecado, o mal, 
Meu elemento é, integral. 
FAUSTO: 
Mostras-te inteiro e dizes que és 
parcela? 
MEFISTÓFELES: 
Verdade, afirmo-te, singela. 
Quando o homem, o pequeno mundo 
doudo, 
Se tem habitualmente por um todo; 
Parte da parte eu sou, que no início tudo 
era, 
Parte da escuridão, que à luz nascença 
dera, 
À luz soberba, que ora, em brava luta, 
O velho espaço, o espaço à Noite-Mãe 
disputa; 
Tem de falhar, porém, por mais que aspire 
à empresa, 
Já que ela adere aos corpos, presa. 
Dos corpos flui, beleza aos corpos dá, 
Um corpo impede-lhe a jornada; 
Creio, pois, que não dure nada, 
E é com os corpos que perecerá. 
(GOETHE, 1981, p. 71-72 – grifos meus) 
 
 
 
 
 
 
 
 
nosso pervertê-lo,/ E do bem achar meios para o mal,/ O que sucede amiúde, 
e assim talvez/ O moleste, salvo erro, e desoriente/ Seus íntimos conselhos do 
alvo quisto.‖ (I, 15λ-168 – grifo meu) 
 172 
 
Figura 39: Fausto e Mefistófeles, de Delacroix. 
 
Fonte: https://i0.wp.com/www.brainpickings.org/wp-
content/uploads/2015/04/delacroixfaust5.jpg?w=600&ssl=1 Acesso em: 
14/01/2019. 
 
A próxima cena que nos interessa ocorre pouco depois. 
Mefistófeles, que havia fugido do quarto de Fausto onde estava preso 
por conta de um pentagrama desenhado na parede, retorna agora por 
conta própria e pede para que seja convidado a entrar, desejo que é 
satisfeito pelo doutor. Ao que Mefistófeles exclama: 
 
Bem, assim me agradas./ Havemos de ser 
camaradas!/ Para que as cismas vãs te enxote,/ 
Vim como nobre fidalgote,/ Em rubras vestes 
de veludo,/ Capa de rígido cetim,/ Pena de galo 
no chapéu pontudo,/ Afiada a ponta do 
espadim. (GOETHE, 1981, p. 78 – grifo meu) 
 
Esta cena é importante por apontar sua nova feição – já o vimos 
como cão negro, como neblina, como um escolar viandante –, agora 
vestido como fidalgo. Vale dizer que é a partir dessa descrição que 
Delacroix fez algumas de suas ilustrações (Figura 40). 
 
 173 
 
Figura 40: Fausto, Margarida e Mefistófeles, de Delacroix. 
 
Fonte: http://www.ideafixa.com/oldsite/wp-
content/uploads/2015/05/delacroixfaust8.jpg Acesso em: 14/01/2019. 
 
Outra passagem que nos interessa ocorre na cena da Taberna de 
Auerbach, na qual Siebel, um dos convivas, ao dar as boas-vindas aos 
forasteiros (Fausto e Mefistófeles), pergunta-se em voz baixa, olhando 
para Mefistófeles, ―Por que é que manca o bruto de uma perna?‖328. Esta 
pergunta remete à tradição popular, na qual se acredita que o Diabo é 
manco por conta de sua queda no Inferno, pois se apoiou em um de seus 
pés, o que o teria deixado eternamente manco. Ainda na Taberna, 
Mefistófeles se utiliza de ilusões para enganar aos beberrões. 
A próxima cena em que encontramos algumas descrições de 
nossa personagem ocorre na ―cozinha da Bruxa‖. Esta última, 
retornando ao lar após alguns de seus afazeres, depara-se com dois 
intrusos, Fausto e Mefistófeles, e se assusta com sua presença. Nisso, ela 
―introduz com violência a escumadeira no caldeirão e despeja chamas 
sobre Fausto, Mefistófeles e os animais‖329 que estavam presentes. 
Encolerizado com a recepção, Mefistófeles passa um sermão na Bruxa. 
 
328 GOETHE, 1981, p. 101. 
329 GOETHE, 1981, p. 117. 
 174 
 
Seu diálogo, pelas informações que traz, vale ser observado em toda sua 
extensão: 
 
MEFISTÓFELES: 
Sabes quem eu sou? monstro, esqueleto 
infando! 
 
Vês teu senhor e amo, e não pasmas? 
Por pouco não te arraso e a este teu bando 
Monstruoso de animais fantasmas! 
Não tens respeito ao gibão rubro? 
Não vês a pena azul de galo? 
Meu rosto acaso não descubro? 
Meu nome ignoras? devo eu declará-lo? 
A BRUXA: 
Perdoai-me, ó mestre, a rude saudação! 
Nenhum pé de cavalo vejo. 
E os vossos corvos, onde estão? 
MEFISTÓFELES: 
Desta vez saís-te ainda do gracejo, 
Pois deveras um bocado 
Que não nos temos encontrado. 
A cultura, outrossim, que lambe o 
mundo, à roda, 
Tem-se estendido sobre o diabo; 
O nórdico avejão já não está na moda; 
Onde vês garras, chifres, rabo? 
E quanto ao pé, que não dispenso, sinto 
Que em público me faz de mal visto e de 
intruso; 
Eis por que, como mais de um fidalgão 
distinto, 
Há tempos panturrilhas falsas uso. 
A BRUXA: 
(dançando freneticamente) 
Perco a razão, perco o sentido, 
Ao ver Dom Satanás de novo aqui 
metido! 
MEFISTÓFELES: 
Mulher, proíbo esse apelido! 
A BRUXA: 
Por quê? que vos tem ele feito? 
MEFISTÓFELES: 
No livro das ficções de há muito está 
gravado; 
 175 
 
Mas, para os homens, sem proveito, 
O Gênio Mau se foi, mas os maus têm 
ficado. 
Sou cavalheirocomo os mais, aliás; 
Podes chamar-me de Senhor Barão; 
De meu fidalgo sangue não duvidarás; 
Olha pra cá, eis meu brasão! 
(Faz um gesto obsceno) 
(GOETHE, 1981, p. 118-119 – grifos meus) 
 
Um ponto a ser realçado é quando a Bruxa questiona Mefistófeles 
acerca dos ―nórdicos avejões‖, os quais parecem fazer referência aos 
corvos de Odin, Huginn (pensamento) e Muninn (memória ou mente), 
um sinal da incorporação de elementos de divindades de outros cultos 
como sinais demoníacos. Mas, ainda mais interessante é perceber que, 
apesar de se proclamar o ―senhor e amo‖ da Bruxa, Mefistófeles parece 
dar mais ênfase ao ―gibão rubro‖ e à ―pena azul de galo‖ como sinais de 
distinção que o fazem merecedor de respeito, do que à sua condição de 
senhor das trevas. A possibilidade dessa interpretação é reforçada não 
apenas quando, logo em seguida, explica que ―para os homens, sem 
proveito,/ τ Gênio Mau se foi‖ e que ―os maus têm ficado‖, mas 
também quando proíbe ser chamado de ―Dom Satanás‖ (Junker330 
Satan) e manifesta o desejo de ser chamado doravante de ―Senhor 
Barão‖ (Herr Baron). Em outras palavras, a partir de agora, o Demônio 
como símbolo do Mal (com letra capital) passa a ser uma fábula, embora 
ainda existam os homens maus e suas ações maléficas. Com isso, 
Goethe parece estar tecendo um comentário (e uma crítica) sobre a 
Modernidade, em especial à Aufklärung, que teria colaborado para a 
diminuição na crença dos poderes do Demônio para causar o mal, mas 
que, no entanto, não teria auxiliado a erradicar a maldade da 
humanidade e seus sofrimentos auto-infligidos. Seguindo nessa linha de 
raciocínio, é interessante trazer a síntese feita por R. Muchembled, 
quando explica que 
 
Mefistófeles [...] conserva traços antigos, tal 
como os pés fendidos ora escondidos por 
calçados, mas [não possui] nem os cornos nem a 
 
330 De acordo com o Dicionário Online Pons, o termo significa ―jovem fidalgo, 
nobre proprietário de terras‖. O termo também é utilizado em inglês com o 
sentido de ―landowner‖ (proprietário de terras‖, mas, de acordo com Cambridge 
Dictionary, ele tem um sentido pejorativo. 
 176 
 
cauda, tornando-se sobretudo uma face sombria 
do sujeito pensante. O autor reúne assim os 
principais traços de uma evolução iniciada em 
meados do século XVII, e acentuada nos anos 
de 1720-1730. O Satã infernal perdeu a partida, 
apesar do vigor das reações de seus defensores, 
em favor de um demônio mais familiar, 
diretamente ligado a cada mortal: o inferno é, 
antes de mais nada, o próprio homem, como 
proclamam cada vez mais artista e autores que se 
debruçam sobre as profundezas da natureza 
humana. (MUCHEMBLED, 2001, p. 215 – grifos 
meus, acréscimo meu entre colchetes) 
 
Assim, com o inferno sendo, ―antes de mais nada, o próprio 
homem‖, cabe assinalar, juntamente com P. Stanford, a semelhança que 
o Mefistófeles goetheano apresenta com o Martin da obra Cândido, de 
Voltaire, bem como o fato de ele também ser ―um crítico irônico e 
ameaçador da sociedade.‖331. Ainda na esteira de Stanford, também é 
interessante notar que, enquanto personagem, Mefistófeles ―é 
simultaneamente um observador desinteressado e um demônio 
ativo, além de ser também porta-voz do anticristianismo e uma metáfora 
do lado menos atraente da vida.‖332. Apenas para finalizar, trago as 
palavras de Stanford uma vez mais para ressaltar que 
 
A genialidade do Fausto de Goethe pode ser 
atribuída ao tratamento subversivo que a lenda 
recebeu do autor. σa cena da ―cozinha da bruxa‖, 
por exemplo, o diabólico Mefistófeles recua 
para lançar o olhar crítico sobre si mesmo e 
melhor observar suas próprias fraquezas, de 
maneira a se colocar distante de sua antiga 
figura sinistra e ameaçadora. Mas, afora isso, os 
chifres e o rabo já não existem nele, embora os 
cascos fendidos da sua antiga armadura 
 
331 STANFORD, 2003, p. 271. Sobre esse ponto, cf. o interessante artigo de 
Luciano Souza intitulado ―A crítica pelo escárnio: notas sobre o sarcástico 
discurso mefistofélico na primeira parte do Fausto de Goethe.‖. Revista 
Magma, 12. ed., 2015/2. Disponível em: 
<http://www.periodicos.usp.br/magma/article/view/96784>. Acesso em: 14 jan. 
2019. 
332 STANFORD, 2003, p. 271 – grifo meu. 
 177 
 
permaneçam ocultos dentro dos seus sapatos. As 
palavras de Goethe parecem, portanto, estar 
avalizando o declínio do Diabo na época do 
Iluminismo, até porque o personagem satânico 
já não pode mais ser identificado no meio da 
multidão; agora o mal é mais sutil, um pouco 
mais pernicioso, e, no que concerne a 
Mefistófeles, menos sincero e bem mais 
complexo e inseguro em suas motivações. 
(STANFORD, 2003, p. 272 – grifos meus) 
 
4.1.5 Pedagogia satânica – O Satã de Macário 
 
―Quando me quiseres é fácil chamar-
me. Deita-te no chão com as costas 
para o céu; põe a mão esquerda no 
coração: com a direita bate cinco vezes 
no chão, e murmura: – Satã!‖ 
(Álvares de Azevedo) 
 
Para encontrar nosso último representante da tradição e nobre 
conviva desse festim diabólico, daremos agora um salto sobre o 
Atlântico e chegaremos à ―Terra Brasilis‖. Assim, o leitor poderá, então, 
dar um caloroso ―τlá!‖ ao Satã de Macário (1855), de Álvares de 
Azevedo. Embora mantenha alguns traços da linhagem da cultura 
popular, o Satã do poeta da Lira dos Vinte Anos possui traços que 
lembram o Mefistófeles de Goethe. Ele é bastante irônico e espirituoso, 
porém, não tem cheiro de enxofre, nem chifres, nem rabo. Mas, antes 
que nos detenhamos em seus traços, vejamos de que forma Álvares de 
Azevedo articulou sua peça/conto/romance. 
O livro se inicia com uma espécie de prefácio-manifesto 
intitulado ―Puff‖, que pode ser visto como uma justificativa para a 
forma de sua composição. Nele, o jovem poeta expressa algumas de 
suas ―ideias teóricas sobre o drama‖ e aponta diversos elementos de 
vários autores (gregos, ingleses, espanhóis e alemães) que gostaria de se 
utilizar em suas composições333. A narrativa é dividida em dois 
episódios: no primeiro, com quatro cenas, vemos Macário chegar em 
 
333 Vale mencionar que, posteriormente, em uma crítica de 1879 a Antônio José, 
na Revista Dramática, Machado de Assis defenderia algo muito semelhante em 
sua ―teoria do molho‖ (como a denominou Afrânio Coutinho), isto é, que o 
escritor ―pode ir buscar especiaria alheia, desde que seja para temperá-la com o 
molho de sua fábrica.‖. Cf. ASSIS, 1λλ4, II, p. ι2ι. 
 178 
 
uma estalagem de beira de estrada, onde, logo após, encontrará um 
Desconhecido, o qual posteriormente descobrimos ser Satã, que o levará 
em viagem até uma cidade que tem nome ―de um santo‖; no segundo 
episódio, com dez cenas, muda-se de foco e de lugar: agora, a cena se 
passa na Itália e, embora ainda apareça na segunda cena e retorne no 
final da trama, o enfoque não é mais o diálogo entre Satã e Macário, mas 
entre este e Penseroso, seu amigo334. 
É válido lembrar que, em seu ensaio ―A educação pela noite‖, 
Antonio Cândido afirma que Álvares de Azevedo teria feito ―um 
desdobramento da clássica dupla Homem/Diabo, tão em voga no 
Romantismo‖335 e acredita que, sendo assim, Penseroso, Satã e Macário 
podem ser vistos, respectivamente, como ―Homem-Angélico, Homem 
Diabólico e Homem Homem‖336. Além disso, mais adiante, o autor 
também sugere um ―desdobramento do ser‖ do próprio Macário, sendo 
Penseroso e Satã os seus ―outros‖337. Nesse sentido, Macário seria uma 
espécie de ―frágil síntese de ambos, encarnando a suprema ‗binômia‘ do 
bem em face do mal, das forças que arrastam para os impulsos 
‗inferiores‘ e das que resistem a elas‖338. Dito isto, passemos à 
personagem. 
Conforme dito, o Satã de Macário, além de seu tom mordaz e 
zombeteiro, características que figuram igualmente no Diabo da cultura 
popular e naquele retratado por Gil Vicente, também possui traços que 
lembram o Mefistófeles de Goethe, isto é, ele ―perde‖,ou melhor, deixa 
de lado algumas de suas características populares, como o rabo, o 
tridente, os chifres, o cheiro de enxofre e passa a ostentar a imagem de 
um cidadão do mundo, uma imagem mais cosmopolita. Além disso, o 
Satã azevediano se mostra, em diversos pontos, assaz erudito, citando 
obras e personagens literárias em meio a suas falas. 
Em seu texto ―τ demônio de Álvares de Azevedo‖ (1λλ5) para a 
Folha de São Paulo, Décio de Almeida Prado parece ser da mesma 
opinião, uma vez que, para o crítico, o Satã de Macário é ―moderno, 
nórdico, aristocrático‖ e ―pouco tem a ver com o velho demônio do 
cristianismo‖; suas falas, principalmente no que tange à cidade para 
 
334 Diante da profusão de cenas e acontecimentos, é difícil resumir este segundo 
episódio de forma mais adequada. 
335 CÂNDIDO, 1989, p. 14. 
336 CÂNDIDO, 1989, p. 14. 
337 CÂNDIDO, 1989, p. 18. 
338 CÂNDIDO, 1989, p. 14. 
 179 
 
onde se dirigem339, são corroídas ―pelo ceticismo e pelo espírito de 
maledicência‖. Além disso, ainda nas palavras do autor, ―seu aspecto 
físico é tão agradável, tão contrário à ideia do Mal absoluto, que ele tem 
de recorrer à eloquência para persuadir Macário quanto à sua verdadeira 
identidade‖. Como exemplo, o autor nos traz a passagem em que 
Macário pergunta ―E tu és mesmo Satã?‖, ao que este responde: 
 
É nisso que pensavas? És uma criança. Decerto 
que querias ver-me nu e ébrio como Calibã, 
envolto no tradicional cheiro de enxofre! 
Sangue de Baco! Sou o diabo em pessoa! Nem 
mais nem menos: porque tenha luvas de pelica, 
e ande de calças à inglesa, e tenha os olhos tão 
azuis como uma alemã! Queres que to jure pela 
Virgem Maria? (AZEVEDO, 2014, p. 46 – grifos 
meus) 
 
 Assim, de forma semelhante ao Mefistófeles goetheano, o Satã 
de Macário se adequa à imagem moderna, perdendo algumas de suas 
principais características esboçadas na cultura popular, mantendo, 
todavia, os pés de cabra (ou de cavalo, no caso de Goethe). Outro 
paralelo interessante com Goethe foi traçado por Francisco Roberto 
Szezech Innocêncio, em sua dissertação Um Fausto sem Mefistófeles: o 
mito de Fausto na obra Macário, de Álvares de Azevedo (2007). 
Conforme aponta este autor, o Satã de Macário, tal como o Mefistófeles 
de Goethe, parece ser afeito a rituais340. Innocêncio explica que 
enquanto este último, para poder sair do aposento de Fausto precisa que 
o pentagrama que está na porta seja desfeito e para poder retornar 
precisa ser convidado três vezes, o primeiro, por sua vez, vai entrar na 
pensão justamente no momento em que Macário profere uma blasfêmia 
e atira o prato na cabeça da estalajadeira. De acordo com o autor, esta 
cena ―refere-se à crença popular segundo a qual proferir heresias 
 
339 Conforme aponta o crítico, as poucas informações que recebemos – ―tem o 
nome de um santo; foi fundada por jesuítas; é um centro estudantil; não fica 
muito distante do mar, separando-se dele, contudo, por uma escarpada subida de 
terra‖ – são precisas o suficiente para identificá-la como São Paulo. No entanto, 
lembrando as palavras de Antonio Cândido, o crítico faz uma ressalva: ―Será 
com certeza São Paulo, mas transfigurada pelo que Antonio Cândido qualificou, 
apropriadamente, de ‗invenção literária da cidade de São Paulo‘.‖ (PRADτ, 
1995, s/p) 
340 Cf. INNOCÊNCIO, 2007, p. 117-118. 
 180 
 
envolvendo alusões ao demônio é o suficiente para invocar sua 
presença.‖341. É válido mencionar que, embora já tenham se ―esbarrado‖ 
por duas vezes no caminho até a estalagem, o diálogo entre Satã e 
Macário só inicia a partir deste ponto. 
Conforme mencionado por Décio Prado, o aspecto físico de Satã, 
ao que tudo indica, é bastante agradável, dado seu trajar (praticamente 
como um ―cavalheiro‖). σo entanto, conforme aponta o autor em seu 
texto, sua condição infernal se mostra por algumas características. Uma 
delas é a frieza de seu corpo, inicialmente mencionada na conversa a 
respeito do primeiro encontro entre ambos, quando o Desconhecido, 
vestido ―com um ponche vermelho e preto‖342, teria roçado com a bota 
em sua perna, a qual, segundo a personagem, era ―fria como o focinho 
de um cão.‖343, e, posteriormente mencionada acerca de suas mãos344, 
quando Macário e o Desconhecido brindam após este ter lhe fornecido 
um pouco de vinho. Aliás, o crítico ainda comenta que a garrafa de 
vinho e o cachimbo já pronto para ser aceso na vela também se mostram 
como ―truques do ofício‖ que também delatariam sua condição infernal. 
Vale dizer que a cena do vinho faz uma espécie de eco à da ―Taberna de 
Auerbach‖, no Fausto de Goethe, na qual Mefistófeles distribui 
diferentes tipos de bebidas para os presentes. 
Outro ponto interessante da peça ocorre quando Macário está 
idealizando as belas mulheres que irá encontrar na cidade para onde vão, 
comparando-a com o ―Paraíso de Mafoma‖ (Maomé), e Satã, destruindo 
suas fantasias e o fazendo tornar à ―realidade‖, afirma que a única que 
ele ganhará ―será nojenta‖345. Trava-se, então, o seguinte diálogo: 
 
MACÁRIO: És o diabo em pessoa. Para ti nada 
há bom. Pelo que vejo, na criação só há uma 
perfeição, a tua. Tudo o mais nada vale para ti. 
Substância da soberba, ris de tudo o mais 
embuçado no teu desdém. Há uma tradição, que 
quando Deus fez o homem, veio Satã; achou a 
criatura adormecida, apalpou-lhe o corpo: 
achou-o perfeito, e deitou aí as paixões. 
SATÃ: Essa história é uma mentira. O que 
Satã pôs aí foi o orgulho. E o que são vossas 
 
341 INNOCÊNCIO, 2007, p. 118. 
342 AZEVEDO, 2014, p. 19. 
343 AZEVEDO, 2014, p. 19. 
344 AZEVEDO, 2014, p. 20. 
345 AZEVEDO, 2014, p. 43. 
 181 
 
virtudes humanas senão a encarnação do 
orgulho? (AZEVEDO, 2014, p. 43 – grifos meus) 
 
Este trecho nos interessa por alguns motivos. O primeiro, pela 
possibilidade de paralelo com o ―Prólogo no Céu‖, do Fausto de 
Goethe, quando Mefistófeles reclama da humanidade e o Altíssimo lhe 
responde: ―σada mais que dizer-me tens?/ Só por queixar-te, sempre 
vens?/ Nada, na terra, achas direito enfim?‖346; o segundo, por nos 
mostrar que, assim como para Milton, na concepção de Álvares de 
Azevedo, o orgulho é uma das características de Satã; e o terceiro, por 
fim, pelo paralelo que posteriormente iremos traçar com o conto ―Adão 
e Eva‖, de Machado de Assis. 
Outro aspecto do Satã de Azevedo que vale a pena mencionar é 
que, diferentemente de Milton e de outros românticos, ele é menos um 
herói revoltado do que um pedagogo. Menciono esse aspecto pensando, 
principalmente, no referido texto de A. Cândido, ―A educação pela 
noite‖. σesse texto, o autor aventa a hipótese de que a Noite na taverna 
seria uma continuação para Macário, dado o seu final que clama por 
uma continuação, bem como pela cena assaz similar que se passa entre 
ambas. Segundo Cândido, Satã ―quer iniciar Macário nos aspectos mais 
convulsos e extremos da vida, satisfazendo como se fosse um alter-ego 
a curiosidade de seus impulsos.‖347. Assim, prossegue o autor mais 
adiante, a Noite na taverna seria uma espécie de pesquisa das fronteiras 
dúbias que o poeta aborda em seu prefácio-manifesto, e ―sua matéria 
parece concebida e escolhida por Satan [sic] como episódio duma 
espécie de anti-Bildungsroman, que ele propusesse para a formação às 
avessas do seu pupilo.‖348. Cândido também argumenta que 
 
Se estruturalmente o Macário e A noite na taverna 
estão ligados, no que toca aos significados 
profundos haveria nesta ligação uma pedagogia 
satânica visando a desenvolver o lado escuro do 
homem, que tanto fascinou o Romantismo e tem 
por correlativo manifesto a noite, cuja presença 
envolve as duas obras e tantas outras de Álvares 
de Azevedo como ambiente e signo. (CÂNDIDO, 
1989, p. 18) 
 
 
346 GOETHE, 1981, p. 36. 
347 CÂNDIDO, 1989, p. 15. 
348 CÂNDIDO, 1989, p. 15-16. 
 182 
 
É nesse sentido, explica Cândido,que, se Satã e Penseroso são 
uma espécie de desdobramento da personalidade de Macário, o primeiro 
lhe propõe uma espécie de ―educação pela noite‖ (expressão que faz 
alusão à ―educação pela pedra‖, de João Cabral de Melo σeto), a qual, 
consoante as palavras do crítico, ―partiria das conotações de mistério e 
treva, para chegar a um discurso aproximativo ou mesmo dilacerado, 
como convém ao derrame sentimental unido à liberação das potências 
recalcadas do inconsciente.‖349 
Para finalizar, gostaria de trazer alguma ilustração da figura do 
Satã de Álvares de Azevedo. Digo que gostaria, pois, infelizmente, ao 
que parece, até agora não foi feita nenhuma ilustração das personagens, 
salvo aquelas utilizadas na composição das capas, as quais quase nunca 
levam em conta o conteúdo do texto. Destarte, trarei apenas uma, que, 
dentre todas, me pareceu a mais adequada e a mais condizente com 
aquilo que se lê na obra. Note o leitor que, se este é Satã, e imagino que 
seja, ele não traz nenhum dos traços clássicos que o caracterizam, nem 
mesmo a barbicha ou os pés de bode e está vestido como um cavalheiro, 
sinal de que o Mal, agora, caminha despercebido entre os homens. 
 
Figura 41: Capa Ed. Mercado Aberto. 
 
Fonte: 
http://d1pkzhm5uq4mnt.cloudfront.net/imagens/capas/956078424e601fe5385df
654c9f9756d8fb3016f.jpg Acesso em: 14/01/2019. 
 
349 CÂNDIDO, 1989, p. 18. 
 183 
 
4.2 Uma (con)fusão dos Diabos… 
 
Esboçados os perfis de todos os convidados, isto é, dos 
representantes daquilo que chamei de tradição diabólica, podemos 
observar agora os traços em que se assemelham e em que se distinguem, 
bem como se algum traço se sobressai mais em um dos textos ou em 
outros. Em suma, vejamos o que Machado de Assis deixa de lado e o 
que mantém da tradição. 
Comecemos pelo conto ―A igreja do Diabo‖. Sobre este Diabo, é 
possível dizer que ele é uma mistura, uma fusão dos traços de pelo 
menos três dos cinco representantes da tradição diabólica, a saber, do 
Diabo vicentino, do Satã miltoniano e do Mefistófeles goetheano. Ele 
carrega traços do Satã miltoniano por sua estadia no Inferno; por seus 
traços varonis, bem como por seus olhos ―acesos de ódio‖ e ―ásperos de 
vingança‖; por sua resolução de se opor ao Céu não com uma batalha, 
mas com um ardil (isto é, pela fundação de uma igreja, pervertendo 
assim o sentido de algo sagrado); por todos os sentimentos que expressa, 
como o sentimento de humilhação, o seu amor-próprio, o assombro, a 
desorientação, a agonia, a raiva, etc.; pela atitude de tentar afastar a 
humanidade de Deus. Do Diabo vicentino por sua eloquência e ironia, 
traços que compartilha com os outros dois; por seus ―braços abertos‖, 
recebendo a todos, mesmo os mais tementes a Deus, contanto que se 
prestem a seguir seus preceitos, é claro. Do Mefistófeles goetheano, por 
sua ida ao Céu, o que também o aproxima do Satã do Livro de Jó; por 
seu ceticismo em relação ao bem praticado pelo velho que acabara de 
chegar; por afirmar ser ―o espírito que nega‖; pelas promessas que faz 
àqueles que o seguirem. Outro ponto que o liga a todos os três é sua 
feição, que aparentemente, pelo silêncio do conto, nada tem de horrenda. 
Vale complementar, no entanto, que, em certa medida, o Diabo deste 
conto também se aproxima do Diabo da cultura popular, especialmente 
pelo fato de ser o enganador que, no final, acaba sendo enganado. Além 
disso, também seria possível aproximá-lo do Satã azevediano por sua 
erudição, pois, enquanto um cita diversas obras e personagens literárias 
para dar maior efeito a suas falas, o outro se utiliza de obras e 
personagens históricas e literárias para justificar seus argumentos; e 
ainda pela subversão de valores que ambos fazem, uma vez que 
enquanto o Satã de Macário associa as virtudes humanas ao orgulho, o 
Diabo machadiano associa diversos pecados às suas respectivas virtudes 
contrárias. Há ainda outro ponto que, dependendo da forma que o leitor 
interpreta, pode ligar o Diabo machadiano ao Lúcifer dantesco, a saber, 
suas asas, que, pela falta de descrição no conto, pode ser imaginada 
 184 
 
tanto emplumada quanto lisas, tal qual as dos morcegos; vale frisar, no 
entanto, que esta é uma mera especulação 
σo segundo conto, ―Adão e Eva‖, existem certos contrastes entre 
o Diabo que aparece e aqueles que acabamos de ver. No entanto, por 
mais paradoxal que possa parecer, é justamente seu contraste que nos 
faz lembrar delas e possibilita aproximá-los. Para esclarecer esse 
―paradoxo‖, precisarei efetuar uma espécie de teologia negativa do 
Diabo deste conto. Uso o termo teologia negativa, pois, dada a escassez 
de descrição da personagem nesse conto, é bastante difícil tecer 
afirmações consistentes. Por isso, pretendo, inicialmente, apontar aquilo 
que ele não é e/ou não faz e realçar o mencionado contraste. Vejamos, 
em primeiro lugar, o exemplo de Dante. 
Com exceção do antagonismo, ou melhor, do paralelo negativo 
que faz com Deus, o Diabo deste conto em nada parece se assemelhar ao 
Lúcifer da Divina Comédia; ele não é gigantesco, ele não é horrendo, ele 
não está preso no Abismo e tampouco pode mastigar pecadores, uma 
vez que ainda não existe humanidade. Também não podemos dizer que 
se assemelha ao Diabo do Auto da Barca do Inferno, pois, dada a 
ausência de pecadores, além de não haver acusações e pessoas para levar 
para o Inferno, nós também mal o vemos falar. Com algumas ressalvas, 
talvez fosse possível aproximá-lo ao Satã de Paraíso Perdido, na 
medida em que seu plano para a queda do primeiro casal é o mesmo – 
fazê-los comer da Árvore do Conhecimento (ou ―da ciência do Bem e do 
Mal‖) -; é preciso lembrar, todavia, que isso já está em Gênesis, 
capítulo 3, e que, além disso, diferentemente do Satã de Milton, que vai 
em pessoa até o Jardim do Éden e entra no corpo da Serpente para falar 
com Eva, o Tinhoso, neste conto, ―não podia ir ao paraíso, onde tudo lhe 
era avesso‖ e por isso manda a Serpente, sua filha. Neste ponto, isto é, 
no caso da Serpente, vale lembrar que Machado de Assis se distancia 
tanto da Bíblia, ou, para ser mais preciso, do Livro do Apocalipse, 
quanto de Milton e de Goethe, uma vez que seu Diabo não é a ―antiga 
serpente‖, e ele tampouco se instala em seu corpo, assim como também 
não é seu primo, mas seu pai/criador – algo que também diverge da 
narrativa de Gênesis 3, na qual se lê que Iahweh havia criado a serpente; 
nós também não o vemos como guerreiro, como líder de uma hoste de 
anjos rebeldes, como estrategista militar ou como explorador de novos 
mundos, mas como criador do mundo (mesmo que com intervenções do 
Altíssimo), ponto este que também diverge de todos os outros, inclusive 
da narrativa bíblica e do Catecismo da Igreja Católica, pois de acordo 
com o §31κ do livro, ―[n]enhuma criatura tem o poder infinito que é 
necessário para ‗criar‘ no sentido próprio da palavra, isto é, produzir dar 
 185 
 
o ser àquilo que não o tinha de modo algum (chamar à existência ‗ex 
nihilo‘).‖350. No que tange ao Mefistófeles do Fausto, com exceção da 
mencionada Serpente, não há nada que se possa comparar, uma vez que, 
conforme dito, não encontramos descrição da personagem, nem a vemos 
falar em profusão. Há, todavia, a possibilidade de comparação com o 
Satã de Macário, no referido trecho em que Macário está delirando 
sobre as mulheres que irá encontrar e que Satã o traz de volta à 
realidade. Vejamos novamente o diálogo entre ambos: 
 
MACÁRIO: És o diabo em pessoa. Para ti nada 
há bom. Pelo que vejo, na criação só há uma 
perfeição, a tua. Tudo o mais nada vale para ti. 
Substância da soberba, ris de tudo o mais 
embuçado no teu desdém. Há uma tradição, que 
quando Deus fez o homem, veio Satã; achou a 
criatura adormecida, apalpou-lhe o corpo: 
achou-o perfeito, e deitou aí as paixões. 
SATÃ: Essa história é uma mentira. O que 
Satã pôs aí foi o orgulho. E o que são vossas 
virtudes humanas senão a encarnação do 
orgulho? (AZEVEDO, 2014, p. 43 –grifos meus) 
 
 Comparemo-la agora com este trecho de ―Adão e Eva‖ 
 
no sexto dia foi criado o homem, e logo depois a 
mulher; ambos belos, mas sem alma, que o 
Tinhoso não podia dar, e só com ruins instintos. 
Deus infundiu-lhes a alma, com um sopro, e com 
outro os sentimentos nobres, puros e grandes. 
(MACHADO DE ASSIS, 1994, II, p. 526 – grifo 
meu) 
 
Perceba o leitor uma similaridade e um contraste entre ambos. 
Enquanto Macário, na narrativa de Álvares de Azevedo, afirma que Satã 
acredita ser a única perfeição da natureza, isto é, daquilo que foi criado 
por Deus, e que teria posto nos humanos as paixões, na narrativa 
machadiana, o Sr. Veloso afirma que a criação seria obra do Diabo e que 
o casal teria sido criado belo, mas apenas com instintos ruins. O 
contraste se dá, pois, enquanto que para o primeiro o Diabo não encontra 
nada que lhe agrade, para o segundo, por sua vez, o mundo, apesar das 
 
350 CATECISMO, 1998, p. 85. 
 186 
 
intervenções divinas, parece estar como deveria ser, tendo em vista que 
ele mesmo o criou. Já a semelhança pode ser vista no que tange às 
paixões e aos ruins instintos, uma vez que ambos, em seus respectivos 
textos, possuem conotações negativas. Há, além disso, a resposta de 
Satã, na qual explica ter ―posto‖ o orgulho, e que este seria o substrato 
das virtudes humanas, ponto em que está mais próximo ao Diabo de ―A 
igreja do Diabo‖ e de ―τ sermão do Diabo‖. Mas, antes de passar a este 
último, vejamos rapidamente a crônica de 1885. 
Nela, menos ainda que no conto que acabamos de ver, 
praticamente não há como se traçar comparações com os cinco 
representantes da tradição diabólica que foram expostos, tendo em vista 
que a única característica que encontramos no texto é o fato de o Diabo 
poder entrar no corpo de alguém, no caso, o do narrador. Embora se 
possa dizer que o Satã de Milton ―possui‖ o corpo da Serpente e que a 
possibilidade de que esta possa ser uma das características de outros 
Diabos que vimos, não me parece haver qualquer outra semelhança com 
estes. Desta forma, seria muito mais sensato compará-lo, ou pelo menos 
―filiá-lo‖ ao Diabo dos Evangelhos, nos quais encontramos algumas 
possessões demoníacas, sendo o caso mais notório deles o do 
―endemoninhado de Gadara‖ nos Evangelhos segundo São Marcos (5: 
1-20) e segundo São Lucas (8: 26-39)351. Assim sendo, é válido ressaltar 
uma diferença entre os demônios dos Evangelhos e aquele que 
encontramos na crônica, a saber, que enquanto os primeiros, ao 
possuírem uma pessoa, causavam enfermidades e anomalias na 
personalidade, no segundo caso, nada disso ocorre, uma vez que o 
―proprietário‖ do corpo estava, digamos, voando por aí com seu espírito, 
e o Diabo tomou seu corpo como quem senta em uma cadeira para fazer 
uma pausa. Além disso, também vale dizer que é o próprio narrador, e 
não o Diabo, quem associa e compara o ato de ele se levantar e mostrar 
um anúncio no jornal a respeito de um remédio que deixará de existir 
(ou de ser utilizado) em prol de outro com o ―deixar de existir‖ do 
próprio Diabo. 
Passando agora para ―τ sermão do Diabo‖, vemos que nele a 
presença do diabo goetheano é muito mais marcante do que a de todos 
os outros, tanto pelo ―ar mefistofélico‖ descrito pelo narrador, quanto 
pelo seu cinismo, característica pertencente a ambos. Mas, e quanto aos 
outros? Será que em nada se parece com eles? Vejamos… Escusado é 
dizer que em nada se parece com o Lúcifer dantesco, uma vez que 
 
351 Vale dizer que, neste caso, não estou diferenciando entre os demônios de 
todas as espécies e o Diabo/Satã ele mesmo. 
 187 
 
nenhuma de suas características está presente. Todavia, no que concerne 
aos outros autores, Gil Vicente, J. Milton e Álvares de Azevedo, talvez 
não seja tão simples descartar as ―semelhanças‖. 
Pensando em relação a Gil Vicente, não podemos descartar que 
existam semelhanças com sua concepção/representação do Diabo, pois, 
se pensarmos no Auto da Alma, a proximidade fica mais evidente, tendo 
em vista que ambos fazem o papel do ―tentador‖, isto é, daquele que 
quer afastar as pessoas dos preceitos religiosos e, por conseguinte, de 
Deus. No entanto, se pensarmos estritamente no Auto da Barca do 
Inferno, a semelhança é praticamente nula, para não dizer inexistente, 
tendo em vista que, como se disse, na peça vicentina, o Diabo parece 
muito mais um advogado de acusação do que um tentador que afasta as 
pessoas da divindade. Apesar dessa diferença, é válido ressaltar a 
loquacidade de ambos, embora com a diferença que enquanto o Diabo 
vicentino aponta de forma jocosa o porquê de cada pecador ser levado 
para o Inferno, o Diabo do ―Sermão‖ tenta persuadir seus ouvintes a 
participar de seu ethos, a partilhar de sua ética. Este aspecto, em certa 
medida, também está presente no Satã miltoniano, uma vez que ele 
também tenta (e consegue) persuadir não apenas os seus companheiros, 
mas também Eva a seguir aquilo que diz. Outro aspecto em que 
podemos aproximá-los seria extensivo ao último e diz respeito a sua 
ardilosidade, isto é, à forma como ambos se esquivam de um (novo) 
confronto direto com Deus, preferindo atacar sua criação, naturalmente 
mais frágil que o Onipotente. No que tange aos outros atributos do Satã 
de Milton, isto é, seu brilho menos intenso, sua vontade inflexível, seu 
tamanho, etc., não temos como traçar comparações, uma vez que o texto 
machadiano não entra nesses detalhes. Pensando agora em Álvares de 
Azevedo, ou, melhor dizendo, no Satã de Macário, o paralelo é 
reforçado, antes de tudo, por sua própria semelhança com o Mefistófeles 
goethiano. Mas, para além disso, é possível colocá-los lado a lado se 
pensarmos naquilo que A. Cândido chamou de ―pedagogia satânica‖ e 
lembrarmos que o sermão proferido pelo Diabo funciona como os 
preceitos de sua doutrina. Força é dizer que, embora se possa aproximá-
los nesse aspecto, o que ocorre em Macário é diferente, pois enquanto 
aqui Satã conduz a personagem principal, dando assim um sentido mais 
literal o epíteto de ―pedagogo‖352, o Diabo do ―Sermão‖, por sua vez, 
apenas profere sua doutrina e deixa a critério dos ouvintes tornarem-se 
ou não seus discípulos. 
 
352 Do grego paidós (criança) + agogia (conduzir/condução). 
 188 
 
Por fim, com relação ao capítulo IX de Dom Casmurro, força é 
dizer que, dentre todos os textos que acabamos de observar, este pode 
ser encarado como o mais distanciado de todos os outros, seja dos cinco 
autores que vimos, seja dos próprios textos machadianos. Digo isso, 
pois, salvo o orgulho – que o aproximaria dos Satãs de Milton e de 
Álvares de Azevedo – e o fato de ter sido expulso do (conservatório do) 
Céu, o Satanás que encontramos nesse capítulo não possui semelhança 
com nenhum dos outros. Ou, para ser mais preciso, talvez fosse 
prudente dizer que não temos evidências textuais acerca de suas 
semelhanças ou diferenças. No entanto, apesar desse distanciamento, 
não se pode dizer que tal concepção do Diabo seja inventada por 
Machado de Assis, uma vez que, na cultura popular, existe a crença de 
que, no Céu, os anjos passem seus dias a tocar suas harpas e a cantar 
louvores a Deus. Vale explicar que, dependendo da tradução utilizada, 
tal crença possui certo respaldo bíblico, pois é possível encontrar na 
Bíblia algumas passagens com associações dos anjos à música e a cantos 
de louvor353. Todavia, diferentemente de ambas, é interessante frisar que 
na concepção machadiana (ou, melhor seria dizer, na concepção de 
Marcolini), o que há no Céu não é um simples cantar, um canto de puro 
louvor, mas uma eterna competição entre todas as hostes celestiais. 
Assim sendo, é possível dizer que Machado de Assis reatualiza, isto é, 
faz uma releitura da concepção cristã do Diabo e de sua queda, o que 
torna a personagem neste excerto de Dom Casmurro a mais sui generis 
dentre todas as outras. 
Apóseste longo percurso, o leitor deve estar se perguntando o 
propósito de todas essas comparações, isto é, aonde elas nos levaram. 
Por isso, é preciso explicar que além daquilo que já foi dito no início do 
capítulo, isto é, que tais comparações servem para demonstrar que 
Machado de Assis se insere naquilo que chamei de tradição diabólica, o 
intuito deste capítulo também foi o de ressaltar, a partir das semelhanças 
e diferenças com outros autores da tradição, as diferenças existentes nos 
cinco textos machadianos que me propus a explorar, uma vez que minha 
hipótese inicial era a de que eles seriam diferentes. Minha questão, 
conforme esbocei no final do capítulo anterior, era se o Diabo 
 
353 Algumas dessas passagens se encontram no Livro de Jó, 38: 7; no Livro do 
Apocalipse, 5: 7-12; no Evangelho segundo São Lucas, 2: 13-14. É preciso 
ressaltar que, conforme dito, isso depende das tradução utilizada. Na Bíblia de 
Jerusalém, por exemplo, nenhuma dessas passagens parece se relacionar ao 
canto, já na edição Almeida Corrigida Fiel, em contrapartida, essa possibilidade 
existe. 
 189 
 
machadiano seria uno ou múltiplo, ou se era múltiplo e comum; para ser 
mais claro, se em cada texto ele era sempre o mesmo e idêntico, se eram 
vários Diabos diferentes entre si, cada qual com sua forma, ou, ainda, se 
Machado teria retratado a mesma personagem de múltiplas formas. 
Neste momento, podemos afirmar com mais segurança que, não 
obstante as diferenças, trata-se aqui da mesma personagem, em outras 
palavras que o Diabo machadiano seria múltiplo e comum. Embora a 
afirmação pareça trivial, uma vez que, conforme vimos no primeiro 
capítulo acerca de sua história, apesar de suas variações de imagem, o 
Diabo sempre foi visto como um único ser, ou, para usar novamente as 
palavras de Luther Link, sempre foi uma ―máscara sem rosto‖ cuja 
essência é a mesma. Todavia, ainda na esteira de Link, é válido dizer 
que suas máscaras mudam conforme o tempo e o lugar, bem como, 
ainda, de acordo com o inimigo a ser combatido. Nesse sentido, cada 
nova representação do Diabo serve como um novo significante, uma 
espécie de novo símbolo cujo significado se adequa aos propósitos do 
momento e/ou do autor. Claro está que a interpretação desse novo 
significante/símbolo não precisa, necessariamente, seguir essas ―pistas‖, 
embora possa se valer delas para estabelecer conexões. E é justamente 
esse caminho que passamos a trilhar a partir de agora. 
 
 190 
 
 
 
 191 
 
5 Capítulo IV: Faces do Diabo na obra de Machado de Assis. 
 
―τ levantamento de algumas dessas 
indagações irresolutas através da 
análise do significado da presença da 
figura diabólica em seus textos é o 
mote central deste ensaio. Também nos 
propomos a buscar, mas não nos 
comprometemos com a certeza de que 
haja algo a ser encontrado a não ser a 
constante repetição do jogo alternado 
entre procurar – achar – tornar a 
procurar.‖ (Magali Moura354) 
 
Eis que finalmente chegamos ao nosso último capítulo. Nele, 
tentarei apontar alguns sentidos para o Diabo nos textos de Machado de 
Assis que vimos ao longo desta dissertação. Ao fazê-lo, o intuito é não 
apenas corroborar com a afirmação que encerra os capítulos anteriores, 
isto é, que o Diabo machadiano é múltiplo e comum, mas também trazer 
novas interpretações para o Diabo dentro da obra machadiana e assim 
contribuir com sua Fortuna Crítica. 
Antes de passar para o primeiro tópico, gostaria de explicar que, 
neste capítulo, não farei justaposição dos textos por gênero ou por 
ordem cronológica; aqui, colocarei lado a lado os textos que possuem 
uma temática semelhante. Destarte, a organização ficará da seguinte 
forma: em primeiro lugar, veremos as ―σarrativas da criação‖, com o 
conto ―Adão e Eva‖ e o nono capítulo de Dom Casmurro, ―A ópera‖; 
em segundo lugar, veremos as ―Panaceias da humanidade‖, com a 
crônica das Balas de Estalo, que, por não se aproximar tematicamente 
das outras, permanecerá sozinha; e em terceiro e último lugar, veremos 
―τ ethos diabólico‖, com os textos ―τ sermão do Diabo‖ e ―A igreja do 
Diabo‖. 
Outro ponto que deve ser esclarecido para que possamos 
prosseguir, é o fato de que, antes de tentar encontrar sentido(s) para o 
Diabo nos textos, pretendo interpretar os próprios contos de forma mais 
abrangente, partindo assim da estrutura global da narrativa para chegar a 
um ponto particular: nossa personagem. Penso que este método tem a 
vantagem de tornar a interpretação não apenas mais abrangente, como 
também mais fecunda. 
Dito isto, sigamos adiante. 
 
354 MOURA, 2008, p. 135. 
 192 
 
5.1 O Diabo tem sentido? 
―Aqui há sentido, que tem 
sabedoria.‖ (Livro do Apocalipse, 
17:9) 
 
De acordo com a doutrina cristã, o Diabo ou Satã/Satanás é o 
anjo caído por excelência, o líder da rebelião que houve no céu e que, 
uma vez caído, tornou-se um ente maligno que quer nos afastar dos 
caminhos de Deus; como tal, o Diabo tornou-se um símbolo que 
personifica o Mal e a eterna perdição. Vimos, ainda no primeiro capítulo 
(1.1), que foram os românticos que, pela insubordinação de Satã às leis 
divinas, o redimiram, interpretando-o como um símbolo da rebeldia, da 
liberdade, do progresso, etc. Menciono estes aspectos, pois quero 
chamar a atenção para o caráter simbólico de sua ―existência‖ e do uso 
que Machado de Assis fez de tais sentidos para construir suas narrativas. 
Em outras palavras, quero chamar a atenção para o fato de que, na 
maioria das vezes, o Diabo machadiano (embora não somente ele) pode 
ser interpretado de duas formas: literalmente, isto é, como uma figura 
autônoma, em função de si mesma, e alegoricamente, ou seja, como 
uma figura heterônoma, em função de outro assunto. 
Vale explicar que, ao utilizar o termo símbolo para me referir ao 
Diabo, eu o faço retomando o sentido dado por Paul Ricoeur em seu O 
conflito das interpretações (1λικ), a saber, como uma ―estrutura de 
significação em que um sentido direto, primário, literal, designa, por 
acréscimo, outro sentido, indireto, secundário, figurado, que só pode 
ser apreendido através do primeiro.‖355. Desta forma, veremos aqui, de 
forma mais acentuada que nos capítulos anteriores, um trabalho de 
interpretação, também esta tomada no sentido dado por Ricoeur, a 
saber, como ―o trabalho de pensamento que consiste em decifrar o 
sentido oculto no sentido aparente, em desdobrar os níveis de 
significação implicados na significação literal.‖356. 
Penso que, de modo geral, Machado de Assis se utiliza do sentido 
primário – isto é, do Diabo enquanto ser maléfico, e portanto, enquanto 
um símbolo do Mal e daquilo que tenta nos afastar de Deus (ou, 
diríamos, dos caminhos ―corretos‖) – para alcançar outros sentidos em 
suas narrativas, muitas vezes invertendo (ou pervertendo?) seu sentido 
―originário‖. Vale ressaltar que, assim sendo, para que possamos 
compreender e alcançar outros sentidos para o Diabo machadiano, é 
 
355 RICOEUR, 1978, p. 15 – em itálico no original. 
356 RICOEUR, 1978, p. 15 – em itálico no original. 
 193 
 
preciso ter sempre em mente esse ―sentido primário‖, uma vez que é ele 
que nos possibilita observar diferentes coisas nessas narrativas do autor. 
Além disso, a partir do momento que se estabelece que esse ―sentido 
primário‖ é compartilhado por todas as representações machadianas do 
Diabo, fica mais fácil de perceber o porquê de lhe chamarmos de 
―múltiplo e comum‖, apesar de o escritor representá-lo de diversas 
formas. 
 
5.1.1 Narrativas da Criação: 
 
―Atenda-me, doutor; sejamos justos 
com a natureza humana. Virtudes 
inteiriças são invenções de poetas.‖ 
(Iaiá Garcia) 
 
Disse acima que, neste tópico, abordarei as duas narrativas 
machadianas da criação, a saber, ―A ópera‖, nono capítulo de Dom 
Casmurro, e ―Adão e Eva‖, conto de 1κκ5. Mas, por que abordá-las em 
conjunto? Ora, para além dofato de que ambas tratam do mesmo 
assunto, isto é, a criação do mundo, críticos como Afrânio Coutinho 
(1959), John Gledson (1991), Raymundo Faoro (2001) e Paul Dixon 
(2016), entre outros, também apontaram a proximidade entre elas. Além 
disso, tanto ―A ópera‖ quanto ―Adão e Eva‖ me parecem levantar uma 
questão semelhante, a saber, sobre a ambiguidade, a ambivalência do 
mundo e da própria humanidade. Para tentar demonstrar esse ponto de 
forma mais eficaz, começarei por esta última. Para tal, gostaria de 
retomar alguns pontos mencionados no segundo capítulo desta 
dissertação. Acalme-se leitor, não pretendo ficar repetindo aquilo que 
você já leu; quero apenas retomar algumas das discussões levantadas 
para que a interpretação dos contos e, por conseguinte, da personagem, 
seja mais satisfatória. 
No segundo capítulo, iniciei uma discussão com a interpretação 
de Afrânio Coutinho sobre o conto ―Adão e Eva‖. Conforme vimos, 
para este autor, o conto possui um ―tom jansenista‖, e, consoante suas 
palavras, vemos nele ―o dualismo da explicação do mundo, o Mal, obra 
do Demônio, e o Bem, obra de Deus‖357 e que ―no mundo só há lugar 
para o Mal‖358, além do fato de que ―[n]a terra imperam os vícios e as 
maldades, uma abominação completa, a que nada empresta a nota da 
 
357 COUTINHO, 1959, p. 100. 
358 COUTINHO, 1959, p. 100. 
 194 
 
esperança e da piedade.‖359. Vale dizer (ou lembrar) que Coutinho não é 
o único a ver um tom pessimista no conto. Também John Gledson, em 
seu livro Machado de Assis: impostura e realismo (1991), vê no conto 
certas rabugens de pessimismo, para usar da expressão de Brás Cubas. O 
crítico inglês vê, não apenas no conto, mas na obra machadiana de um 
modo geral, uma grande afinidade com a filosofia de Schopenhauer360. 
Embora se possa dizer que Afrânio Coutinho já havia assinalado essa 
aproximação361, força é dizer que o crítico brasileiro coloca o escritor 
mais próximo de Pascal do que do filósofo alemão. Em todo caso, o 
epíteto que dão a Machado de Assis – e eles não são os únicos – é 
sempre o mesmo, a saber, o de pessimista362. 
Vimos também, juntamente com Paul Dixon (2016), que neste 
conto, pelo menos, não se trata especificamente de pessimismo. Ao que 
nos parece, os críticos que o veem assim possuem uma compreensão 
equivocada acerca dele, uma vez que a narrativa do sr. Veloso, 
personagem do conto, joga uma nova luz sobre a narrativa de Gênesis, 
propondo aos convivas – e a nós, enquanto leitores – uma reflexão 
acerca da criação. Neste sentido, é válido lembrar as palavras de Sônia 
Brayner quando explica que 
 
É uma estratégia do texto machadiano desde seus 
primeiros escritos na área do conto e da crônica 
utilizar-se de um discurso proferido por um 
personagem vindo de fora dos hábitos e costumes 
reinantes, para forçar, com a nova perspectiva do 
recém-chegado, o paradoxal oculto nas 
significações cristalizadas e arbitrárias. 
(BRAYNER, 1981, p. 431) 
 
359 COUTINHO, 1959, p. 100. 
360 Cf. o quarto capítulo do livro de Gledson, intitulado ―Ideologia e Religião‖. 
361 Outro autor que, antes de Gledson, também aproxima a obra machadiana à 
doutrina de Schopenhauer é o brasileiro Raymundo Faoro, em sua obra 
Machado de Assis: A pirâmide e o trapézio (2001). Cf. seu quinto capítulo: ―τs 
santos óleos da teologia‖, item 1. 
362 Não pretendo entrar nessa discussão aqui, mas Enylton de Sá Rego, em seu 
livro O Calundu e a Panacéia: Machado de Assis, a sátira menipéia e a 
tradição luciânica (1989), vai argumentar que o pessimismo comumente 
atribuído ao próprio Machado é, na verdade, uma estratégia narrativa, sendo, 
portanto, um falso pessimismo. Para mais sobre o assunto, conferir o último 
tópico de seu terceiro capítulo, intitulado ―τ ponto de vista do Kataskopos e o 
falso pessimismo de Machado‖. 
 195 
 
É preciso perceber, todavia, que no conto não há exatamente uma 
dualidade entre Bem e Mal/Deus e Diabo, mas uma polaridade, uma 
complementaridade entre ambos. Além disso, conforme disse no 
segundo capítulo, o conto me parece menos um confronto entre Bem e 
Mal do que um subterfúgio para contrapor ―curiosidade‖ e ―obediência 
cega‖ e subverter, assim, a visão corrente da narrativa de Gênesis, uma 
vez que o conto, de um modo geral, nos faz perceber (e/ou lembrar) que, 
sem o chamado ―pecado original‖, não haveria humanidade, tendo em 
vista que, se tivesse obedecido cegamente ao Senhor, tal como no conto, 
o casal poderia ter ganhado o Paraíso Celestial como recompensa e, com 
isso, a terra teria ficado abandonada, abrigando apenas as criações/obras 
do Tinhoso. Ao propor esta reflexão, torno a dizer, o conto subverte não 
apenas a própria narrativa bíblica, mas também a concepção que temos 
da curiosidade e da desobediência, que, no caso, ocasionou o ―pecado 
original‖. 
Mas, e quanto ao Diabo? Será que podemos vê-lo exclusivamente 
como um símbolo do Mal, ou será que ele esconde algo mais? Para 
tentar responder a estas perguntas, precisamos deixar de lado o conto 
como um todo e levar em conta apenas a narrativa do sr. Veloso, 
considerando-a verdadeira, embora saibamos que ele a desmente logo 
em seguida. Fazendo isso, poderemos refletir de modo mais livre acerca 
de sua narrativa. 
Para começar, vale dizer que se levarmos em conta apenas os 
trechos em que o escritor faz com que Veloso afirme que o criador do 
mundo e do primeiro casal tenha sido o Diabo, poderemos pensar que 
Machado de Assis, ao escrever seu conto, estava sugerindo que nosso 
mundo é corrompido e que a humanidade só possui instintos ruins, daí 
os epítetos de pessimista e descrente da raça humana – bem como 
muitos outros – dados por alguns de seus críticos. Todavia, não 
podemos esquecer que Deus também participa da criação, corrigindo e 
atenuando a obra, ―a fim de que ao próprio mal não ficasse a 
desesperança da salvação ou do benefício.‖. 
Sendo assim, podemos pensar que a sugestão deixada pelo conto, 
então, não é a de que a humanidade seja completamente ruim, 
absolutamente corrompida, mas de que seja feita de duas matérias, uma 
boa e uma ruim. Lembro-me de já ter inferido que no conto ―A igreja do 
Diabo‖ a discussão me parecia levar a uma conclusão semelhante, e, 
como Clara, citei um verso de Goethe: ―Ai, duas almas no meu seio 
moram!‖, a fim de nos lembrar dessa ambiguidade humana, dessa 
 196 
 
―contradição essencial do homem em matéria moral‖363 – a qual, vale 
lembrar, é mencionada pela Divindade no final do referido conto. Vale 
dizer que essa ambiguidade moral, essa condição da humanidade ―em 
sua situação de ser duplo, [de] ser tanto do bem como do mal‖, também 
é apontada pela professora Magali Moura (2008). De acordo com ela, ao 
ler as palavras do sr. Veloso – que o mundo havia sido criado pelo 
Diabo –, 
 
o leitor que facilmente se identifica com o bem, vê 
também justificado o seu ―lado negro‖ como 
contraparte original, portanto integrada em si 
como contraste complementar e, como veremos, 
necessário para a própria dinâmica da 
existência. A simples dicotomia é desestruturada 
nos textos de Machado, assim como nos de 
Goethe, com isso as certezas são ameaçadas e a 
moral contestada. (MOURA, 2008, p. 135 – grifo 
meu) 
 
Ora, então, o Diabo seria simplesmente a parte ruim da 
humanidade, seu lado obscuro? Pode-se dizer que sim, mas creio que 
não possamos nos dar por satisfeitos e parar por aí. É preciso refletir um 
pouco mais. 
Embora, aparentemente, tudo leve a essa concepção, penso que, 
talvez, também devêssemos encarar as ações do Diabo como algo de 
bom. Explico-me. Conforme afirmei agora há pouco, a narrativa de 
Veloso joga uma nova luz sobre a narrativa de Gênesis 3, nos fazendo 
refletir sobre ela, uma vez que nos faz observar não apenas a ação do 
casal, mas também a do Diabo (ou da Serpente) por outro prisma. Digo 
isso, pois seja na leitura cristã, na qual Satanás ou Diabo em forma de 
Serpente tentou e ocasionoua queda do casal edênico, ou na narrativa de 
Veloso, na qual o Diabo criou o mundo e Deus apenas corrigiu a obra, é 
preciso reconhecer que sem as obras do Diabo, o mundo, tal como o 
conhecemos, não existiria. 
Na narrativa de Veloso, podemos dizer que, sem a atitude 
criadora do Tinhoso, o mundo não existiria, pois, ao que tudo indica, 
Deus parecia estar satisfeito com sua ociosidade, sendo adorado por seus 
anjos; além disso, conforme pudemos ver, sem a ―curiosidade‖ e a 
desobediência do casal – e, por conseguinte, sem o êxito da Serpente, 
filha do Diabo –, não haveria humanidade, pois o casal teria sido 
 
363 BARRETO FILHO, 1981, p. 356. 
 197 
 
―arrebatado‖ antes mesmo de a história começar. Com isso, podemos 
perceber a luz que é jogada na leitura cristã de Gênesis, isto é, que não 
poderia haver humanidade – e, por conseguinte, história – sem o 
Diabo364. Ao observar a narrativa por este ângulo, podemos perguntar: 
estaria a narrativa sugerindo que o Mal é aquilo que move o mundo, 
aquilo que gera as ações, sejam elas de Deus ou dos homens? Se assim 
for, é possível interpretar o Diabo não apenas como símbolo do Mal, 
como algo que tenta afastar a humanidade de Deus, mas também como 
uma força criadora e/ou propulsora, como aquilo que gera e/ou faz 
germinar a própria vida, uma vez que, de acordo com a narrativa de 
Veloso e a nova forma de encarar a narrativa de Gênesis proporcionada 
por ela, sem as ações do Diabo (ou da Serpente), torno a dizer, não 
haveria mundo ou sequer humanidade. 
É preciso esclarecer, no entanto, que afirmar que as ações do 
Diabo fazem com que o mundo e a humanidade possam existir não é 
dizer, tal como Gledson supõe, que ―[o] Mal – ou o egoísmo – é o motor 
básico da maioria das ações do homem‖365, tendo em vista que, 
enquanto naquela existem opostos complementares que trazem uma 
espécie de equilíbrio para a criação; nesta, por sua vez, parece haver 
apenas uma balança viciada, que sempre pende para o lado do Mal. 
Dito isto, voltemos à nova forma de encarar a narrativa bíblica. 
Torno a esse ponto para que possamos entrar no nono capítulo de Dom 
Casmurro, o qual faz algo semelhante – embora, talvez, de forma mais 
radical –, tendo em vista que Marcolini acredita em sua narrativa e que 
Bento dá crédito a ela, uma vez que, também lá, se não fosse pela 
atitude do Diabo de recolher o libreto, compor a música e solicitar que 
Deus a ouvisse, também não existiria o mundo, pois tal palco não 
existiria e tampouco seria necessário. Além disso, aqui também é 
preciso reconhecer a atitude criadora do Diabo, só que desta vez não 
exatamente enquanto criador do mundo, mas como compositor. 
 
364 Vilém Flusser, em seu livro A história do Diabo, possui uma concepção 
parecida, uma vez que, para ele, a história pertenceria ao Diabo. De acordo com 
o autor, ―a Divindade é intemporal, Ela simplesmente é, e a correnteza dos 
acontecimentos transcorre alhures. O diabo é possivelmente imortal, mas 
certamente surgiu em dado momento. Ele nada na correnteza do tempo, quiçá a 
dirige, ele é histórico no sentido estrito do termo. É possível a afirmativa de que 
o tempo começou com o diabo, que o seu surgir ou a sua queda representam o 
início do drama do tempo que ‗diabo‘ e história‘ são dois aspectos do mesmo 
processo.‖ (FLUSSER, 2008, p. 21) 
365GLEDSON, 1991, p. 149. 
 198 
 
Já mencionei a opinião de John Gledson (1991) acerca deste 
capítulo de Dom Casmurro, mas, vale a pena vê-la novamente. Em sua 
leitura, o autor diz o seguinte: ―Deus escreve o libreto, ou seja, o 
sentido oficial e superficial da peça, ao passo que Satã, o compositor, 
embora jamais seja capaz de se exprimir de maneira aberta e lógica, 
tem, não obstante, o controle do âmago da questão.‖366. Conforme 
vimos, esta interpretação está relacionada à sua concepção de que a 
filosofia de Schopenhauer teria influenciado boa parte da obra 
machadiana. Para o filósofo alemão, a música estaria ―intimamente 
ligada com a vontade, a ‗coisa-em-si‘, que constitui a realidade 
fundamental do universo, e também se identifica com a dor, o 
sofrimento e o egoísmo.‖367. Nesse sentido, ainda para Gledson, sob a 
metáfora aparentemente jocosa de Marcolini subjaz ―a nota mais baixa 
do pessimismo filosófico‖, uma vez que, ―[q]uaisquer boas ações 
serão inevitavelmente distorcidas pela natureza da própria 
humanidade, justamente como as palavras de Deus são abafadas pela 
música de Satã.‖368. Mas, será que podemos concordar plenamente com 
o crítico inglês? Será que a natureza humana é completamente 
corrompida, tal como ele dá a entender? Vale relembrar que discordo da 
ontologia metafísica subjacente a esta visão. Mas, para tentar possibilitar 
certo distanciamento da visão de Gledson, me parece interessante trazer 
as palavras de Raymundo Faoro – outro autor que também enxerga a 
filosofia schopenhaueriana nos escritos do Bruxo do Cosme Velho –, 
quando, escrevendo sobre ―A ópera‖, nos diz o seguinte: 
 
Certo, o mal, o grotesco, o vil teriam sido obra do 
Diabo, em colaboração que desfigura o plano 
original. Mas no polo negativo não estaria a 
verdade do mundo? O outro lado, o bem e a 
harmonia, não seriam senão fantasias inspiradas 
pela astúcia da maldade humana? Por outra 
maneira: o mal é o sal da terra e só por via dele, 
reinterpretado de sua sombra ilusória, o 
homem se realiza. Na obra comum, tecida de fios 
divinos e de fios diabólicos, ultrapassando a 
dissensão maniqueísta, tudo aporta no demoníaco. 
Deus autoriza o trabalho do Diabo, mas, a 
 
366 GLEDSON, 1991, p. 151 – grifos meus. 
367 GLEDSON, 1991, p. 151. 
368 GLEDSON, 1991, p. 152 – grifo meu. 
 199 
 
despeito da vênia, ele atua por si próprio, 
senhor do mundo. (FAORO, 2001, p. 405) 
 
Vale dizer que também não concordo plenamente com a leitura 
de Faoro. Que a colaboração do Diabo desfigure o plano original, vá lá. 
Mas, que a verdade do mundo esteja no polo negativo e que só por via 
do mal o homem se realize369, me parece um pouco forçado, uma vez 
que a criação é feita por ambos e que somente em alguns lugares ―o 
verso vai para a direita e a música, para a esquerda‖; em outras palavras, 
seria possível dizer que nem toda a composição do Diabo é uma 
―violência interpretativa‖ em cima dos versos de Deus. Nesse sentido, 
também podemos contestar em parte a leitura de Gledson, uma vez que, 
embora a música possa estar ligada à vontade e, por conseguinte, à dor, 
ao sofrimento e ao egoísmo, é preciso reiterar que não é a todo momento 
que as palavras de Deus são abafadas pela música de Satanás ou, para 
dizer de outra forma, embora a música possa dar o tom ou o andamento 
das ações humanas, nem sempre ela é exclusivamente má, pois, torno a 
dizer, há casos em que a música do Diabo está em consonância com os 
versos de Deus. Além disso, vale lembrar, junto com o próprio Faoro, 
que o ―demoníaco não se confunde com o diabólico‖370, uma vez que o 
―demoníaco é a energia que está fora do alcance da razão, penetrando a 
natureza toda, no mundo visível e no invisível‖371 e que a ―presença do 
demoníaco frequenta todos os homens, colocando-os fora do bem e do 
mal‖372; e que, além do mais, o demoníaco só se torna diabólico quando 
a humanidade valoriza o pecado, ―racionalizando as forças da natureza, 
sem amor às virtudes.‖373. Desta forma, penso que não podemos 
concordar com as leituras que veem nas narrativas de Marcolini e do sr. 
Veloso um puro pessimismo, uma visão de que a humanidade seja 
essencialmente corrompida e que tenda ao mal, pois ambas as narrativas 
me parecem jogar com essa ambiguidade humana, com esse duplo 
aspecto do ser humano, que possui, sim, um lado mau, mas que, em 
contrapartida, também possui um lado bom. Neste sentido, penso que é 
 
369 Penso que, aqui, o verbo ―realizar‖ gera uma ambiguidade. Se Faoro quiserdizer que é somente por via do mal que a humanidade consegue alcançar suas 
metas, seus objetivos, podemos discordar. No entanto, se ele estiver a dizer que 
é somente por via do mal que a humanidade se torna real, que passa a existir, aí 
sim podemos concordar com sua interpretação – pelo menos neste ponto. 
370 FAORO, 2001, p. 403. 
371 FAORO, 2001, p. 403. 
372 FAORO, 2001, p. 404. 
373 FAORO, 2001, p. 404. 
 200 
 
mais plausível a leitura de Lúcia Miguel-Pereira, quando menciona o 
―relativismo moral‖ presente em muitas das narrativas machadianas374. 
Feitas essas ressalvas, é preciso tornar àquilo que nos trouxe aqui 
e fazer uma breve síntese sobre o(s) sentido(s) que o Diabo pode receber 
na narrativa de Marcolini. Como vimos, embora seja necessário partir de 
sua significação como símbolo do Mal – e, por isso, sua música, tal 
como a interpreta John Gledson, possa ser lida como a ―vontade‖ 
schopenhaueriana, identificando-a com a dor, ao egoísmo e ao 
sofrimento –, também é possível encarar o Diabo da narrativa de 
Marcolini, tal como na de Veloso, tanto como a contraparte da criação 
de Deus e da humanidade isto é, como seu contraste complementar, 
quanto como a partir de seu potencial criador, algo que nos possibilita 
realizar uma inversão nos valores e interpretá-lo no sentido de algo 
benéfico para a humanidade, uma vez que a divindade se desfez de seu 
libreto e que, mesmo após a composição da música, continuou sem se 
interessar por ele. Nesse sentido, mas com certas ressalvas, talvez 
também possamos vê-lo como ―o sal da terra‖, tal como o fez 
Raymundo Faoro, embora, torno a dizer, possamos discordar que é 
somente por via do mal que o homem se realiza. Ao vê-lo como o ―sal 
da terra‖ penso, juntamente com aqueles alguns da narrativa de 
Marcolini (―Há quem diga que…‖), que o Diabo e suas ações – ou sua 
música, para ficarmos com o texto – quebram justamente a monotonia 
do libreto, fazendo com que os desconcertos da composição – isto é, 
quando ―o verso vai para a direita e a música, para a esquerda‖ – a 
tornem mais bela. O que falta perguntar é se, seguindo esta linha de 
raciocínio, não estaria eu me tornando o Dr. Pangloss375 e acreditando 
que ―tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis‖? 
 
5.1.2 Panaceias da humanidade. 
 
―Mirando os remédios vivos e 
eficazes, faço esta pergunta a mim 
mesmo: Por que é que os remédios 
morrem?‖ (Machado de Assis) 
 
O próximo texto que veremos, conforme disse, é aquela crônica 
do dia 5 de abril de 1κκ5, da seção ―Balas de Estalo‖. σela vemos um 
 
374 Cf. MIGUEL-PEREIRA, 1955, p. 229-230. 
375 Personagem de Voltaire, da obra Cândido, ou O otimismo (1759), que serve 
para ironizar a teoria de Leibniz. 
 201 
 
Machado já bastante maduro em sua escrita, além de assaz irreverente 
com suas ironias, cujo tom satírico é aparente. Já mencionei no segundo 
capítulo (2.2.1) que esta crônica chama muito mais atenção pelo que traz 
acerca do espiritismo do que sobre o Diabo em si, uma vez que seu mote 
parece ser a intenção de discutir e ridicularizar a ―nova doutrina‖. Além 
disso, conforme apontam Mauro Roberto Dias Miranda e André Luiz 
Anselmi em seu artigo ―Machado de Assis cronista e o processo de 
modernização do Rio de Janeiro‖, é preciso notar que, além dessa ironia 
com o espiritismo, a crônica também vai mostrar o ―descaso [do 
cronista] com os modismos europeus‖376, manifesta pela afirmação de 
que ―Eu, em geral, creio em tudo aquilo que na Europa é acreditado.‖. 
Outro autor que nos fornece pistas para que possamos interpretar 
não apenas a crônica, mas também a personagem, é Daniel Piza, um dos 
mencionados biógrafos machadianos. Conforme explica o autor, por 
volta de 1κικ, o Machado cronista começa a se utilizar de ―um tipo de 
humor peculiar. Em sua coluna quinzenal, mistura comentários de uma 
vintena de linhas sobre assuntos como a política, a ópera, a literatura, 
as modas e a religião, sempre tirando reflexões sobre a natureza 
humana, sobre os brasileiros, sobre a civilização.‖377. Além de todos 
esses assuntos, o cronista ―[t]ambém comenta os anúncios de 
‗droguistas‘ (farmacêuticos) que invadiam os jornais.‖378. Ainda no 
mesmo período, Machado, em suas crônicas, ―[t]ambém ri de uma casa 
espírita e dos ‗crédulos que já no tempo da Escritura eram a maioria do 
gênero humano‘.‖379. 
Já em 1κιλ, ―os debates que o moviam não eram apenas políticos 
ou econômicos. Machado também observava com olhos tristes a atitude 
radical do realismo estético em relação ao passado. Não gostava do 
endeusamento da ciência, embora não fosse também religioso.‖380. 
Aqui, para que possamos nos direcionar ao ponto em que pretendo 
chegar, vale a pena trazer um excerto mais longo, no qual o biógrafo 
 
376 MIRAσDA, Mauro R. D.; AσSELMI, André L.. ―Machado de Assis 
cronista e o processo de modernização do Rio de Janeiro‖. Vocábulo – Revista 
de Letras e Linguagens midiáticas. Volume XI, 2º semestre de 2016. 
Disponível em: 
<http://www2.baraodemaua.br/comunicacao/publicacoes/vocabulo/pdf/11/4_ma
chado_de_assis_cronista_11.pdf>. Acesso em: 14 jan. 2019. 
377 PIZA, 2008, p. 177 – grifo meu. 
378 PIZA, 2008, p. 177 – grifo meu. 
379 PIZA, 2008, p. 186. 
380 PIZA, 2008, p. 195 – grifo meu. 
 202 
 
unifica algumas das informações que acabamos de ver. Ele diz o 
seguinte: 
 
Um tema que Machado vivia comentando, 
relacionado a esses [política, economia, estética], 
eram os remédios anunciados à mancheia nos 
jornais e revistas da época. Os remédios não 
prometiam apenas aliviar sintomas de dores no 
estômago, nos olhos ou na cabeça: prometiam 
curar tudo, inclusive as dores morais. Eram 
elixires, bálsamos, pílulas ―catárticas‖, 
verdadeiras panacéias para o corpo e também 
para o espírito. As farmácias, assim, não eram 
muito diferentes das casas de espiritismo, 
sonambulismo e hipnotismo que também eram 
moda na cidade; a diferença é que estas queriam 
curar o corpo por meio do espírito, e aquelas o 
contrário. Esses camelôs da ilusão, curandeiros 
que lucravam com a credulidade popular, 
eram constantemente satirizados por Machado, 
ao lado dos políticos – entre os quais se 
distinguia cada vez menos quem era conservador 
e quem era liberal – e da humanidade em geral. 
(PIZA, 2008, p. 195 – grifos meus) 
 
Também vale lembrar, juntamente com seu biógrafo, que o 
cronista-personagem Lélio, da seção ―Balas de Estalo‖, de onde retirei a 
crônica que ora interpreto, ―significou novo amadurecimento de 
Machado no gênero, que praticava com um senso muito apurado para o 
tom de conversa e a noção de síntese.‖381. Ainda consoante às suas 
palavras, ―[o] que é novamente visível nessas crônicas é o olhar de 
Machado sobre a transitoriedade das coisas e a credulidade das 
pessoas.‖382. Feitas estas considerações iniciais, o leitor já deve ter 
desconfiado qual a minha interpretação a respeito da crônica. Não? 
Então, vamos lá... 
Penso que Machado conseguiu muito mais do que se propôs nesta 
pequena crônica. Digo isso, pois ela parece nos fornecer alguns 
elementos que podemos relacionar tanto à crítica ao espiritismo e ao 
gosto brasileiro pelos ―modismos europeus‖, quanto sobre a natureza 
humana e, talvez, sobre estética. Tentarei explicar. 
 
381 PIZA, 2008, p. 232. 
382 PIZA, 2008, p. 232. 
 203 
 
Se levarmos em conta não apenas esta crônica, mas o repertório 
machadiano como um todo, pode ser que tenhamos margem para 
identificar e relacionar esses outros elementos com aquilo que a crônica 
trata. Em primeiro lugar, de uma forma mais próxima ao texto, veremos 
que ele se relaciona não apenas com a religião (ou a doutrina) Espírita, 
mas também com a moda – no sentido que vimos de ―modismo‖, e não 
de vestuário. Em segundo lugar, ainda próximo ao texto, perceberemos 
que o ataque do cronista também recai sobre os farmacêuticos, levando 
em conta que são suas inúmeras promessas

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