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1 LEANDRO HENRIQUE SCARABELOT CAMPOS DE PIERI AS FACES DO DIABO NA OBRA DE UM BRUXO: UMA RELEITURA DO DIABO MACHADIANO. Dissertação, na área de Teopoética, na linha de pesquisa TEXTUALIDADES HÍBRIDAS submetida ao Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGLit/UFSC), como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Literatura. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Salma Ferraz. Florianópolis 2019. 2 3 Leandro Henrique Scarabelot Campos de Pieri AS FACES DO DIABO NA OBRA DE UM BRUXO: UMA RELEITURA DO DIABO MACHADIANO. Esta Dissertação/Tese foi julgada adequada para obtenção do Título de Mestre em Literatura, área de concentração em Textualidades Híbridas, e aprovada em sua forma final pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura. Florianópolis, 18 de fevereiro de 2019. ________________________ Prof.ª Dr.ª Patrícia Peterle Figueiredo Santurbano Coordenadora do Curso Banca Examinadora: Orientadora: __________________________________ Prof.ª Dr.ª Salma Ferraz UFSC Membros: __________________________ ______________________________ Prof.ª Dr.ª Silvana de Gaspari Prof.ª Dr.ª Tânia Regina Oliveira Ramos UFSC (Presidente) UFSC __________________________ ______________________________ Prof. Dr. Eli Brandão Prof. Dr. José Ernesto de Vargas UEPB UFSC (Suplente) 4 5 Dedico esta dissertação às grandes mulheres de minha vida: Alvina Cechinel Scarabelot, minha bisavó; Lourdes Scarabelot Campos, minha avó; Viviane Scarabelot Campos, minha mãe; Salma Ferraz, minha orientadora; Marina Coelho Santos, minha amada. 6 7 AGRADECIMENTOS Meu agradecimento é direcionado a todas e todos que me auxiliaram ao longo desta grande jornada que venho trilhando desde a graduação. Sem vocês, podem ter certeza de que não teria conquistado nem a metade daquilo que agora me creio possuidor. A todos vocês, meus sinceros agradecimentos. Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à minha família: - minha mãe, Viviane Scarabelot Campos, que sempre me auxiliou nos momentos mais difíceis; - minha avó, Lourdes Scarabelot Campos, por sempre incentivar suas filhas e netos ao estudo; - minha bisavó, Alvina Cechinel Scarabelot, pelo ―dinheirinho pra comprar um lanche na rua‖ que me dava na época em que ainda não tinha a bolsa de estudos. Em segundo lugar, à professora Salma Ferraz, por absolutamente tudo que fez por mim, seja na época da graduação seja agora no período do Mestrado. Em terceiro lugar, à CAPES, pela bolsa concedida no segundo ano do Mestrado, a qual me possibilitou não apenas a compra de novos livros para a minha dissertação, mas também o tempo ocioso, tão necessário para uma pesquisa séria e comprometida. Em quarto lugar, ao Programa de Pós-Graduação em Literatura da UFSC, tanto pela oportunidade de fazer parte do grupo discente, quanto pelo quadro de excelentes professoras e professores que disponibiliza aos seus alunos. Em quinto lugar, à professora Telma Scherer e ao professor Stélio Furlan, pelos conselhos e indicações bibliográficas que me deram em minha qualificação. Em sexto lugar, à professora Tânia Regina O. Ramos e ao professor Eli Brandão, por aceitarem participar de minha banca. Em sétimo lugar, o último e mais importante, à Marina Coelho Santos, minha preciosa namorada, minha doce amada, por todo o apoio que me deu, por todas as vezes em que aguentou minhas crises existenciais e lamentações, meu medo e desespero; por todas as vezes que me motivou; pelos momentos agradáveis que passamos juntos fazendo nossas leituras; pelas nossas conversas, nossos diálogos sobre literatura e filosofia que sempre me levam a novas reflexões; enfim, por tudo o que vivemos. A todos vocês, os meus mais ternos e sinceros agradecimentos. 8 9 A um Bruxo, Com Amor Em certa casa da Rua Cosme Velho (que se abre no vazio) venho visitar-te; e me recebes na sala trastejada com simplicidade onde pensamentos idos e vividos perdem o amarelo, de novo interrogando o céu e a noite. Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro. Daí esse cansaço nos gestos e, filtrada, uma luz que não vem de parte alguma pois todos os castiçais estão apagados. Contas a meia-voz maneiras de amar e de compor os ministérios e deitá-los abaixo, entre malinas e bruxelas. Conheces a fundo a geologia moral dos Lobo Neves e essa espécie de olhos derramados que não foram feitos para ciumentos. E ficas mirando o ratinho meio cadáver com a polida, minuciosa curiosidade de quem saboreia por tabela o prazer de Fortunato, vivisseccionista amador. Olhas para a guerra, o murro, a facada como para uma simples quebra da monotonia universal e tens no rosto antigo uma expressão a que não acho nome certo (das sensações do mundo a mais sutil): volúpia do aborrecimento? ou, grande lascivo, do nada? O vento que rola do Silvestre leva o diálogo, e o mesmo som do relógio, lento, igual e seco, tal um pigarro que parece vir do tempo da Stoltz e do gabinete Paraná, mostra que os homens morreram. A terra está nua deles. Contudo, em longe recanto, a ramagem começa a sussurrar alguma coisa que não se estende logo e parece a canção das manhãs novas. Bem a distingo, ronda clara: é Flora, com olhos dotados de um mover particular entre mavioso e pensativo; Marcela, a rir com expressão cândida (e outra coisa); 10 Virgília, cujos olhos dão a sensação singular de luz úmida; Mariana, que os tem redondos e namorados; e Sancha, de olhos intimativos; e os grandes, de Capitu, abertos como a vaga do mar lá fora, o mar que fala a mesma linguagem obscura e nova de D. Severina e das chinelinhas de alcova de Conceição. A todas decifrastes íris e braços e delas disseste a razão última e refolhada moça, flor mulher flor canção de manhã nova... E ao pé dessa música dissimulas (ou insinuas, quem sabe) o turvo grunhir dos porcos, troça concentrada e filosófica entre loucos que riem de ser loucos e os que vão à Rua da Misericórdia e não a encontram. O eflúvio da manhã, que o pede ao crepúsculo da tarde? Uma presença, o clarineta, vai pé ante pé procurar o remédio, mas haverá remédio para existir senão existir? E, para os dias mais ásperos, além da cocaína moral dos bons livros? Que crime cometemos além de viver e porventura o de amar não se sabe a quem, mas amar? Todos os cemitérios se parecem, e não pousas em nenhum deles, mas onde a dúvida apalpa o mármore da verdade, a descobrir a fenda necessária; onde o diabo joga dama com o destino, estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro, que revolves em mim tantos enigmas. Um som remoto e brando rompe em meio a embriões e ruínas, eternas exéquias e aleluias eternas, e chega ao despistamento de teu pencenê O estribeiro Oblivion bate à porta e chama ao espetáculo promovido para divertir o planeta Saturno. Dás volta à chave, envolves-te na capa, e qual novo Ariel, sem mais resposta, sais pela janela, dissolves-te no ar. (Carlos Drummond de Andrade) 11 RESUMO O presente estudo visa investigar, em alguns textos de Machado de Assis, uma importante figura que faz parte do imaginário e da cultura ocidental, a saber, o Diabo. Ao abordar este ser dentro da obra do Bruxo do Cosme Velho, nosso intuito é observá-lo enquanto personagem literária. Para tal, propomo-nos a efetuar uma releitura de alguns escritos do autor de Dom Casmurro em que o Diabo figure explicitamente como personagem, tais como os contos ―A igreja do Diabo‖, ―Adão e Eva‖, a crônica do dia 5 de outubro de 1885, situada na série Balas de Estalo, a crônica ―τ Sermão do Diabo‖, publicada em A Semana, e o capítuloIX do romance Dom Casmurro, intitulado ―A Ópera‖. σossos objetivos com este estudo são: i) investigar as características utilizadas por Machado de Assis para descrever o Diabo em seus textos; ii) comparar o Diabo machadiano com o Diabo de alguns outros autores para, desta forma, perceber suas semelhanças e diferenças, e, assim, situá-lo dentro de uma tradição; iii) desdobrar alguns possíveis sentidos para esta personagem dentro de sua obra. Palavras-chave: Diabo; Bruxo do Cosme Velho; Machado de Assis. 12 13 ABSTRACT The present study aims to investigate, in some texts of Machado de Assis, an important figure that is part of Western imagery and culture, namely, the Devil. In addressing this being within the work of the Bruxo do Cosme Velho, our intention is to observe him as a literary character. For this, we propose to re-read some of the writings of the author of Dom Casmurro in which the Devil explicitly figures as a character, such as the short-stories "A igreja do Diabo" and "Adão e Eva"; the chronicle of October 5, 1885, located in the series Balas de Estalo, the chronicle "O Sermão do Diabo", published in A Semana, and the IX chapter of the novel Dom Casmurro, titled "A Ópera". Our objectives with this study are: i) to investigate the characteristics used by Machado de Assis to describe the Devil in his texts; ii) compare the Machado‘s Devil with the Devil of some other authors in order to perceive their similarities and differences, and thus situate him in a tradition; iii) unfold some possible meanings for this character within his work. Keywords: Devil; Wizard of the Old Cosme; Machado de Assis. 14 15 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 01: Diabo. .................................................................................. 40 Figura 02: Diablo. ................................................................................. 40 Figura 03: Devil. .................................................................................... 41 Figura 04: Teufel. .................................................................................. 41 Figura 05: Pã. ........................................................................................ 42 Figura 06: Pã. ........................................................................................ 43 Figura 07: Pacto de Judas. .................................................................... 45 Figura 08: Detalhe de O Juízo Final. .................................................... 46 Figura 09: Inferno. ................................................................................ 48 Figura 10: A queda de Lúcifer e dos anjos rebeldes. ............................ 49 Figura 11: Detalhe de O Juízo Final. .................................................... 50 Figura 12: Miguel e o Dragão. .............................................................. 51 Figura 13: São Miguel e o dragão . ...................................................... 51 Figura 14: São Miguel e o Diabo. ......................................................... 52 Figura 15: Miguel e Lúcifer. .................................................................. 53 Figura 16: Satã triunfando sobre Eva. .................................................. 57 Figura 17: Satã cobrindo Jó com úlceras malignas. ............................. 57 Figura 18: O grande Dragão Vermelho e a dama vestida de Sol. ......... 58 Figura 19: O grande Dragão Vermelho e a Besta do oceano. .............. 59 Figura 20: A revolta de Lúcifer e dos anjos rebeldes. ........................... 62 Figura 21: Satan. ................................................................................... 63 Figura 22: Revolta do Inferno contra o Céu. ......................................... 63 Figura 23: O anjo do mal. ..................................................................... 65 Figura 24: O gênio do mal. .................................................................... 66 Figura 25: El ángel caído. ..................................................................... 67 Figura 26: Detalhe de Lúcifer, de Botticelli. ....................................... 144 Figura 27: Lúcifer, William Blake. ..................................................... 145 Figura 28: Morada de Lúcifer, de Gustave Doré. ............................... 146 Figura 29: Capa Ed. Ática. .................................................................. 151 Figura 30: Capa Ed. Objetivo. ............................................................. 151 Figura 31: Capa Porto Editora. ............................................................ 152 Figura 32: Capa Ed. Brasiliense . .................................................. 152 Figura 33: Ilustração do Diabo. ........................................................... 152 Figura 34: Satã encontra sua prole, Pecado e Morte, nos portões do Inferno, de John B. Medina (1688). .................................................... 161 Figura 35: Satã despertando os anjos rebeldes, de William Blake (1808). ................................................................................................. 162 Figura 36: Satã no Éden, de Gustave Doré (1866). ............................. 163 Figura 37: Mefistófeles voando sobre Wittenberg, de E. Delacroix 16 (1828). ................................................................................................. 168 Figura 38: Wagner, Fausto e o cão negro, de Delacroix. ................... 169 Figura 39: Fausto e Mefistófeles, de Delacroix. ................................. 172 Figura 40: Fausto, Margarida e Mefistófeles, de Delacroix. .............. 173 Figura 41: Capa Ed. Mercado Aberto. ................................................ 182 17 LISTA DE TABELAS Tabela 01: Menções do vocábulo ―Diabo/diabo‖ e de outros ―similares‖ nos romances de Machado de Assis. ..................................................... 26 18 19 SUMÁRIO 1 NO PRINCÍPIO ERA... A INTRODUÇÃO ...................................... 21 2 CAPÍTULO I: Uma visão panorâmica ............................................... 37 2.1 Um Diabo diferente: algumas ―representações‖ do Tinhoso. . 38 2.2. Revisão bibliográfica. ............................................................ 69 2.2.1 Falando em Machado... .................................................... 72 2.2.1.1 Um homem célebre ................................................... 72 2.2.1.2 Na selva da crítica. .................................................... 81 2.2.2 Falando no Diabo... .......................................................... 90 2.3 Potencialidades da figura do Diabo na obra machadiana ........ 97 3 CAPÍTULτ II: Com o Diabo no corpus… ...................................... 101 3.1 Contos do Capeta: .......................................................... 102 3.1.1 ―Vá, pois, uma igreja...‖ – A Igreja do Diabo (1883) ... 102 3.1.2 ―Foi o Diabo que criou o mundo‖ – Adão e Eva (1885) ................................................................................................ 108 3.2 Crônicas infernais: .......................................................... 118 3.2.1 Um breve caso de possessão – Crônica de 5 de outubro de 1885 ........................................................................................ 118 3.2.2 O Evangelho segundo o Diabo – O Sermão do Diabo (1892) ...................................................................................... 122 3.3 Romance diabólico: .............................................................. 124 3.3.1 O mundo inteiro é um palco – Dom Casmurro. (1899) . 124 3.4 Uno, múltiplo ou múltiplo e comum? ................................... 129 4 CAPÍTULO III: Machado de Assis e a tradição diabólica. .............. 133 4.1 O Diabo em autores da tradição – ―Pois o demo não é de todos??!‖ .....................................................................................137 4.1.1 ―Lo‟mperador del doloroso regno‖ – O Lúcifer de Dante. ................................................................................................ 137 4.1.2 Um Diabo zombeteiro – Gil Vicente e o Auto da Barca do Inferno .................................................................................... 146 20 4.1.3 Melhor ser rei no inferno do que servir no céu – O Satã de John Milton ............................................................................. 153 4.1.4 O gênio que sempre nega – O Mefistófeles goetheano . 163 4.1.5 Pedagogia satânica – O Satã de Macário ...................... 177 4.2 Uma (con)fusão dos Diabos… .............................................. 183 5 Capítulo IV: Faces do Diabo na obra de Machado de Assis. ........... 191 5.1 O Diabo tem sentido? ........................................................... 192 5.1.1 Narrativas da Criação: ................................................... 193 5.1.2 Panaceias da humanidade. ............................................. 200 5.1.3 O ethos diabólico. .......................................................... 206 6 Απο ά υψη: Juízo Final e απο α ά α ς. ..................................... 229 REFERÊNCIAS .................................................................................. 235 ANEXO A – A IGREJA DO DIABO ................................................. 245 ANEXO B – ADÃO E EVA ............................................................... 253 ANEXO C – 5 DE OUTUBRO DE 1885 ........................................... 259 ANEXO D – O SERMÃO DO DIABO .............................................. 261 ANEXO E – A ÓPERA ...................................................................... 265 21 1 NO PRINCÍPIO ERA... A INTRODUÇÃO À barca, à barca, houlá! Que temos gentil maré! (Gil Vicente) Há um meio certo de começar uma dissertação de forma não trivial. É parodiar o escritor que se estuda. Faz-se isto, e aponta-se a paródia. Eis que não se tem mais a dura realidade da página em branco, pois, a partir daí, o gelo já foi quebrado e se pode prosseguir com as explicações. Fácil, não? Em verdade vos digo que nem tanto. Pode ser que a tática não funcione e, assim, lá se foi a entrada triunfal. Mas, convenhamos: não é a todos que cabe esta honra, certo? Em todo caso, ao menos o gélido branco da página já se extinguiu. Conforme o título deixa transparecer, este estudo visa efetuar uma releitura do Diabo machadiano. Mas, por que estudar esta controversa personagem da cultura ocidental? E, ainda por cima, por que dentro da obra de um de nossos mais célebres escritores? Será que tudo que se poderia dizer sobre ela já não foi dito e redito pelos moralistas do mundo? Estas são questões que, por ora, deixo em aberto, mas que espero dar conta ao longo deste estudo. Neste momento, mesmo que não seja fundamental, parece interessante mencionar que essa ideia de releitura vem sendo não só pensada, mas também trabalhada desde a minha monografia1, na qual, visando perceber semelhanças e diferenças, efetuei uma comparação entre o Diabo descrito na Bíblia e na Tradição Católica, mais especificamente no Catecismo da Igreja Católica, com aquele que foi descrito por Machado de Assis em dois contos seus, a saber, ―Adão e Eva‖ e ―A igreja do Diabo‖. σeste estudo, entretanto, embora ainda exista uma preocupação semelhante, o intuito é outro. Explico-me. Enquanto na monografia a comparação era feita em relação à Bíblia e à Tradição Católica para buscar aquilo que o Bruxo do Cosme Velho2 retirava, mantinha ou acrescentava nesta personagem, aqui, em contrapartida, a comparação será feita dentre os próprios escritos machadianos ou, para ser mais preciso, dentre aqueles em que o Diabo 1 PIERI, Leandro H. S. C. de. O Bruxo e o Tinhoso: uma análise do Diabo em dois contos machadianos. Florianópolis, 2016. 2 O epíteto Bruxo do Cosme Velho vem por conta da homenagem prestada a Machado de Assis por Carlos Drummond de Andrade em seu poema intitulado A um Bruxo, com amor, transcrito como epígrafe desta dissertação. 22 figure como personagem substancial, isto é, nos textos em que ele ganhe protagonismo ou destaque. Outra diferença que se faz presente é o fato de que aqui também se busca uma comparação entre o(s) Diabo(s) machadiano(s)3 e aqueles que estão inseridos naquilo que eu gostaria de chamar de ―tradição diabólica‖, expressão que pretendo utilizar neste estudo com a finalidade de abarcar a grande quantidade de autores/artistas da cultura ocidental cujo Diabo, de alguma forma ou em algum momento, se fez presente em sua obra. À guisa de exemplo de autores dessa tradição, é possível mencionar nomes como: Dante Alighieri (1265-1321), Gil Vicente (1465-1536), N. Maquiavel (1469-1527), C. Marlowe (1564-1593), W. Shakespeare (1564-1616), Calderón de la Barca (1600-1681), John Milton (1608-1674), Walter Scott (1771-1832), Marquês de Sade (1740-1814), William Blake (1757-1827), J. W. von Goethe (1749- 1832), Irmãos Grimm (Jacob: 1785-1863 e Wilhelm: 1786-1859), E. T. A. Hoffmann (1776-1822), Lord Byron (1788-1824), Victor Hugo (1802-1885), G. Flaubert (1821-1880), C. Baudelaire (1821-1867), Edgar A. Poe (1809-1849) Alexandre Herculano (1810-1877), Eça de Queiroz (1845-1900), Álvares de Azevedo (1831-1852), Machado de Assis (1839-1908), etc. Isso falando apenas de literatura e de autores canônicos ocidentais que escreveram até a data em que Machado de Assis viveu4. Se ampliarmos o escopo desta tradição e mencionarmos os 3 Deixo aberta a possibilidade de uso do singular ou do plural por conta da hipótese de que o Diabo machadiano, isto é, a personagem que aparece em vários escritos de Machado de Assis com o nome de ―Diabo‖ não seja exatamente a mesma em todos eles. Abordarei este assunto um pouco mais adiante. 4 Para conhecer (ou lembrar de) outros autores que também poderiam ser incluídos nesta lista, vale a pena conferir a antologia de contos organizada por Raimundo Magalhães Junior em 1974, intitulada O Diabo Existe? – As melhores histórias diabólicas de todos os tempos, dividida em dois volumes, na qual ele nos apresenta mais de 40 contos de diversos autores cujo tema seja o Diabo ou alguma manifestação demoníaca. Além disso, vale dizer que, caso fôssemos ultrapassar a época em que viveu Machado de Assis, poderíamos ampliar ainda mais este quadro citando autores como Paul Valéry (1871-1945), Thomas Mann (1875-1955), José Saramago (1922-2010) – para mencionar os europeus –, além de J. Guimarães Rosa (1908-1967), Rubem Braga (1913- 1990), Luís Fernando Veríssimo (1936- ), Ariano Suassuna (1927-2014), etc. – para mencionar alguns brasileiros. Saindo do âmbito estritamente ocidental, poderíamos lembrar-nos de autores russos como F. Dostoievski (1821-1881), L. Tolstói (1828-1910), L. Andreiev (1871-1919), M. Bulgákov (1891-1940), etc. 23 artistas plásticos/visuais que nos legaram alguma imagem do Diabo, seja na pintura seja na escultura, teremos nomes como: Giotto di Bondone (1266-1337), Fra Angelico (1395-1455), Sandro Botticelli (1445- 1510), Antonio Pollaiuolo (1433-1498), Rafael Sanzio (1483-1520), Lorenzo Lotto (1480-1557), William Blake (1757-1827), Eugène Delacroix (1798-1863), Gustave Doré (1832-1883), Antoine Wiertz (1806-1865), Joseph Geefs (1808-1885), Guillaume Geefs (1805- 1883), Ricardo Bellver (1845-1924), etc. Faz-se necessário explicar que quando utilizo a expressão ―tradição diabólica‖ não quero sugerir ou afirmar que o Diabo de um autor seja a causa/efeito de outro ou que estes autores dependam uns dos outros para concebê-lo, embora possam influenciar uns aos outros, mas no sentido de que todos têm algo em comum, isto é, que o Diabo está presente, de alguma forma, em suas obras. Disse acima que pretendo efetuar uma releitura do Diabo machadianoe também o chamei de ―personagem‖. Faço isto tendo em vista que, aqui, não está em questão o estatuto ontológico do Diabo, isto é, se ele existe ou não existe, esta questão deixamos para Riobaldo5, nosso Fausto sertanejo. Sua existência, pelo menos naquilo que concerne a este estudo, é levada em conta a partir daquela que recebe no papel, e para ser ainda mais preciso, naquela em que aparece especificamente como um ser ficcional, como personagem literária6. Para um estudo mais aprofundado sobre o Diabo em alguns autores da literatura brasileira contemporânea, cf. a dissertação de José Oleriano Monteiro Filho, intitulada O Diabo tem três caras: as três faces do Diabo apresentadas em cinco contistas brasileiros contemporâneos (2012); sobre o Diabo na literatura nordestina de cordel, a dissertação de Estela Ramos de Souza de Oliveira, intitulada O Diabo ridicularizado na literatura de folhetos do nordeste (2013); sobre o Diabo nos contos dos irmãos Grimm, a tese de doutoramento de Filipe Marchioro Pfützenreuter, intitulada Entre o utilitário-pedagógico e o poético- emancipatório: O Diabo dos irmãos Grimm e suas projeções sobre o leitor (2014); e, finalmente, para um estudo sobre o Diabo na literatura russa, a tese de doutoramento (em andamento), de Patrícia Leonor Martins, atualmente intitulada O Diabo fala russo. Também é válido mencionar que todos estes estudos foram orientados pela Prof.ª Dr.ª Salma Ferraz. 5 Personagem/narrador da obra Grande Sertão: Veredas (1956), de J. Guimarães Rosa. 6 Faço este esclarecimento, pois não se pode ignorar sua existência como conceito teológico, em sua condição de explicação para a existência do mal. Até porque, conforme aponta Jaziel Guerreiro Martins em sua Biografia do Diabo Brasileiro (2015), ―A crença no diabo sempre foi a forma que o cristianismo de 24 Sendo assim, antes de seguir adiante, parece pertinente explicar de forma mais clara aquilo que entendo por ―personagem‖. Seguindo a indicação de Beth Brait em seu livro intitulado A personagem (2006), eu compreendo a personagem como ―um habitante da realidade ficcional‖, cuja matéria pela qual é feita e cujo espaço em que habita ―são diferentes da matéria e do espaço dos seres humanos‖, mas que, no entanto, ―mantém um íntimo relacionamento‖ entre essas duas realidades7. De forma semelhante, Massaud Moisés, em seu Dicionário de termos literários (1988), indica que o termo personagem designa no interior da prosa literária (conto, novela e romance) e do teatro, os seres fictícios construídos à imagem e semelhança dos seres humanos: se estes são pessoas reais, aqueles são ―pessoas‖ imaginárias; se os primeiros habitam o mundo que nos cerca, os outros movem-se no espaço arquitetado pela fantasia do prosador. (MOISÉS, 1988, p. 396 – grifos meus) Cabe salientar que, embora costumeiramente, devido à própria etimologia do termo, confundam-se os termos ―pessoa‖ e ―personagem‖, eles não designam a mesma coisa, tendo em vista que o primeiro designa um ―ser vivo‖ e o segundo um ―ser ficcional‖8. Conforme aponta Beth Brait, ―o problema da personagem [literária] é, antes de tudo, um problema linguístico, pois a personagem não existe fora das palavras‖9; no entanto, conforme dito, embora possuam diferentes realidades, ambos, ainda assim mantém um íntimo relacionamento, pois, ―as personagens representam pessoas, segundo modalidades próprias da ficção‖10. Assim, para a autora, Se quisermos saber alguma coisa a respeito de personagens, teremos de encarar frente a frente a construção do texto, a maneira que o autor encontrou para dar forma às suas criaturas, e aí todos os tempos encontrou para explicar sua própria maldade e ignorância, medos e ódios, invejas e violências.‖ (MARTIσS, 2015, p. 14) 7 Cf. BRAIT, 2006, p. 11-12. 8 Cf. MOISÉS, 1988, p. 396-397. 9 BRAIT, 2006, p. 11. 10 BRAIT, 2006, p. 11 – itálico da autora. 25 pinçar a independência, a autonomia e a ―vida‖ desses seres de ficção. É somente sob essa perspectiva, tentativa de deslindamento do espaço habitado pelas personagens, que poderemos, se útil e se necessário, vasculhar a existência da personagem enquanto representação de uma realidade exterior ao texto. (BRAIT, 2006, p. 11) O excerto acima é interessante e pertinente para este estudo por dois motivos: i) por indicar a forma pela qual se deve observar uma personagem, isto é, encarar frente a frente ―a construção do texto‖ e a forma como o escritor ―encontrou para dar forma às suas criaturas‖, e, somente a partir daí, tentar encontrar sua autonomia, sua independência, sua ―vida‖; e ii) por realçar que, ―se útil e necessário‖, também é possível ―vasculhar a existência da personagem enquanto representação de uma realidade exterior ao texto‖. Menciono isso, pois este estudo além de tentar proceder pela forma indicada por Brait, também tem a intenção apontar a utilidade e necessidade de se pensar o Diabo machadiano tanto em relação a, como também enquanto representação de uma realidade exterior ao texto, conforme será explicitado mais adiante. Seguindo nessa direção, pode-se dizer que a novidade está em que além de investigar o Diabo como personagem literária dentro de alguns textos de Machado de Assis, isto é, de que forma ele é apresentado ao leitor, com suas características e traços peculiares, o presente estudo também visa desdobrar seus possíveis sentidos dentro deles. Para tal, conforme mencionado, busquei encontrar dentro dos escritos de nosso Bruxo do Cosme Velho aqueles textos em que o Diabo aparecesse de forma mais substancial, isto é, como uma personagem que recebesse algum protagonismo ou destaque. Esta delimitação foi necessária, pois, por incrível que pareça, o Diabo é constantemente mencionado nos escritos do autor de Dom Casmurro. Disse ―por incrível que pareça‖, pois para aqueles que não se debruçaram sobre este aspecto da literatura machadiana, o Diabo pode parecer uma figura esporádica, uma personagem que não é muito presente e que teria aparecido em apenas dois textos seus, a saber, ―A igreja do Diabo‖ e ―τ sermão do Diabo‖. σo entanto, ao reler as obras machadianas e efetuar um levantamento mais rigoroso, foi possível constatar que ele está bastante presente em seus escritos, seja como menção direta, alusão ou figura de linguagem. Apenas para dar uma ideia ao leitor, pode-se dizer que o Diabo ―aparece‖ nos seguintes escritos: a) Romances: Memórias 26 Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires; b) Contos: ―τ anjo Rafael‖, ―A igreja do Diabo‖, ―Adão e Eva‖, ―τ sermão do Diabo‖; c) Crônicas: uma de 5 de outubro de 1885 (Balas de Estalo) e a outra de 5 de abril de 1888 (Bons Dias!); d) Poema: ―τ Casamento do Diabo‖11. Para apresentar tais dados de forma mais clara, efetuei uma contagem e preparei uma tabela acerca das menções do vocábulo ―Diabo/diabo‖ e de outros ―similares‖ nos romances de nosso escritor. Tabela 01: Menções do vocábulo ―Diabo/diabo‖ e de outros ―similares‖ nos romances de Machado de Assis. Obra/ Nome Diabo/ diabo Lúcifer Satanás Demô- nio pobre- diabo Tinhoso Ou- tros12 Total Ressurreição 1 X X X X X X 1 A mão e a luva 1 X X 2 X X X 3 Helena X X X 1 X X 1 2 Iaiá-Garcia 2 X X X X X X 2 M.P.B.C. 21 X X X 2 X 2 25 Casa Velha 4 X X X 1 X X 5 Q. Borba 22 X X 2 5 X 1 30 D. Casmurro 12 X 6 X 2 X 2 22 Esaú e Jacó 14 X 2 X 1 X X 17 M. de Aires 11 X X X X X X 11 Total 88 X 8 5 11 X 6 118 Fonte: Obras Completas de Machado de Assis. 13 Note o leitor que, ao todo, foram encontradas 118 ocorrências. Caso deixemos a expressão ―pobre-diabo‖ de lado, ainda nos sobram por volta de 107 menções ao Tinhoso, e isso contando apenas nos romances de nosso autor. Dessas 107menções, em λ6 delas o ―Coisa- Ruim‖ recebeu o nome ―próprio‖ (Diabo ou Satanás). Caso fôssemos 11 Raimundo Magalhães Jr. (1981, p. 191-193), no primeiro volume de sua biografia sobre Machado de Assis, sugere que o poema seria uma imitação de um poema alemão, feita por Machado de Assis a partir da tradução de Henrique Fleiuss, e explica que ―o texto imitado não passava de uma cançoneta de Gustave σadaud‖. 12 Outros = diabólico (Helena e MPBC), endiabrado (Quincas Borba), diabrete (Dom Casmurro), satânico (MPBC), satanista (Dom Casmurro), etc. 13 A contagem dos vocábulos e, por consequência, a elaboração da tabela foram facilitadas pela disponibilidade das Obras Completas de Machado de Assis em formato digital; trabalho este que é fruto de uma parceria entre o Portal Domínio Público – a biblioteca digital do MEC – e o Núcleo de Pesquisa em Informática, Literatura e Linguística (NUPILL), da Universidade Federal de Santa Catarina. Disponível no site < http://machado.mec.gov.br/index.php >. Acesso em: 14 jan. 2019. 27 observar e contabilizar suas menções nos contos e crônicas, esse número provavelmente se mostraria ainda maior. No entanto, o objetivo aqui não é saber a quantidade de vezes que Machado de Assis menciona o Diabo em seus escritos; trouxe estes dados não apenas para apontar e justificar a relevância deste estudo, mas também para mostrar a necessidade de delimitação dos escritos machadianos diante da ubiquidade em que se mostra esta personagem. Assim, de acordo com o critério estabelecido – isto é, o de escolher apenas os textos em que o Diabo apareça como uma personagem em posição de protagonismo ou destaque –, encontrei cinco textos, cinco escritos em que é possível observar esta característica. São eles: os contos: ―A igreja do Diabo‖, de 1κκ3, e ―Adão e Eva‖, de 1885; as crônicas: do dia 05 de outubro de 1885, situada na série Balas de Estalo, e ―τ sermão do Diabo‖, de 04 de setembro de 1κλ2; e, por fim, o capítulo IX de Dom Casmurro, intitulado ―A Ópera‖. Dito isto, cabe explicitar de forma mais clara, porém sucinta, quais são os objetivos deste estudo. De forma geral, o objetivo aqui é de estudar o Diabo enquanto personagem da obra de Machado de Assis. No entanto, dizer apenas isto é insuficiente, pois esta é apenas a base do edifício. Para delimitar melhor, é possível dizer que existem três objetivos principais, que, para prosseguir com a metáfora, são os pilares que sustentarão a estrutura. Em primeiro lugar, o intuito é investigar de que forma o autor de Dom Casmurro descreve esta personagem, ou seja, de que forma Machado de Assis o apresenta ao leitor, quais são suas características. Essa investigação se faz pertinente na medida em que, se formos observar a história do ocidente, perceberemos que nem sempre o Diabo foi ―visto‖ da mesma forma. Neste sentido, vale trazer, mesmo que de forma bastante sintética, as constatações de quatro autores que confirmam essa afirmação e que, além disso, são, basicamente, os pilares de minha pesquisa acerca do Diabo. São eles: Luther Link, Robert Muchembled, Peter Stanford, Henry Ansgar Kelly14. 14 Além destes autores, também me baseio na tetralogia do historiador Jeffrey Burton Russell, pioneiro nos estudos sobre o Diabo, e no livro de Carlos Roberto F. Nogueira, pioneiro nestes estudos feitos aqui no Brasil. Embora ambos sejam autores renomados, eles não constam especificamente como pilares desta pesquisa pelo fato de que o primeiro, embora tenha uma obra de bastante fôlego (quatro volumes), aborda o Diabo como uma personificação do Mal, seja ele de qualquer tipo, e por isso inclui outros tipos de manifestações maléficas como parte integrante de seu estudo. O segundo, por sua vez, é 28 Em O Diabo: a máscara sem rosto (1998, p. 19), Luther Link vai argumentar sobre a ―descontinuidade da imagem do Diabo‖ ao trabalhar com as artes plásticas (pinturas e esculturas) do séc. IX ao XVI – aqui é preciso mencionar que, embora a iconografia de Jesus, de Maria e de outros também seja variável, diz Link, ela foi definida de forma mais precisa, enquanto que a do Diabo, nunca o foi. Além disso, ainda segundo este autor, ―[n]ossas ideias sobre o Diabo, embora não necessariamente sua imagem pictórica, derivam de três fontes: interpretações antigas do Novo Testamento, o herói rebelde criado por Milton e pela tradição literária romântica de Blake e Baudelaire e a tradição popular dos cultos satânicos e sabás de bruxas.‖15. R. Muchembled, em seu livro Uma história do Diabo: séculos XII-XX (2001), vai abordar como, ao longo de oito séculos, a figura de um Diabo mais humanizado, que poderia ser enganado, ludibriado e derrotado por cristãos espertos, vai se bifurcar em uma tradição que o aponta tanto como o soberano do Inferno quanto como uma besta imunda escondida nas entranhas de cada pecador; depois passa a ser apontado como o líder de seitas demoníacas, como a das feiticeiras dos sabbath‟s; em seguida, em como ele é reinterpretado pelos românticos na forma do grande rebelde; e, ainda, mais ou menos após o século XVIII, em como ele será cada vez mais interiorizado – ou seja, em como ele passa para dentro de cada indivíduo, seja dentro de si seja dentro do outro, isto é, daqueles que são considerados diferentes por determinado grupo (geralmente simbolizados por estrangeiros, comunistas, etc.). Peter Stanford, em seu O Diabo: uma biografia (2003), trabalhando desde as antigas civilizações europeias até o século XX, argumenta que um esboço, um rascunho, um protótipo do Diabo cristão teria nascido com a tentativa dos povos egípcios, mesopotâmicos, cananeus (ou cananitas), gregos e persas de explicar o mal; teria entrado numa espécie de ―Jardim de Infância‖ com a cultura e as Escrituras hebraicas; em seguida, teria aparecido como um ―adolescente‖ no Segundo Testamento; depois, tornou-se o poderoso inimigo de Deus com as reinterpretações dos Pais da Igreja; e, por fim, seguiu sua trajetória sendo novamente reinterpretado conforme a necessidade, profícuo como introdução ao tema e como suporte, mas não especificamente como um pilar, tendo em vista que seus apontamentos são de cunho mais geral, não se aprofundando tanto nas questões. Para as referências completas, cf. a bibliografia ao final deste estudo. 15 LINK, 1998, p. 17. 29 tornando-se sinônimo de todas as divindades e crenças rivais da cristandade. Em seu Satã: uma biografia (2008), H. A. Kelly trabalha com a hipótese de que o Satã da Tradição Cristã é diferente do Satã/Diabo que é retratado na Bíblia, e para isso, ele começa sua trilha pelas Escrituras hebraicas, passa pelos livros apócrifos, segue pelo Segundo Testamento, comenta sobre a reinterpretação pelos Pais da Igreja, de suas novas reinterpretações pelas artes (literárias e plásticas), etc. Ainda seguindo neste primeiro ponto, é preciso dizer que esta investigação se torna pertinente pelo fato de que, da forma como eu vejo, quando Machado de Assis utiliza o Diabo como uma personagem, ele nem sempre o faz da mesma forma. E não o faz da mesma forma em dois sentidos, tanto no de que sua descrição, isto é, as características que utiliza para a personagem não seriam as mesmas, quanto no de que o Diabo machadiano pode abarcar outros significados que aqueles convencionalmente abordados pela tradição teológica cristã, a saber, como um ser espiritual que renegou a Deus e que simboliza unicamente o Mal e tudo aquilo que nos impede de chegar a Deus16. Em meu juízo, essa possibilidade se torna uma probabilidade se levarmos em conta a interpretação e a argumentação de alguns estudiosos da obra machadiana, tais como John Gledson, Paul Dixon, etc. Estas constatações me levaram à hipótese de que o Diabo em cada um dos escritosmachadianos não é exatamente o mesmo, e daí a possibilidade deixada em aberto (anteriormente e ainda agora) de não serem chamados de Diabo, mas de Diabos. Em segundo lugar, o objetivo é comparar o(s) Diabo(s) machadiano(s) com outros Diabos explorados por outros autores daquilo que chamei de tradição diabólica. Dos inúmeros autores existentes, tive de optar por apenas cinco, tendo em vista que observar a todos seria uma tarefa (praticamente) infinita. Dentre os que foram mencionados, escolhi aqueles que, em minha visão, parecem ser os mais significativos, além de me serem os mais familiares, a saber, Dante Alighieri, Gil Vicente, John Milton, J. W. von Goethe e Álvares de Azevedo17. Outro motivo que me fez escolher estes autores para a comparação está no fato de que 16 Cf. CATECISMO Católico. 17 Os textos são, respectivamente, A Divina Comédia, O Auto da Barca do Inferno, Paraíso Perdido, Fausto (Parte I) e Macário. Cabe ressaltar que, embora pareça uma tarefa imensa, ela não chega a ser tão grande assim, uma vez que meu intuito é levantar os traços da personagem de forma mais genérica, abordando suas principais características. 30 Machado de Assis teria conhecido e lido as obras em que eles se utilizaram do Diabo como personagem, cabendo, portanto, uma comparação entre suas ―visões‖ acerca dele18. Além disso, também se faz necessário esclarecer e frisar, no que tange às mencionadas obras desses autores, é que aqui não será feito um estudo exaustivo em relação ao personagem nelas apresentado, mas um levantamento geral sobre suas principais características a fim de efetuar uma comparação com as descrições machadianas do Diabo e, desta forma, perceber suas semelhanças e diferenças. Entendo que, mesmo trabalhando com apenas cinco autores, isso já parece uma tarefa enorme. No entanto, cabe reiterar que não me deterei em uma análise destas personagens, isto é, não pretendo colocá-las sobre a mesa de dissecação, esquartejá-las e observar suas partes. O intuito aqui será observá-las como ―modelos‖ e, assim, esboçar suas ―fisionomias‖, traçar um desenho, fazer um breve retrato para que se possa observar de forma mais acurada o que nosso escritor traz da tradição e no que ele se diferencia. Assim, pelo modo comparativo, ficará mais fácil de vislumbrar os possíveis diálogos e choques, laces e desenlaces, entranhamentos e estranhamentos que ocorrem com estas personagens. Essa comparação também é interessante pelo fato de que nos possibilitará perceber de forma mais clara a pluralidade nas representações de Machado de Assis para o Diabo, ou, dito de outra forma, para confirmar a hipótese de que não se trata de apenas um Diabo, mas de alguns. Dito isto, podemos passar ao terceiro objetivo deste estudo, a saber, o desdobramento de alguns possíveis sentidos que o(s) Diabo(s) machadiano(s) pode(m) receber dentro de sua obra. Antes de tudo, é preciso esclarecer que o intuito aqui não é esgotar o sentido ou os sentidos que ele pode receber, mas sim, fugir daquele convencionalmente abordado pela tradição teológica cristã, e, a partir de outros olhares, isto é, a partir da Fortuna Crítica existente sobre os textos machadianos e sobre esta personagem dentro da obra de Machado de Assis, construir outra visão para ela. O interesse que subjaz a esse objetivo é o de buscar uma reflexão e uma possível explicação do porquê esses textos continuarem a nos tocar mesmo quando parecem 18 Dentre estes autores, o único que não consta na ―biblioteca de Machado‖ é Álvares de Azevedo. No entanto, a partir de seus escritos como crítico literário é possível perceber e afirmar que Machado teve contato com sua obra. Baseio- me aqui na lista de livros catalogada por Jean Michel Massa e atualizada por Glória Viana (Cf. JOBIM (org.), 2008, p. 144-274). 31 fazer referências a algo que não está mais ―aí‖. Menciono isto por conta de constatações como a de Luiz Costa Lima quando este afirma que ―a originalidade machadiana resulta de haver fundado sua produção da maturidade na reflexão ficcional de sua sociedade.‖19, bem como o fato de que ―é sua poética que exige sua temporalização‖ 20, pois, sem essa temporalização, ―desentendemos a presença da alegoria e concedemos a Machado o epíteto insosso de ‗o nosso primeiro clássico‘.‖ 21. É evidente que em certa medida ele está com a razão, pois, sem essa temporalização, perdem-se algumas das sutilezas da obra machadiana, algumas de suas alegorias, e, principalmente, suas mais finas ironias, aquela pitadinha de sal que as deixa (ainda) mais saborosas. Mas, se fosse apenas por isso, não leríamos mais Machado de Assis. Suas narrativas já estariam ultrapassadas e seriam completamente enfadonhas, pois diriam respeito somente ao seu tempo e somente deleitariam aqueles que tivessem algum conhecimento histórico mais amplo, ou, pior, que vissem na obra do autor apenas um documento histórico e que buscassem nela somente apontamentos e explicações sobre sua época. No entanto, não é isso que ocorre. Machado de Assis é o nosso primeiro clássico, pois continua atual ainda hoje, pois continua a nos tocar. Além disso, força é dizer, quando o chamo de escritor clássico tenho em mente aquilo que Gadamer escreve em Verdade e Método I (2008) , a saber, quando afirma que um clássico é ―aquilo que se subtraiu às flutuações do tempo e do gosto‖, e quando completa sua afirmação explicando que ―[o] que nos leva a chamar algo de ‗clássico‘ é, antes, uma consciência do ser permanente, uma consciência do significado imorredouro, que é independente de toda circunstância temporal, uma espécie de presente intemporal contemporâneo de todo e qualquer presente.‖ 22. Essa explicação de Gadamer, a meu ver, está em perfeita consonância com a sexta definição de Ítalo Calvino em seu texto ―Por que ler os clássicos?‖, na qual declara o seguinte: ―Um clássico é um livro23 que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.‖24. Sendo assim, chamar Machado de o nosso primeiro clássico não é demérito algum. Pelo contrário, é dar a ele o que lhe é de direito. Precisamos, sim, dessa leitura histórica para 19 LIMA, 2011, p. 195. 20 LIMA, 2011, p. 220. 21 LIMA, 2011, p. 220 – grifo meu. 22 GADAMER, 2008, p. 381. 23 Ou texto, se quisermos aumentar o escopo. 24 CALVINO, 1993, p. 11. 32 não perder de vista o horizonte de expectativas que estava em questão quando ele escreveu seus textos, mas, também precisamos lembrar que eles, os textos, transcendem sua época e que quem os lê atualmente, mesmo sem esse fundo histórico, ainda é tocado, ou, para utilizar mais uma das definições de Calvino, seus textos ―persiste[m] como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível.‖ 25. Feitas estas considerações, gostaria de abrir dois breves parênteses antes de explicar de que forma se constituirá a estrutura formal desta dissertação. Um deles concerne ao título deste estudo; o outro, à forma como venho me referindo e como irei me referir à personagem que será estudada. Começarei por este último ponto. Sobre a forma como vou me referir à personagem, é preciso esclarecer que os termos para designar o Diabo provêm de uma tradição com diferentes interpretações; menciono isso, pois, os livros da Bíblia – tanto do Primeiro (ou Antigo) quanto do Segundo (ou Novo) Testamento – não foram escritos ao mesmo tempo e, por isso, cada livro bíblico já seria uma reinterpretação (a sua maneira) da tradição hebraica. Vale dizer que, se o leitor for procurar no Primeiro Testamento bíblico, não encontrará o Diabo propriamente dito. Terá, sim, uma personagem que é chamada de STN26 (adversário), termo este que, segundo o professor e pesquisador Henry A. Kelly (2008, p. 11), é geralmente utilizado como um substantivo comum, e não como um nome próprio. Embora o Diabodo cristianismo tenha ―se baseado‖ no STN hebraico, os dois só se tornam o mesmo ser posteriormente. Em outras palavras, o Diabo, na forma como se consolidou no imaginário ocidental, é uma invenção posterior, uma interpretação cristã. Sendo assim, também é pertinente mencionar que, etimologicamente27 falando, STN é um termo hebraico que significa adversário; que diabolôs – de onde provém o nosso termo Diabo – é a tradução deste termo para o grego e significa acusador ou difamador; que daemon, um termo que também é grego, refere-se a ―espíritos mediadores entre deuses e homens‖, os quais podem ser tanto bons quanto maus (vide o exemplo do daemon socrático); e que, por fim, o 25 CALVINO, 1993, p. 15. 26 Leia-se ―Shatan‖. 27 Sobre a etimologia dos principais nomes do Diabo é possível consultar os livros: O Diabo: a máscara sem rosto (1998), de Luther Link, e Satã: uma biografia (2008), de Henry A. Kelly. Para estes e outros nomes relacionados ao Diabo (Lillith, Azazel, etc.) conferir o Manual de demonologia (2011), de Carlos Augusto Vailatti. 33 termo Lúcifer provém do latim e significa o portador da luz, o qual, a princípio, não se referia ao anjo que se rebela contra Deus, mas a um rei babilônico em uma passagem de Isaías (14: 12). De acordo com Luther Link, professor de história da arte, Historicamente, a sequência dos três termos que conhecemos bem é: Satã, Diabo, Lúcifer, embora ao longo das eras estudiosos e escritores frequentemente tenham imaginado a sequência de outras maneiras. Chaucer, por exemplo, julgava que o anjo Lúcifer, depois de sua queda do Céu, tornou-se Satã. Teólogos medievais e renascentistas não apresentam um uso sistemático ou uniforme dos três termos. Além disso, embora todos os três refiram o mesmo ser, no uso inglês comum (e também em alemão, francês e italiano), esses termos ora são intercambiáveis, ora não. (LINK, 1998, p. 13) Sendo assim, para facilitar a compreensão, darei preferência ao uso do termo Lúcifer como nome do anjo que se rebela contra Deus (e aqui independe se o seu pecado foi orgulho, concupiscência ou inveja em relação ao homem28), ou seja, como nome para o anjo antes de sua queda, e os termos Satã, Satanás, Demônio e Diabo como sinônimos para seu nome após a queda. Além disso, para não utilizar seu nome em todas as ocasiões, ele também poderá ser chamado de Cão, Capeta, Capiroto, Chifrudo, Coisa Ruim, Cramulhão, Maligno, Pedro Botelho, Tinhoso, nomes utilizados pela cultura popular. Vale dizer que, salvo em citações diretas, quando for me referir ao Diabo como uma personagem, seu nome (ou alguma de suas variações) será grafado com a inicial maiúscula. Passemos agora ao outro parêntese. No que concerne ao título de minha dissertação – Faces do Diabo na obra de um Bruxo: uma releitura do Diabo machadiano –, ele aparece aqui como homenagem à minha orientadora, a Prof.ª Dr.ª Salma Ferraz, cuja tese de doutoramento é intitulada As faces de Deus na obra de um ateu. Presto esta humilde homenagem em virtude não só da acolhida que me deu enquanto orientadora, ou da amizade que se firmou entre nós – fatores que, por si sós, já seriam o suficiente –, mas também por me ter possibilitado a reconciliação com essa parte determinante da cultura 28 Sobre a divergência teológica acerca de qual teria sido o pecado de Lúcifer, cf. LINK, 1998, p. 33-36. 34 ocidental, que é a tradição dos estudos bíblicos e teológicos e suas relações com a literatura. Lembro ainda da primeira vez que cursei a disciplina de Teopoética29 aqui na Universidade Federal de Santa Catarina, sobre Humor e mau humor nas e sobre as narrativas bíblicas. Até então, eu não tinha a menor ideia de que se pudesse estudar a Bíblia enquanto literatura. Minha visão de ovelha desgarrada do rebanho impedia qualquer tipo de olhar para estas narrativas que – conforme explica Auerbach, no texto ―A cicatriz de Ulisses‖30 – são um dos dois pilares da literatura ocidental, juntamente com a literatura greco-latina; ou que, na visão de Northrop Frye, citando William Blake31, são o ―grande código da arte‖. Tampouco podia apreciar as referências bíblicas, mesmo aquelas que a ironizavam, uma vez que não possuía parâmetros para tal. Assim, com essa singela homenagem, espero prestar meus agradecimentos a essa grande mulher. Feitos estes apontamentos e esclarecimentos, passo agora a explicitar de que forma este estudo será estruturado. 29 De acordo com a Prof.ª Dr.ª Salma Ferraz em sua apresentação para o site do NUTEL (Núcleo de estudos comparados entre Teologia e Literatura), ―A Teopoética foi proposta por Karl Josef Kuschel e trata-se de um novo ramo de estudos acadêmicos voltado para o discurso crítico-literário sobre Deus, a análise literária efetivada por meio de uma reflexão teológica, o diálogo interdisciplinar possível entre Teologia e Literatura. Uma das principais perguntas da Teopoética é: qual o discurso dos autores sobre Deus dentro da Literatura do século XX? Sobre este assunto já existe um interessante estudo denominado Literatura do século XX e cristianismo: o silêncio de Deus, de autoria de Charles Moeller que investiga a importância de Deus nas obras de Albert Camus, André Gide e diversos outros escritores.‖. (Grifo meu) Disponível em: <http://teopoetica.sites.ufsc.br/>. Acesso em: 14 jan. 2019. Vale acrescentar que, não obstante a Teopoética – na visão de Kuschel e de Ferraz – privilegiar, em certa medida, o âmbito teológico, meu intuito aqui, pelo contrário, é privilegiar o âmbito literário a partir de um horizonte que possa se valer de reflexões teológicas em benefício do estudo da literatura. Em outras palavras, a teologia, aqui, será uma espécie de ferramenta que me irá auxiliar tanto a analisar quanto a efetuar uma releitura desta personagem que faz parte da cultura ocidental. Para uma discussão um pouco mais aprofundada sobre a Teopoética a partir de meu ponto de vista, cf. o primeiro capítulo de minha já mencionada monografia (PIERI, 2016). 30 Situado como o primeiro capítulo de seu livro Mimesis: a representação da realidade na literatura Ocidental, Ed. Perspectiva, 2009. 31 Conforme explica o autor em seu livro intitulado O código dos códigos: a Bíblia e a literatura, Ed. Boitempo, 2004. 35 σo primeiro capítulo, chamado ―Uma visão panorâmica‖, são tecidos alguns comentários sobre o Diabo enquanto uma figura artística, para, a partir daí, prover a abertura de que necessito sobre o tema. Ainda neste primeiro capítulo, será feita uma revisão bibliográfica da Fortuna Crítica de Machado de Assis, passando tanto por algumas de suas biografias, quanto por alguns dos principais estudiosos sobre sua obra como um todo, e ainda por alguns dos estudos feitos especificamente sobre o Diabo em sua obra. Esta revisão é fundamental para este estudo tendo em vista que muitos autores – sejam eles de renome ou não, com estudos de caráter mais geral ou mais específico – já se debruçaram sobre a obra machadiana, e não só não convém deixá-los de lado, como também seria um grande erro fazê-lo, uma vez que suas contribuições podem (e em muitos casos vão) me auxiliar a chegar ao ponto onde pretendo. Para concluir este capítulo, eu retorno ao Diabo, mas agora enquanto personagem da obra machadiana para sugerir algumas de suas potencialidades. σo segundo capítulo, intitulado ―Com o Diabo no corpus‖, passo a abordar as narrativas selecionadas a fim de contemplar os aspectos, os traços, as características utilizadas por Machado de Assis para compor sua personagem. Em primeiro lugar, abordarei os contos ―A igreja do Diabo‖ e ―Adão e Eva‖;, para em seguida abordar a crônica do dia ―05 de outubro de 1κκ5‖, situada na série Balas de estalo, e a crônica ―τ sermão do Diabo‖; e, por último, o capítulo IX de Dom Casmurro, intitulado―A ópera‖. Fiz a opção de agrupar os textos por gênero neste capítulo (conto, crônica e romance), pois, embora seja uma forma arbitrária, ainda assim me parece ser mais consistente (ou menos subjetiva. No final do capítulo encontram-se considerações parciais acerca do questionamento proposto, isto é, se o Diabo machadiano é uno, múltiplo ou múltiplo e comum. σo terceiro capítulo, cujo título é ―Machado de Assis e a tradição diabólica‖, abordo cinco diferentes formas de representações do Diabo na literatura ocidental a partir de textos como o ―Inferno‖, de Dante Alighieri; O Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente; Paraíso Perdido, de John Milton; Fausto (Parte 1), de J. W. von Goethe; e, Macário, de Álvares de Azevedo. O intuito deste capítulo é traçar comparações entre as diversas formas de representação do Diabo em alguns autores inseridos no cânone da literatura ocidental para, com isso, perceber as semelhanças e diferenças das características apresentadas entre seus textos e os textos machadianos, e assim perceber o que Machado de Assis traz dessa tradição e o que ele nos fornece de novo. 36 No quarto capítulo, intitulado ―Faces do Diabo na obra de Machado de Assis‖, pretendo desdobrar os sentidos que se pode alcançar a partir deste outro olhar para o(s) Diabo(s) machadiano(s), pois, se em cada aparição do Diabo tivermos um Diabo diferente – mesmo que possua o mesmo nome ou apenas várias faces –, seu sentido pode ser outro, e, por isso, cada vez apontar para outro lugar, seja para o ―mundo real‖32 seja para o mundo da ficção, na forma de um ―confronto‖, um ―embate‖, com a própria tradição. As considerações finais levam o título de Απο ά υψη33, pois é o lugar onde se passa o juízo final e a απο α ά α ς34. Aqui encontra-se não apenas a revelação daquilo que encontramos, mas também a redenção do Diabo, se é que ele irá querer ou precisar de alguma, e ainda sugestões para futuros estudos. Dito isto, é preciso que, como Lúcifer, filho da estrela d‘alva, subamos aos céus e ainda mais, até que estejamos acima das estrelas, pois só assim teremos Uma visão panorâmica... 32 σo sentido de que não é o ―mundo da ficção‖ ou o ―mundo do texto‖ (Ricoeur). 33 τ termo ―apocalipse‖, em grego, significa ―Revelação‖. 34 τ termo ―apokatástasis‖ ou ―apocatástase‖ provém de τrígenes de Alexandria e sua teoria na qual, no final dos tempos, todos os seres teriam a possibilidade de redenção. Para maiores detalhes, cf. STANFORD, 2003, p. 95- 96 e KELLY, 2008, p. 231. 37 2 CAPÍTULO I: Uma visão panorâmica 12 Como caíste do céu, ó estrela d'alva, filho da aurora! Como foste atirado à terra, vencedor das nações! 13 E, no entanto, dizias no teu coração: 'Hei de subir até o céu, acima das estrelas de Deus colocarei o meu trono, estabelecer-me-ei na montanha da Assembléia, nos confins do norte. 14 Subirei acima das nuvens, tornar-me- ei semelhante ao Altíssimo.' 15E, contudo, foste precipitado ao Xeol, nas profundezas do abismo. (Livro de Isaías XIV: 12-15)35 Eis que estamos acima das nuvens, na posição necessária para que tenhamos uma visão panorâmica. Foi preciso subir a essa altura para que não fôssemos tragados para o Xeol – ou Inferno, dependendo da tradução bíblica que se use. Embora estejamos olhando de cima, Satã já caiu e se encontra nas profundezas do Abismo, outro dos nomes recebidos pelo lugar em que, segundo a tradição Católica, são lançados aqueles que se afastam dos caminhos da divindade. Esta subida, claro está, é metafórica. Ela apenas quer dizer que tomamos distância para maior ―objetividade‖, que vai entre aspas, pois já é lugar comum saber- se que não existe uma objetividade plena, mas, apenas certa objetividade. Eis que mal começamos e Satã nos desvia do caminho. Ou será que não? Afinal, é sempre válido lembrar que aquele que escolhe uma questão é tocado por ela, e assim, de alguma forma é difícil fugir plenamente da subjetividade. Mas, voltemos nosso olhar para baixo e vejamos de que forma a figura do Diabo foi explorada por alguns artistas da cultura ocidental. 35 Embora a passagem do Livro de Isaías refira-se a um rei babilônico em seu contexto original, eu a utilizo como epígrafe levando em conta a história de sua interpretação, que a identifica com a queda de Lúcifer. 38 2.1 Um Diabo diferente: algumas ―representações‖36 do Tinhoso. ―O Diabo é uma extraordinária mistura de confusões. Satã é uma criatura da teologia, da ideologia e política práticas e de tradições pictóricas estranhamente ligadas. O soberano do Inferno, o anjo rebelde, a contrapartida de Miguel na pesagem das almas e o perverso micróbio provocador pouco se sobrepuseram na esfera pictórica. Sem uma iconografia fixa, o Diabo pôde ser Godzilla, um Pã desvirtuado, uma peste peluda com ou sem asas, com ou sem chifres, com ou sem cascos fendidos, feroz ou cômico‖. (Luther Link – O Diabo: a máscara sem rosto) Conforme mencionei na introdução37, em seu O Diabo: a máscara sem rosto (1998), Luther Link afirma que nossas concepções sobre a imagem do Diabo provêm de três fontes: 1) de interpretações da Bíblia38; 2) de John Milton e da literatura romântica; e 3) da tradição popular dos cultos satânicos e sabás de bruxas. Além disso, também mencionei que nem sempre o Diabo foi ―visto‖ ou, melhor dizendo, 36 O termo vai entre aspas, pois compreendo que seu uso seja problemático dentro dos estudos literários, uma vez que nos remete à ideia de mimese, isto é, de espelhamento, cópia ou imitação. No entanto, eu a utilizo aqui tanto no sentido daquilo que ―torna algo presente‖, quanto no sentido daquilo que ―desempenha um papel‖ (como nas representações teatrais), ou ainda daquilo que ―substitui algo ou alguém‖, tal como um advogado representa seu cliente. Estes outros sentidos são elencados pelo Novo dicionário da língua portuguesa (1986), de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. 37 Cf. p. 28 desta dissertação. 38 Vale mencionar que, nem mesmo na Bíblia, o Diabo possui uma caracterização única ou unívoca. Para que se tenha uma noção disto, basta mencionar que, mesmo dentro do Primeiro Testamento temos pelo menos quatro aparições de uma figura denominada STN na forma de um ente sobrenatural, as quais nem sempre dão exatamente a ―mesma forma‖ à personagem. Para uma explicação mais detalhada sobre as aparições/descrições de Satã na Bíblia – seja para o Primeiro e o Segundo Testamentos ou para os livros apócrifos –, consultar a obra de Henry A. Kelly, Satã: uma biografia (2008). 39 ―concebido‖ da mesma forma na cultura ocidental. Para embasar esta afirmação trouxe sinteticamente os argumentos de estudiosos como Luther Link, Robert Muchembled, Peter Stanford e Henry Ansgar Kelly. No entanto, embora perdesse em academicidade, também poderia ter solicitado à leitora ou ao leitor que me respondesse a seguinte questão: de que forma você imagina o Diabo? É possível que cada qual tivesse sua própria concepção sobre a aparência do Tinhoso, o que nos proporcionaria diversas formas para ―representá-lo‖. Mesmo que fôssemos seguir a sua descrição consolidada pela cultura popular39, isto é, a partir da descrição na qual ele consta como uma figura antropomórfica, de pele vermelha ou preta, segurando um tridente, com rabo pontiagudo, manco40, com um casco fendido no lugar dos pés, barba e chifres de bode, com cheiro de enxofre (ou muito perfumado, para disfarçar o cheiro), ainda assim teríamos margem para muitas variantes. Falei em descrição consolidada pela cultura popular, pois, de acordo com Carlos Roberto F. Nogueira, em seu O Diabo no imaginário cristão, a partir da Idade Moderna, duas imagens de Satã coexistem: uma popular e outra erudita, esta, de longe, a representação mais trágica, pois o Demônio, nas consciências populares, é umaentre outras tantas sobrevivências míticas que uma conversão imposta não conseguiu exterminar. O Diabo popular é uma personagem familiar, às vezes benfazeja, muito menos terrível do que o afirma a Igreja, e pode ser, inclusive, facilmente enganado. A mentalidade popular defendia-se, desse modo, da teologia aterrorizante 39 Sobre o Diabo na cultura popular, cf. Carlos Roberto F. Nogueira, em seu O Diabo no imaginário cristão. (1986), 40 Segundo Carlos Roberto F. Nogueira, em seu O Diabo no imaginário cristão., ―τutra característica desenvolvida na tradição popular é que o Diabo é coxo, como resultado de um ferimento recebido quando foi precipitado dos céus. Disso resulta a crença de que se o corpo de uma criatura é defeituoso, isso é um claro sinal da deformidade de toda a sua natureza; crença que é levada para o cotidiano, em prejuízo de homens e mulheres que serão levados à justiça como agentes do Diabo unicamente por possuírem deformidades físicas, deduzindo-se de sua monstruosidade material a sua monstruosidade espiritual.‖ (1986, p. 59 – grifo meu). 40 – e muitas vezes incompreensível – da cultura erudita. (NOGUEIRA, 1986, p. 76 – grifo meu) Para constatar a pluralidade de suas representações, efetuei uma busca na internet por imagens disponibilizadas pelo vocábulo Diabo (ou de seus cognatos em outras línguas: diablo, devil, Teufel, etc.). Veja o leitor as imagens abaixo (Imagens 01, 02, 03, e 04) e assim terá uma noção do que digo, embora o que figure aqui seja uma versão mais modernizada do Capiroto. Figura 01: Diabo. Fonte: https://www.altoastral.com.br/5-formas-como-diabo-conhecido/ Acesso em: 14/01/2019. Figura 02: Diablo. Fonte: https://sipse.com/novedades/diablo-satanas-como-es-satan-arte- cristianismo-diablo-cristiano-mal-maldad-biblia-religion-pintura-cuernos-como- es-el-diablo-204076.html Acesso em: 14/01/2019. 41 Figura 03: Devil. Fonte: https://vignette.wikia.nocookie.net/vampirediaries/images/4/4d/Devil.jpg/revisi on/latest?cb=20130508215710 Acesso em: 14/01/2019. Figura 04: Teufel. Fonte: https://i.mmo.cm/is/image/mmoimg/bigview/teufel-deluxe-set--104540- devil-deluxe-make-up-kit-teulfe-deluxe-set.jpg Acesso em: 14/01/2019. 42 Conforme podemos observar, essas imagens (Figuras 01, 02, 03 e 04) possuem características que não deixam de ter certa semelhança com o deus Pã e os sátiros (Figuras 05 e 06). Peter Stanford (2003) constata que a imagem de Pã serviu de inspiração para a produção iconográfica do Diabo. Carlos R. F. Nogueira, em sua obra supracitada, possui a mesma opinião, e afirma sem meias palavras que O grande modelo que influenciou toda uma iconografia diabólica foram as clássicas imagens de Pã e dos sátiros: criaturas meio homem, meio bode, com chifres, cascos partidos, olhos oblíquos e orelhas pontiagudas. A essa combinação a imaginação cristã acrescenta um ingrediente essencial: as asas de um anjo. Contudo, como se tratava de anjos caídos, as asas não poderiam ser de um pássaro que voa à luz do dia, e sim as de um morcego, que ama as trevas e, de um modo absolutamente diabólico, vive de cabeça para baixo. (NOGUEIRA, 1986, p. 58 – grifos meus) Figura 05: Pã. Fonte: https://escamandro.wordpress.com/2012/02/29/shelley-hinos-de-apolo- pa Acesso em: 14/01/2019. 43 Figura 06: Pã. Fonte: http://arcanoteca.blogspot.com.br/2017/02/menu-mitologia-grega-pa-e- constelacao.html Acesso em: 14/01/2019. Em certa medida, eles até que estão com a razão, pois esta imagem realmente se alastrou pelo imaginário cristão. Apesar disso, Luther Link discorda parcialmente dessa opinião. Embora o autor admita que Pã tenha realmente influenciado na concepção do Diabo dentro do imaginário cristão, ele explica – e demonstra a partir de diversas obras de arte – que ―imaginar que Pã foi o protótipo do Diabo não corresponde aos fatos‖41, pois nem todos os Diabos que foram esculpidos42 ou pintados43 – do séc. IX ao XVI, pelo menos – possuem as características do deus Pã. Embora de forma não tão completa ou detalhada quanto a de Luther Link, é por esse caminho que vamos trilhar a partir de agora44. 41 LINK, 1998, p. 55. 42 LINK, 1998, p. 55. 43 LINK, 1998, p. 61. 44 Por motivos de concisão e de foco – uma vez que esta dissertação não é sobre o Diabo na cultura ocidental, mas sim, na obra de Machado de Assis –, não poderei abordar todas as representações já feitas do Diabo. Esta exposição aparece aqui apenas para ilustrar este ponto de vista, a saber, a descontinuidade nas representações do Diabo. Ao leitor interessado em mais representações pictográficas do Diabo, remeto à obra de Luther Link. 44 Nossa caminhada se inicia por volta do século XIV, data que pode parecer um tanto quanto arbitrária. No entanto, mesmo que essa arbitrariedade não deixe de ser minimamente verdadeira, esta data foi escolhida por dois motivos. O primeiro é referente às duas pinturas que veremos a seguir (Imagens 07 e 08), as quais, além de terem sido feitas por um dos grandes mestres da pintura universal, também nos mostram que o mesmo autor pode ter uma concepção diferente da mesma personagem. O segundo motivo refere-se à afirmação de Robert Muchembled, na qual declara que ―[o] diabo mostrou-se discreto durante o primeiro milênio cristão‖ e que, embora os teólogos e moralistas se interessassem por ele, ―a arte quase não lhe dava espaço‖45. Assim, consoante ao autor, é possível dizer que a entrada de Satã na cena ocidental só vai ocorrer realmente em um momento tardio, pois, embora os ―elementos heterogêneos da imagem demoníaca existi[ssem] há muito‖46, é somente a partir do século XII ou XIII ―que eles vêm a assumir um lugar decisivo nas representações e nas práticas, antes de desenvolver um imaginário terrível e obsessivo no final da Idade Média.‖ 47. É nesse período que, ainda nas palavras do autor, a noção teológica começa realmente a encarnar-se, no universo das pessoas da Igreja e dos dominantes laicos, sob a forma de assustadoras imagens, já distanciadas da visão popular, que pintavam um demônio quase semelhante ao homem e que, como este, podia ser ludibriado e vencido. Um duplo mito, de futuro fecundo, foi então inventado e a seguir lentamente difundido: o do terrível soberano luciferiano reinando sobre um imenso exército demoníaco em um assombroso inferno de fogo e enxofre; ou o da besta imunda oculta nas entranhas do pecador, que conserva tanta importância para inúmeros de nossos contemporâneos. (MUCHEMBLED, 2001, p. 14 – grifos meus) 45 MUCHEMBLED, 2001, p. 19. 46 MUCHEMBLED, 2001, p. 18 – modificação minha entre colchetes. 47 MUCHEMBLED, 2001, p. 18. Para saber mais sobre o Diabo no início da cristandade e na Idade Média, remeto o leitor interessado a dois livros de Jeffrey Burton Russell, Satan: the early Christian tradition (1981) e Lúcifer: o Diabo na Idade Média (2003). 45 Assim sendo, escolhi iniciar pela Idade Média Tardia/ Renascença, data que se poderia chamar de ―meio termo‖, isto é, uma data em que não é bem o início, mas também ainda não é fim da entrada de Satã na cultura ocidental. Dito isto, passemos às obras. Em seu afresco intitulado Pacto de Judas ou Judas trai Cristo (Figura 07), pintado entre 1304 e 1306 – que alude ao Evangelho segundo São Lucas (22: 3-648) –, Giotto, ―o pintor mais importante da Renascença que retratou o Diabo‖49, representa o Diabo como uma mera sombra, um espectro obscuro por trás de Judas enquanto este recebe o dinheiro dos sacerdotes. Vale ressaltar que não se percebe nenhum dos traços característicos de Pã, a menos que o queixo protuberante seja interpretado como uma barbicha. Figura 07: Pacto de Judas. Fonte: https://www.artbible.info/images/giotto_verraad_judas_grt.jpg Acesso em: 14/01/2019.48 ―3 Satanás entrou em Judas, chamado Iscariotes, do número dos Doze. 4 Ele foi conferenciar com os chefes dos sacerdotes e com os chefes da guarda sobre o modo de lho entregar. 5 Alegraram-se e combinaram dar-lhe dinheiro. 6 Ele aceitou, e procurava uma oportunidade para entregá-lo a eles, escondido da multidão.‖ (grifo meu) 49 LINK, 1998, p. 20. 46 Em outro afresco, intitulado Il Giudizo Universale ou O Juízo Final (1304-13), o mesmo Giotto pinta o Diabo sentado em um trono, como uma espécie de ―soberano do Inferno‖, mastigando e defecando pecadores. Vale observar, em conjunto com L. Link, que ―Satã sentado em um trono é o oposto de Cristo em um trono‖50, tendo em vista que ―[a] ingestão e a evacuação simultâneas possivelmente têm origens psicológicas em inferências a partir do trono imundo em que Satã está acocorado.‖51. O Satã de Giotto é imenso, azul, peludo, tem chifres e está nu. Apesar da feição peluda, de seus chifres e sua nudez, não vemos traços de Pã, ou tampouco o rabo pontiagudo. Ainda de acordo com L. Link (1998, p. 80), é possível que essa imagem tenha inspirado Dante na composição de seu ―Imperador del doloroso regno‖52. Figura 08: Detalhe de O Juízo Final. Fonte: https://www.artbible.info/images/giotto_verraad_judas_grt.jpg Acesso em: 14/01/2019. Ainda falando sobre a Idade Média Tardia/ Renascença, podemos mencionar os Livros Iluminados (do latim illuminare, adornar), no sentido de ―ilustrados‖, cujos principais tipos eram a Bíblia e os livros 50 LINK, 1998, p. 107. 51 LINK, 1998, p. 107. 52 Sobre o Diabo dantesco cf. o cap. III desta dissertação. 47 usados na missa, os saltérios (uma combinação de salmos) e os Livros de Horas (livros de preces). É sobre estes últimos que irei comentar agora. σas palavras de Link, eles eram feitos ―para aristocratas e comerciantes que contratavam privadamente os artistas‖53 e transmitiam mais o status de seus donos do que mensagens religiosas. ―Como um livro de horas destinava-se a um público secular‖, explica o autor, ―os artistas talvez sentissem mais liberdade‖ no que tange a composição de suas imagens, tendo em vista que ―sempre se podia encontrar em algum lugar um texto apropriado‖54 para justificar suas escolhas. Ainda segundo Link55, tanto a transformação decisiva na forma de representar o Diabo quanto a ―mais notável queda de Lúcifer‖ encontram-se em Livros de Horas, representações estas que foram feitas pelos irmãos Limbourg para o Duque de Berry. Essa virada na representação de Satã, consoante Link, ocorre em uma ilustração de Miguel derrotando Satã, em um livro de 140956. Nela, temos um Satã (após sua queda) que apresenta ―patas com garras, asas leves de morcego e um rabo curto, [e cujos] rosto e corpo são humanos‖57. Existem ainda duas outras ilustrações feitas pelos irmãos Limbourg, situadas em um livro de 1415. Conforme aponta L. Link, uma delas, intitulada Inferno (Figura 09), apresenta similaridades com a Visão de Tundale, que narra uma excursão pelo Inferno58. Essa excursão teria sido escrita por um monge irlandês do século XII, ou seja, antes da Comédia dantesca. Embora a imagem apresentada pelos Limbourg não seja tão original, explica o autor, ela ―aparenta uma síntese de como fora a aparência de Satã e do Inferno até então.‖ 59. Nessa ilustração (Figura 09), suas pernas, em certa medida, até lembram as de Pã ou dos sátiros, mas a semelhança de seu corpo não chega a ser muito grande. Nas palavras de Link, o que temos aqui é Um Satã chifrudo com dentes de sabre [que] está num leito de brasas e, como uma baleia brincando com uma bola no alto de seu jorro de 53 LINK, 1998, p. 179. 54 LINK, 1998, p. 179. 55 LINK, 1998, p. 179. 56 Cf. LINK, 1998, p. 183. 57 LINK, 1998, p. 183. Infelizmente, esta foi a única imagem que não consegui encontrar online. Para vê-la, remeto o leitor à página 187 do livro de Link. 58 Cf. LINK, 1998, p. 187. 59 LINK, 1998, p. 185. 48 água, este Satã usa chamas no lugar da água e brinca com um punhado de pecadores. Diabos usam foles para aumentar o calor e, em seus costumes de encenação de mistérios, arrastam pecadores até seu chefe. (LINK, 1998, p. 185) Figura 09: Inferno. Fonte: https://uploads1.wikiart.org/images/limbourg-brothers/hell.jpg Acesso em: 14/01/2019. A outra imagem (Figura 10), em contrapartida – intitulada A queda de Lúcifer e dos anjos rebeldes ou somente A queda dos anjos rebeldes –, além de apresentar, segundo Link, ―o primeiro Lúcifer belo na história da arte‖60, é também seu mais belo exemplar (no que diz respeito à arte medieval/renascentista, pelo menos) – ―belo na 60 LINK, 1998, p. 33. 49 composição, na cor, no movimento e na concepção‖. σela vemos que ―Deus e suas hostes estão no alto. [E] τs anjos rebeldes são jogados para baixo em duas colunas, à esquerda e à direita, formando um V que culmina com Lúcifer entrando no Inferno.‖ 61. Diz-se que os anjos em queda perdem o verde de suas asas e ganham as cores branco e dourado provavelmente em sinal de suas pretensões e orgulho. Mas o que realmente deve ser percebido e levado em conta é que eles são e continuam belos em todos os níveis de sua queda. Figura 10: A queda de Lúcifer e dos anjos rebeldes. Fonte: http://johnbald.typepad.com/.a/6a00d8341ec5f153ef01a73ddcd328970d- pi Acesso em: 14/01/2019. 61 LINK, 1998, p. 32. 50 Outra obra que merece nossa menção é o Juízo Final (1431-35), de Fra Angélico (Figura 11), o qual nos leva de volta à figura do Diabo como soberano do Inferno. Ele é grande e monstruoso, é escuro, tem dois chifres pequenos e discretos, além disso, semelhante à visão de Giotto (e, também à de Dante), ele parece ter três faces (ou pelo menos três bocas) e mastigar pecadores. Vale assinalar que ele em nada se parece com Pã. Figura 11: Detalhe de O Juízo Final. Fonte: https://sumateologica.files.wordpress.com/2010/05/fra_angelico_juizo_final_de talhe.jpg Acesso em: 14/01/2019. Em meados do século XV temos outro exemplar do Diabo com o quadro Miguel e o dragão (1450), de Antonio Pollaiuollo. Nele, segundo Link, temos o dragão mais ameaçador que até então se vira62. Menciono este quadro (Figura 12) tanto em função própria quanto em função de outra pintura, a qual pertencente a Rafael Sanzio, a saber, São Miguel e o dragão (Figura 13), de 1505. Segundo Link, o dragão de Rafael teria sido ―produzido à imagem e semelhança do dragão de 62 Cf. LINK, 1998, p. 184. 51 Pollaiuollo‖ 63. Será necessário mencionar que nenhum dos dois se parece com Pã? Figura 12: Miguel e o Dragão. Figura 13: São Miguel e o dragão . Fontes: https://i.pinimg.com/originals/9e/d1/e7/9ed1e7a2ef89215bd4498de7bba0df52.p ng Acesso em: 14/01/2019. http://cultura.culturamix.com/blog/wp-content/gallery/obras-de-rafael-sanzio-1- 1/Obras-de-Rafael-Sanzio-3.JPG Acesso em: 14/01/2019. Também de Rafael é o quadro chamado São Miguel e o Diabo (Figura 14), de 1518, o qual, segundo L. Link, diferentemente do anterior, estaria mais próximo daquela dos irmãos Limbourg. Não tanto na questão da técnica, mas conceitualmente, pois aqui ―Satã tem forma humana e, em termos pictóricos, está no mesmo nível de existência que o arcanjo.‖64. σas palavras de Vasari, esse Satã ―revela todas as nuanças de cólera que o imenso e maligno orgulho do Diabo dirige contra o Deus que o expulsou.‖65. 63 Cf. LINK, 1998, p. 184. 64 LINK, 1998, p. 184 65 Apud LINK, 1998, p. 184 52 Figura 14: São Miguel e o Diabo. Fonte: http://4.bp.blogspot.com/_- E_3I1JfJrc/S9z4MkYbS_I/AAAAAAAAAOU/KJJ9lXaQ6eE/s1600/hd- satanas.jpg Acesso em: 14/01/2019.Outro quadro que se pode mencionar é de meados do século XVI. Ele foi pintado por Lorenzo Lotto e se chama Miguel e Lúcifer (Figura 15). Como a fala de Link sobre o quadro é bastante esclarecedora, vale a pena citá-la por inteiro. Ele explica que: Em geral, Miguel está de pé em cima de Lúcifer caído. Ou Lúcifer cai no Inferno. Mas Miguel 53 sempre está ereto: a mensagem está no contraste das posições. A estabilidade da postura de Miguel indica a estabilidade de seu poder. Lotto mudou isso situando o eixo longitudinal de Lúcifer e Miguel em diagonal e deixando paralelos os eixos das duas figuras. Esse paralelismo estrutural reflete a representação mística de Lotto. Miguel e Lúcifer são iguais. É como ver os dois gametas de um zigoto. A outra face de Lúcifer é Miguel. (LINK, 1998, p. 191 – grifo meu) Figura 15: Miguel e Lúcifer. Fonte: https://i.pinimg.com/originals/d4/1d/42/d41d4226f0222c3e863d31f81cb6518b.j pg Acesso em: 14/01/2019. Vale mencionar que, no quadro de Lotto, também há o bastão quebrado de Lúcifer, pelo qual é simbolizada a quebra de seu status e/ou a perda de seu poder; além disso, pode-se ver algo que parece ser uma 54 serpente passando pelo meio de suas pernas. De certa forma, pela posição da mão de Miguel, talvez se possa ir ainda mais longe que Link e supor que Miguel parece querer salvar Lúcifer, mas essa é apenas uma hipótese. Seguindo adiante e dando mais um salto no tempo, quero fazer uma breve menção sobre a obra de John Milton, Paradise Lost (1667) 66, uma vez que ela, conforme nos lembra P. Stanford, a partir de seu ―retrato psicológico‖ de Satã, ―provocou um impacto de grande magnitude nas gerações que o sucederam.‖67. Em sua vasta epopeia bíblica, explica R. Muchembled, Milton ―punha em cena um Lúcifer ao mesmo tempo tradicional e já diferente, que recusa o jugo de um Deus autoritário e proclama orgulhosamente sua insubmissão: ‗É preferível reinar no inferno que servir no céu.‘‖ 68. O século XVIII, conforme explica Muchembled (2001, p. 217), se inicia com uma ―crise de consciência‖, surgida no final do século XVII, e que se amplia no mundo científico, dando menos valor para a figura de um Diabo real. Consoante às palavras do historiador, ―[o] final do reinado de Luís XIV pode ser considerado como a época da primeira grande oscilação da imagem diabólica em direção a uma imagem onírica.‖69. Além disso, Muchembled (2001, p. 218) também explica que, mesmo causando medo à maior parte das pessoas, havia um ―princípio de desdramatização‖ se esboçando neste momento, o qual foi se estabelecendo ―através do humor ou da ironia que matizam obras literárias e artísticas.‖. Mesmo que o tema do Diabo ironizado não seja especificamente novo, remontando ao período medieval, ele foi importante para esta mudança. Já no início do reinado de Luís XV – isto é, por volta de 1715 –, explica Muchembled, ―a categoria do maravilhoso constitui-se distinguindo-se de uma definição do diabo e de suas obras, que nós chamamos de crença, mas que tinha então a densidade de uma realidade social.‖ 70. Apenas para finalizar este breve comentário sobre o século XVIII e possamos nos dirigir ao século seguinte, vale dizer que um dos grandes influenciadores dessa guinada para o ―maravilhoso‖ teria sido Jacques Cazotte, com sua obra O diabo apaixonado, de 1772, a qual, mais tarde, foi vertida para o nosso idioma por Camilo Castelo Branco com o nome de Os amores do diabo. 66 Abordarei o Satã de Milton de forma mais elaborada no capítulo III. 67 STANFORD, 2003, p. 276. 68 MUCHEMBLED, 2001, p. 208. 69 MUCHEMBLED, 2001, p. 217. 70 MUCHEMBLED, 2001, p. 232. 55 Conforme explica Muchembled, no início do século XIX ocorre uma guinada crítica não só na França como também em toda a Europa, pois ―[a] imagem do diabo se transforma em profundidade, distanciando-se inelutavelmente da representação de um ser aterrorizante exterior à pessoa humana para tornar-se, cada vez mais, uma figura do Mal que cada um traz dentro de si.‖71 Além disso, Muchembled também explica mais adiante que, ainda no início do século XIX, a ―visão trágica da existência não domina mais unanimemente o continente europeu‖, uma vez que ―o Iluminismo e, talvez mais ainda, a ruptura revolucionária produziram um olhar novo sobre o mundo, acentuando a interiorização do sentido do pecado para os crentes, e da percepção do Mal para os demais.‖72 Assim, neste século, o Diabo toma uma dimensão diferente, pois acaba se tornando um tema quase que estritamente literário. Para que isto ocorresse, explica Muchembled citando Max Milner, ―foi preciso que sua existência e seus poderes fossem postos em questão.‖73. Tal ruptura só se efetivou por volta do final do século XVIII, pois Até então, os filósofos haviam, certamente, expressado algumas dúvidas, mas sem ceder à vertigem da dúvida. Daí em diante, esta se instalava no centro mesmo do imaginário culto. Pulverizada, a imagem de Satã ia começar a esposar modas, a adaptar-se às evoluções dos costumes e da sociedade. Sua projeção na cena literária ou artística, sob múltiplas facetas, resultou na multiplicação de simbolismos, mas igualmente no enfraquecimento da potência unificadora do mito cristão, que continuava sendo defendido pelos teólogos ortodoxos. (MUCHEMBLED, 2001, p. 244 – grifos meus) Além disso, também é preciso explicar, ainda consoante às palavras de Muchembled, que a figura do Diabo é diferente em cada país. Assim, na França, por exemplo, o Satã que lá está em voga no século XIX ―é o Príncipe da Ambiguidade, o demônio do sonho: um motivo, um símbolo, mas cada vez menos um grande mito cristão‖74, 71 MUCHEMBLED, 2001, p. 238. 72 MUCHEMBLED, 2001, p. 246. 73 MUCHEMBLED, 2001, p. 244. 74 MUCHEMBLED, 2001, p. 250 – grifo meu. 56 enquanto que ―na Inglaterra, a lição de Milton, retomada sob formas diversas, do roman noir a Byron, implica uma crença mais angustiada na realidade do Maligno, transcendida pelo arquétipo do revoltado por excelência.‖75 Em outras palavras, enquanto na França o Demônio vive numa oscilação bastante ambígua entre o real e o onírico, na Inglaterra, por sua vez, temos, como herança de Milton, o Diabo na condição de uma figura exterior, como uma personificação real do Mal, um Satã que, em sua revolta contra Deus, é tão poderoso quanto infeliz, uma vez que está sob o jugo de um tirano impiedoso. Para ter uma noção mais acurada, vejamos alguns exemplos das representações de Satã durante o século XIX. Um dos artistas que se debruçou sobre a imagem do Maligno nesse período foi William Blake. Conforme assinala Muchembled, Blake rejeitava a ortodoxia cristã, todavia, afirmava que ―o homem deve ter religião: se ele não conhece a de Jesus, deve pelo menos experimentar a de Satã.‖76. Em Blake, vemos representações do Diabo tanto em suas pinturas que ilustram cenas bíblicas quanto nas que foram inspiradas pelo Paraíso Perdido de Milton. Levando em conta que abordarei este último mais adiante (juntamente com ilustrações de Blake e de outros), vejamos agora algumas de suas pinturas de cenas bíblicas, como a intitulada Satã triunfando sobre Eva (Figura 16), de 1795, a qual reinterpreta o terceiro capítulo do livro Gênesis; ainda deste mesmo livro, há uma aquarela intitulada ―Satã observando Adão e Eva‖, de 1808, na qual, conforme assinala Peter Stanford, Blake ―apresenta a imagem do ser diabólico fundida com a da serpente, de modo a manter uma tradição autenticamente miltoneana [sic], mas quem exibe um rosto trágico e contorcido é um belo querubim alado com cabelos encaracolados.‖77. Há também a que se chama Satã cobrindo Jó com úlceras malignas (Figura 17), de 1826, ilustrando uma cena do segundo capítulo do Livro de Jó; vale mencionar que existe outra imagem semelhante, porém, diferentemente desta, Satã não possui as asasde morcego78. Outra de suas grandes pinturas é intitulada O grande Dragão Vermelho e a dama vestida de Sol (Figura 18), de 1803-05, a qual faz referência ao décimo segundo capítulo do Livro do Apocalipse; e O 75 MUCHEMBLED, 2001, p. 250 – grifo meu. 76 MUCHEMBLED, 2001, p. 245. 77 STANFORD, 2003, p. 276. 78 Disponível em: < https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Blake_Book_of_Job_Linell_set_6.jpg >. Acesso em: 14 jan. 2019. 57 Grande Dragão Vermelho e a Besta do oceano (Figura 19), de 1805, também referente ao Livro do Apocalipse, mas agora pertencendo ao décimo terceiro capítulo. Figura 16: Satã triunfando sobre Eva. Fonte: http://librerantes.com/wp-content/uploads/2016/06/William-Blake- Satan-Exulting-over-Eve.jpg Acesso em: 14/01/2019. Figura 17: Satã cobrindo Jó com úlceras malignas. Fonte: https://s-media-cache- ak0.pinimg.com/originals/6e/1c/69/6e1c69d2c4407b28266dc15c85cc972d.jpg Acesso em: 14/01/2019. 58 Figura 18: O grande Dragão Vermelho e a dama vestida de Sol. Fonte: http://68.media.tumblr.com/9bceda8514712208d023467fdec807d7/tumblr_nn1 nj338081r30ie1o1_1280.jpg Acesso em: 14/01/2019. 59 Figura 19: O grande Dragão Vermelho e a Besta do oceano. Fonte: https://i.pinimg.com/736x/29/08/65/290865c0b14a16519a16e3ca5e66bb58.jpg Acesso em: 14/01/2019. Agora que vimos as pinturas de Blake, podemos passar rapidamente por algumas das outras interpretações/representações românticas do Diabo que – de acordo com, L. Link, P. Stanford, R. Muchembled e Henry A. Kelly –, seguem a mesma linha de Blake e fazem uma releitura do Satã de Milton. Nas palavras de P. Stanford, ―alguns revolucionários buscaram inspiração em Milton para instituir o Diabo como um símbolo de rebelião contra a Igreja e o ancien régime.‖ 79 Além disso, prossegue o autor logo adiante, ―no final do século XVIII, 79 STANFORD, 2003, p. 273-274. 60 o Diabo tornou-se um símbolo potente e positivo nas mãos dos românticos, que o libertaram das restrições bíblicas e eclesiásticas, passando a utilizá-lo como uma metáfora cultural e social. Nesse percurso, a criação de Milton foi modificada e distorcida.‖80 Ao efetuar sua interpretação do Diabo a partir da obra de Milton, os românticos transformam Satã em um símbolo de subversão, de transgressão, de revolta. Segundo Carlos R. F. Nogueira, essa interpretação romântica ―transformará Satã no símbolo do espírito livre, da vida alegre, não contra uma lei moral, mas segundo uma lei natural, contrária à aversão por este mundo pregada pela Igreja. Satanás significa liberdade, progresso, ciência e vida.‖81. Desta forma, prossegue σogueira, o Diabo é ―[a]migo do homem e inimigo de Deus, que estabeleceu a ordem como um tirano, condenando ao sofrimento, à humilhação e à morte todos aqueles que tinham por única culpa o desejo de conhecer, Lúcifer está ao lado do homem, uma vez que, como o homem, ele é condenado ao sofrimento.‖ 82. Assim, ainda nas palavras de Nogueira, O Diabo passa a representar a rebelião contra a fé e a moral tradicional, representando a revolta do homem, mas com a aceitação do sofrimento porque este é uma fonte purificadora do espírito, uma nobreza moral, da qual só pode surgir a bem da humanidade. E [então] o demoníaco torna-se o símbolo do Romantismo: demoníaco como paixão, como terror do desconhecido, como descoberta do lado irracional existente no homem: a explosão da imaginação contra os obstáculos excessivos da consciência e das leis. (NOGUEIRA, 1986, p. 81 – grifo meu) Além disso, na interpretação dos românticos, o Satã miltoniano é considerado um herói (ou anti-herói) sublime. Sublime aqui no sentido schilleriano, um sublime moral, por assim dizer, no sentido em que, mesmo perdendo, mesmo sucumbindo, mesmo sendo esmagado por uma força maior, ele exerce sua liberdade mostrando-se inflexível em 80 STANFORD, 2003, p. 274. 81 NOGUEIRA, 1986, p. 80 – grifo meu. 82 NOGUEIRA, 1986, p. 80-81 – grifos meus. 61 seu caráter83. Segundo L. Link, William Blake teria dito que ―Milton escreveu em liberdade quando escreveu sobre Satã, pois ‗foi um verdadeiro poeta e do partido do Diabo sem o saber.‘.‖84. Ainda segundo os autores mencionados, para Blake, Byron, Victor Hugo, Baudelaire, e outros, o Diabo passa a ser considerado não só como um grande rebelde, mas também, para usar as palavras de Baudelaire, como ―o tipo mais perfeito da beleza viril‖. Para exemplos do Diabo na pintura romântica, vale mencionar Eugène Delacroix e Gustave Doré. Do primeiro, além das belas ilustrações que fez para o Fausto, de Goethe, temos também o quadro A revolta de Lúcifer e dos anjos rebeldes, de 1876 (Figura 20). Neste quadro, consoante as palavras de R. Muchembled, Vigorosos corpos nus lançam-se em direção ao céu brandindo armas. Somente as sombrias asas de um Lúcifer luminoso indicam quem ele é, mas ele se vê transfigurado em chantre em favor de uma revolução que sacode todos os jugos, e não pintado como o senhor de um inferno prometido aos insubmissos. O tema seduz na Europa a todos os que invocam o espírito de revolta e das revoluções. (MUCHEMBLED, 2001, p. 255) 83 Schiller, em seu texto intitulado ―Do sublime (Para uma exposição ulterior de algumas ideias kantianas)‖, inserido no livro Do sublime ao trágico (2011), logo no primeiro parágrafo explica o seguinte: ―Sublime denominamos um objeto frente a cuja representação nossa natureza sensível sente suas limitações, enquanto nossa natureza racional sente sua superioridade, sua liberdade de limitações; portanto, um objeto contra o qual levamos a pior fisicamente, mas sobre o qual nos elevamos moralmente, i. e., por meio de ideias.‖ (SCHILLER, 2011, p. 21 – grifo meu, itálicos do autor). Mais adiante, no mesmo texto, Schiller nos traz a diferenciação entre aquele que é grande e aquele que é sublime. Ele declara o seguinte: ―Grande é aquele que sobrepuja o temível. Sublime é aquele que, mesmo sucumbindo, não teme. [...] Hércules foi grande porque empreendeu os seus doze trabalhos e os concluiu. Sublime foi Prometeu, porque acorrentado ao Cáucaso não se arrependeu de seu ato e não admitiu seu erro. Grandes podemos nos mostrar na felicidade, sublimes apenas na infelicidade.‖ (SCHILLER, 2011, p. 3λ – grifo meu, itálicos do autor.) Vale mencionar que o paralelo entre Satã e Prometeu é bastante recorrente. 84 LINK, 1998, p. 191. 62 Do segundo – isto é, de G. Doré –, menciono de passagem as ilustrações que fez para a Comédia, de Dante, e para o Paraíso Perdido, de Milton85. Além deles, também vale indicar dois quadros de Antoine Wiertz, um chamado Satan, de 1840 (Figura 21), em que ele segue a linha de Blake em sua representação e, no qual, vemos Satã ―sob a forma de ‗uma bela e tenebrosa figura, singularmente enigmática‘‖86, e o outro, a Revolta do Inferno contra o Céu, de 1842 (Figura 22), no qual é preciso notar que o Diabo aparece na forma de um imenso Dragão alado sendo agarrado (e aparentemente empurrado para baixo) por diversos anjos, provavelmente em uma alusão à batalha que ocorre no Livro do Apocalipse (capítulo 12, versículos 7-9), no qual se lê que ―Houve então uma batalha no céu: Miguel e seus Anjos guerrearam contra o Dragão. O Dragão batalhou, juntamente com seus Anjos, mas foi derrotado, e não se encontrou mais lugar para eles no céu.‖. Figura 20: A revolta de Lúcifer e dos anjos rebeldes. Fonte: http://thesatanicscholar.com/2017/02/06/lucifers-feather-of-liberty-on- french-romanticisms-satanic-symbol/ Acesso em: 14/01/2019. 85 Veremos as ilustrações de Delacroix e de Doré no capítulo III, junto com as respectivas obras. 86 MUCHEMBLED, 2001, p. 252. 63 Figura21: Satan. Fonte: https://www.fine-arts-museum.be/fr/la-collection/antoine-wiertz- satan?letter=w&artist=wiertz-antoine-1&page=9 Acesso em: 14/01/2019. Figura 22: Revolta do Inferno contra o Céu. Fonte: https://www.flickr.com/photos/magika2000/4670834151/in/album- 72157624207256282/ Acesso em: 14/01/2019. 64 O Diabo também aparece nas esculturas românticas. Podemos vê- lo nos belíssimos exemplares de Joseph Geefs e de seu irmão, Guillaume Geefs, a saber, L‟ange du mal (Figura 23), de 1842, e Le Génie du Mal (Figura 24), de 1848, respectivamente. Vale mencionar que a estátua de Guillaume é a única estátua bela de Lúcifer que pôde permanecer dentro de uma catedral. De acordo com Marija Georgievska, em seu artigo ―The Lucifer of Liège: one of the magnificent sculptures of the fallen angel‖, a estátua de Guillaume foi feita para substituir a estátua de seu irmão mais novo, Joseph, a qual teria sido retirada da catedral por causa de seu fascínio e de sua ―beleza insalubre‖87. Além disso, na descrição fornecida pelo site que possibilita o tour virtual pela Catedral de Liége, a estátua de Joseph Geefs era ―jovem demais, bela demais e demasiadamente nua.‖ 88. A estátua de Guillaume, conforme pontua Georgievska, ―mostra menos carne e é mais fortemente marcada pela iconografia satânica como nem humana nem angelical.‖. Esta iconografia satânica é marcada por alguns símbolos, como os chifres (discretíssimos), a coroa retirada, o cetro quebrado, as correntes nos pés, uma maçã mordida no chão… Outros exemplos de esculturas românticas em que Satã aparece são: a Fonte São Miguel, de 1858-60, situada numa praça do quartier Latin (quarteirão latino), na França; a estátua de Ricardo Bellver, intitulada El Ángel Caído, de 1885 (Figura 25), situada em Madrid (Espanha): nesta última é preciso notar que as serpentes, que circundam suas pernas e sua mão direita, provavelmente fazem alusão à estátua de Laocoonte e seus filhos (c. 40 a.C.). Vale mencionar que aqui ele lembra mais o Satã de Milton do que o grande Dragão bíblico. Apesar de todo o fascínio exercido pela figura demoníaca como o grande rebelde, a partir da metade do século XIX, explica Muchembled, ―o declínio do tema demoníaco era patente nos setores mais elaborados do pensamento e das artes, tanto na Europa quanto na América do Norte. A atenção, a partir de então, se concentrava muito mais na parte sombria da personalidade humana que na figura do Maligno.‖ 89 Também neste momento, segundo o autor, parece ocorrer um período de transição, no qual há ―uma longa hesitação entre o tempo 87 Cf. GEORGIEVSKA, 2017. Disponível em: <https://www.thevintagenews.com/2017/01/02/the-lucifer-of-liege-one-of-the- magnificent-sculptures-of-the-fallen-angel/>. Acesso em: 14 jan. 2019. 88 Disponível em: < https://roundme.com/tour/16344/view/40296 >. Acesso em: 14 jan. 2019. 89 MUCHEMBLED, 2001, p. 260 – grifos meus. 65 do diabo infernal e o de um duplo monstruoso que dorme em todo homem, uma fase interminável de desconstrução do cristianismo angustiante em curso desde o confronto confessional do século XVI.‖90 Em outras palavras, com o declínio do cristianismo, há, consequentemente, um declínio de Satã como uma figura infernal real. Além disso, conforme pudemos ver nos dois excertos supracitados, é sintomático que na segunda metade do século XIX o Mal está focalizado cada vez mais na figura humana, no demônio que vive dentro de nós. Figura 23: O anjo do mal. Fonte: https://www.flickr.com/photos/magika2000/7516471374 Acesso em: 14/01/2019. 90 MUCHEMBLED, 2001, p. 257. 66 Figura 24: O gênio do mal. Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/6/6e/Chaire_Cath%C3%A9dr ale_Li%C3%A8ge_240809_06.jpg Acesso em: 14/01/2019. 67 Figura 25: El ángel caído. Fonte: https://br.pinterest.com/pin/357051076684466949/ Acesso em: 14/01/2019. 68 Ainda seguindo na esteira de Muchembled, podemos mencionar rapidamente a obra de Charles Baudelaire, a qual, segundo o historiador, ―revela roda a ambiguidade deste período de transição.‖91 Afinal, para Baudelaire, conforme explica Muchembled, o diabo é, ao mesmo tempo, íntimo e totalmente outro. Cético em relação à explicação pela ciência, rejeitando o ateísmo, de cultura católica sem ser ortodoxo, ele considera conjuntamente a alienação e o Mal como a mais profunda realidade da existência humana. Em cada ser humano, escreve ele em seu Diário íntimo, existem simultaneamente duas tendências, uma que o impulsiona para Deus, outra para Lúcifer. O Mal é, ao mesmo tempo, atrativo e destruidor. O demônio é tanto o campeão da liberdade quanto a encarnação da hipocrisia. Ele representa uma força externa e real: ―A mais bela armadilha do diabo é persuadir-nos de que ele não existe‖, explica Baudelaire aos céticos ou aos que querem louvar os progressos do Iluminismo. Ele age, porém, tanto no espírito do homem quanto por imagens e desejos destruidores. Alguns chegaram a acusar o poeta de satanismo, pois ele afirmou: ―Satã é o mais perfeito tipo de Beleza viril‖, e proclamou, em As litanias de Satã: ―Meu caro Belzebu, eu te adoro.‖ A imagem que ele apresenta é, na realidade, muito complexa, ainda mais pelo fato de ter-se modificado ao longo de sua vida. Por um lado, este pensador impregnado de uma visão pessimista do homem lembra, assim, a importância da religião aterrorizante que reinou sobre o Ocidente do início da modernidade. Por outro, ele descobre em si mesmo abismos, contradições, flores do mal cujas raízes ele não identifica claramente.‖ (MUCHEMBLED, 2001, p. 259 – grifos meus) Chegado a este ponto, é hora de fazer um arremate e sintetizar o que vimos traçando. Esta breve exposição teve como intuito mostrar as diversas faces de Satã no ocidente, isto é, as diversas representações e tratamentos que sua figura recebeu ao longo de um certo período, 91 MUCHEMBLED, 2001, p. 259. 69 partindo do século XIV até o XIX. Nós o vimos como uma sombra atrás de Judas, como um grande monstro situado no inferno comendo e defecando pecadores, como um dragão, como um belo anjo... O que eu gostaria de salientar, a partir do que foi exposto, é que Satã não só era imaginado/representado de formas diferentes em cada período, como também que sua imagem nem sempre carrega os traços do deus Pã ou dos sátiros, conforme a imagem arraigada no imaginário popular. Além disso, é importante perceber que a figura de Satã vai sendo cada vez mais humanizada, cada vez mais parecida com o homem, até que por fim, é o próprio homem que se transforma na figura diabólica, seja imaginando ele mesmo como tal ou imaginando que os outros é que são o Demo... Feitas estas observações sobre as representações do Diabo, podemos passar, se me é lícita a comparação, ao próximo círculo infernal, no qual, tal como Dante, vamos dialogar com vários mortos (embora também com alguns vivos) para traçar uma revisão bibliográfica. 2.2. Revisão bibliográfica. ― Por que escrever ainda sobre o significado da ficção machadiana? Um século de leituras já não terá descido ao fundo da questão, examinando-a pelos âmbitos biográfico, psicológico, sociológico, filosófico, estético? Não seria o caso de revisitar essa ampla e díspar bibliografia que já conta com intérpretes notáveis pela argúcia e erudição, em vez de tentar, uma vez mais, decifrar enigmas que já estariam afinal aclarados?‖ (Alfredo Bosi) A presente seção aborda a Fortuna Crítica machadiana. Ao fazê- lo, o intuito é trazer a fala de alguns autores cuja visão contribuiu para enriquecer a nossa. Esse diálogo com os diversos críticos que outrora se debruçaram sobre a obra machadiana é importante na medida em que nos possibilita rever algumas de suas considerações – tanto no sentidode vê-las novamente quanto no sentido de revisá-las –, como também nos poderão dar oportunidade de ampliar seus pontos de vista, uma vez que até mesmo um anão pode enxergar um pouco mais longe quando está nos ombros de um gigante… 70 Dito isto, parece pertinente traçar o rumo que essa revisão bibliográfica irá tomar. Ela se inicia abordando rapidamente algumas biografias, críticas ou não, de nosso escritor. Ao fazê-lo, o intuito não é esclarecer a obra pelo homem ou vice-versa, embora eu também não vá me esquivar de interpretar a obra a partir do homem quando parecer pertinente e plausível para a argumentação. Isso não quer dizer que tudo me será lícito, mas, sim, que penso em me utilizar de certa flexibilidade na hora de traçar interpretações, afinal, se a possibilidade se mostrar plausível e viável, por que descartá-la de antemão? Dentre as biografias machadianas, escolhi quatro que considero bastante significativas. Três por serem de críticos consagrados do estudo Machadiano e uma, em certa medida, por ser a mais recente92. Sem mais delongas, os nomes, em ordem cronológica93, são: Lúcia Miguel- Pereira, com seu Machado de Assis: estudo crítico e biográfico (1988); Raimundo Magalhães Júnior, com sua tetralogia intitulada Vida e obra de Machado de Assis (1981/200894); Valentim Facioli, com seu estudo intitulado ―Várias histórias para um homem célebre (Biografia Intelectual)‖ (1λκ2); e, por fim, Daniel Piza, com seu Machado de Assis: Um gênio brasileiro (2008). Quanto aos estudos críticos propriamente ditos, isto é, os estudos que se detêm sobre a obra machadiana não em busca do homem, mas da obra enquanto literatura – seja ela como fonte tanto para reflexões estéticas quanto para históricas, sociológicas, filosóficas, etc. –, pretendo seguir uma linha mais conservadora, por assim dizer, e abordar os estudos dos críticos consagrados de nosso autor. No entanto, mesmo querendo abordar apenas os estudos dos críticos mais célebres, ainda assim eu poderia morrer afogado nesse mar de obras, de tal maneira que resolvi, em um primeiro momento, me valer de um guia, ou melhor, de dois. O primeiro guia escolhido foi a pequena, porém interessante, obra de Wilson Chagas, intitulada A fortuna crítica de Machado de Assis (1994); o segundo guia foi a volumosa obra de Alfredo Bosi et al 92 Digo isso levando em conta que, em 2016, Silviano Santiago lançou um romance biográfico sobre os anos finais da vida de Machado. 93 Em ordem cronológica em relação à primeira edição e não a edição utilizada como base para este estudo. 94 Insiro as duas datas aqui, pois, dos volumes com que trabalho, os iniciais (Aprendizado e Ascensão) são da primeira data, enquanto que os dois últimos (Maturidade e Apogeu) são da segunda data. 71 (1982), uma antologia de textos e estudos de e sobre Machado de Assis, que leva o nome de nosso autor95. Wilson Chagas, com seus breves ensaios, foi quase como um Virgílio, pois me possibilitou atravessar diversos círculos dessa Fortuna Crítica e escolher os lugares em que poderia me deter para dialogar com alguém e os lugares em que deveria me apressar, sob pena de cair em perdição. Foi assim que rumei para os estudos de Augusto Meyer; de John Gledson; de Roberto Schwarz; da Antologia de estudos organizada por Alfredo Bosi, José Carlos Garbuglio, Mario Curvello e Valentim Facioli; e de Afrânio Coutinho. Não que a maioria desses nomes me fosse desconhecida, uma vez que os que aí estão são basicamente o cânone dos estudos machadianos, mas é sempre bom ter um autor que nos indique quais são aqueles que podem nos servir de trampolim (ou, ao menos, de base) para que alcancemos novas ideias. A antologia de Alfredo Bosi et al, por sua vez, para continuar a analogia, foi quase como uma Beatriz, acrescentando a fina flor dos estudos, como Sônia Brayner; Barreto Filho; Eugênio Gomes; etc. Há outros autores, porém, que encontrei quase que ―por acaso‖, fruto da curiosidade, como Miguel Reale; Paul Dixon; etc… E isto falando apenas na Fortuna Crítica mais geral, por assim dizer, isto é, daqueles autores que se aproximam da obra de Machado de Assis por diversos flancos. Embora não tantos quantos estes, também abordarei aqueles que se debruçaram especificamente sobre o tema desta pesquisa, isto é, sobre o Diabo na obra do Bruxo do Cosme Velho (ou, ao menos, sobre os textos em que ele é mencionado). Dentre estes últimos, na medida em que ainda não se formou uma legião crítica, pude me aproximar de algumas obras bastante recentes e interessantes, seja em forma de teses e dissertações seja em forma de artigos acadêmicos em livros e periódicos. Sem fazer uma distinção precisa (de título ou de pesquisa) neste momento, gostaria de elencar autoras e autores como Aurora G. R. Álvarez, Izabella Maddaleno, Magali Moura, Maurício C. Menon, Miriam P. M. Andrade, Salma Ferraz, Tiago Ferreira da Silva e Vera Casa Nova, os quais me forneceram um fundamento, uma base para algumas das reflexões que aqui figuram. 95 Vale dizer (ou reiterar) que o intuito desta seção não é perpassar toda a Fortuna Crítica de nosso autor ou tampouco comentá-la exaustivamente, mas sinalizar ao leitor o percurso que trilhei para chegar às conclusões que aqui serão expressas em capítulos posteriores. 72 Agora que o leitor já tem noção daquilo que irá encontrar, passemos à Fortuna Crítica propriamente dita. 2.2.1 Falando em Machado... 2.2.1.1 Um homem célebre ―Quanto a mim, creio ser impossível estudar a obra de Machado sem estudar- lhe a vida, sem procurar entender-lhe o caráter. Nele, o homem e o artista estão estreitamente ligados.‖ (Lúcia Miguel- Pereira) ―σão se pode, assim, entender muitas coisas da obra de Machado se não se tiver em mente a riqueza de sua vida.‖ (Daniel Piza) Um dos motivos que me fazem iniciar o exame da Fortuna Crítica machadiana tecendo considerações sobre algumas de suas biografias se deve à afirmações como estas que aqui aparecem de epígrafe, como a de Lúcia Miguel-Pereira, para quem seria ―impossível estudar a obra de Machado sem estudar-lhe a vida.‖96, uma vez que nele ―o homem e o artista estão estreitamente ligados.‖97, e a de Daniel Piza, para quem ―muitas das coisas da obra de Machado‖ passariam despercebidas sem que tenhamos em mente ―a riqueza de sua vida.‖98. Não posso dizer que concordo plenamente com uma visão biográfica (ou ―biografista‖) acerca da obra de Machado (ou de qualquer outro autor), mas, ainda assim, é preciso concordar que talvez elas possam nos prover de alguma luz. Afinal, mesmo que a vida não explique a obra, ela nos fornece subsídio para elucubrações que talvez não se abrissem apenas com esta última. Sendo assim, vejamos o que elas nos fornecem. Conforme dito, dentre as biografias escolhidas, a primeira é a de Lúcia Miguel-Pereira, a qual veio a lume em 193699. Nela, a autora 96 MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 22. 97 MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 22. 98 PIZA, 2008, p. 14. 99 Vale explicar que o aprofundamento ou a discussão da biografia machadiana foge ao escopo desta dissertação e, assim sendo, não me deterei sobre todas as 73 busca encontrar o homem Machado de Assis, seu ―feitio íntimo através das confissões involuntárias do escritor‖100, afinal, segundo a autora, por mais que ―perfeita e acabada, a criação se desligue do criador e adquira vida própria, [ela] sempre lhe guarda a marca, sempre de algum modo com ele se identifica.‖101. Em outras palavras, a autora busca encontrar indícios da personalidade de Machado de Assis escondida em sua persona, em sua máscara ficcional. Embora eu não seja entusiasta desse tipo de abordagem, é preciso ser sincero e afirmar que as conjecturas da autora não deixam de ser instigantes, uma vez que, se ela estiver certa, somente quando o autor conseguiuse desvencilhar de seu passado, foi que ele teve possibilidades de seguir adiante e deslanchar de forma brilhante na carreira de escritor. Esse ―desvincular-se do passado‖ se deu, segundo a autora, de duas formas, tanto no passado do homem, ao se livrar do peso de ter abandonado sua madrasta, que o havia criado quando menino, quanto no passado estético, ao sair da sombra de José de Alencar102. Lúcia Miguel-Pereira também chama atenção para a importância do período em que Machado trabalhou no Diário do Rio de Janeiro, por volta de 1860, importância não só em sua vida, como também em sua biografias. Apesar disso, como a biografia escrita por essa autora é uma espécie de marco dentre os estudos biográficos de Machado, uma vez que muitos dos outros autores citam-na (tanto para confirmar suas conjecturas quanto para contestá-las), eu a terei como uma espécie de ―ponto de Arquimedes‖ e, por isso, me detenho mais nela do que nas outras, trazendo estas últimas como contraponto. 100 MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 9. 101 MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 10 – acréscimo meu entre colchetes. 102 Magalhães Jr (1981b, p. 152-165) também vai traçar certa proximidade entre os romances de José de Alencar e da chamada primeira fase de Machado. Embora concorde com esse paralelo entre os autores, vale mencionar, todavia, que Valentim Facioli (1982, p. 15) questiona pelo menos a primeira parte desta afirmação (a dívida para com a madrasta), tendo em vista haver ―evidências de que entre 1854 e 1855 Machado deixou o arrabalde e passou a viver na cidade, no centro da cidade, o que põe em dúvida a tese da forte influência que Maria Inês teria exercido sobre o escritor. É muito duvidosa também a dívida de gratidão dele para com a madrasta, segundo alguns, nunca paga, porque Machado teria tido vergonha das próprias origens.‖. Para uma discussão mais aprofundada em relação às duas questões, o leitor também poderá encontrar interessantes apontamentos na biografia de V. Facioli, especificamente no capítulo XIX, intitulado ―A luva e a mão‖, no qual o A. discute tanto os apontamentos de Lúcia Miguel-Pereira quanto os de Roberto Schwarz (em Ao vencedor as batatas). 74 obra, tendo em vista que, quando Quintino Bocaiúva o convidou para trabalhar lá, ele o tirou do ―amadorismo das revistas literárias‖ e o pôs ―na obrigação de enfrentar o grande público, de dar a sua opinião sobre os assuntos do dia, fê-lo refletir, pensar‖ e, assim, a ―disciplina da colaboração frequente, a sensação do contato com leitores de toda natureza amadureceram rapidamente esse rapaz de 21 anos.‖103. Essa experiência nos jornais, que não se limita ao Diário do Rio de Janeiro, foi, na expressão de Sônia Brayner, o ―laboratório ficcional‖ de Machado; isto é, foi no jornal (embora também nos contos) que ele pôde apurar o seu estilo literário, experimentando diversas formas. Também é interessante notar que, nessa época, Machado ainda não era o ―absenteísta‖ que, conforme asseveram seus biógrafos, alguns autores quiseram pintar; aqui ele ainda era um fervoroso rapaz com ideias liberais e progressistas, conforme ressaltam Lúcia Miguel-Pereira, Brito Broca, Raimundo Magalhães Júnior, dentre outros104. Neste sentido, vale reiterar as palavras da autora no final de seu primeiro capítulo, quando afirma que Machado de Assis não foi, como pareceu, um puro intelectual, fazendo da vida duas partes bem distintas: uma para a existência quotidiana, insípida e vaga, outra para as elucubrações do raciocínio. 103 MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 77. Para mais informações, conferir o capítulo 12 (p. 128-143) do primeiro tomo da biografia de R. Magalhães Jr., no qual este autor vai abordar a ―escalada do jornalismo‖, corroborando com a afirmação de Miguel-Pereira. 104 Para uma visão de um Machado de Assis anti-imperialista, defensor da liberdade religiosa e ―militante do liberalismo‖, respectivamente, cf. R. Magalhães Jr., 1981a, especificamente os capítulos 22 (p. 250-261), 23 (p. 262- 277) e 25 (p. 289-306). Neste último, Magalhães Jr. sintetiza bem os três capítulos em um parágrafo. Diz ele que não é surpreendente que ―trabalhando na redação do Diário do Rio de Janeiro, ao lado de homens profundamente comprometidos com a reorganização do Partido Liberal e a sustentação de sua política, Machado de Assis tenha sido, como jornalista, principalmente no ano de 1864, um sincero paladino do liberalismo. E não apenas sincero, mas combativo e apaixonado, não só defendendo o México contra o imperialismo europeu e a liberdade de crença contra os privilégios da religião oficial do Império, mas ainda investindo, com a maior irreverência, contra grandes figuras políticas, como o Marquês de Abrantes, o Barão de São Lourenço, o Senador Jobim, o Senador Dias Vieira, o Deputado Lopes Neto e vários outros.‖ (MAGALHÃES JR, 1λκ1a, p. 2κλ – grifos meus) 75 Não foi apenas um esteta – mas um homem. E o maior valor da sua obra reside no fato de ter sido uma experiência, um modo de interrogar a vida. Interrogação que ficou sem resposta porque não ousou – ou não pôde – ir até o fundo dos problemas. Ou talvez porque tais perguntas não possam mesmo ser satisfeitas pelo engenho humano… E para esconder a incapacidade – ou a decepção – preferiu sorrir, ficar de lado, com ar de espectador desinteressado. (MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 27 – grifo meu) Reitero suas palavras, embora concorde apenas em parte com a autora. Em resposta à parte grifada é possível dizer que a grandiosidade da literatura machadiana seria justamente esse ―não dar uma resposta‖, esse constante questionar. Afinal, enquanto permanece a dúvida, enquanto a questão fica em aberto, a obra permanece viva e não para de falar… E, veremos mais tarde que é justamente o fato de deixar questões ou sugestões de questionamento em aberto que nos possibilita continuar refletindo sobre sua obra, ou, conforme dito, é o que a torna um clássico. Mas, voltemos às palavras da autora. τutro ponto interessante que ela nos traz é o ―anticlericalismo‖ de Machado. Sabe-se que, por volta das décadas de 70-80 de 1800, há um florescer de ideias materialistas que se conjugam ao positivismo em ascensão aqui no Brasil.105 Conforme nos lembra a autora, Machado teria escrito em diversos de seus folhetins inúmeros ―ataques à congregações religiosas, à ação dos padres, aos jornais católicos‖106; além disso, segundo ela, Machado tinha ―aversão, não só à crença religiosa, como a qualquer tipo de mística.‖107. Neste sentido, prossegue a autora mais adiante, assim que chegou à maturidade, isto é, quando chegou ―à posse de si mesmo, o seu espírito refugou à crença, refugiou- 105 σeste sentido, conferir o artigo de MELLτ, Maria Tereza Chaves de. ―A Modernidade Republicana.‖ Revista Tempo. Vol. 13, Número 26: A nova ―velha‖ República. p. 15-31. Jan. 2009, o qual é bastante esclarecedor sobre o assunto. 106 MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 83 – Aqui, não obstante, há certa divergência entre os biógrafos, uma vez que, segundo R. Magalhães Jr., os ataques que Machado de Assis efetuou sobre o jornal A Cruz não teriam ocorrido por conta de seu ateísmo, mas em detrimento da intolerância religiosa. Cf. MAGALHÃES JR., 1981a, p. 262-277. 107 MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 83. 76 se no racionalismo naturista [sic] de que nascerá, mais tarde, o humanitismo de Quincas Borba.‖108 Vale dizer, no entanto, conforme o complemento da autora um pouco mais adiante, que também ―não se pode dizer que tenha sido completamente materialista.‖, uma vez que, apesar de não aceitar as forças sobrenaturais, ele ―acreditaria nas forças morais – embora não querendo saber como existiam, de onde vinham, nem crendo que atuassem muito sobre a humanidade.‖109 Ainda outro ponto chamativo na obra de Miguel-Pereiraé quando ela assinala a contraposição entre o ―espírito crítico de Machado de Assis‖110 e o desabrochar tardio de ―seu poder criador‖, pois, enquanto uma de suas mais lúcidas críticas à literatura brasileira (―τ Passado, o Presente e o Futuro da Literatura‖) é escrita com apenas dezenove anos, a produção de suas grandes obras só ocorreria a partir dos quarenta. Segundo a autora, o preconceito ―de descrever gente de uma sociedade que só mais tarde viria a frequentar‖111 certamente teria contribuído para isto, embora nisso também possa haver um pouco de sua ―tendência à introversão‖112. Afinal, declara a autora, O romance e o conto nunca podem ser inteiramente impessoais; se não se revelar neles a sensibilidade do autor, a sua maneira própria de sentir, a sua compreensão da vida, serão fatalmente artificiais. O escritor pode e deve ausentar-se da obra na direção, mas nunca no sentimento. E foi isto que, temendo sempre se abandonar, Machado tentou fazer em Ressurreição. (MIGUEL- PEREIRA, 1988, p. 139-140) Embora, em certa medida, eu concorde com a autora, como antes, porém, há uma espécie de ressalva que deve ser feita, a saber, a de que, se Machado não logrou o pleno êxito nesses romances iniciais – no que 108 MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 84. 109 MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 85. 110 Sobre Machado de Assis como crítico teatral, cf. o cap. 16 (Tomo I) da biografia de Magalhães Jr. (1981a, p. 174-181); e como crítico literário, os capítulos 32 e 49 (Tomo II, 1981b, p. 16-25 e 264-274), bem como o interessante livro do professor Stélio Furlan (UFSC), Machado de Assis o crítico: O enigma de um Rio sem Margens (2003). 111 MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 139. 112 MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 139. 77 tange à sua forma de escrita mais madura, mais característica de seus grandes romances –, isso pode ser devido ao fato de que o autor ainda experimentava a pena de romancista, isto é, ainda era estreante nesse gênero. Além disso, conforme a própria autora menciona alhures, a sombra de José de Alencar ainda pairava sobre sua cabeça. Machado ainda se debatia entre a forma corrente de se fazer romances (a vertente romântica, mais ao sabor do público) e a forma pela qual gostaria de se exprimir; até porque, é preciso lembrar, são duas coisas diferentes o saber aquilo que (não) deve ser feito e o conseguir fazer aquilo que se quer/tem de fazer. Apenas para finalizar esta ressalva, vale dizer que é também a própria Miguel-Pereira que aponta, já nesse ―livro fraco‖ (Ressurreição), a existência da ―principal característica de Machado como romancista, característica que o irá aos poucos separando inteiramente da concepção romântica da ficção: a predominância dos problemas psicológicos.‖113. É interessante notar ainda que, segundo o próprio Machado no prefácio da primeira edição deste romance, ele não quis permanecer no lugar comum do romance de costumes, mas esboçar ―uma situação e o contraste de dois caracteres‖, ou, nas palavras de Miguel-Pereira, ―quis fazer decorrer as peripécias do livro do temperamento das personagens.‖114. Ainda segundo a autora, embora o êxito tenha sido frustrado, teria sido essa orientação que ―depois, lhe fez encontrar o caminho dos seus grandes livros. Sempre se manteve fiel a esse romance essencial, a essa redução do drama aos elementos principais, aos conflitos morais, e aos choques decorrentes da índole ou da situação das personagens.‖115. Sendo assim, talvez não fosse o preconceito de descrever gente que não conhece ou a falta de sentimentos dentro do próprio romance, mas a falta de experiência como romancista, de experiência na forma de escrever ou de transformar um tipo em um personagem de ―carne e osso‖116. 113 MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 141. 114 MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 141. 115 MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 141 – grifo e itálico meus. 116 Comentando sobre a ―superioridade da segunda fase‖ em Um mestre na periferia do capitalismo (1990), Roberto Schwarz vai esboçar uma resposta diferente, que, embora não vá completamente na mesma direção que a nossa e seja um pouco longa, vale a pena trazer em sua extensão, uma vez que fornece uma explicação mais elaborada e que, a meu ver, dá conta de forma mais abrangente e esclarecedora. Conforme explica o autor, as ―liberdades narrativas peculiares à segunda fase começam sob o signo de Sterne‖, consoante a explicação do próprio Machado. No entanto, segundo Schwarz (1990, p. 216), ―a prosa borboleteante‖ da segunda fase ―era velha conhecida não só do 78 Ainda outro ponto que gostaria de chamar a atenção sobre nosso autor – e que quase serve de complemento ao parágrafo anterior, diga-se de passagem – é o fato de que, segundo Miguel-Pereira, quando Machado consegue sua estabilidade financeira, isto é, quando começa a trabalhar na Secretaria da Agricultura, ele pode, enfim voltar-se para o seu íntimo, para as suas vacilações, para o seu interminável diálogo com a vida. Que era ela? Para que teria vindo ao mundo, com essa insaciável sede de saber? Por que vivia? Por que viviam os outros homens? As interrogações se multiplicavam, e ficavam sem resposta, e depois se resumiam numa romancista, como de muitos outros literatos brasileiros, que a praticavam nos folhetins semanais da imprensa, imitando modelos franceses.‖. Sendo assim, isto é, se ele conhecia essa técnica desde a juventude, pergunta-se o autor um pouco adiante, ―por que só agora ele a trazia para a esfera do romance?‖. A resposta, explica Schwarz (p. 21ι), tem a ver com ―um indiscutível progresso literário‖. σos anos de 1κι0, prossegue o autor, ―quando escrevia os seus quatro romances fracos, quase privados de atmosfera contemporânea, Machado já era forte nas piruetas petulantes e cosmopolitas do folhetim semanal. O que faltava, para completar a configuração artística da maturidade, não era portanto o procedimento narrativo. A viravolta pendente, que permitiria incorporar à elaboração romanesca uma técnica disponível e comum a muitos, era de ordem ideológica. [...] a saída histórica buscada nos romances da primeira fase supunha lealdades morais e compromisso com a promoção social dos pobres, sobretudo os mais dotados, lealdade e compromissos que deveriam primar sem mistura sobre a definição burguesa do interesse, à qual no entanto os proprietários não podiam também deixar de estar submetidos. Quando percebe o infundado daquela expectativa, Machado se capacita da pertinência literária das modalidades de rebaixamento a que o folhetim emprestava o brilho, e as transforma em ambiente espiritual. Os novos tipos de consumo e propriedade, em face dos quais o dependente pobre, pela força das coisas, se encontra desvalido, saem da sombra e passam a dar a nota. Sob o patrocínio prestigioso de Sterne, e também das condutas anti-sociais cultivadas e estetizadas na prosa de folhetim, a volubilidade narrativa irmana e faz alternarem os arrancos da impunidade patriarcal e o pouco-se-me-dá do proprietário moderno, o arbítrio da velha oligarquia escravista e a irresponsabilidade da nova forma de riqueza. Reencenava e apontava à execração dos bons entendedores a ambiguidade característica da classe dominante brasileira.‖ (SCHWARZ, 1λλ0, p. 21ι-218 – grifos meus, itálicos do autor). 79 só, a maior, a que vai dar à sua obra aquele tom de fatalismo irônico: o homem é um ser livre, e portanto responsável, ou um títere nas mãos do destino, da natureza, de alguma força desconhecida? E a tentação vinha, de concluir sempre com pessimismo, de duvidar de tudo, de negar tudo. (MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 150-151 – grifo meu) É interessante notar também que, conforme aponta a autora, há nos textos machadianos uma ―lógica caprichosa mas inexorável da vida.‖117, uma vez que, Quaisquerque fossem as circunstâncias, o Brás Cubas daria um solitário, em esquisitão, o Rubião se arruinaria, Virgília seria amoral e Sofia faceira. Os acontecimentos, independentes da vontade do indivíduo, são, porém, condicionados pelo seu temperamento. Entre essas duas fatalidades que se dão as mãos, a liberdade e a responsabilidade parecem letra morta. O homem influi sobre os sucessos, mas pelo que há nele de irracional, pelo que escapa à sua vontade. (MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 204 – grifos meus) Esses aspectos dos textos machadianos são importantes na medida em que vão possibilitar traçar algumas reflexões no momento em que se for abordar os textos sobre o Diabo, uma vez que, também neles, parece ser possível percebê-los118. 117 MIGUEL-PEREIRA, 1988, p. 204. 118 Ainda não é o momento apropriado para tal, mas, se me for lícito adiantar um pouco as coisas – pois pretendo propor esta reflexão de forma mais elaborada no último capítulo (e sinalizá-la para um possível estudo posterior) –, essa indagação que percorre a maioria dos textos machadianos talvez possa nos levar a pensar sobre uma espécie de antropologia filosófica em sua obra, a pensar seus textos como uma constante indagação sobre o homem, suas ações e suas condições de existência. 80 A partir daqui, com exceção de um capítulo em que a autora vai comentar sobre os contos do escritor e sobre Dom Casmurro119, o que se segue no texto de Miguel-Pereira não exerce influência direta sobre esta pesquisa. Sendo assim, passemos à biografia de R. Magalhães Jr. Se a obra de Miguel-Pereira tem o mérito de ser um marco nos estudos biográficos machadianos, a imensa obra em quatro volumes de R. Magalhães Jr. também não fica por baixo, pois o autor conseguiu reunir de forma bastante sistemática diversos documentos, conhecidos e desconhecidos (na época), que auxiliam no esclarecimento de diversos momentos da vida de nosso escritor. Conforme aponta Wilson Chagas, e eu tendo a concordar com ele, a obra de Magalhães Jr. ―é o estudo biográfico mais amplo e exaustivo já escrito sobre Machado de Assis‖120. Neste estudo, ainda seguindo as palavras de Chagas, ao apontar equívocos e corrigir erros da (extensa) bibliografia machadiana, Magalhães Jr. mostra ―a sua decisão de ‗passar a limpo‘ a biografia de Machado de Assis, expurgando-a dos defeitos que até então a maculavam.‖121; corrigindo, inclusive, alguns equívocos do próprio Machado. Em suma, para citar a orelha do livro do biógrafo, a obra contém uma ―rigorosa ordenação cronológica, acompanhando passo a passo os progressos do escritor e o desdobramento de [sua] existência‖122, o que a torna bastante elucidativa sobre vários pontos da vida de Machado. Valentim Facioli, por sua vez, embora trace a biografia de forma bastante concisa123, tem seu valor pelas reflexões que faz acerca da vida, da sociedade e da obra machadiana como um todo. Diferentemente de Magalhães Jr., que tenta abordar os elementos biográficos de forma mais ―factual‖ ou ―imparcial‖, quase que somente pelos documentos deixados por Machado, sem dar muita ênfase as suas próprias interpretações sobre a obra, Facioli irá, na linha de Lúcia Miguel-Pereira, misturar elementos biográficos e crítica literária, com o acréscimo de uma crítica sociológica. Embora essa biografia, comparada às outras, dê uma guinada à esquerda, por assim dizer, o autor, ainda 119 Refiro-me ao capítulo XVI, intitulado ―τ Artista‖. Menções a este capítulo serão feitas no decorrer das interpretações sobre os contos. 120 CHAGAS, 1994, p. 53. 121 CHAGAS, 1994, p. 53. 122 MAGALHÃES JR., 1981a. 123 Chamo-lhe concisa, tendo em vista que, embora o texto divida-se em duas colunas, a biografia ocupa por volta de 50 páginas dentro do volume, e, por isso, mesmo que fôssemos contabilizar tudo, ela daria aproximadamente 100 páginas. 81 assim, consegue fugir não apenas da tentação de uma interpretação exclusivamente sociológica, mas também do uso desenfreado dos ―chavões‖ do marxismo, o que às vezes acaba ou dificultando a assimilação do leitor ou pecando por superficialidade. Neste sentido, considero interessante trazer sua fala quando afirma que toda ―biografia intelectual persegue um fantasma, que é o do biografado e, no limite, o fantasma de si própria.‖, o que aponta para a consciência de um limiar, um confim, uma limitação para toda e qualquer biografia, mesmo as mais exaustivas; sendo assim, escreve o autor logo adiante, A biografia intelectual não reconstitui um homem, nem sua obra, nem sua época. Antes, deve buscar os pontos de articulação entre eles e, portanto, procurar captar o movimento específico das contradições vividas e incorporadas pelos bens culturais no cenário dos antagonismos da sociedade de classes. Para tanto, ela não pode perder de vista sua condição intrínseca de intervenção nessa batalha e seu estatuto de um lance a mais no movimento das contradições. (FACIOLI, 1982, p. 25 – grifo meu) Chamo atenção para a parte em negrito, pois considero que não só Facioli, mas também Daniel Piza, nosso quarto e último biógrafo, tenha conseguido fazer isso de forma bastante satisfatória. A meu ver, o mérito de Daniel Piza não é tanto a inovação nos dados sobre o biografado, mas acerca do contexto sociocultural em que Machado estava inserido. Em suas palavras, ―Machado, como todo grande criador, foi ao mesmo tempo expressão de sua época e exceção a ela‖, assim, ao estudar sua vida e obra ―podemos conhecer melhor o Rio de Janeiro e o Brasil da segunda metade do século XIX e observar como ele foi diferente dos contemporâneos.‖124 Sendo assim, esta biografia vale ser mencionada (e estudada) não apenas por aquilo que diz sobre Machado, mas também pelas considerações que tece sobre a época em que viveu nosso Bruxo do Cosme Velho, uma vez que nela o autor expressa uma preocupação com ambos. 2.2.1.2 Na selva da crítica. 124 PIZA, 2008, p. 11-12. 82 ―Valha-me Deus! É preciso explicar tudo.‖ (Memórias Póstumas de Brás Cubas) Se, como disse Umberto Eco evocando Jorge Luís Borges, a literatura é o bosque dos caminhos que se bifurcam125, a crítica literária é uma vasta selva… σão necessariamente a ―selva oscura‖ de Dante, mas ainda assim uma grande selva, com uma fauna exuberante, variada e por vezes assustadora; em alguns casos, entretanto, o que assusta não é tanto a fauna, mas a própria dimensão da selva, que pode levar à perdição aqueles que a percorrem. Metáforas à parte, a presente subseção tem como intuito percorrer um pequeno trecho daquilo que se tornou a imensa bibliografia crítica sobre a obra machadiana. O trecho é realmente pequeno se formos observar a quantidade de estudos que já foram feitos e por isso não tenho a mínima pretensão de esgotar o assunto; o que teremos (o leitor e eu) aqui é apenas um breve comentário sobre algumas das obras que consultei e que me serviram (e servem) de base para as considerações em capítulos posteriores. Conforme mencionado, nossos guias pelos labirintos da crítica (ou pela selva, para retomar a recente metáfora) foram Wilson Chagas e a antologia de textos e estudos organizada por Alfredo Bosi et al. Para começar, gostaria de evocar a obra Machado de Assis (1935-1958), de Augusto Meyer, que, conforme bem assinala Wilson Chagas, ―é uma reflexão profunda dos temas machadianos; ele os repensa, como quem indaga dentro de si mesmo pelos grandes problemas.‖126. Essa obra, conforme confessa Meyer no prefácio à segunda edição, ―era a princípio mais contra do que sobre Machado de Assis, mas, no andar do diálogo, provocou uma capitulação das intenções do autor‖127. Percebe-se bem essa ambiguidade ao longo do livro, que varia entre o tom incisivo e o ameno, sendo este último o menos favorecido. Vale mencionar, conforme bem aponta W. Chagas,que Meyer ―unifica vida e obra, na sua crítica. Não separa a obra do autor. E lê como se eles retivessem ainda a respiração do escritor.‖128, ou conforme afirma o próprio Meyer no capítulo final do ensaio de 1λ35, ―Através de alguns aspectos da obra de Machado de Assis, tentei 125 Cf. ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 158p. 126 CHAGAS, 1994, p. 12 – grifo meu. 127 MEYER, 2005, p. 13. 128 CHAGAS, 1994, p. 13. 83 traçar o seu retrato psicológico, sem espírito prevenido.‖129. Assim, se a grande virtude de Meyer está em ter feito essa ―reflexão profunda dos temas machadianos‖, penso ser aí que se esconde o ―problema‖130 do livro – seu grande pecado, por assim dizer –, nessa confusão entre o que diz a obra e o que foi o homem, entre os personagens e a persona. Suas considerações podem até ser bastante aguçadas, o que torna a obra importante para o estudioso da obra machadiana, mas perdem força explicativa quando caem no biografismo, o qual, muitas vezes, parece ser um ataque gratuito ao autor131. Apenas para finalizar as considerações sobre esta obra, gostaria de trazer Wilson Chagas novamente à palavra quando afirma que ―através da obra de Machado, o crítico buscava decifrar o seu próprio enigma.‖132; afirmação que poderia ser estendida à maioria dos críticos machadianos quando se debruçam sobre determinados aspectos, certos pontos de vista acerca de sua obra – e que, ao cabo, também poderia ser lançada sobre este que agora escreve. Outro livro interessante – embora para o leitor atual seja um pouco chocante (ou muito, dependendo do leitor) – é A filosofia de Machado de Assis e outros ensaios (1959), de Afrânio Coutinho133. O livro é interessante na medida em que traz importantes considerações sobre os autores filosóficos visitados e revisitados por Machado de 129 MEYER, 2005, p. 57 – grifo meu. 130 Entre aspas, pois era intenção do autor escrevê-lo dessa forma. 131 Para não deixar apenas em minhas palavras, trago um par de exemplos daquilo que é possível encontrar ao longo da obra, como quando o A. escreve que ―Por mais que ponha nas palavras uma graça incomparável, cheia de perfídias finas e de pulos imprevistos, não sabe disfarçar o pirronismo niilista que forma a raiz de seu pensamento. Com as diversas máscaras superpostas desse voluptuoso da acrobacia humorística, podemos compor uma cara sombria – a cara de um homem perdido em si mesmo e que não sabe rir. Perdido em si mesmo, isto é, engaiolado na autodestruição do seu niilismo.‖ (MEYER, 2005, p. 19 – grifos meus); ou quando escreve que ―quem pode saber até onde vai, na sua passividade lúcida, o impulso de suicídio – suicídio voluptuoso e consciente – que às vezes envenena a obra de Machado de Assis? Gosto de destruir e de se destruir. Pegar uma ideia viva na ponta dos dedos com muita delicadeza e arrancar-lhe as asas com tanta graça.‖ (MEYER, 2005, p. 30 – grifo meu). 132 CHAGAS, 1994, p. 14. 133 Embora a segunda parte do livro também seja interessante, trazendo as considerações de Coutinho sobre outros autores acerca da obra machadiana, detenho-me aqui sobre a primeira, tendo em vista ser ela a tratar sobre a filosofia na obra de Machado. 84 Assis, como Montaigne, Pascal e Schopenhauer, e deveras chocante pelo teor das afirmações feitas por Coutinho, as quais talvez não sejam nem as mais acuradas a respeito da obra de nosso autor – caindo em tantos biografismos quanto Meyer (ou até mais) – nem as mais moralmente íntegras para os dias atuais134. Para que o leitor tenha um exemplo da primeira parte de minha afirmação, basta mencionar o trecho em que Coutinho afirma que O pessimismo de Machado é a tradução exterior de falta de saúde espiritual. Revela-se nas criações artísticas, por um ódio sistematizado da vida e da humanidade, uma ausência total de simpatia para os homens e de confiança nêles, uma indiferença completa para os seus sofrimentos, amarguras e desesperos. É esta a tonalidade geral de sua obra, a nota permanente da sua interpretação do mundo, essa falta de generosidade no julgar os homens e a vida. (COUTINHO, 1959, p. 24 – grifos meus) Além disso, embora seja inegável a influência do pensamento de Schopenhauer na obra machadiana, pode-se dizer que o crítico acaba, em certos pontos, forçando um pouco nos paralelos135, e por muitas 134 Não quero me deter em críticas sobre esse ponto fraco da obra de Coutinho, até porque pode ser fruto de sua época, mas, força é dizer que em diversos momentos as suas afirmações podem ser consideradas de cunho racista. Como exemplo, basta ver dentro do segundo capítulo o subcapítulo intitulado ―Ascensão e ressentimento do mestiço‖, no qual, dentre tantas outras coisas, lê- se que ―Se o mulato brasileiro é intelectualmente capaz e às vezes superior, ainda não é bom, não tem estabilidade ou equilíbrio interior, fortaleza de caráter. É do ponto de vista moral e psicológico que ele denota ainda uma grande inferioridade que não pode deixar de refletir-se na harmonia social, dada a influência que a vida brasileira dele recebe.‖ (CτUTIσHτ, 1λ5λ, p. 48 – grifo meu). σão será preciso apontar, além do racismo ―velado‖, certa culpabilização das vítimas de um sistema opressor. 135 Como nessa passagem, em que afirma: ―Portanto, como Pascal, como Schopenhauer, Machado era pessimista porquanto para ele o mundo era essencialmente mal, o mal predominando de todo sobre o bem, a dor sobre o prazer, somente ela sendo verdadeiramente real, pois da sua cessação momentânea é que surge o prazer, não sendo o mundo senão a obra da vontade de uma Natureza indiferente ao bem e ao mal moral, antes má do 85 vezes confundindo, assim como Meyer, personagens e persona, ou para ser mais claro, os pensamentos das personagens com os pensamentos do autor. Isso sem falar na visão – um tanto deturpada, diga-se de passagem – que Coutinho expressa sobre o Bruxo do Cosme Velho, a qual, para perceber, basta observar as expressões que usa, afirmando que nosso autor tinha um ―ódio à sociedade‖, que ―julgou-se um desgraçado‖, que tinha ―ódio contra a vida‖, que tinha um ―complexo de inferioridade‖, que tinha o ―ressentimento do mestiço‖, que sua mágoa e seu ressentimento foram traduzidos por sua arte, etc.136. A parte esses problemas, embora não possamos concordar com todas as suas afirmações, o crítico aborda de forma bastante elucidativa os pensamentos de Pascal e Montaigne, dois dos pilares da filosofia implícita na obra machadiana. Outro autor que também se debruçou sobre este aspecto da obra machadiana foi Miguel Reale no livro A filosofia na obra de Machado de Assis & “Antologia filosófica de Machado de Assis” (1982). Em seu breve ensaio, o A. explora praticamente as mesmas ―fontes‖ abordadas por Coutinho, embora corrigindo algumas afirmações deste último137. Embora seja inegável a ―afinidade espiritual‖ entre o ―cinzelador dos Pensées e o autor de Quincas Borba‖, Reale (1λκ2, p. κ), trazendo a fala de Sérgio Buarque de Holanda, explica que ―Afrânio Coutinho exagera, até certo ponto, a correlação ‗Pascal-Machado‘ [...] sobretudo por faltar ao nosso maior prosador qualquer forma de inquietação religiosa‖. Este autor (1982, p. 12-13) também afirma que embora não seja extraordinário que ―a visão pessimista de Machado de Assis tenha encontrado abrigo e consolo na doutrina de Schopenhauer‖, ainda assim, que boa, porque essencialmente egoísta nos seus motivos.‖ (CτUTIσHτ, 1959, p. 27 – grifos meus) 136 Cf. respectivamente COUTINHO, 1959, pp. 37; 39; 39; 40; 41; 56. Nesse sentido, considero bem fundamentada a crítica de Sérgio Buarque de Holanda, quando em seu texto ―A filosofia de Machado de Assis‖(1λ40), comentando esse ―ódio à vida‖ expresso por Coutinho, o A. afirma que é uma ―simplificação excessiva e traidora, que o exame da obra de Machado não autoriza a endossar. No simples ódio há uma ausência de complexidade e de nuances, uma limpidez que dificilmente poderia explicar qualquer reação de Machado de Assis diante da vida.‖ (HτLAσDA, 1λλ6, p. 310) 137 Como este não é o escopo deste estudo, infelizmente não poderei me deter em todos os detalhes das divergências. No entanto, seria interessante um estudo comparativo entre os diversos autores que se debruçaram sobre os aspectos filosóficos da obra de Machado de Assis. Espero poder efetuá-lo futuramente em outro local. 86 não devemos inferir que ele ―tenha sido adepto da ‗metafísica da vontade‘‖, conforme teria sugerido Raymundo Faoro, e nos lembra que em uma de suas crônicas de A Semana, datada de 16 de junho de 1895, Machado faz troça dessa metafísica schopenhaueriana. Nosso próximo autor não vem sozinho, mas juntamente com uma grande e importante equipe de estudiosos. Falo da antologia organizada por Alfredo Bosi, José Carlos Garbuglio, Mário Curvello e Valentim Facioli, intitulada Machado de Assis (1982). Nela, além da antologia de escritos machadianos (crônicas, crítica literária/teatral, contos e excertos de romances), os autores também trazem uma antologia de estudos sobre o autor de Dom Casmurro, bem como uma interessante mesa-redonda com um grupo de especialistas em Machado de Assis, dentre os quais figuram não só os organizadores, mas também autores como Antonio Callado, Sônia Brayner, Roberto Schwarz e Luiz Roncari. Além disso, ao final do livro encontra-se uma seção de ―Bibliografia comentada‖, na qual, como o próprio nome sugere, os organizadores traçam um panorama sobre ―dezesseis nomes, reputados básicos para o conhecimento do escritor e boa amostragem do ensaísmo que lhe foi dedicado.‖138. Embora a antologia de estudos seja realmente interessante139, gostaria de chamar a atenção para textos como o de Alcides Maya140, que aborda o humour machadiano; o de Barreto Filho141, que discorre sobre o ―espírito trágico‖ de Machado de Assis; o texto de Eugênio Gomes142, que aborda o ―microrrealismo psicológico‖ do autor de Dom Casmurro; o de Dirce Côrtes Riedel143, que a partir de uma leitura bakhtiniana aborda aspectos da carnavalização que figuram na obra de Machado, ou, para ser mais específico, em suas personagens; o texto de Sônia Brayner144, que discorre sobre o ―laboratório ficcional‖ de nosso autor, isto é, sobre a sua experiência no campo da crônica jornalística e sua influência na elaboração da tessitura romanesca, a qual permite a 138 BOSI, 1982, p. 497. 139 Sendo a antologia organizada a partir de recortes de capítulos de livros (próprios ou de outros autores), as obras que já foram abordadas ou que ainda o serão não aparecem neste parágrafo. Além disso, assim como venho fazendo, darei primazia àqueles que contribuíram de alguma forma para as reflexões posteriores. 140 MAYA, 1982, p. 344-349. 141 BARRETO FILHO, 1982, p. 355-357. 142 GOMES, 1982, p. 369-373. 143 RIEDEL, 1982, p. 397-410. 144 BRAYNER, 1982, p. 426-437. 87 nosso autor ―um exercício variado e constante do discurso centrado na perspectiva de um narrador‖145, bem como a oportunidade que os contos lhe oferecem ―de explorar outros ângulos e categorias importantes nesta sua renovação da arte literária‖146; e por fim, mas não menos importante, o texto de Alfredo Bosi, que, abordando principalmente os contos machadianos, explora a questão da máscara social e da fenda que existe (ou que é aberta) no muro levantado pela sociedade entre as classes sociais. Outro autor importante para este estudo é Roberto Schwarz, que com seus dois livros – Ao vencedor as batatas: Forma literária e social nos inícios do romance brasileiro (1992) e Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis (1990) – tornou-se e é ainda hoje peça- chave nos estudos machadianos. Nesses livros, o autor analisa principalmente a relação dialética entre forma/conteúdo romanescos e forma/conteúdo sociais na construção da narrativa romanesca147. Enquanto que o primeiro livro é voltado para os romances iniciais de Machado de Assis, convencionalmente chamados de sua ―primeira fase‖, e traça uma comparação com os romances urbanos, de veio mais realista, de José de Alencar; o segundo, por sua vez, dedica-se inteiramente às Memórias Póstumas de Brás Cubas. A primeira obra de Schwarz – embora, por assim dizer, seja um pouco ―empolada‖, com uma sintaxe meio truncada e de leitura difícil – traz uma excelente análise de sociologia das formas literárias, que busca realçar não só os problemas, como também os avanços realizados por Machado de Assis na elaboração de seus romances da primeira fase. Vale dizer, no entanto, que esse livro só fica mais claro quando se lê seu complemento (Um mestre na periferia do capitalismo), no qual Schwarz vai apontar o exemplo positivo daquilo que buscava na prosa urbana de Alencar e nos primeiros romances machadianos. Nesse segundo livro, o autor vai se debruçar em elementos que fazem parte não apenas das Memórias Póstumas…, mas também dos romances seguintes, na qual ―um narrador voluntariamente importuno e sem credibilidade‖148 é visto 145 BRAYNER, 1982, p. 433. 146 BRAYNER, 1982, p. 433. 147 Digo ―relação dialética‖, pois, na visão de Schwarz, forma e conteúdo romanescos devem incorporar forma e conteúdo social, ―sem o que [o escritor] não fica em dia com a complexidade objetiva de sua matéria – por próximo que esteja da lição dos mestres.‖ (SCHWARZ, 1λλ2, p. 2λ). 148 SCHWARZ, 1990, p. 19. 88 tanto como ―regra de composição narrativa‖149 quanto como ―estilização de uma conduta própria à classe dominante‖150. Em outras palavras, enquanto na primeira fase Machado ainda buscava mostrar a volubilidade e a arbitrariedade das classes superiores a partir do conteúdo, das ações dos personagens descritas por um narrador confiável, agora é o próprio narrador que incorpora essas características em sua forma (nada) romanesca. Ainda outro autor importante para esta dissertação é John Gledson, o qual, também com dois livros – Machado de Assis: ficção e história (2003) e Machado de Assis: impostura e realismo: uma reinterpretação de Dom Casmurro (1991) – merece destaque por suas contribuições acerca da obra machadiana. Vale mencionar que o próprio autor reconhece o débito que tem para com o primeiro livro de R. Schwarz. Menciono o débito do autor, pois ambos seguem uma linha parecida, embora não idêntica. Parecida, pelo fato de que ambos possuem uma interpretação mais ―sociológica‖, em sentido lato; diferente, pois enquanto Schwarz prima pela relação forma/conteúdo, enfatizando a incorporação da realidade na própria forma literária, Gledson vai dar primazia à relação conteúdo/alegoria, dando enfoque para as ―pistas‖ deixadas por Machado no próprio conteúdo do romance para, a partir daí, encontrar as ―intenções do autor‖. Por falar nisso, este último ponto me parece ser um dos poucos ―defeitos‖151 que se encontra nas obras de Gledson, isto é, essa busca incessante pela ―intenção machadiana‖. Claro que ela eleva o próprio escritor, fazendo-o parecer ainda mais arguto do que já é, pois, segundo Gledson, Machado teria deixado inúmeras pistas encobertas, vários detalhes que sabia que não seriam notados por seus contemporâneos e que, se fossem notados, seriam severos piparotes lançados à face do leitor, ou, conforme bem salientou Wilson Chagas, para John Gledson, parece que Machado havia planejado ―os diversos níveis de significado da trama por ele desenvolvida, ou seja, como se um romance fosse uma obra elaborada com a consciência, e não com a imaginação, e portanto tivesse uma estrutura racional, e não criativa.‖152. Não obstante, fazendo minhas aspalavras de Wilson Chagas, é preciso dizer que 149 SCHWARZ, 1990, p. 17. 150 SCHWARZ, 1990, p. 18. 151 Segue entre aspas porque não é bem um defeito, uma vez que não tira o peso de sua argumentação. 152 CHAGAS, 1994, p. 15. 89 o livro de John Gledson nos convida a reler Machado. Pois são tantas as suas hipóteses e especulações que parecem acertadas, inteligentes, plausíveis; e tanto elas são estranhas à visão que a crítica e a história literária até agora nos transmitira, que não temos outro recurso senão o de procurar conferir as nossas (e as suas) opiniões. (CHAGAS, 1994, p. 15-16) Para fechar esta subseção que aborda os críticos da obra machadiana, gostaria de trazer um que, mesmo com suas considerações bastante argutas, ainda assim, não é muito citado em estudos acadêmicos; trata-se de Paul Dixon, autor do livro Os contos de Machado de Assis: mais do que sonha a filosofia (1992)153. Conforme o próprio título deixa entrever, o crítico se debruça sobre os contos de nosso autor, embora em alguns momentos ele também faça referências aos romances. No que tange ao subtítulo, o próprio Paul Dixon sinaliza que com ele deseja ―sugerir uma crítica a certa filosofia.‖154. O autor acredita que os contos machadianos trazem ―um projeto implícito de mostrar as fraquezas de tal filosofia‖155, a qual, segundo ele, seria ―a filosofia positivista, como elaborada por Augusto Comte, cuja influência no Brasil do século passado está bem documentada num livro de Ivan Lins‖156. A fim de melhor demonstrar esse ―projeto implícito‖, o crítico descreve sinteticamente cinco ―aspectos essenciais do pensamento de Comte‖ que, segundo ele, são pertinentes para o estudo da obra machadiana157, uma vez que, ―naquele contexto Machado de Assis foi um adversário, e sua voz artística representa uma oposição [ao 153 Menciono isso, pois, até o presente momento (14 jan. 2019), utilizando a ferramenta de pesquisa ―Google Acadêmico‖ são encontradas apenas 44 (quarenta e quatro) citações sobre esta obra, o que é um número baixo, levando em conta que o livro é de 1992. Mesmo que levemos em conta seus outros estudos acerca da obra de Machado, o número sobe apenas para 129 (cento e vinte e nove). Disponível em: < https://scholar.google.com.br/citations?user=ERl7QgIAAAAJ&hl=pt- BR&oi=ao>. Acesso em: 14 jan. 2019. 154 DIXON, 1992, p. 11. 155 DIXON, 1992, p. 11. 156 DIXON, 1992, p. 12. 157 Eles seriam: a ―ambição enciclopédica‖, a ―objetividade‖, a ―linearidade‖, a ―hierarquia‖ e o ―dogma‖. Para mais detalhes, cf. DIXτσ, 1λλ2, p. 12-13. 90 positivismo].‖158. Em contraposição a esse espírito positivista do Brasil oitocentista, Paul Dixon assinala que existiria em Machado de Assis uma espécie de ―antecipação da fenomenologia‖159 e, então, menciona algumas das concepções fenomenológicas do francês Maurice Merleau- Ponty160, pois, em ―sua versão da fenomenologia parece haver uma afinidade com a mentalidade do contista brasileiro.‖161. Apenas para finalizar esta exposição sobre esta obra do crítico, vale mencionar que em sua leitura dos contos, Dixon encontra ―dez ‗leis‘ do mundo machadiano‖162 – isto é, padrões que se repetem em suas narrativas –, chamadas desta forma em tom irônico, ―visto que as leis do mundo de Machado de Assis são ‗anti-leis‘ que, em vez de circunscrever e explicar, criam um espaço para o mistério.‖163. 2.2.2 Falando no Diabo... Tendo percorrido alguns dos espaços mais ortodoxos dessa grande selva que se tornou a Fortuna Crítica machadiana, podemos agora contemplar os estudos que estão diretamente relacionados com esta dissertação, ou, para retomar a analogia, podemos fazer um desvio para adentrar em veredas mais heterodoxas e, por assim dizer, desconhecidas. Não que elas cheguem a ser completamente obscuras, ausentes de sinalizações ou de trilhas; o que quero dizer, todavia, é que elas são, ainda assim, ou relegadas ao segundo plano ou até mesmo deixadas de lado, simplesmente por abordar essa personagem do Cristianismo e da cultura ocidental que é tão marcante quanto controversa. No entanto, é pertinente mencionar que, embora não tenham sido o foco principal, o Diabo, o diabólico e o demoníaco na obra de Machado de Assis também já foram abordados por estudiosos de renome, como Afrânio Coutinho, Raymundo Faoro, John Gledson e Paul Dixon164. Dito isto, passemos aos autores e autoras cujo enfoque é 158 DIXON, 1992, p. 14 – acréscimo meu entre colchetes. 159 Cf. DIXON, 1992, p. 14. 160 Elas seriam: a ―crítica ao pensamento enciclopédico‖, a ―intersubjetividade‖, a ―circularidade‖, a ―orientação não-hierárquica‖ e o ―ceticismo‖. Para mais detalhes, cf. DIXON, 1992, p. 14-15. 161 DIXON, 1992, p. 14. 162 DIXON, 1992, p. 17. 163 DIXON, 1992, p. 17. 164 Como o Diabo (ou o diabólico/demoníaco) não era(m) o tema principal de seus estudos, deixo para trazer os apontamentos feitos por estes autores em um momento mais oportuno. 91 direcionado especificamente para o Capiroto enquanto personagem da obra machadiana… Antes, porém, é válido explicar que, a fim de dar certa sistematicidade à exposição, eu os trarei em ordem cronológica, a partir do ano da primeira publicação. Para iniciar, portanto, gostaria de mencionar o artigo ―τ Bruxo do Cosme Velho decretou a morte do Diabo‖ (200κ)165 da prof.ª e pesquisadora da UFSC, a Dr.ª Salma Ferraz, no qual ela traça um sucinto panorama da história do Diabo – perpassando a Bíblia, a Teologia, a Teoria, a Literatura ocidental – até chegar nos escritos de nosso autor. Vale dizer, entretanto, que seu artigo busca mais apontar as aparições do Diabo na obra machadiana do que efetuar uma exegese dos textos, o que, certamente, não diminui seu valor. Embora não seja o único ponto interessante de seu artigo, é possível dizer que ele atinge seu clímax no momento em que a autora revela quando e onde Machado de Assis teria decretado a morte do Diabo, a saber, no conto ―τ anjo Rafael‖. Outra pesquisadora que se debruçou sobre o Diabo – ou, pelo menos, sobre duas das ―narrativas‖ em que ele apareceu – é Vera Casa σova, professora da UFMG, com seu artigo ―Do sermão do Diabo: o avesso da narrativa.‖166. Utilizo o termo narrativas entre aspas, pois, conforme o próprio título do artigo deixa perceber, a articulista aponta a crônica de 1κλ2, ―τ sermão do Diabo‖, como um prenúncio do ―fim da narrativa tradicional‖ e também das ―transformações estéticas que aconteciam no fim do século XIX e sobretudo [d]as subversões políticas e mesmo teológicas.‖167. Comentando tanto a crônica quanto o conto de 1κκ3, ―A igreja do Diabo‖, explica a autora que Fortemente popular, a figura do Diabo está mais próxima de nós que Deus. O Diabo subverte a ordem, mostrando que é mais fácil seguir os seus ditames que os de Deus. Projeto crítico, ético e estético que denuncia uma hipertrofia da moral de fin-de-siècle. O Sorriso que o leitor descuidado é capaz de dar ao chegar ao final da narrativa é 165 Embora as citações posteriores sejam retiradas do livro As Malasartes de Lúcifer, de 2012, vale dizer que a data aqui expressa é a de sua primeira publicação na Revista UNILETRAS, Ponta Grossa, v. 30, n.1, p. 175-198, jan./jun. 2008. 166 Publicado na Revista O Eixo e a Roda: Revista de Literatura Brasileira, Belo Horizonte, v. 16, p. 179-184, jan./jun., 2008. 167 CASA NOVA, 2008, p. 183. 92 também o do arrepio, do riso nas lágrimas, marcado pelo ceticismo. (CASA NOVA, 2008, p. 183 – grifos meus, itálico da autora) Assim, nesses dois textos, dirá a autora logo adiante, tem-se ―a visão dos múltiplos aspectos (positivos?) do caráter do Diabo e o avesso do sacro, o profano, capaz de fazer a sociedade se transformar, pelo seu poder de subversão e transgressão.‖168. Desta forma,com esse lastro de subversão e transgressão irônicas, explica a autora, essas ―narrativas‖ acabam tanto por fazer desmoronar verdades absolutas quanto por deslocar o leitor ingênuo. Também do ano de 2008 é o artigo da professora e pesquisadora Magali Moura, da UERJ, intitulado ―τ riso diabólico em Machado e Goethe. Algumas reflexões sobre a luta do mal contra o bem.‖169. Em seu texto, a professora tece algumas considerações sobre ―a função da personagem do diabo (Mefistófeles) em textos de Machado de Assis e no Fausto de Goethe sob o prisma da teoria bakhtiniana do riso e da ironia.‖170. Com isso, ela pretende apontar nos textos desses autores uma espécie de ―educação pela felicidade transgressora‖171, isto é, uma educação que se utiliza dos efeitos benéficos da subversão e da transgressão a partir de um riso libertador, um riso que não troça, mas ensina. Conforme explica a autora, a figura do Diabo, um ser do além, serve aos dois autores para falar do aquém, ou seja, o Diabo seria ―motivação para a exposição da intrincada teia de relações que caracteriza o mundo dos homens. Associado ao riso e à troça, o diabo assume nos textos aqui mencionados de Machado e Goethe a função do desmascaramento e de revelação conforme descrita por Bakhtin.‖172. Em outras palavras, mas ainda acompanhando a autora, pode-se dizer que Ao dar voz a uma personagem como o Diabo, estes autores propiciam a subversão da ordem pelo seu contrário, pelo seu espelhamento. É o próprio reflexo que ironicamente irá mostrar o real não o sendo. Ao se propor o jogo, eles evocam a disposição dialética com a qual está 168 CASA NOVA, 2008, p. 183. 169 Publicado na Revista de Letras, São Paulo, v. 48, n.2, p. 131-150, jul./dez., 2008. 170 MOURA, 2008, p. 131. 171 MOURA, 2008, p. 131. 172 MOURA, 2008, p. 132. 93 constituído o próprio mundo [...] (MOURA, 2008, p. 146) A realidade, prossegue a autora, ―quando vista pelo avesso através da simpatia em relação ao elemento do mal provoca a intensa interatividade texto-leitor e, dessa forma, evoca a reflexão sobre os estados irônicos do mundo.‖173. Nesse sentido, longe de simplesmente moralizar – isto é, de apontar um caminho (seguro?) para o leitor –, pode-se dizer que a própria narrativa, na forma como é elaborada, acaba valorizando tanto a liberdade quanto a reflexão do leitor, uma vez que lhe abre esse espaço dialógico-reflexivo. O último artigo de 2008 é de Maurício Cesar Menon, professor da UTFPR, intitulado ―τ Diabo: um personagem multifacetado.‖174. Seu artigo busca ―analisar algumas das representações do Diabo na literatura, investigando de que forma são dadas diversas faces a um ser sem rosto, as origens dessas representações e de como a literatura brasileira apropriou-se dessa construção.‖175. Embora não seja especificamente sobre o Diabo machadiano, seu artigo é importante para esta pesquisa por tecer considerações sobre e efetuar comparações entre algumas das ―representações‖176 do Diabo na literatura ocidental, ou, para ser mais claro, sobre o Diabo dantesco, o Satã miltoniano, o Satã de Álvares de Azevedo, o Diabo machadiano e o Lúcifer de Coelho Neto177. Ao abordar essas variantes da personagem, o professor consegue explicitar não apenas as relações entre os diferentes autores, mas também as reverberações existentes entre os diversos textos. Outra pesquisadora que abordou o Diabo, ou, melhor dizendo, o discurso do Diabo no texto machadiano, foi Aurora Gedra Ruiz Alvarez, professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie (São Paulo), em seu artigo ―τ século XIX sob o olhar de Machado de Assis‖178. Com ele, a professora se propõe a ―estudar o processo de criação da paródia na crônica ‗τ sermão do Diabo‖‘ e também a ―examinar os expedientes de que se vale o narrador‖179 para confrontar o discurso bíblico e 173 MOURA, 2008, p. 147. 174 Publicado na Revista Línguas & Letras, Cascavel, n. Especial, p. 217-227, 2008. 175 MENON, 2008, p. 218. 176 Cf. nota de rodapé nº 36. 177 Conforme indica o articulista, o conto de Coelho σeto é intitulado ―A vitória de Lúcifer‖ e encontra-se no livro Melusina, de 1913. 178 Publicado na Revista Itinerários, Araraquara, n.29, p. 393-404, 2009. 179ALVAREZ, 2009, p. 393. 94 construir sua própria voz narrativa. Ao fazê-lo, a articulista encontra cinco expedientes, ou, para ser mais claro, cinco procedimentos narrativos utilizados pelo narrador machadiano a fim de subverter o texto bíblico – o ―Sermão da Montanha‖ encontrado no Evangelho segundo São Mateus – e, com isso, constituir sua própria voz e visão de mundo, isto é, construir sua própria interpretação do mundo. Dessa forma, conforme bem apontado pela professora, nesse sermão ―o que se doutrina nos trinta mandamentos é a concepção ideológica de que o sucesso ocorre devido à falta de escrúpulos, à ganância, à má-fé nos negócios; enfim, todas as qualidades que enformam o homem do mundo capitalista.‖180. Outro texto de que me vali de base para as reflexões que aqui figuram é a dissertação de Isabella Maddaleno, intitulada Um Diabo narrado pelas tintas machadianas (2014). Sua dissertação, assim como esta que ora se lê, tem como objetivo estudar a figura do Diabo ―tal como este se apresenta pelas tintas do escritor‖, a fim de evidenciar ―de que forma ele foi apropriado pela literatura machadiana.‖181. Para tal, a pesquisadora aborda três textos de nosso autor, a saber, os contos ―Adão e Eva‖ e ―A igreja do Diabo‖ e a crônica ―τ sermão do Diabo‖. Em seu estudo, conclui a autora que ―τ Diabo apresentado por Machado de Assis é um ser real, possui forma corpórea e sentimentos que se assemelham ao ser humano.‖182. Embora concorde com esta afirmação, tendo a discordar quando, adiante, na seção 5.1 de sua dissertação, cujo título é ―τ Diabo é o mesmo?‖, a autora afirma que ―[n]os três contos em análise, ―Adão e Eva‖, ―A igreja do Diabo‖ e o ―Sermão do Diabo‖, a personagem Diabo é semelhante.‖183. Claro, pode-se dizer que semelhante não é igual, mas, ainda assim, devemos suspeitar dessa suposta semelhança. Afinal, conforme veremos na seção posterior, embora se possa dizer que o discurso do Diabo em cada um dos textos possui certa base comum e embora, sim, ele possa ser chamado, como na Bíblia, de ―o grande Tentador‖ e de ―adversário de Deus‖, suas características físicas não são as mesmas. Conforme bem observado no estudo de Maurício C. Menon (2008), no conto ―A igreja do Diabo‖ a personagem tem muito do Satã miltoniano, enquanto que em ―τ sermão do Diabo‖ – e isso dizemos nós amparados pelas observações da professora Magali Moura (2008) –, ele estaria mais 180ALVAREZ, 2009, p. 396. 181MADDALENO, 2014, p. 04. 182MADDALENO, 2014, p. 75. 183MADDALENO, 2014, p. 78. 95 para o Mefistófeles goethiano, não apenas pela descrição feita ao final da crônica, mas também pelo próprio tom irônico estabelecido textualmente pelo sermão. Além disso, conforme veremos, o conto ―Adão e Eva‖ se esquiva de qualquer descrição física do Anjo Caído, traçando mais o seu perfil psicológico do que físico. Feitas essas breves observações, passemos ao próximo texto. Chegando perto do final, gostaria de trazer o artigo ―τ Diabo dos contos de Machado de Assis: destino, herança e errância do Satã miltoniano‖184, de Miriam Piedade Mansur Andrade, doutora em Literatura Comparada e pesquisadora bolsista do PNPD/CAPES, vinculada ao Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras da UFMG. Nele, a autora busca estabelecer relações entre o Diabo dos textos ―A igreja do Diabo‖ e o ―τ sermão do Diabo‖, de nosso autor, e o Satã miltoniano a partir da ―lógica do suplemento, como proposto por Jacques Derrida, na qual, Machado de Assis, leitor de Milton, atualiza, em seus contos, o discurso literário sobre o mito do Mal e nãoescapa ao destino, à tradição e à herança do autor inglês.‖185. De acordo com a autora, ―[o] Satã de Paradise Lost está contido em ―A Igreja do Diabo‖ e em ―τ Sermão do Diabo‖, não de forma tipológica ou como cópia, mas sob uma perspectiva diferente, que promove mais uma significação para esse elemento ficcional.‖186. A despeito de minha discordância no que tange ao Diabo da crônica ser uma herança, ou até mesmo uma espécie de releitura, do Satã miltoniano – estando, conforme dito acima, muito mais para o Mefistófeles goethiano –, o texto se mostra interessante para esta dissertação na medida em que problematiza uma questão que pretendo articular no último capítulo, a saber, a questão do livre-arbítrio, isto é, da liberdade humana de escolha tanto do bem quanto do mal, a qual não é levada em conta pelo Diabo quando, no conto, funda sua igreja. Para finalizar esta seção gostaria de trazer o artigo de Tiago Ferreira da Silva, Doutorando em Literatura Brasileira no Póslit/UnB e professor da Secretaria de Educação do Distrito Federal, intitulado ―‗Franjas de algodão em mantos de veludo‘ – As ideias, e o Diabo, fora do lugar num conto de Machado de Assis‖187, no qual o autor interpreta 184 Publicado na Revista Em Tese, Belo Horizonte, v.23, n.1, p. 249-258, jan./abr., 2017. 185 ANDRADE, 2017, p. 249. 186 ANDRADE, 2017, p. 250. 187 Publicado na Revista Cerrados, Brasília, v.26, n.45, Edição Especial, p. 207-215, 2017. 96 o conto ―A igreja do Diabo‖ à luz das ideias de Roberto Schwarz em seu texto ―As ideias fora do lugar‖, capítulo inicial de Ao vencedor as batatas. Em sua visão o texto machadiano reflete não somente sobre aspectos religiosos ou sobre o desejo do ser humano de estar desvinculado de normas religiosas, mas também como representa, literariamente, a estrutura social brasileira da época, travestida ‗em capas de veludo com franjas de algodão‘, ou seja, revestida da ideologia liberal europeia, mas alicerçada no atraso do regime escravo e no regime do favor. (SILVA, 2017, p. 207) Desta forma, conforme assinala Silva (2017, p. 209) – e, nesse aspecto, tendo a concordar – o texto pode e deve ser lido para além da materialidade do discurso, isto é, para além de sua literalidade ou de seu ―conteúdo explícito‖, a fim de que se encontre nele sua ―estrutura mais profunda‖188. Conforme bem observado pelo autor, o Diabo ―adota as 188 Digo que concordo apenas nesse aspecto, pois além de me parecer que existe um pequeno lapso na argumentação, eu tendo a ver de forma diferente a suposta hierarquia das possibilidades interpretativas do conto. Segundo o autor, o próprio enredo e a temática do conto, a primeira vista, parecem tratar de ―uma crítica à religião e à maneira como as instituições religiosas se valem da fé para venderem uma ideologia e manipularem a vida humana‖; além disso, ainda na esteira do autor, o fato de o homem se encontrar insatisfeito até mesmo na igreja do Diabo, onde o pecado é a regra, aponta para ―um desejo de libertar-se dos sistemas de regras que objetivam limitar e manipular o livre arbítrio.‖ (SILVA, 2017, p. 210) Para Silva, embora esses aspectos sejam importantes, eles não levam em conta aspectos ―sociais, históricos e literários‖ apontados pela estrutura mais profunda do conto. Digo que nesta argumentação há uma espécie de ―lapso‖, pois me parece que o autor não percebeu que essa ―crítica à religião‖ e esse ―desejo de libertar-se dos sistemas de regras‖ fazem parte dessa realidade histórica, social e literária, o que, certamente não invalida e, inclusive, se encaixa na própria reflexão que ele faz à luz da argumentação de Schwarz. No que diz respeito à suposta hierarquia das possibilidades interpretativas, diferentemente do autor, que coloca a reflexão social e histórica no plano mais elevado, tendo a vê-la não como uma hierarquia, não como um plano vertical, dicotomizando superficialidade e profundidade, mas num plano horizontal em que todas elas estão em certo grau de paridade. A meu ver, concordo com Ricoeur quando ele afirma que ―uma construção [explicativa/compreensiva] pode ser considerada mais provável que outra, mas não mais verdadeira. A mais 97 mesmas formas e rituais da igreja divina, entretanto inverte o rumo da ideologia sem, contudo, abandonar a forma tradicional, agora permeada de um novo conteúdo.‖189. Assim, partindo do mencionado texto de Schwarz, o articulista explica que o Diabo só ―consegue fundar sua igreja a partir da adequação de determinadas ideias a um contexto que não lhes é próprio e é daí que surge uma possível correlação do conto com a realidade histórica do Brasil, à época de Machado de Assis.‖190. Nesse sentido, prossegue ele, a forma como o Diabo organiza a sua própria igreja – isto é, importando e adaptando ideias que não são próprias para um determinado contexto –, ―pode sugerir algo bem próprio da estrutura social brasileira, na qual dominava o fato ‗impolítico e abominável‘ da escravidão que excluía o Brasil da realidade da ciência e de seus princípios‖191. 2.3 Potencialidades da figura do Diabo na obra machadiana Agora que já passamos por algumas das ―representações‖ do Diabo na cultura ocidental – saindo do Renascimento e chegando até o século XIX –, que vimos algumas considerações acerca dos estudiosos da obra de Machado de Assis, passando por biógrafos, críticos em geral e críticos que versam especificamente sobre o tema que aqui se propôs, parece que é chegada a hora de enveredar pelo nosso próprio caminho, isto é, de seguir nossa própria proposta de leitura. No entanto, antes de efetivamente passar para a inspeção dos textos, parece pertinente, à guisa de uma conclusão parcial, esboçar uma síntese dos estudos anteriores para indicar algumas das potencialidades da figura do Diabo nos textos machadianos. Acalme-se, leitor! Não irei reescrever tudo o que você acabou de ler. O intuito agora é outro, a saber, indicar que caminhos me parecem provável é aquela que, de um lado, considera o maior número de fatos fornecidos pelo texto, inclusive suas conotações potenciais, e que, de outro, oferece uma convergência qualitativa melhor entre os traços que considera.‖ (RICτEUR, 2011, p. κ3); desta forma, o que faz a mediação entre esse ―conflito das interpretações‖, seria a abrangência da explicação que concede: seria o caso de que quanto mais, melhor. Nesse sentido, uma explicação, para que seja deveras completa, deve levar em conta tanto a materialidade do discurso – ou, para usar as palavras de Silva, o ―conteúdo explícito‖ – quanto as possibilidades hermenêuticas (literárias, históricas, políticas, sociais, filosóficas, etc.). 189 SILVA, 2017, p. 210. 190 SILVA, 2017, p. 211. 191 SILVA, 2017, p. 211. 98 os mais interessantes para efetuar essa releitura. Sabe o leitor que ainda temos pelo menos três etapas pela frente, isto é, a investigação de como Machado de Assis descreve textualmente a sua versão (ou versões) do Diabo, um estudo comparativo entre o(s) Diabo(s) machadiano(s) e alguns outros descritos pelos membros daquilo que chamei de tradição diabólica e, por fim, uma exegese dos textos a fim de explorar os possíveis sentidos para a figura do Diabo dentro dos textos machadianos. É sobre esta última que gostaria de me deter neste momento. A partir dos estudos que vimos, é possível perceber que a obra machadiana comporta uma série de leituras, e leituras das mais variadas. Às vezes, isso dá a impressão de que temos tantos Machados quanto críticos, ou seja, a impressão de que existe um Machado de Assis para cada crítico. Essa constatação não deixa de ter um fundo de verdade, pois cada autor/pesquisador vai se debruçar sobre os aspectos que mais lhe chamam atenção na obra do Bruxo e, diferentementeda matemática, quando se muda o enfoque, o resultado é outro. Assim, em minha releitura, pretendo abordar alguns aspectos que considero os mais importantes na leitura de cada um desses autores/pesquisadores. Desta forma, traço eu meu próprio Machado de Assis, um híbrido das diversas leituras que fiz para a composição deste estudo. Conforme dito mais acima192, penso, junto com Paul Ricoeur, que, embora exista uma espécie de ―conflito das interpretações‖193, a 192 Cf. nota de rodapé n.º 188. 193 Compreendo que o ―conflito das interpretações‖ abordado por Paul Ricoeur em seu livro homônimo e em diversos pontos de sua obra seja acerca das diversas correntes hermenêuticas (psicanálise, estruturalismo, fenomenologia, etc.). Para Ricoeur, todas estas correntes têm validade na medida em que dão conta de explicar determinados fenômenos que ou não são abordados por outra ou que alguma delas não dê conta de explicar. Segundo Ricoeur, não existiria – conforme teria postulado Dilthey em uma tentativa de fundamentar as ciências humanas (ou do espírito – Geisteswissenschaften) – uma diferença profunda entre compreensão (aquilo que é feito pelas ciências humanas) e a explicação (aquilo que é feito pelas ciências naturais), mas uma dialética entre compreender e explicar, pois ―a interpretação consiste precisamente na alternância de fases de compreensão com fases de explicação, ao longo de um único ‗arco hermenêutico‘.‖ (RICτEUR, 2011, p. 24), ou ainda, em outras palavras, ―se a compreensão precede, acompanha e envolve a explicação, esta em troca desenvolve analiticamente a compreensão‖ (RICτEUR, 2011, p. 26); sendo assim, uma depende da outra. Sob esse ponto de vista, para o filósofo, ―[e]xplicar mais é compreender melhor‖ (RICτEUR, 2011, p. 26). Penso que, 99 melhor interpretação que se pode oferecer de um texto é aquela que explica mais, o que, a meu ver, é feito por uma interpretação que leve em conta mais aspectos, tanto a nível do texto quanto a nível de teorias. Sendo assim, a fim de que se abra um horizonte em nossa frente, espero conseguir ser abrangente o suficiente para dar conta dos aspectos literários, filosóficos, teológicos, políticos, históricos, etc., que se pode perceber a partir dos textos que aqui vamos nos debruçar. Para dar um exemplo, podemos pensar no mais famoso deles, o conto ―A igreja do Diabo‖. Conforme vimos, o texto pode ser lido e interpretado literalmente, e isso sem que se perca a experiência estética – ou até uma parte de seu conteúdo filosófico, uma vez que o texto, conforme bem assinala Alfredo Bosi em ―A máscara e a fenda‖ é um daqueles contos-teoria que Machado tanto utilizou. Uma leitura mais imaginativa, no entanto, faz com que o texto ganhe novos contornos, novas possibilidades, o que faz com que ele permaneça vivo e dialogando com as novas gerações. Apenas para retomar algumas das possíveis interpretações sobre o conto, Afrânio Coutinho, por exemplo, vê nele um exemplo do ―conceito pascaliano da causa secreta das ações humanas‖194; John Gledson, por sua vez, vê a narrativa como ―uma adaptação da doutrina de Schopenhauer, em todo o seu vigor, ao contexto da vida cotidiana: algo que, diga-se, o próprio filósofo poderia ter compreendido, pois também era cético quanto à competência da humanidade para fazer face à realidade de sua própria natureza.‖195; Paul Dixon enxerga o Diabo, ou pelo menos sua doutrina, não apenas como ―uma alegoria do positivismo‖ mas também como uma espécie de ataque a ―programas de todos os tipos, desde que sejam gerais e pretensiosos.‖196; as professoras Vera Casa Nova e Magali Moura veem no poder de subversão e transgressão do Diabo uma forma de fazer desmoronar as verdades absolutas e com isso possibilitar reflexões que podem gerar mudanças, tanto no âmbito estético quanto no âmbito social; Isabella Moura, levando em conta os aspectos teológicos, vê no Diabo machadiano uma semelhança acentuada com aquilo que prega a tradição católica; Miriam P. M. Andrade vê no conto uma possibilidade mutatis mutandis, isto também pode se estender para interpretações acerca de determinada obra por diversos autores, uma vez que, embora às vezes sejam antagônicas entre si, elas acabam por se complementar e, com isso, enriquecem a compreensão da obra. 194 COUTINHO, 1959, p. 104. 195 GLEDSON, 1991, p. 149. 196 DIXON, 1992, p. 81. 100 de discutir uma questão que é tanto teológica quanto filosófica, isto é, a questão da liberdade; Tiago Ferreira da Silva, seguindo na linha de R. Schwarz, percebe que o conto consegue revelar aspectos históricos e políticos a partir de seu conteúdo e sua estética197. Como se pode ver, há diversas interpretações que podem ser feitas e que nem sempre concordam entre si, e isso falando de apenas um dos contos. Ao trazer e discutir essas e outras interpretações acerca dos escritos de nosso Bruxo do Cosme Velho, pretendo revisar e ampliar o ponto de vista crítico para, com isto, não apenas dar ―outro rumo‖ a elas, mas também abrir a possibilidade de desvelar novas potencialidades para a figura do Diabo, fornecendo, assim, minha pequena contribuição para a Fortuna Crítica de nosso escritor. 197 Embora o leitor possa argumentar que a maioria dessas interpretações apontadas recai mais sobre os contos de um modo geral do que sobre a personagem, é possível contra-argumentar que o Diabo é peça fundamental para todas elas, uma vez que ele funciona como a ―mola propulsora‖ do mecanismo interpretativo, tendo em vista seu protagonismo no conto. 101 3 CAPÍTULO II: Com o Diabo no corpus… ―Dir-se-á que também nos cerca o monstro e o aleijão? Mas o aleijão é necessário à harmonia das coisas; o monstro é o complemento da beleza. Os antigos, que entendiam do riscado, casaram Vênus a Vulcano; e a lenda cristã reuniu a beleza física à fealdade moral, na pessoa do anjo réprobo.‖ (Machado de Assis) No capítulo anterior, sobrevoamos nosso tema para obter um panorama tanto das representações do Diabo na cultura ocidental quanto dos apontamentos de alguns dos principais estudiosos da vida e da obra de nosso autor; com isso, vimos as possibilidades que se abrem para as interpretações de nossa personagem. Agora, portanto, é chegada a hora de dar um rasante para que vejamos mais de perto a forma pela qual Machado de Assis desenha/descreve sua versão (ou versões) do Coisa Ruim. Todavia, antes de adentrar especificamente no tema deste capítulo, é preciso esclarecer um ponto importante sobre ele, a saber, o porquê de ele estar separado da exegese que será apresentada no último capítulo. Antes de tudo é preciso lembrar que um dos objetivos propostos para esta dissertação foi observar se todas as vezes em que Machado de Assis utiliza o Diabo como uma personagem ele o caracteriza da mesma forma, isto é, se suas descrições são as mesmas, assim como Shakespeare teria feito com Falstaff198, por exemplo. Penso que, embora esse objetivo pudesse ser alcançado em conjunto com a interpretação acerca da personagem, ainda assim, poderíamos perder em clareza e, além disso, talvez alguns aspectos pudessem passar despercebidos; destarte, optei por manter a separação entre a apresentação da descrição da personagem nos textos selecionados e a interpretação de seus possíveis sentidos. Além disso, também vale lembrar que outro dos objetivos propostos foi o de tentar definir (ou pelo menos refletir) se, tendo ou não as mesmas características, o Diabo de cada um dos contos é o mesmo ou se pode ser pensado como outra personagem, embora com o mesmo nome. Em outras palavras, será o Diabo machadiano uno, múltiplo ou 198 Personagem de Henrique IV e de As alegres comadres de Windsor. 102múltiplo e comum? Adiantando um pouco as coisas, penso que as duas últimas alternativas são as mais prováveis, e a última ainda mais, caso sigamos a linha argumentativa de Luther Link, para quem o Diabo é uma máscara sem rosto, isto é, uma figura proteica que, por mais que mude de forma, continua mantendo sua ―essência‖. Outro ponto que se faz necessário explicar, uma vez que o leitor pode sentir sua falta, é acerca da ausência de discussão dos argumentos de outros autores. Neste momento, evitei trazê-la a fim de dar ênfase na materialidade do discurso machadiano. Em outras palavras, neste capítulo, embora eu também teça algumas considerações, veremos apenas a forma como o próprio Machado descreve sua personagem para que suas características sejam realçadas, uma vez que no capítulo posterior elas servirão de base para a comparação com os Diabos dos outros autores. Para finalizar este pequeno introito, vale relembrar que, neste capítulo, a divisão dos textos havia sido estabelecida por gêneros; no entanto, é possível dizer que, além disso, ela também ganhou uma sequência cronológica ao começar em 1883, com a primeira publicação de ―A igreja do Diabo‖, e terminar em 1κλλ, com a publicação de Dom Casmurro. Dito isto, vamos aos textos199. 3.1 Contos do Capeta: 3.1.1 ―Vá, pois, uma igreja...‖ – A Igreja do Diabo (1883) — Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e 199 Para facilitar aos leitores e leitoras, todos os textos estão incluídos em anexo ao final deste volume. Eles foram retirados do site <http://machado.mec.gov.br/>, que contém a obra completa de nosso escritor. Para as referências, no entanto, baseio-me na versão física das obras completas organizadas em 3 volumes por Afrânio Coutinho pela Ed. Nova Aguilar, 1994. As citações de Dom Casmurro foram retiradas do vol. I, p. 817-819; as citações de Histórias Sem Data, Várias Histórias e Páginas Recolhidas foram retiradas do vol. II, p. 369-374, p. 525-528 e p. 647-649, respectivamente; e, por fim, as citações da crônica da série intitulada Balas de Estalo foram retiradas do vol. III, p. 473-474. 103 todo o demais aparelho eclesiástico. (Machado de Assis) τ primeiro texto que veremos é o conto ―A igreja do Diabo‖, o qual foi originalmente publicado na Gazeta de Notícias em 17 de fevereiro de 1883. Ainda no mesmo ano, ele cruzou o Atlântico e chegou aos jornais portugueses, conforme relatado em carta pelo cunhado de nosso autor, o sr. Miguel de Novais200. No ano seguinte, o conto juntou-se a outros e passou a fazer parte do livro Histórias Sem Data. Para que se possa ter uma visão mais abrangente de nossa personagem, vejamos um breve resumo do que ocorre na narrativa. Neste conto, encontramos uma história (ou estória) que, de acordo com o narrador, foi retirada de um ―velho manuscrito beneditino‖. Conta tal manuscrito que, certo dia, sentindo-se ―humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada‖ e cansado de ―viver dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos‖, o Diabo resolveu criar sua própria igreja, a fim de ―combater as outras religiões‖. Logo após sua resolução, o Diabo voa do abismo até ―o infinito azul‖ para comunicá-la a Deus. Chegando ao céu, é barrado na entrada pelos serafins que engrinaldavam um ―recém- chegado‖. Deus e Diabo entabulam uma conversa, na qual este último afirma que, após a execução de seu plano recente, o céu não tardaria em ―ficar semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto‖. τ Diabo afirma, então, que pretende fundar uma igreja, por estar cansado de seu ―reinado casual e adventício‖, e assim obter uma ―vitória final e completa‖. Dito isto, o Senhor pergunta-lhe o porquê de só então essa ideia ter-lhe ocorrido. Ao que responde o Diabo ter sido somente agora que teria ―concluído uma observação, começada desde alguns séculos‖, a saber, que ―as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão‖ e que, por isso, ele se proporia agora a ―puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para a [sua] igreja‖. τ diálogo se desenrola mais um pouco e, cansado das ―ladainhas‖ de Satã, o Senhor ordena-lhe que se vá. Uma vez na terra, o Diabo se apressa em ―enfiar a cogula beneditina‖ e a ―espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século‖. Passou, então, a retificar sua imagem e a prometer ―aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, 200 Cf. MAGALHÃES JR., 2008a, p. 63. Nota de rodapé n.º 1. 104 todas as glórias, os deleites mais íntimos‖, a fim de trazer ―as multidões ao pé de si‖. σão demorou muito tempo para que conseguisse seu intento e sua previsão se verificasse, pois ―[t]odas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova‖. Vangloriando-se, o Diabo alçou brados de triunfo. Contudo, passado certo tempo, ele percebe que ―muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas.‖. Essa ―descoberta assombrou o Diabo‖, e ele passou a investigar o mal que lhe acometia. Ao comprovar sua descoberta, ―[n]ão se deteve um instante‖; e o ―pasmo‖ que isso lhe causou ―não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado‖. Em seguida, subiu rapidamente aos céus, ―trêmulo de raiva‖ e ―ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno‖. Contou sua história ao Senhor, que o ouviu com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse: — Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana. (MACHADO DE ASSIS, 1994, v. II, p. 374) Tendo visto o que ocorre na narrativa, podemos, agora, com mais facilidade, reconhecer alguns aspectos da própria personagem. No entanto, antes de chegarmos a isso, enquanto este último diálogo ainda ressoa em nossos ouvidos, gostaria de, rapidamente, tecer um comentário sobre as visões de Afrânio Coutinho e John Gledson acerca do conto. Já mencionei que, enquanto Coutinho vê neste conto ―o conceito pascaliano da causa secreta das ações humanas‖, uma vez que ―[t]odas as virtudes têm a sua ponta inicial em algum motivo inconfessável, geralmente inspirado no egoísmo, na sensualidade, no amor-próprio.‖201, e que Gledson, por sua vez, o encara como ―uma adaptação da doutrina de Schopenhauer, em todo o seu vigor, ao contexto da vida cotidiana‖, levando em conta que ―[o] Mal – ou o egoísmo – é o motor básico da maioria das ações do homem, e nada no 201 COUTINHO, 1959, p. 104. 105 conto (menos que nada, as ―virtudes‖ aparentes que tanto aborrecem o diabo) pode negá-lo.‖202. Certo, podemos enxergar o egoísmo intrínseco nas ações das pessoas enquanto ainda seguiam os preceitos divinos, a franja de algodão em capa de veludo, mas se fosse só isso, pergunto eu, por que os ―seguidores‖ do Diabo acabam, por sua vez, tentando ludibriá-lo e praticando boas ações? Compreendo que Gledson negue as ―‗virtudes‘ aparentes‖, mas, tendo em vista que as ações altruístas das pessoas chegam ao ponto de aborrecer o Diabo, me parece ser necessário levá-las em conta. Nesse sentido, penso que seria muito mais sensato um paralelo com as palavras de Fausto, no livro de Goethe, quando afirma ―Vivem-me duas almas, ah! no seio,/Querem trilhar em tudo opostas sendas;/ Uma se agarra, com sensual enleio/ É órgãos de ferro, ao mundo e à matéria;/ A outra, soltando à força o térreo freio,/ De nobres manes busca a plaga etérea.‖203. Em outras palavras, o conto me parece muito mais realçar os dois ―impulsos‖ ou as duas ―almas‖ que o homem traz em si do que essa ―causa secreta das ações‖ inspirada em Pascal ou a doutrina schopenhaueriana. Dito isto, voltemos à personagem. Em primeiro lugar, vejamos suas características físicas. No conto, lemos que ele ―sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto magnífico e varonil‖; que seus olhos, quando pensa no diálogo que terá com Deus, ficam ―acesos de ódio‖ e ―ásperos de vingança‖; que possui asas, embora não fique especificado de que tipo são, se emplumadas ou tal qual a dos morcegos; além disso, pode-se inferir que seu corpo é material, porquanto consegue vestir uma ―cogula beneditina‖. Com tais características, é possível imaginar que sua forma tende a ser humanoide, o que leva a crer que Satã não teria perdido a sua forma ―angelical‖, por assim dizer – isto se admitirmos que os anjos também possuem forma humanoide, é claro. Outro ponto que pode contribuir para a plausibilidade dessa hipótese é a ausência de uma menção de espanto nas pessoas, o que, se fosse o caso, teria provavelmente sido incluído na narrativa. Mas, deixemo-la em suspenso e prossigamos em nossa investigação. No conto, também podemos perceber uma série de atitudes e sentimentos que caracterizam a personagem. Vemos nele o sentimento de humilhação; o sentimento de cansaço, por conta de seu ―reinado casual e adventício‖; vemo-lo se gabar de possuir ―amor-próprio‖, bem como rir e sorrir ―com certo ar de escárnio e triunfo‖; vemo-lo sentindo- 202 GLEDSON, 1991, p. 149. 203 GOETHE, 1981, p. 64. 106 se, mesmo que por um instante, ―superior ao próprio Deus‖; também podemos vê-lo alçando ―brados de triunfo‖; em seguida, no capítulo final da narrativa, no momento em que percebe o desmoronar de seu plano, nós o vemos, a partir das falas do narrador, sentindo-se ―assombrado‖, ―desorientado‖, ―pasmo‖, ―trêmulo de raiva‖, ―ansioso‖ e ―agoniado‖. Todas estas atitudes e sentimentos, diga-se de passagem, são um tanto quanto humanas. Ao vê-las assim, todas juntas e seguindo a ordem em que aparecem no conto, tem-se a percepção de um movimento bastante interessante em seus ―estados de espírito‖, pois ele sai inicialmente de um sentimento de humilhação, passa pelo sentimento de triunfo e retorna novamente ao de fracasso, agora parecendo um pouco mais amargo, logo após ter saboreado o doce gosto da vitória. Embora certa imaginação seja necessária, existe a possibilidade de se traçar um paralelo entre seus sentimentos finais, quando começa a perceber sua derrota, e os cinco estágios ou as cinco fases do luto – isto é, negação, raiva, depressão, barganha e aceitação204. O paralelo é possível se tivermos em vista que, em primeiro lugar, ele não acredita no que está acontecendo e fica assombrado, desorientado e pasmo, o que poderia ser visto como a fase da negação; passa rapidamente pela raiva; sente-se ansioso e agoniado, o que poderia ser visto como a fase da depressão; vai até Deus para tentar compreender sua situação, o que, apesar de não caracterizar especificamente a barganha, pode ser interpretado como tal; a última fase, a da aceitação, não é relatada no conto, mas, tendo em vista a forma como a narrativa termina, é possível inferir que ela exista, isto é, que ele tenha aceitado sua condição. Mas, voltando aos aspectos de nossa personagem, também encontramos no conto aquilo que as próprias personagens dizem sobre ela, isto é, o que o Diabo fala sobre si, o que Deus fala acerca dele. Este último chama-lhe vulgar, acusa-lhe a falta de originalidade e o chama por duas vezes de (velho) retórico, apesar de reconhecer certa sutileza em sua fala. O Diabo, falando em relação a si mesmo, afirma ser um espírito de negação; também o vemos intitular-se como ―gênio da natureza‖, assim como chamar a atenção para a sua gentileza e airosidade205, isto é, sua nobreza ou boa feição (seria belo?); intitula-se 204 Esse paralelo só é plausível se tivermos em conta que cada indivíduo leva seu próprio tempo para passar por cada uma dessas fases, uma vez que, pelo desenrolar da narrativa, há algumas que o Diabo passa de forma assaz rápida. 205 No site da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin estão disponíveis online alguns antigos dicionários de língua portuguesa. De acordo com o 107 também como o ―verdadeiro pai‖ da humanidade, o que pode ser compreendido tanto em sentido literal, isto é, no sentido de que teria sido o Diabo o criador dos homens206, quanto em sentido figurado, ou seja, tal como quando dizemos que ―Deus é pai, não é padrasto‖, querendo sinalizar sua bondade – força é dizer que, neste conto, entre as duas alternativas, a segunda parece-me a mais plausível, tendo em vista a oferta que vem logo adiante, na qual o Diabo incita a multidão a tomar do nome que foi ―inventado para [s]eu desdouro‖ e fazer dele ―um troféu e um lábaro‖, a fim de que ele lhes dê ―tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo…‖. Se o considerarmos como tal, há ainda outra personagem cuja voz deve ser ouvida, a saber, o narrador. Além de seus comentários sobre a aparência do Diabo, o narrador também fornece algumas pistas sobre o que devemos pensar acerca de nosso personagem. Assim como o próprio Diabo o fez, o narrador também lhe atribui o epíteto de ―espírito de negação‖; sobre a sua fala para as multidões, ele explica que, embora a substância, isto é, o conteúdo daquilo que o Coisa-Ruim pregava fosse ―a que podia ser na boca de um espírito de negação‖, a forma, entretanto, ―era umas vezes sutil, outras cínica e deslavada‖, o que, em certa medida, corrobora com a acusação anteriormente feita por Deus; o narrador menciona a eloquência do Diabo e a exemplifica, dando mostras também da erudição de nosso personagem, que se utiliza de referências históricas e literárias, como Homero, Rabelais, António Diniz207, as ceias de Luculo, bem como as cartas do Abade Ferdinando Galiani208 para justificar sua nova doutrina. Vocabulário Portuguez e Latino (1728), de Raphael Bluteau, o termo ―airosamente‖ significa: ―Com modo nobre, com boa graça.‖, enquanto que o termo ―airoso‖ significa: ―τ que tem donaire, & boa graça.‖. τ Diccionário da Língua Portugueza (1789), de Antonio de Moraes Silva, acusa o advérbio ―airosamente‖ como significando: ―Com bom ar, graça, garbo. § σobre, gentilmente.‖, e o adjetivo ―airoso‖ como: ―Que tem bom ar, boa feição do rosto, e corpo, garboso, engraçado.‖. τ Diccionário da Língua Brasileira (1832), de Luiz da Silva Maria Pinto, traz o termo ―airosamente‖ significando: ―Com graça. σobremente.‖; e o termo ―airoso‖ significando: ―Que tem bom ar de corpo, bom parecer, engraçado.‖. Disponível em: <http://dicionarios.bbm.usp.br/en/dicionario/1%2C2%2C3/airoso>. Acesso em: 14 jan. 2019. 206 Que, diga-se de passagem, é exatamente o que ocorre no conto ―Adão e Eva‖. 207 António Diniz da Cruz e Silva é o autor do Hissope, citado pelo Diabo em sua argumentação. O Hissope é o ―primeiro poema ‗heroico-cômico‘ criado em 108 Mas, ao cabo de tudo, a partir daquilo que é exposto no conto, além do que já vimos, também podemos inferir certa ingenuidade em nossa personagem, uma vez que ela acaba acreditando que conseguiria atingir a ―vitória final e completa‖ sem levar em conta que seu argumento é uma via de mão dupla, isto é, que funcionam para ambos os lados, pois se as virtudes são tais como capas de veludo que rematam em franjas de algodão, os vícios, por sua vez, se mostraram como capas de algodão rematadas em franjas de veludo.3.1.2 ―Foi o Diabo que criou o mundo‖ – Adão e Eva (1885) ― Sem Contrários não há evolução. Atração e Repulsão, Razão e Energia, Amor e Ódio são necessários à existência Humana.‖ (William Blake) Portugal, gênero, hoje desaparecido, que se caracterizava por celebrar (e de igual forma satirizar) em tom épico um acontecimento sem qualquer importância, como era o presente caso. A crítica incisiva que Diniz fazia às vaidades eclesiásticas (retratando um clero ignorante, mundano e soberbo) não agradou à censura da Intendência Geral da Polícia – note-se que a Inquisição, apesar de continuar a existir, tinha perdido muita da sua força desde o tempo do Marquês de Pombal –, que proibiu a obra de ser publicada em Portugal. Contudo, não se conseguiu impedir que proliferassem e circulassem diversas cópias manuscritas.‖. Disponível em: <http://asinvasoesfrancesas.blogspot.com.br/2011/01/o-hissope-poema-heroico- comico.html>. Acesso em: 14 jan. 2019. 208 Embora existam dois Galiani famosos, o Arcebispo Celestino Galiani e o Abade Ferdinando Galiani (sobrinho do primeiro), e os dois terem sido eruditos, é bastante provável que Machado de Assis se refira a este último, uma vez que além de ter sido este a obter maior fama devido a sua magna publicação, o Della Moneta (1ι51), o Abade teve em 1κ1κ sua ―correspondência com Madame D‘Épinay, Madame σecker, Madame Geoffrin, etc…‖ publicada em francês. Pelo que pude encontrar em minhas pesquisas, no ano de 1881 saiu uma segunda edição, o que faz com que seja ainda mais provável seu conhecimento pelo nosso autor. Encontram-se na internet versões digitalizadas do livro de 1818. Ela está disponível em: <https://books.google.com.br/books?id=ad3TAAAAMAAJ&printsec=frontcove r&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false>. Acesso em: 14 jan. 2019. Sobre a versão de 1881, não consegui encontrar o livro, mas a ―prova‖ de sua existência está disponível em: <https://books.google.com.br/books?id=OnQtAAAAMAAJ&redir_esc=y>. Acesso em: 14 jan. 2019. 109 Nosso segundo conto, chamado Adão e Eva foi originalmente publicado na Gazeta de Notícias em 1º de março de 1885209, e reeditado mais tarde juntamente com outros contos no livro Várias Histórias, de 1896. Assim como fizemos anteriormente, vejamos de que forma se desenrola a narrativa para que tenhamos uma visão mais ampla da personagem. O conto se inicia com um narrador explicando que, por volta de ―mil setecentos e tanto‖, uma senhora de engenho da Bahia ofereceu a um de seus convivas, adjetivado de ―grande lambareiro‖, certo doce em particular. Ao perguntar do que seria feito o tal doce, a dona da casa o chama de ―curioso‖, o que entabula uma discussão para se saber se a curiosidade ―era masculina ou feminina‖ e ―se a responsabilidade da perda do paraíso devia caber a Eva ou a Adão‖. Ambos, homens e mulheres, acusam-se reciprocamente. Dois convivas, no entanto, permanecem calados: um deles era o juiz-de-fora, o Sr. Veloso, e o outro o Frei Bento, um carmelita, que, uma vez interrogado pela dona da casa esquiva-se de responder diretamente e afirma que apenas ―toc[a] viola‖. Quando perguntam ao Sr. Veloso, este responde que não havia matéria para opinião; porque as coisas no paraíso terrestre passaram-se de modo diferente do que está contado no primeiro livro do Pentateuco, que é apócrifo. Espanto geral, riso do carmelita que conhecia o juiz-de-fora como um dos mais piedosos sujeitos da cidade, e sabia que era também jovial e inventivo, e até amigo da pulha, uma vez que fosse curial e delicada; nas coisas graves, era gravíssimo. (MACHADO DE ASSIS, 1994, v. II, p. 525) Ao ouvir tal comentário, D. Leonor protesta e pede ao carmelita que ―faça calar o Sr. Veloso‖, ao que responde o Frei que não o faria, pois sabia que de sua boca haveria ―de sair tudo com boa significação‖. Após uma rápida discussão, o juiz-de-fora retoma a palavra e inicia sua narrativa, explicando a forma ―como as coisas se passaram‖ na criação. Segundo ele, ―[e]m primeiro lugar, não foi Deus que criou o mundo, foi o Diabo…‖. Interrompido novamente e solicitado a que não utilizasse tal nome, o sr. Veloso prossegue assim 209 Cf. MAGALHÃES JR., 2008a, p. 90. 110 — Seja o Tinhoso. Foi o Tinhoso que criou o mundo; mas Deus, que lhe leu no pensamento, deixou-lhe as mãos livres, cuidando somente de corrigir ou atenuar a obra, a fim de que ao próprio mal não ficasse a desesperança da salvação ou do benefício. E a ação divina mostrou-se logo porque, tendo o Tinhoso criado as trevas, Deus criou a luz, e assim se fez o primeiro dia. No segundo dia, em que foram criadas as águas, nasceram as tempestades e os furacões; mas as brisas da tarde baixaram do pensamento divino. No terceiro dia foi feita a terra, e brotaram dela os vegetais, mas só os vegetais sem fruto nem flor, os espinhosos, as ervas que matam como a cicuta; Deus, porém, criou as árvores frutíferas e os vegetais que nutrem ou encantam. E tendo o Tinhoso cavado abismos e cavernas na terra, Deus fez o sol, a lua e as estrelas; tal foi a obra do quarto dia. No quinto foram criados os animais da terra, da água e do ar. Chegamos ao sexto dia, e aqui peço que redobrem de atenção. Não era preciso pedi-lo; toda a mesa olhava para ele, curiosa. Veloso continuou dizendo que no sexto dia foi criado o homem, e logo depois a mulher; ambos belos, mas sem alma, que o Tinhoso não podia dar, e só com ruins instintos. Deus infundiu-lhes a alma, com um sopro, e com outro os sentimentos nobres, puros e grandes. Nem parou nisso a misericórdia divina; fez brotar um jardim de delícias, e para ali os conduziu, investindo-os na posse de tudo. Um e outro caíram aos pés do Senhor, derramando lágrimas de gratidão. "Vivereis aqui", disse-lhes o Senhor, "e comereis de todos os frutos, menos o desta árvore, que é a da ciência do Bem e do Mal‖. (MACHADO DE ASSIS, 1994, v. II, p. 525-526 – grifos meus) Quando o Diabo soube que o casal havia sido transportado para o jardim, ele ―ficou danado‖, pois ―[n]ão podia ir ao paraíso, onde tudo lhe era avesso, nem chegaria a lutar com o Senhor‖. Ao ouvir um rumor no chão, viu que era a serpente, sua filha. Ele a chama e lhe concede o 111 dom da fala; em seguida solicita a ela que vá ao tal jardim das delícias e faça com que o casal coma dos frutos da árvore da ciência do Bem e do Mal. A serpente, então, vai até o jardim, enrosca-se na tal árvore e, quando Eva ia passando, a serpe arranca um fruto e chama-lhe a atenção. A primeira mulher mostra-se indignada, mas a serpente tenta mostrar-lhe que sua obediência é cega e sem razão. Levando em conta o lirismo210 de sua fala, vale a pena trazê-la em toda a sua extensão. Diz ela o seguinte: — Néscia! Para que recusas o resplendor dos tempos? Escuta-me, faze o que te digo, e serás legião, fundarás cidades, e chamar-te-ás Cleópatra, Dido, Semíramis; darás heróis do teu ventre, e serás Cornélia; ouvirás a voz do céu, e serás Débora; cantarás e serás Safo. E um dia, se Deus quiser descer à terra, escolherá as tuas entranhas, e chamar-te-ás Maria de Nazaré. Que mais queres tu? Realeza, poesia, divindade, tudo trocas por uma estulta obediência. Nem será só isso. Toda a natureza te fará bela e mais bela. Cores das folhas verdes, cores do céu azul, vivas ou pálidas, cores da noite, hão de refletir nos teus olhos. A mesma noite, de porfia com o sol, virá brincar nos teus cabelos. Os filhos do teu seio tecerão para ti as melhores vestiduras, comporão os mais finos aromas, e as aves te darão as suas plumas, e a terra as suas flores, tudo, tudo, tudo... (MACHADO DE ASSIS, 1994, v. II, p. 527-528) Mesmo com tal discurso poético (e profético), ainda assim Eva resiste. É válido mencionar que sua resistência a esse discurso é bastanteimpressionante, se levarmos em conta a diferença entre a fala elaborada por Machado e pelo diálogo que aparece em Gênesis 3: 1-7. Além disso, conforme argumentei em outra ocasião, a carga poética do discurso da serpente não está apenas no conteúdo, mas também em sua forma. Afinal, se prestarmos bastante atenção ao discurso de nosso poético ofídio – que não é Ovídio mas tem seu talento –, perceberemos as suas aliterações sibilantes, que nos fazem lembrar os 210 Conforme bem apontado pela professora Salma Ferraz em seu mencionado artigo de 2008. 112 silvos do próprio animal. Sugerimos ao leitor que faça a experiência de ler novamente o discurso da Serpe, desta vez em voz alta marcando os ―S‘s‖ e ―Z‘s‖ que aparecem e perceba por si mesmo que até neste pequeno detalhe o nosso contista prestou bastante atenção. (PIERI, 2016, p. 66 – itálicos no original) Mas, voltemos à narrativa. Quando Adão chega, a recusa é reiterada. Vendo que o casal havia resistido bravamente, o Senhor pede que Gabriel traga-os para junto de si, para ―a eterna bem-aventurança‖. E foi assim que o casal entrou no céu, ―ao som de todas as cítaras, que uniam as suas notas em um hino aos dois egressos da criação‖. É aí que se encerra a narrativa do sr. Veloso, mas não o conto. Este último prossegue por mais algumas linhas, nas quais a conversa é retomada e – perdoe-me leitor pelo spoiler – os convivas constatam que tudo havia sido uma brincadeira, um logro de seu bem humorado narrador. (Neste momento, mesmo tendo dito que tentaria evitar discussões com a crítica, abro um parêntese para dialogar brevemente com as palavras de Afrânio Coutinho, para quem a concepção do conto possui um ―tom jansenista‖. De acordo com o crítico, vemos no conto o dualismo da explicação do mundo, o Mal, obra do Demônio, e o Bem, obra de Deus. Vemos que no mundo só há lugar para o Mal, e que devemos procurar o Céu pelo abandono dele, na contemplação, preparando a bem-aventurança futura, prêmio eterno da vida de ascetismo e renúncias. Na terra imperam vícios e maldades, uma abominação completa, a que nada empresta a nota da esperança e da piedade. (COUTINHO, 1959, p. 100 – grifo meu) Ainda segundo o autor, ―[e]ra uma ideia fixa em Machado a de que o mundo era o domínio do diabo, que regula as ações e os caracteres dos homens.‖211. Trouxe sua fala aqui, pois, força é dizer que discordo veementemente do crítico. Tanto que, com o perdão da palavra, parece que não lemos o mesmo conto ou, quiçá, que o crítico não o tenha lido por inteiro. No que tange ao dualismo entre Bem e Mal, vá lá. Mas, daí a dizer que, para Machado, ―no mundo só há lugar para o Mal‖ e que ―na 211 COUTINHO, 1959, p. 101. 113 terra imperam vícios e maldades...‖ é de um descabimento gritante. Digo isso, pois, embora os anjos, nas palavras finais da narrativa de Veloso, afirmem que a ―terra fica entregue às obras do Tinhoso‖ e às suas outras criações, Coutinho parece ter esquecido que, logo no início de sua narrativa, o sr. Veloso afirma que Deus havia tomado o cuidado ―somente de corrigir ou atenuar a obra, a fim de que ao próprio mal não ficasse a desesperança da salvação ou do benefício.‖. Além disso, mesmo que levássemos em conta somente a fala dos anjos, a terra só ficaria assim por não contar mais com o casal, pois, caso eles ficassem, tudo ocorreria de forma diversa, isto é, tal como a narrativa de Gênesis. Sendo assim, de acordo com a o conto, mesmo que a terra tenha sido criada pelo Diabo, ainda assim há nela coisas boas, uma vez que o Senhor corrigiu as obras daquele, e, além disso, fez com que o próprio casal (e sua prole) pudesse dar (e aumentar) a esperança de salvação desse mundo. Para corroborar esta interpretação, é interessante trazer a fala de Paul Dixon em seu artigo ―Adão e Eva de acordo com Eça e Machado‖212 quando explica que Machado parece interessado em uma lógica mais binária, pois em sua estória Deus cria deliciosas alternativas como melhorias editoriais. Esta visão cósmica composta de opostos balanceados é a mesma que Machado, notoriamente, oferecerá em seu romance Dom Casmurro, onde a vida é uma ópera, em que a música foi escrita pelo Diabo e o libreto por Deus. 213 (DIXON, 2016, 166 – tradução e grifos meus) Nesse sentido, conforme argumenta Dixon, ―[a] estória insiste na doçura da vida. Para seguir a lógica do relato da estória da criação, somos estimulados a reconhecer que, sim, a terra tem suas ervas 212 DIXτσ, Paul. ―Adam and Eve according to Eça and Machado.‖ Revista de Estudos Literários, vol. 6, p. 157-173, 2016. 213 σo original: ―Machado seems interested in a more binary logic, for in his story God creates delicious alternatives as editorial improvements. This cosmic vision composed of balanced opposites is the same one that Machado will famously offer in the novel Dom Casmurro, where life is an opera, in which the music has been composed by the devil and the libretto by God.‖. 114 daninhas, mas que também possui doces e agradáveis frutos.‖214. Além desse ponto, gostaria de ressaltar alguns outros. Em primeiro lugar, conforme assinalamos no tópico sobre a Fortuna Crítica, Coutinho confunde as opiniões da personagem com as do autor, atribuindo aquilo que o sr. Veloso narra àquilo que Machado de Assis, pessoa física, pensa sobre o mundo. Em segundo lugar, Coutinho parece não ter visto aquilo que acabamos de assinalar no final do parágrafo anterior ao parêntese, isto é, que o conto prossegue por mais algumas linhas e que, nelas o sr. Veloso desmente toda a sua narrativa, e, além do mais, afirma que ―nada disso aconteceu‖, e que ―se tivesse acontecido, não estaríamos aqui saboreando este doce‖. Nesse sentido, conforme aponta Paul Dixon em seu mencionado artigo sobre o conto, ―[o] magistrado é apenas um dos muitos narradores problemáticos que encontramos em Machado de Assis, que se envolve em uma versão do paradoxo do mentiroso. Essencialmente, o narrador nos diz que ele é um mentiroso, nos deixando, enquanto receptores, em uma posição impossível, onde devemos acreditar nele a fim de desacreditar nele, ou vice-versa.‖215. Em terceiro lugar, o problema levantado pelo conto não parece ser acerca da dicotomia entre Bem e Mal, mas sobre a dicotomia entre ―obediência cega‖ e ―curiosidade‖216, cuja polaridade parece estar invertida em relação à concepção cristã – sendo a ―obediência cega‖ algo ruim e a ―curiosidade‖ uma coisa boa –, uma vez que, no conto, pelo que podemos ver, o casal só alcança o Céu por obedecer cegamente àquilo que Deus lhes havia ordenado, fazendo ouvidos moucos até para as mais belas promessas da Serpe (―Realeza, 214 σo original: ―The story insists on life‟s sweetness. To follow the logic of the story‟s account of the creation, we are prodded into acknowledging that, yes, the earth has its noxious weeds, but it also has its sweet and pleasant fruits.‖ (DIXON, 2016, p. 169 – tradução minha) 215 σo original: ―The magistrate is just one of many problematic narrators found in Machado de Assis, who engage in a version of the liar paradox. Essentially, the narrator tells us that he is a liar, leaving us as receptors in an impossible position, where we must believe him in order to disbelieve him, or vice versa‖ (DIXON, 2016, p. 168 – tradução minha). 216 Vale dizer que o conto está repleto de pessoas curiosas. O conviva adjetivado de ―grande lambareiro‖, que quer saber qual é o doce; os outros convidados, que querem saber se a culpa era de Adão ou de Eva; o Frei Bento, que parece estar ávido por ouvir a narrativa do sr. Veloso; bem como o próprio leitor, parte fundamental da narrativa, que prossegue sua leitura para ver como as coisas se passam. 115 poesia, divindade, tudo trocaspor uma estulta obediência.‖), coisa que, como sabemos, na narrativa bíblica acontece de forma diversa. No conto, entretanto, a curiosidade (e, por conseguinte, a desobediência) parece(m) ser tida(s) como algo bom, pois é a partir dela(s) que nasce a humanidade e, com ela, suas benesses, tendo em vista que se alcançasse diretamente o Céu, a ―eterna bem-aventurança‖, o casal não procriaria, o que acarretaria a inexistência da humanidade, bem como a inexistência de todas as coisas boas de nosso mundo. Nesse sentido, Paul Dixon faz uma interpretação semelhante (ou seria eu que faço uma interpretação parecida com a dele?). De acordo com o autor, ―Ao eliminar o pecado original, a estória de Machado problematiza radicalmente a noção de culpabilidade, que é uma característica tão proeminente da compreensão tradicional de Gênesis. O texto parece clamar ao leitor que considere a narrativa em uma luz totalmente diferente.‖217. Conforme argumenta o autor, De acordo com os ensinamentos bíblicos, todos os humanos são descendentes de Adão e Eva. Mas, se, como o magistrado disse, os primeiros pais foram removidos da terra por sua obediência, diretamente elevados à sua recompensa celestial e escaparam do plano terrestre, onde isso deixa a raça humana? Onde de fato deixa os convidados da soirée (reunião) na estória, para não mencionar a nós enquanto leitores? Como podemos todos estar vivos e na terra, quando a terra despovoada supostamente deveria ter sido entregue aos animais ferozes e às plantas nocivas? 218 (DIXON, 2016, p. 167-168 – tradução minha) 217 σo original: ―By eliminating the original sin, Machado‟s story radically problematizes the notion of culpability, which is such a prominent feature of the traditional understanding of Genesis. The text seems to call for the reader to consider the narrative in an entirely different light.” (DIXON, 2016, p. 167 – tradução minha). 218 σo original: ―According to Biblical teachings, all humans are descendants of Adam and Eve. But if as the magistrate has said the first parents were removed from the earth for their obedience, directly elevated to their celestial reward and bypassing the terrestrial plane, where does that leave the human race? Where indeed does it leave the guests at the soirée in the story, not to mention us as readers? How can we all be alive and on earth, when the unpopulated earth was supposed to have been turned over to ferocious animals and noxious plants?”. 116 σo que tange à ―ideia fixa em Machado‖ de que ―o mundo era o domínio do diabo, que regula as ações e os caracteres dos homens‖, apontada por Coutinho, pode-se dizer que, aqui, ela se aplica somente em parte, tendo em vista que embora o mundo seja ―domínio do diabo‖, uma vez que ele mesmo o fez, não é ele, no entanto, que ―regula as ações e os caracteres dos homens‖. Tornarei a essa assertiva quando estiver falando da ―ópera‖ em Dom Casmurro. Tecidas estas considerações, podemos fechar este parêntese e voltar agora a discutir as características de nossa personagem.) Conforme assinalei em estudo anterior219, é interessante perceber que, diferentemente de ―A igreja do Diabo‖, neste conto, assim como nos Evangelhos, não encontramos uma descrição física do Diabo220, mas uma descrição de suas ações e daquilo que ele é capaz de fazer ou, melhor dizendo, de seus poderes. Aqui falo em poderes no sentido de poder criador, tal como aquele que na Bíblia221 e no Catecismo222 é imputado a Deus, isto é, o poder de criação ex nihilo, de criar a partir do nada. Ligado a isso, é preciso notar que, de forma semelhante ao conto anterior, o Diabo está relacionado a tudo que é considerado mal e nefasto, isto é, às trevas, às tempestades e furacões, aos vegetais sem fruto nem flor e que são venenosos; aos animais peçonhentos, etc. Também é válido chamar a atenção para a criação do casal, ambos criados ―sem alma, que o Tinhoso não podia dar, e só com ruins instintos.‖. Prosseguindo na narrativa, lemos que o ―Tinhoso ficou danado‖ quando soube que o casal havia sido transportado para o jardim; e, logo em seguida, temos uma constatação que considero deveras pertinente e interessante, a saber, que o Diabo ―não podia ir ao paraíso, onde tudo lhe era avesso‖, e que não ―chegaria a lutar com o Senhor‖. τra, tendo em vista que em momento algum é expresso que o Diabo seja o anjo caído que provocou a ―revolta no céu‖ e que levou seus anjos consigo ou que seja realmente o inimigo de Deus – embora, claro, as duas coisas 219 Cf. PIERI, 2016, p. 61 e ss. 220 Assim como não encontramos uma descrição física de Deus ou de Jesus em toda a Bíblia. 221 Cf. Gênesis 1. 222 De acordo com o §31κ do CATECISMτ (1λλκ, p. κ5), ―Nenhuma criatura tem o poder infinito que é necessário para „criar‟ no sentido próprio da palavra, isto é, produzir dar o ser àquilo que não o tinha de modo algum (chamar à existência „ex nihilo‟).‖. 117 possam ser inferidas levando-se em conta não apenas as narrativas bíblicas, mas todo o histórico que pesa no pensamento ocidental –; entretanto, ainda assim, gostaria de manter o foco na materialidade do discurso. Conforme já argumentei em estudo anterior, ―se pensarmos na tradição católica, o Diabo não poderia ir ao Paraíso por ordem divina, por lhe ser proibido.”223. Aqui, no entanto, não é o Senhor quem o proíbe, mas a própria aversão do Diabo, isto é, o seu próprio sentimento de contrariedade àquele lugar que o mantém de fora e o faz enviar uma emissária. Também cabe chamar a atenção para o fato, bem apontado por Ferraz (2008), de que ele e sua emissária, a serpente, diferentemente do que dá a entender o Livro do Apocalipse224 não são a mesma pessoa, mas dois seres distintos. Dito isto, passemos à suposta ou, pelo menos, pressuposta inimizade entre Deus e o Diabo. Chamo a inimizade de suposta (e abro a possibilidade de pressuposição), pois, conforme dito, em nenhum momento ela é expressa verbalmente, embora possamos observar certo antagonismo, certo contraste entre as personagens. Claro que a possibilidade existe – isto é, se novamente for levado em conta o histórico que pesa sobre o Diabo –, mas, textualmente falando, a recíproca parece não ser verdadeira, pois o que podemos observar no conto é que o Diabo, e apenas ele, parece trazer para si essa condição, uma vez que a criação, conforme narrada pelo sr. Veloso, é feita a quatro mãos, com Deus deixando as mãos do Diabo livres e ―cuidando somente de corrigir ou atenuar a obra, a fim de que ao próprio mal não ficasse a desesperança da salvação ou do benefício‖. σesse sentido, Deus aparece muito mais como ―um mestre que conserta, isto é, que corrige as falhas na obra de seu pupilo do que especificamente como seu [do Diabo] inimigo.‖225. Por fim, outro ponto a ser observado é o fato de que, aqui, o Diabo não é o ―grande inimigo da humanidade‖, o grande 223 PIERI, 2016, p. 64 – itálicos no original. 224 σo qual se lê o seguinte: ―Foi expulso o grande Dragão, a antiga serpente, o chamado Diabo ou Satanás, sedutor de toda a terra habitada — foi expulso para a terra, e seus Anjos foram expulsos com ele.‖ (Ap 12:λ – grifo meu) 225 PIERI, 2016, p. 64. Veremos adiante, quando for a vez do capítulo IX de Dom Casmurro, que, embora Deus também tenha sua parte na criação, as coisas se passam de forma diferente. 118 ―adversário‖226 dos homens, como se era de esperar. É possível perceber isso na medida em que, em primeiro lugar, a criação do casal é coisa sua, ambos criados quase que ―à sua imagem e semelhança‖ (e, posteriormente, ―melhorados‖ por Deus); em segundo lugar e em extensão ao dito, seu sentimento para com o casal é mais de posse do que de ódio ou de inveja, conforme aventam algumas das hipóteses cristãs sobre o motivo que o levou a fazer o casal cair emtentação. Assim, quando o Tinhoso enviou sua emissária para fazê-los sucumbir, sua intenção foi a de reaver o que, ―por direito‖, deveria ser seu. 3.2 Crônicas infernais: 3.2.1 Um breve caso de possessão – Crônica de 5 de outubro de 1885 ―Vi o meu corpo sentado e rindo. Parei, recuei, avancei e disse-lhe que era meu, que, se estava ocupado por alguém, esse alguém que saísse e mo restituísse.‖ (Machado de Assis) A crônica que ora veremos foi originalmente publicada na série de croniquetas da Gazeta de Notícias intitulada ―Balas de Estalo‖, na qual, conforme explica R. Magalhães Jr. , ―vários colaboradores se alternavam, sob vários pseudônimos‖227. Nessa seção da Gazeta, ainda segundo o biógrafo, Machado de Assis assinava com o pseudônimo de Lélio, ―personagem da comédia italiana naturalizado por Molière em L‟Étourdi, misto de audácia e estouvamento‖228. Além do uso do Diabo na condição de personagem e de ser praticamente um conto, devido ao seu teor narrativo, talvez o que mais chame atenção nessa crônica é o tom jocoso utilizado pelo autor para com o espiritismo, algo que acaba por se tornar comum em sua pena de cronista229. Mas, vejamos o que ele diz. 226 STN (ou Shatan) em hebraico significa ―adversário‖; diabolos, por sua vez, significa ―acusador‖ ou ―difamador‖. Para referências sobre a etimologia dos nomes de Satã, cf. nota de rodapé n. 27. 227 MAGALHÃES JR., 2008a, p. 61. 228 MAGALHÃES JR., 2008a, p. 61. 229 Pode o leitor encontrar não apenas opiniões semelhantes, mas também o mesmo tom jocoso nas seguintes crônicas: 11 de outubro de 1885 (Balas de Estalo); 19 de julho de 1888 (Bons Dias!); 7 de junho de 1889 (Bons Dias!), 29 de agosto de 1889 (Bons Dias!); 3 de julho de 1892 (A semana); 2 de outubro de 119 Ele inicia a sua crônica afirmando que os leitores não irão adivinhar onde ele estava na última sexta-feira, para, logo em seguida, afirmar que estava ―na sala da Federação Espírita Brasileira‖, onde teria ouvido uma conferência sobre o espiritismo. O cronista supõe, então, além da surpresa de seus leitores, também a surpresa do pessoal da própria Federação, que não o viu e nem o havia convidado. Ele explica o motivo de sua ida dizendo que, desde que havia lido em um artigo de um ilustre amigo seu ―a lista das pessoas eminentes que na Europa acreditam no espiritismo‖, começara a duvidar de sua própria dúvida. Assim, estando em casa, disse consigo ―dentro d‘alma, que se [lh]e fosse dado ir em espírito à sala da Federação, assistir à conferência, jurava converter-[s]e à doutrina nova.‖. Dito e feito. τ cronista, de repente, sente ―uma coisa subir-[lh]e pelas pernas acima, enquanto outra descia pela espinha abaixo‖, foi quando percebeu que estava no ar como um espírito. Então, ele voa até a sala da conferência e assiste à palestra, na qual, conforme relata o cronista, o orador combateu as religiões do passado, que têm de ser substituídas todas pelo espiritismo, e mostrou que as concepções delas não podem mais ser admitidas, por não permiti-lo a instrução do homem; tal é, por exemplo, a existência do diabo. Quando ouvi isto, acreditei deveras. Mandei o diabo ao diabo, e aceitei a doutrina nova, como a última e definitiva. (MACHADO DE ASSIS, 1994, v. III, p.473 – grifo meu) Logo após, para não ser percebido, ele sai de mansinho, pelo buraco da fechadura. Ao chegar em casa, quando vai retornar ao seu corpo, ele o vê ―sentado e rindo‖. Percebe, então, que seu corpo está ocupado e pede a quem quer que seja que o esteja ocupando que o restitua logo, e o ocupante lhe responde: — Já lhe restituo o corpo. Nem entrei nele senão para descansar um bocadinho, coisa rara, agora que ando a sós... — Mas quem é você? 1892 (A Semana); 20 de agosto de 1893 (A Semana); 20 de maio de 1894 (A Semana); 23 de setembro de 1894 (A Semana); 27 de outubro de 1895 (A Semana). 120 — Sou o diabo, para o servir. — Impossível! Você é uma concepção do passado, que o homem... — Do passado, é certo. Concepção vá ele! Lá porque estão outros no poder, e tiram-me o emprego, que não era de confiança, não é motivo para dizer-me nomes. — Mas Allan-Kardec... (MACHADO DE ASSIS, 1994, v. III, p.473-474 – grifos meus) Em seguida, o Diabo levanta-se e dirige-se à mesa, ―onde estavam as folhas do dia‖. Ele pega uma das folhas, na qual constava ―o anúncio de um medicamento novo, o rábano iodado‖ e mostra ao cronista. Este lê a declaração que consta no alto do anúncio, que dizia em letras grandes: ―σão mais óleo de fígado de bacalhau‖. Foi aí que o Diabo leu a ele ―que o rábano curava todas as doenças que o óleo de fígado já não podia curar‖, coisa, que, segundo o cronista, é a ―pretensão de todo medicamento novo‖ e pondera que talvez com isso o Diabo quisesse fazer ―alguma alusão ao espiritismo‖. Antes de o Diabo devolver-lhe o corpo, eles se despedem ―como amigos velhos‖. Conforme dito, essa crônica talvez chame mais atenção pelo que diz acerca do espiritismo do que sobre o Diabo em si, afinal, pelo teor da conversação e do parágrafo final fica patente que a intenção é discutir (e satirizar) a pretensão da ―doutrina nova‖. σo entanto, ainda assim, podemos encontrar nela algumas características atribuídas à nossa personagem. A mais chamativa é a ―espiritualidade‖ do Diabo (ou deveria dizer sua falta de materialidade?), isto é, sua capacidade de entrar no (ou de possuir o) corpo do cronista-narrador. No entanto, diferentemente do que se esperaria que acontecesse, como nos casos (comuns?) de possessão – em que a personalidade do possuído é suprimida e resta-lhe apenas a agressividade juntamente com uma espécie de loucura ou transe, além de uma força descomunal – temos aqui a situação incomum de um Diabo bastante polido e cordial conversando com o dono do corpo e pedindo-lhe um pouco de paciência, pois já irá devolvê-lo. Outra característica que se pode observar na crônica é o riso230, por três vezes mencionado, embora a última faça menção a um sorriso 230 Conforme explica George Minois em sua História do Riso e do Escárnio (2003, p. 111), o cristianismo, ―religião séria por excelência‖ – influenciado principalmente pelas concepções dos ―pais da Igreja‖ – teria visto no riso uma manifestação diabólica e uma expressão da decadência humana. Para mais 121 triste (―o diabo sorriu tristemente‖). Por fim, também é preciso perceber que, aqui, o Diabo não parece ser o ―adversário‖ de Deus, mas seu servo (ou empregado, pelo menos), uma vez que ele fala em ―perder o emprego‖. Essa concepção de que o Diabo trabalha para Deus, embora não seja nova na história do Diabo, é diferente da que vimos nos dois contos abordados anteriormente. Digo isso, pois existem algumas vertentes no pensamento e na cultura popular, não de todo contraditórias, acerca da posição do Diabo em relação a Deus e à humanidade. Uma delas é que, sendo o adversário de Deus, ele faz de tudo para afastar as pessoas da ―bem-aventurança‖ pelo simples prazer de levá-las à perdição; uma variante dessa concepção, é que o Diabo agiria dessa forma, porém, com a devida permissão de Deus para testar as pessoas, para ver se elas resistem à tentação; ainda outra concepção, uma espécie de variante desta última (ou vice-versa), é que o Diabo agiria dessa forma a mando de Deus, isto é, ele é executor da ordem divina; e, outra ainda, é que o Diabo, no inferno, pune os pecadores (embora ele mesmo também esteja sendo punido lá). Vale dizer que existe um limiar muito estreito entre todas elas, e muitas vezes elas se confundem. Nesse sentido, é interessante trazer as palavras de Espinosa, filósofo holandês seiscentista, para quem parecia absurdo imaginar um Diabo que, contra a vontade de Deus, arma ciladas e ilude muitoshomens (raramente bons, sem dúvida), os quais Deus, em consequência, entrega a esse senhor do mal para serem torturados por toda a eternidade. A justiça divina, por conseguinte, permite ao Diabo enganar os homens e permanecer impune, mas de maneira alguma permite que os homens fiquem impunes, os quais foram miseravelmente enganados e apanhados na armadilha pelo mesmo Diabo. (ESPINOSA apud LINK 1998, p. 21) Luther Link, logo em seguida, comenta que Espinosa ―indica uma característica definidora do Diabo: é a ele que Deus entrega os informações sobre o riso como manifestação diabólica, cf. o quarto capítulo – intitulado ―A Diabolização do Riso na Alta Idade Média – Jesus nunca riu‖ – do supracitado livro de Minois. 122 pecadores. Por inferência, o Diabo é usado por Deus, trabalha para Deus e, em certo sentido, não está em conflito com ele.‖231. 3.2.2 O Evangelho segundo o Diabo – O Sermão do Diabo (1892) ―σem sempre respondo por papéis velhos: mas aqui está um que parece autêntico; e, se o não é, vale pelo texto, que é substancial. É um pedaço do evangelho do Diabo, justamente um sermão da montanha, à maneira de São Mateus.‖ (Machado de Assis) σossa próxima crônica traz ―um pedaço do evangelho do Diabo, justamente um sermão da montanha, à maneira de São Mateus.‖. Originalmente publicada no jornal A Semana, no dia 4 de setembro de 1892, esta crônica foi posteriormente anexada ao livro Páginas Recolhidas, publicado em 1899. Diferentemente da crônica anterior, esta crônica não ocorre especificamente em forma de narrativa232, embora seja possível dizer que há nela duas histórias (ou estórias): a do recebimento do Sermão do Diabo pelo cronista e a de quando o Diabo se apresentou no Corcovado para trazer as ―boas novas‖ ao povo do Rio de Janeiro. Esta crônica, conforme bem observado pelas professoras Vera Casa Nova (2008) e Aurora G. R. Alvarez (2009), mostra o século XIX sob o ponto de vista de Machado de Assis, no sentido de que nos ―aforismos do sermão incluem-se probabilidades que podem e devem ser integradas num sistema conceitual. Trata-se de opiniões do narrador- autor sobre o mundo e a doxa.‖233. O que se doutrina na crônica, explica a professora Alvarez, ―é a concepção ideológica de que o sucesso ocorre devido à falta de escrúpulos, à ganância, à má-fé nos negócios; enfim, todas as qualidades que enformam o homem do mundo capitalista.‖234. No entanto, ainda nas palavras dessa professora, é preciso notar a ironia perpassando a fala desse narrador: ao mesmo tempo em que afirma não ter nada com 231 LINK, 1998, p. 21. 232 Sendo lida, inclusive, como o avesso de uma narrativa, conforme a proposta da professora Vera Casa Nova (2008). 233 CASA NOVA, 2008, p. 181. 234 ALVAREZ, 2009, p. 396. 123 tais ―papeis‖, vale-se deles para desferir a sua crítica contundente. É o jogo da ironia que começa a se articular no texto, criando uma confiabilidade de que ele, narrador, não é ―responsável‖ por aquilo que será dito, mas, ao mesmo tempo, provoca o outro, as ―almas católicas‖, com uma advertência. (ALVAREZ, 2009, p. 394) Além disso, ainda seguindo a argumentação de Alvarez, nesse sermão, ―reconstrói-se um ethos que critica o legado ideológico do homem do final do século XIX, estabelecendo um diálogo com as doutrinas do cristianismo, desvirtuado, muitas vezes, nas ações burguesas.‖235. Assim, prossegue ela um pouco adiante, ―[g]raças à ambivalência da paródia, o eu assimila a alteridade, reinventando-a, para compreender o mundo que o cerca. Dessa forma, a voz narrativa reproduz o discurso que assimila seu momento histórico, revelando o descompasso entre a retórica e as práticas da burguesia.‖236 . Em certa medida, além disso, talvez seja possível pensar no ―Sermão‖ como assinalando o momento de ruptura das relações paternalistas (muito bem apontadas por Roberto Schwarz em Ao vencedor as batatas) – isto é, baseada na escravidão e nas relações de dependência e de favor para com as classes mais baixas (tanto brancos quanto ex-escravos) –, para a lógica do capitalismo, ou seja, a lógica de exploração tanto mercantil quanto da mão-de-obra proletária. Mas, deixemos as considerações sobre a crônica de um modo geral e voltemos nossos olhos ao tema deste capítulo, isto é, a forma como o Diabo é apresentado nos escritos machadianos. Textualmente falando, nessa crônica temos poucas descrições das características da personagem. Diz-se apenas que ele, o Diabo, é ―alto‖, ―magro‖, que tem ―barbícula ao queixo‖ e que possui um ―ar de Mefistófeles‖. Embora, conforme propõe a professora Casa Nova, o sinal da cruz que o cronista diz ter feito seja uma espécie de ―gesto teatral‖237, dele é possível inferir outra característica da personagem, característica bastante presente no imaginário popular, que é a de fazer o Diabo desaparecer com um simples esboço desse sinal. Outra característica que não é explicitamente referida, mas que é possível de ser observada, seria a eloquência do Diabo que vem à luz a partir de sua retórica. 235 ALVAREZ, 2009, p. 400. 236 ALVAREZ, 2009, p. 400 – negrito no original. 237 CASA NOVA, 2008, p. 182. 124 Além disso, ao desclassificar o discurso da igreja e exaltar os pecados, conforme bem aponta a professora Casa σova, ―o discurso do Diabo tenta desclassificar a influência divina. Em seu sermão, o Diabo trabalha com a semelhança, via diferença. Ou seja, a retórica é semelhante à do Evangelho e a argumentação é diferente, por ser contrária ao que é proposto pelo discurso cristão.‖238. Nesse sentido, assim como em ―A igreja do Diabo‖, a personagem desta crônica pode ser assinalada como um espírito de negação. 3.3 Romance diabólico: 3.3.1 O mundo inteiro é um palco – Dom Casmurro. (1899) ―τ cara mais underground que eu conheço é o Diabo,// Que no inferno toca cover das canções celestiais. // Com sua banda formada só por anjos decaídos // A galera pega fogo quando rolam os festivais.‖ (Zeca Baleiro) Nosso último texto, diferentemente de todos os outros, não veio a lume sozinho, mas como parte de um dos mais discutidos romances de Machado de Assis, a saber, Dom Casmurro, publicado em 1899 pela Editora Garnier239. Trata-se aqui do nono capítulo do referido romance, o qual é intitulado ―A ópera‖. Além do fato de trazer a personagem-tema deste estudo, o capítulo é interessante na medida em que apresenta uma espécie de resumo do livro, tendo em vista que Bento Santiago, o Bentinho, aceitando a teoria do tenor Marcolini de que ―a vida é uma ópera‖, declara no capítulo XI que sua ―vida se casa muito bem à definição‖, pois começou cantando ―um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor…‖. Somos apresentados à teoria ainda no pequeno capítulo VIII, quando Bentinho resolve voltar a falar de certa tarde do mês de novembro, mencionada no terceiro capítulo. Diz ele ter sido nesse momento que principiou sua vida, pois, em suas palavras, ―tudo o que sucedera antes foi como o pintar e vestir das pessoas que tinham de entrar em cena, o acender das luzes, o preparo das rabecas, a sinfonia… 238 CASA NOVA, 2008, p. 181. 239 Segundo conta R. Magalhães Jr. (2008b), embora date de 1899, o romance só teria chegado ao Brasil em 1900 devido a um atraso na entrega. 125 Agora é que eu ia começar a minha ópera.‖. É aí que ele fecha o capítulo e começa a explicar a teoria do velho tenor italiano. Segundo Marcolini, — A vida é uma ópera e uma grande ópera. O tenor e o barítono lutam pelo soprano, em presença do baixo e dos comprimários, quando não são o soprano e o contralto que lutam pelo tenor, em presença do mesmo baixo e dos mesmos comprimários. Há coros numerosos, muitos bailados,e a orquestração é excelente... (MACHADO DE ASSIS, 1994, v. I, p. 817) Após ouvir essa explicação, o jovem Bentinho esboça uma objeção e Marcolini, aparentemente, finge não ter entendido; após beber um gole de licor, pousou o cálice e começou a expor sua versão da criação. Segundo ele, Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro, que aprendeu no conservatório do céu. Rival de Miguel, Rafael e Gabriel, não tolerava a precedência que eles tinham na distribuição dos prêmios. Pode ser também que a música em demasia doce e mística daqueles outros condiscípulos fosse aborrecível ao seu gênio essencialmente trágico. Tramou uma rebelião que foi descoberta a tempo, e ele expulso do conservatório. Tudo se teria passado sem mais nada, se Deus não houvesse escrito um libreto de ópera, do qual abrira mão, por entender que tal gênero de recreio era impróprio da sua eternidade. Satanás levou o manuscrito consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que valia mais que os outros, — e acaso para reconciliar- se com o céu, — compôs a partitura, e logo que a acabou foi levá-la ao Padre Eterno. (MACHADO DE ASSIS, 1994, v. I, p. 817-818 – grifos meus) O Senhor, entretanto, não quis ver nem ouvir a partitura. Satanás suplicou, mas sem obter sucesso. Deus, no entanto, ―cansado e cheio de misericórdia, consentiu em que a ópera fosse executada, mas fora do céu. Criou um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com todas as partes, primárias e comprimárias, coros e 126 bailarinos.‖. Apesar dos pedidos para que ouvisse alguns ensaios, o Padre Eterno, todavia, continuava impassível aos pedidos de Satanás, retorquindo que não queria saber de ensaios, que bastava-lhe ―haver composto o libreto‖ e, ainda, que estava disposto a dividir ―os direitos de autor‖. Esta recusa, segundo alguns, foi um mal, pois dela é que ―resultaram alguns desconcertos que a audiência prévia e a colaboração amiga teriam evitado.‖, tendo em vista que há momentos em que ―o verso vai para a direita e a música, para a esquerda‖, embora também haja quem diga que ―nisso mesmo está a beleza da composição, fugindo à monotonia‖. τs amigos do maestro, isto é, de Satanás, dizem que ―dificilmente se possa achar obra tão bem acabada‖; os do poeta, em contrapartida, ―[j]uram que o libreto foi sacrificado, que a partitura corrompeu o sentido da letra, e, posto que seja bonita em alguns lugares, e trabalhada com arte em outros, é absolutamente diversa e até contrária ao drama.‖, e ainda que ―[o] grotesco por exemplo, não está no texto do poeta‖. τ velho tenor, por fim, explica ainda que esta peça ―durará enquanto durar o teatro, não se podendo calcular em que tempo será ele demolido por utilidade astronômica‖ e que tanto o músico quanto o poeta ―recebem pontualmente os seus direitos autorais‖, este recebendo em ouro e aquele em papel. Antes de tratar especificamente de nossa personagem, vale a pena fazer um parêntese e chamar a atenção para certa semelhança entre o relato de Marcolini e aquele narrado pelo sr. Veloso, de ―Adão e Eva‖. O ponto de contato mais evidente seria a criação a quatro mãos, bem como a divisão no recebimento dos direitos autorais, que no caso de ―Adão e Eva‖ o Diabo fica apenas com a terra e o que há nela. É preciso perceber, no entanto, que enquanto lá, em ―Adão e Eva‖, o mundo havia sido criado pelo Diabo e ―melhorado‖ por Deus, aqui, todavia, o palco foi criado pelo próprio Deus. Chamo a atenção para este pormenor pelo fato de que enquanto em ―Adão e Eva‖ os diversos males espalhados pela criação (tempestades, furacões, ervas venenosas, etc.) são obra do Diabo, na criação narrada por Marcolini, em contrapartida, tanto o palco quanto as personagens foram criados por Deus. O que deve ser levado em conta é que, de acordo com a narrativa do tenor italiano, os possíveis problemas que aparecem no teatro, os males espalhados pela criação, seriam de responsabilidade divina, enquanto que ao Diabo, pelo que parece, caberia apenas a parte moral, conforme sugere a passagem em que o narrador explica sobre os lugares ―em que o verso vai para a direita e a música, para a esquerda‖, e fornece como exemplo o ―terceto do Éden, a ária de Abel, os coros da guilhotina e da escravidão.‖, possuindo todos eles em comum as 127 transgressões da regra de conduta. Nesse sentido, o Diabo, com sua música, seria o responsável pelas maldades cometidas pela humanidade, mas não pelas calamidades que ocorrem mundo afora. Eis que é chegado o momento de tornar às palavras de Afrânio Coutinho, mencionadas acima, quando este afirma que ―era uma ideia fixa em Machado a de que o mundo era o domínio do diabo, que regula as ações e os caracteres dos homens.‖240. Aqui, tal como em ―Adão e Eva‖, ela não se aplica completamente. Neste texto, no entanto, temos uma inversão, pois, embora o mundo não seja especificamente o ―domínio do diabo‖, aparentemente, é ele quem ―regula as ações e os caracteres dos homens‖, uma vez que, conforme dizem os partidários do poeta, a partitura teria corrompido o sentido da letra e que o grotesco não estava no texto original. Nesse sentido, John Gledson parece ter opinião semelhante, pois, segundo o autor, ―Deus escreve o libreto, ou seja, o sentido oficial e superficial da peça, ao passo que Satã, o compositor, embora jamais seja capaz de se exprimir de maneira aberta e lógica, tem, não obstante, o controle do âmago da questão, a música.‖241. Vale dizer que, segundo Gledson, a doutrina schopenhaueriana teria afetado o ―mito‖ da criação expresso por Marcolini, e, conforme explica, ―nessa filosofia, a música está muito intimamente ligada com a vontade, a ‗coisa-em-si‘, que constitui a realidade fundamental do universo, e também se identifica com a dor, o sofrimento e o egoísmo.‖242. Sendo assim, ainda consoante às palavras de Gledson, ―sob a irrisão e a frivolidade da metáfora de Marcolini, jaz, como certamente em ‗τ delírio‘, a nota mais baixa do pessimismo filosófico. Quaisquer boas intenções serão inevitavelmente distorcidas pela natureza da própria humanidade, justamente como as palavras de Deus são abafadas pela música de Satã.‖243. Não posso dizer que concordo com a asserção de que ―quaisquer boas intenções serão inevitavelmente distorcidas pela natureza da própria humanidade‖, uma vez que ela possui a pressuposição metafísica de que somos inerentemente maus. Porém, no que tange à segunda parte, sobre as palavras de Deus serem abafadas pela música de Satanás, bom, quanto a isto nada tenho a acrescentar, pois o próprio texto machadiano nos permite afirmar. Feitas estas considerações, podemos prosseguir. 240 COUTINHO, p. 101. 241 GLEDSON, 1991, p. 151 – grifo meu. 242 GLEDSON, 1991, p. 151. 243 GLEDSON, 1991, p. 152. 128 Voltando agora os olhos para aquilo que o texto diz explicitamente sobre a personagem, vale notar que, também nesta narrativa, não se diz nada acerca da aparência física de Satã, o que pode ser fruto da concisão narrativa, uma vez que fornecer essas características não faria diferença para a história de Marcolini; além disso, desta forma, cabe ao leitor imaginar sua própria concepção de Satã. Ainda assim, no entanto, encontramos algumas características fornecidas por Marcolini. Diz este último que Satanás, naquela época, era um ―jovem maestro‖; que estudou no ―conservatório do céu‖; que lá ele era ―rival de Miguel, Rafael e Gabriel‖; que possui um ―gênio essencialmente trágico‖; que ―[t]ramou uma rebelião‖ e, por conta dela, foi ―expulso do conservatório‖; que ele se considerava mais valoroso (e virtuoso) que seus rivais; que gostaria se ser readmitido no conservatório, isto é, de se reconciliar com o céu. Há ainda certas coisas que precisam de um pouco de reflexão para que sejam percebidas. Quando Marcolini menciona a rivalidade entre Satanás e os outros três, ele afirma queeste ―não tolerava a precedência que eles tinham na distribuição dos prêmios‖, e, logo em seguida, explica que sua intolerância para com os rivais poderia ser por conta de sua música demasiadamente doce e mística para ―seu gênio essencialmente trágico‖. τra, será que Satanás, assim como depois o fez Caim244, teria se sentido injustiçado com a leviana arbitrariedade divina? 244 Cf. Gênesis 4. Nesse sentido, vale mencionar uma das mais belas passagens do romance Caim, de José Saramago, na qual, logo após o assassinato de seu irmão, Deus aparece para ele e ocorre o seguinte diálogo: ―Que fizeste com o teu irmão, perguntou, e caim respondeu com outra pergunta, Era eu o guarda- costas de meu irmão, Mataste-o, Assim é, mas o primeiro culpado és tu, eu daria a vida pela vida dele se tu não tivesses destruído a minha, Quis pôr-te à prova, E tu quem és para pores à prova o que tu mesmo criaste, Sou o dono soberano de todas as coisas, E de todos os seres, dirás, mas não de mim nem da minha liberdade, Liberdade para matar, Como tu foste livre para deixar que eu matasse a abel quando estava na tua mão evitá-lo, bastaria que por um momento abandonasses a soberba da infalibilidade que partilhas com todos os outros deuses, bastaria que por um momento fosses realmente misericordioso, que aceitasses a minha oferenda com humildade, só porque não deverias atrever-te a recusá-la, os deuses, e tu como todos os outros, têm deveres para com aqueles a quem dizem ter criado, Esse discurso é sedicioso, É possível que o seja, mas garanto-te que, se eu fosse deus, todos os dias diria Abençoados sejam os que escolheram a sedição porque deles será o reino da terra, Sacrilégio, Será, mas em todo o caso nunca maior que o teu, que permitiste que abel morresse, Tu é que o mataste, Sim, é verdade, eu 129 Teria ele vislumbrado um sistema de premiações corrompido, no qual o juiz julga favoravelmente apenas ao estilo que lhe apraz? Ou será que Satanás seria apenas um mero invejoso, que, embora pudesse ser um músico aplicado, ainda assim não conseguia ser tão bom quanto os outros três? Como essas questões não podem ser respondidas a contento apenas por aquilo que o texto diz e nem sem um pouco de arbitrariedade, uma vez que ambas são igualmente possíveis e plausíveis, deixo-as em aberto. 3.4 Uno, múltiplo ou múltiplo e comum? Após observar cinco faces do Diabo na obra de nosso Bruxo do Cosme Velho, chegamos ao final deste capítulo. Cabe agora tentar responder, mesmo que parcialmente, uma das perguntas propostas no início desta dissertação, isto é, seria o diabo uno, múltiplo ou múltiplo e comum? Mesmo após a investigação, a pergunta ainda parece um pouco difícil de responder, uma vez que nem sempre contamos com descrições físicas da personagem. No entanto, farei um esforço para, pelo menos, deixar mais claro ao leitor a opinião que tenho das semelhanças e diferenças apontadas neste estudo. Vimos neste capítulo que as características do Diabo, quando descritas, nem sempre são exatamente iguais. Foi exatamente este o motivo que me levou a desconfiar de sua falta de unidade, no sentido de que ele poderia ser interpretado como diferentes personagens, apesar do nome comum. Façamos um pequeno balanço. A partir do que foi visto e levando em conta a falta de menção a algo que contradiga explicitamente, excetuando (talvez) quando aparece em forma não material e se ―apossa‖ do corpo do cronista-narrador, temos um Diabo que, aparentemente, possui uma forma humanoide, conservando sua forma angelical, por assim dizer. Além disso, embora vejamos o Diabo, tanto em ―A igreja do Diabo‖ quanto em ―τ sermão do Diabo‖, como um espírito de negação, não é possível afirmar que ele o seja nos três outros textos, apesar de demonstrar certo antagonismo em relação ao Padre Eterno. Enquanto nós o vemos fazer diferentes usos da retórica em ―A igreja do Diabo‖ e em ―τ sermão do Diabo‖ – sendo mais irônico no primeiro e mais cínico no segundo –, nos outros textos fui o braço executor, mas a sentença foi ditada por ti, O sangue que aí está não o fiz verter eu, caim podia ter escolhido entre o mal e o bem, se escolheu o mal pagará por isso, Tão ladrão é o que vai à vinha como aquele que fica a vigiar o guarda, disse caim [...]‖ (SARAMAGτ, 200λ, p. 34-35 – grifos meus) 130 nós quase não o vemos tomar a palavra para si, o que não facilita traçar uma interpretação. Outro ponto interessante, porém divergente entre os textos, é o poder criador do Diabo, o qual só consta no conto ―Adão e Eva‖, pois, mesmo que em ―A Ópera‖ os direitos autorais da criação sejam compartilhados, ao Diabo cabe apenas a parte referente à música, isto é, o andamento das personagens. Ainda outro ponto a ser observado é o papel do Diabo em relação a Deus; este ponto é importante, pois é aí que as diferenças são mais perceptíveis. Enquanto em ―A igreja do Diabo‖ nós vemos um Diabo que é inimigo de Deus e (quase que) amigo da humanidade, tentando trazer todos para si a partir das benesses que poderia lhes prover245; em ―Adão e Eva‖, por sua vez, vemos um Diabo que é, literalmente, o pai da humanidade, e que, apesar de antagônico e avesso a Deus, não é exatamente seu adversário, porquanto só haja briga se os dois lados estiverem dispostos; já na crônica de 5 de outubro de 1885, o Diabo parece ser um ex-empregado de Deus, que foi destituído de seu cargo e agora vaga pelo mundo sem ter muito o que fazer; em ―τ sermão do Diabo‖, ele aparece, realmente, não apenas como o opositor, isto é, como contrário a Deus, mas como o seu oposto, sua contraface, o outro lado da moeda; e, por fim, em ―A Ópera‖, o Diabo não era e nem se torna o oposto de Deus, ele estaria mais para uma espécie de ―gênio incompreendido e injustiçado‖, que é expulso por se rebelar contra a arbitrariedade de seu mestre, e que por fim acaba aceitando sua situação de degredo e de maestro desta grande ópera-bufa que é o mundo. Levando em conta esses aspectos, pode-se dizer que, embora encontremos algumas semelhanças, é possível dizer que não encontramos apenas um, mas alguns Diabos. Sendo assim, também é possível a afirmar que o Diabo, nos textos machadianos, é uma figura múltipla. Mas, será que ele é uma figura múltipla, no sentido de que, a cada vez, ele é alguém diferente ou será que ele é múltiplo e comum, no 245 Certo, é preciso lembrar que o Diabo faz isso com o intuito de levá-los para o inferno, mas, como não sabemos exatamente o que lá se encontra – se apenas o vazio e o exílio da presença divina cantados por Milton ou se a infinidade de torturas cantada por Dante –, não é possível dizer se ―trocamos gato por lebre‖, como diria o ditado popular. No caso de Dante estar correto, ir para o inferno não seria uma boa alternativa, mas, em caso de a visão miltoniana a correta, talvez não houvesse um problema muito grande de escolher o inferno. No entanto, ao cabo de tudo, independente de qual inferno seja o ―verdadeiro‖, tudo parece se resumir à escolha de ―sofrer aqui‖ ou ―sofrer lá‖, embora o sofrimento de ―lá‖ seja por muito mais tempo. 131 sentido de que, apesar das diferenças, tal como argumenta Luther Link, ele é ―uma máscara sem rosto‖, isto é, um ser que, apesar de sua forma proteica, mantém uma ―essência‖? Penso que, por ora, levando em conta o peso que o imaginário ocidental possui, é possível e bastante provável que a personagem seja a mesma, ou, para ser mais preciso, a mesma em ―substância‖, no sentido dado por Luther Link. Sendo assim, podemos, sem receio, chamá-lo de múltiplo e comum. Todavia, é sempre válido lembrar que embora possamos dizer que é ―o mesmo em substância‖, isto é, que se trata da mesma personagem, não podemos afirmar que seja igual, pois, assim como o Mal, ele possuivárias formas. 132 133 4 CAPÍTULO III: Machado de Assis e a tradição diabólica. ―Grandeza significa: dar direção. – Nenhum rio é por si mesmo grande e abundante; é o fato de receber e levar adiante muitos afluentes que o torna assim. O mesmo sucede com todas as grandezas do espírito.‖ (Nietzsche) Agora que vimos de que forma Machado de Assis descreve o Diabo em seus textos, podemos adentrar em nosso próximo círculo infernal. Nele, iremos encontrar o Diabo de outros grandes nomes da Literatura Ocidental, como Dante Alighieri, Gil Vicente, John Milton, Johann W. von Goethe e, mais próximo de nós, Álvares de Azevedo. O intuito deste capítulo é comparar a descrição feita pelo nosso Bruxo do Cosme Velho com a descrição feita pelos mencionados escritores. Vale lembrar que a opção por tais autores se deu tanto pelo fato de que o autor de Dom Casmurro teria conhecido (e possivelmente sido influenciado por) suas obras, quanto por eles me serem mais ―familiares‖. Segundo penso, Machado de Assis, juntamente com esses e diversos outros escritores, faz parte daquilo que chamei de tradição diabólica. Conforme mencionado, essa expressão tem a finalidade de abarcar a grande quantidade de autores/artistas da cultura ocidental cujo Diabo, de alguma forma ou em algum momento, se fez presente em sua(s) obra(s). Mas, o que me levou a falar em ―tradição diabólica‖ e por que vejo Machado de Assis inserido nessa tradição? Para responder a esta última pergunta, talvez bastasse apontar a epígrafe que encabeça este capítulo, na qual, com sua metáfora do rio e seus afluentes, Nietzsche comenta aquilo que entende por grandeza. De acordo com o filósofo, para que seja grandioso, é preciso que o pensador/escritor/artista seja alimentado por diversas fontes e que, ao fazê-lo, ele deve dar direção àquilo que traz em si. A meu ver, esse é justamente o caso de Machado de Assis, que recebeu as águas de diversos rios que compõem a cultura ocidental e a elas deu seu próprio rumo. Vale mencionar, no entanto, que nem todos os rios correm pela superfície. O que quero dizer é que embora o Diabo faça parte da cultura ocidental, seja por meio da religião cristã seja por meio das artes, ele não é muito aceito (ou lembrado) como tal. Assim, talvez seja possível continuar a metáfora e dizer que essa tradição diabólica é um rio subterrâneo que também alimenta esse imenso rio chamado cultura ocidental. Muitos, embora não todos, mergulharam nessas águas 134 profundas e de lá voltaram para nos mostrar o que viram, seja por meio de pinturas, esculturas ou escrituras, como é o caso de nosso Bruxo. Mas, deixando a metáfora um pouco de lado, voltemos à primeira pergunta – o que me levou a falar em tradição diabólica –, pois ela pode nos ajudar a esclarecer tudo. Para respondê-la, gostaria de abordar as concepções de três autores acerca daquilo que costumeiramente chamamos tradição e que me instigaram a utilizar tal expressão. Um deles foi T. S. Eliot, com seu ensaio ―Tradição e talento individual‖, de 1919. Ao comentar sobre o grande apreço que comumente se tem sobre a inovação, a individualidade de um escritor, o autor explica que somente elas não bastam, pois, caso nos aproximemos de um poeta246 sem essas pré-concepções, talvez fosse possível perceber que ―não apenas o melhor mas também as passagens mais individuais de sua obra podem ser aquelas em que os poetas mortos, seus ancestrais, revelam mais vigorosamente sua imortalidade.‖247. Como veremos, esta opinião está em consonância com a de outros autores. No entanto, é válido explicar que para Eliot a tradição ―não pode ser herdada‖, e que ―se alguém a deseja deve conquistá-la através de um grande esforço‖. Essa conquista da tradição, prossegue o autor, envolve, em primeiro lugar, o sentido histórico, que podemos considerar quase indispensável a alguém que pretenda continuar poeta depois dos vinte e cinco anos; e o sentido histórico implica a percepção, não apenas da caducidade do passado, mas de sua presença; o sentido histórico leva um homem a escrever não somente com a própria geração a que pertence em seus ossos, mas com um sentimento de que toda a literatura europeia desde Homero e, nela incluída, toda a literatura de seu próprio país têm uma existência simultânea e constituem uma ordem simultânea. (ELIOT, 1989, 38-39 – grifos meus) Vale dizer que essa conquista da tradição não tem um sentido de sobrepujá-la, de deixá-la para trás; conquistá-la significa fazer parte dela, modificar sua configuração para que nela se possa adentrar. Assim, 246 Embora Eliot o faça em um sentido mais estrito, aqui eu uso o termo ―poeta‖ em sentido lato. 247 ELIOT, 1989, 38. 135 para que faça parte da tradição, o escritor precisa estar atento não apenas ao seu tempo (às novidades) ou à sua própria individualidade (ao seu ―gênio‖), mas também ao passado, não para rejeitá-lo como algo obsoleto, mas para incorporá-lo em sua própria obra, renovando-o. Para Eliot, o que torna um escritor tradicional é esse ―sentido histórico, que é o sentido tanto do atemporal quanto do temporal e do atemporal e do temporal reunidos‖248. Em outras palavras, tanto o que é efêmero quanto o que é perene devem fazer parte dessa combinação. Conforme explica o autor, esse sentido histórico é necessário, pois, Nenhum poeta, nenhum artista, tem sua significação completa sozinho. Seu significado e a apreciação que dele fazemos constituem a apreciação de sua relação com os poetas e os artistas mortos. Não se pode estimá-lo em si; é preciso situá-lo, para contraste e comparação, entre os mortos. (ELIOT, 1989, p. 39 – grifos meus) Essa explanação sobre a tradição nos leva, quase que diretamente, a outro autor que nos fornece uma visão semelhante à de Eliot; penso aqui em Fernando Pessoa, ou melhor, em um de seus heterônimos, a saber, Ricardo Reis. Embora não a nomeie neste texto, sua concepção de tradição, além de interessante, está em consonância com a que acabamos de ver. De acordo com o heterônimo pessoano, ―Deve haver, no mais pequeno poema de um poeta, qualquer coisa por onde se note que existiu Homero.‖249, afinal, prossegue ele, A novidade, em si mesma, nada significa, se não houver nela uma relação com o que a precedeu. Nem, propriamente, há novidade sem que haja essa relação. Saibamos distinguir o novo do estranho, o que, conhecendo o conhecido, o transforma e varia, e o que aparece de fora, sem conhecimento de coisa nenhuma. Entre os escritores que descendem com novidade da velha estirpe e os que aparecem por novos por pertencer 248 ELIOT, 1989, 39. 249 PESSOA, 1996. p.393. Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996. p.393. Disponível em: <http://arquivopessoa.net/textos/2902>. Acesso em: 14 jan. 2019. 136 a uma estirpe incógnita há a mesma diferença que há entre o homem que nos dá uma sensação de novidade por frases novas que diz e o que nos dá uma sensação de novidade, por, falando mal nossa língua, nos dizer estropiadamente qualquer frase dela. (PESSOA, 1996, p.393 – grifo meu)250 Nesse sentido, é possível dizer que a grandeza de um escritor só existe por aquilo que ele traz, ou melhor, que ela só existe na medida em que o escritor renova, pelo(s) novo(s) sentido(s) que dá, aquilo que traz da tradição, ou, para voltar à metáfora nitzscheana, pela direção que ele dá às águas que carrega em si. Apenas para finalizar esta breve explanação sobre o que quero dizer quando falo em tradição e o motivo que me fez utilizar essa expressão, gostaria de trazer ainda mais um autor, o qual me chamou a atenção não apenas pela mesma ideia expressa em outras palavras, mas também pela distância que há entre ele e os dois últimos,distância esta que é tanto temporal quanto geográfica. Tal autor é ninguém menos que o próprio Machado de Assis, em sua ―Introdução‖ ao livro Harmonias Errantes (1878), de Francisco de Castro. Nessa introdução, nosso autor explica ao jovem poeta que, independente dos rumos que seguirá a nova poesia (1870-80), é importante que essa nova geração não perca de vista o que ha [de] essencial e eterno nessa expressão da alma humana. Que a evolução natural das cousas modifique as feições, a parte externa, ninguem jamais o negará; mas ha alguma cousa que liga, atravez dos seculos, Homero e lord Byron, alguma cousa inalteravel, universal e comum, que fala a todos os homens e a todos os tempos. (MACHADO DE ASSIS, 1878, p. X – grifo meu)251 Embora, assim como T. S. Eliot e Ricardo Reis, nosso escritor se referisse à poesia em um sentido mais específico, é possível ampliar o escopo para que o termo possa abranger toda a literatura, afinal, lembrando o que disse Ricardo Reis, não poderia haver novidade em literatura sem aquilo que a precedeu, isto é, não teríamos novas formas literárias, sejam elas poéticas ou romanescas, sem as formas anteriores. 250 PESSOA, 1996. p.393. 251 Mantive a grafia do original. 137 E, afinal, o que é a grande literatura, senão um enorme diálogo, uma conversa infinita entre as várias obras que foram e as que ainda serão escritas? Foi por pensar justamente nesse grande diálogo, nessa conversa infinita que acabei por falar em tradição. Vale lembrar que esta tradição é diabólica, o que, a meu ver, torna a concepção (ou a conversa) um pouco mais restrita, tornando o círculo, ainda que seja grande, mais estreito. Dito isto, penso que esteja esclarecida a inserção de Machado de Assis nessa tradição, uma vez que sua obra dialoga – seja na forma de citação (direta ou indireta), seja na forma de alusão – com inúmeras outras que também se utilizaram do Diabo como uma personagem, a exemplificar pelas que aqui veremos. Apenas para situar o leitor, vale dizer que nossa jornada neste capítulo se inicia pela descrição do Diabo dos referidos autores e finaliza com a comparação entre eles e o(s) Diabo(s) machadiano(s). Feitas essas considerações, não mais nos detenhamos neste intróito, passemos logo ao próximo tópico. 4.1 O Diabo em autores da tradição – ―Pois o demo não é de todos??!‖ ―Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! – é o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo, franco – é alta mercê que me faz: e pedir posso, encarecido. Este caso – por estúrdio que me vejam – é de minha certa importância. Tomara não fosse... Mas, não diga que o senhor, assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião compõe minha valia.‖ (Guimarães Rosa) 4.1.1 ―Lo’mperador del doloroso regno‖ – O Lúcifer de Dante. ―‗Vexilla regis prodeunt inferni verso di noi; però dinanzi mira‘, 138 disse 'l maestro mio, ‗se tu 'l discerni‘.‖252 (Dante Alighieri) O primeiro de nossos convivas deste festim diábólico é o Lúcifer de Dante. Mas, como falar acerca do ―imperador do doloroso reino‖ sem antes comentar, mesmo que de passagem, sobre o primeiro livro da Comédia dantesca? Missão praticamente impossível. Dividido em 34 cantos (ou Introdução + 33), o primeiro livro da Divina Comédia traz uma descrição, um mapeamento da geografia desse grandioso lugar, esse imenso ―nada‖, que, nas palavras de τ. M. Carpeaux (comentando sobre o julgamento ―dos leitores de todos os séculos‖), é ―a parte mais ‗interessante‘, mais humana do Cosmos dantesco‖253. É neste lugar que estão situados os mais diversos tipos de pecadores condenados pela justiça divina, ou, talvez fosse melhor dizer, pela pena galhofeira de Dante254. Vejamos, então, rapidamente de que forma o escritor florentino traça a topografia do Inferno. Antes de passar à geografia, um breve comentário sobre a obra. O poema, grosso modo, narra a passagem de Dante (a personagem) da perdição à salvação, isto é, desde uma vida cheia de vícios até o Paraíso. Ele se inicia com o poeta-personagem envolvido em uma ―selva escura‖, isto é, afastado da luz divina e imerso em pecados. Perdido nessa selva, o florentino se depara com três animais selvagens – um leopardo, um leão e uma loba255 –, os quais simbolizam três tipos de pecados: a incontinência, a violência e a fraude. Eis que, a 252 ―Vexilla regis prodeunt inferni* / pra cá, portanto tu pra frente mira‖ / Começou o mestre meu, ―e bem discerne.‖. *―As bandeiras do rei do inferno avançam‖. Traduções de Ítalo Eugênio Mauro. 253 CARPEAUX, 2011, p. 9. 254 Digo isso, pois, conforme explicam alguns de seus comentadores (e também pelas notas de rodapé do tradutor para o português), o escritor florentino teria situado diversos de seus inimigos nos mais diferentes suplícios de seu ―Inferno‖. Em seu texto ―Sobre a Divina Comédia‖, que serve de prefácio ao texto de Dante na edição utilizada para esta dissertação, Otto Maria Carpeaux afirma que ―σo fundo, a Comédia é um panfleto político como nenhum outro foi escrito, antes ou depois, uma tentativa de aprisionar nas ‗flamas cantantes das suas terzinas‘ os inimigos vitoriosos, o Papa e os seus aliados, os ‗republicanos‘ dos ‗comuni‘.‖ (CARPEAUX, 2011, p. 13) 255 Ítalo Eugênio Mauro, tradutor da edição utilizada, seguiu o original e traduziu os termos lonza, leone e lupa por onça, leão e loba. No entanto, ao traduzir fielmente os animais, perde-se o ―L‖ inicial de seus nomes, que parece ser uma alusão ao ―L‖ de Lúcifer. 139 pedido de Beatriz (a musa de Dante), Virgílio (o poeta latino), aparece para salvá-lo e guiá-lo dali até o Purgatório – limite que lhe é imposto –, ponto em que ela passa a ser sua guia. Para chegar até lá, no entanto, é necessário que os viajantes passem antes pelo Inferno. Conforme explica Ítalo Eugênio Mauro em sua ―Introdução‖, o Inferno em que eles adentram ―é constituído por uma imensa cratera escavada nas profundezas do globo terrestre na queda do corpo do anjo rebelde expulso do Paraíso.‖256. Essa imensa cratera começa perto da ―selva oscura‖ e vai se afinando até o centro da Terra. Dos portões de entrada – onde se encontra a tão famosa inscrição ―Deixai todas as esperanças, ó vós que aqui entrais‖ – até o último círculo, onde Lúcifer está localizado, o Inferno, tal como Dante o descreve, possui nove círculos e um Vestíbulo (Canto III). Este último, embora esteja situado depois dos portões infernais, fica antes do primeiro círculo, e nele estão os ―ignavos‖, aqueles que, por não terem se posicionado em vida, não pertencem nem ao Paraíso nem ao Inferno, isto é, foram rejeitados tanto por Deus quanto pelo Diabo. A partir daí, a divisão fica da seguinte forma. No 1º círculo (Canto IV) fica o Limbo, onde estão aqueles que, embora tenham sido bons em vida, não foram batizados e por isso não podem ir para o Paraíso. No 2º círculo (Canto V) fica o Vale dos Ventos, onde estão os luxuriosos. No 3º círculo (Canto VI) fica o Lago de Lama, onde estão os gulosos. No 4º círculo (Canto VII) ficam as Colinas de Rocha, onde estão os avaros e os pródigos. No 5º círculo (Cantos VII-VIII) fica o Rio Estige, onde estão os irados. Passado este círculo, chega-se à cidade de Dis/Dite (Lúcifer) onde se encontra o 6º círculo (Cantos IX-X) com o Cemitério de Fogo, no qual estão os hereges. No 7º círculo (Cantos XII-XVII) fica o Vale do Flegetonte, onde estão os violentos e bestiais; este círculo é dividido em três giros, no primeiro estão aqueles que pecaram contra o próximo (tiranos e assaltantes), no segundo os que pecaram contra si (suicidas e gastadores), e no terceiro os que pecaram contra Deus (blasfemos, sodomitas e usurários). No 8º círculo(Cantos XVIII-XXX) fica o Malebolge, onde estão os fraudadores; aqui também há uma divisão interna, sendo este círculo dividido em dez valas: na primeira estão os sedutores e rufiões; na segunda, os aduladores e lisonjeadores; na terceira, os simoníacos; na quarta, os magos e adivinhos; na quinta, os traficantes; na sexta, os hipócritas; na sétima, os ladrões; na oitava, os 256 MAURO, 2011, p. 29. Vale dizer que, com isso, Dante sugere que a queda de Lúcifer e seus anjos tenha ocorrido após a criação do mundo. 140 maus conselheiros; na nona, os cismáticos e intrigantes; e na décima, os falsários. No 9º círculo (Cantos XXXII-XXXIV), o último do Inferno, fica o Lago Cocito, um lago congelado onde estão os traidores; também aqui há uma divisão entre os danados, dispostos em quatro giros, conforme o seu pecado: no primeiro, Caína, os traidores de parentes; no segundo, Antenora, os traidores da pátria; no terceiro, Ptolomeia, os traidores de seus hóspedes; no quarto e último, Judeca (ou Giudeca), os traidores de seus benfeitores. Conforme dito, é aqui, no último giro do nono círculo (canto XXXIV), no centro da Terra, que encontramos o Diabo congelado da cintura para baixo. Vejamos agora de que forma Dante descreve ―o ser que teve tão belo semblante‖: E agora o rei do triste reino eu vejo, de meio peito do gelo montante; e mais com um gigante eu me cotejo que um braço seu co‘ um inteiro gigante; imagina o que dele é então o todo pra de tal parte não ser aberrante. Se belo foi quão feio ora é o seu modo, e contra o seu feitor ergueu a frente, só dele proceder deve o mal todo. Mas foi o meu assombro inda crescente quando três caras vi na sua cabeça: toda vermelha era a que tinha à frente, e das duas outras, cada qual egressa do meio do ombro, que em cima se ajeita de cada lado e junta-se com essa, branco-amarelo era cor da direita e, a da esquerda, a daquela gente estranha que chega de onde o Nilo ao vale deita. Um par de grandes asas acompanha cada uma, com tal ave consoantes: – vela de mar vira eu jamais tamanha – essas, sem pena, semelhavam antes às dos morcegos, e ele as abanava, assim que, co‘ os três ventos resultantes, 141 as águas do Cocito congelava. Por seis olhos chorava, e dos três mentos sangrenta baba co‘ o pranto pingava. Em cada boca um pecador, com cruentos dentes, moía à feição de gramadeira, aos três prestando, de vez seus tormentos. (ALIGHIERI, XXXIV, v. 28-57 – grifos meus) Sintetizando, o Lúcifer de Dante está congelado da cintura para baixo; ele é gigantesco e horrendo (tanto quanto um dia já fora belo); possui uma cabeça com três faces (uma branca/amarela, uma vermelha e uma preta), cada qual com um par de olhos lacrimejantes e uma boca mastigando continuamente um pecador257 (Brutus, Cássio e Judas); há também, para cada face, um imenso par de asas sem penas, tal como a dos morcegos. Antes de prosseguir, gostaria de trazer alguns comentários dos estudiosos sobre alguns pontos. Conforme explica Peter Stanford, ―[e]mbora o Inferno de Dante apresente em certos momentos algumas imagens do que eram o inferno e a danação tradicionais, o tratamento que ele dá ao Diabo era muito pouco convencional para sua época.‖258. Ainda de acordo com este autor, o fato de o Diabo estar nos ―bastidores‖ de praticamente toda a narrativa gera um ―contraste com o Satã onipresente dos púlpitos medievais‖259; além disso, quando finalmente o encontramos, ―percebe- se que dificilmente ele poderia ser equiparado com outra entidade diabólica, astuta e velhaca que está por trás de toda a histeria que ponteou a caça às bruxas.‖260. Nesse sentido, prossegue Stanford, pode- se dizer que ―o Lúcifer de Dante é um vulcão extinto, que deixa em seu lugar um vazio trágico, ou quem sabe, ele é um personagem tolo e desvalido que, em lágrimas, se tornou prisioneiro do gelo.‖261. A opinião 257 Os olhos lacrimejantes e a boca ruminante me parecem uma alusão à passagem do Evangelho segundo São Mateus, 13: 2κ. ―Lá haverá choro e ranger de dentes…‖. 258 STANFORD, 2003, p. 256. 259 STANFORD, 2003, p. 256. De acordo com o historiador Jeffrey Burton Russell, em seu Lúcifer: o Diabo na Idade Média, ―A ausência formal de Lúcifer nas grandes áreas da Comédia e do próprio Inferno indica o acordo de Dante com a teologia escolástica, limitando o papel do Diabo.‖ (RUSSELL, 2003, p. 217) 260 STANFORD, 2003, p. 256. 261 STANFORD, 2003, p. 256. 142 de Stanford faz coro à de Jeffrey Burton Russell, para quem o Diabo dantesco é ―mais patético e repulsivo do que assustador‖262. Segundo o historiador, no entanto, Dante teria apresentado um ―Lúcifer vazio, tolo e desprezível‖ a fim de mostrá-lo como ―um contraste fútil para a energia de Deus.‖263. Sua imobilidade, nesse sentido, também realça o contraste com Deus e seus anjos, uma vez que Deus, segundo a escolástica medieval, seria o equivalente ao ―primeiro motor imóvel‖ de Aristóteles; em outras palavras, enquanto Deus move o mundo mesmo estando ―imóvel‖, Satanás, por sua vez, não é capaz de fazer nada além de chorar, bater suas gigantescas asas e mastigar os três piores pecadores264. J. B. Russell dirá que ―[a] imobilidade de Satanás é o oposto da mobilidade dos anjos e dos espíritos santificados, o ódio congelado dele oposto ao amor de Deus que move o mundo‖265. Outro contraponto interessante é sua imersão no gelo, pois enquanto Jesus foi ―imergido até a cintura na água viva do Jordão‖, o Diabo, por sua vez, ―está preso até a cintura no gelo mortal, água que está morta e enterrada, distinta das águas mornas e vivas do amor de Deus‖266. Sobre a estatura do Diabo, é interessante mencionar que, de acordo com R. Muchembled (2001), ela só teria se tornado colossal a partir do século XIV. Nesse sentido, é válido lembrar que Dante provavelmente se inspirou no Juízo Final de Giotto (Figura 08), obra em que se vê um gigantesco Diabo devorador de pecadores. Para Jeffrey B. Russell, a estatura gigantesca do Diabo em Dante manifesta sua inexistência de forma ainda mais acentuada, uma vez que Satanás é uma ―grande massa de matéria moribunda.‖267. Para esclarecer esta opinião, é válido trazer outro trecho da explicação de Jeffrey B. Russell. Segundo ele, ―τ esquema neoplatônico, do qual a teologia cristã derivou em grande parte, estava em sua origem vertical e linear com o Um no topo, emanando para o Cosmos abaixo, grau através de grau; ao fundo estava hyle, matéria pura, mais longe do Um e menos real.‖268 É nesse sentido 262 RUSSELL, 2003, p. 217. 263 RUSSELL, 2003, p. 217. 264 σesse sentido, Henry A. Kelly dirá que o Lúcifer de Dante ―é uma máquina de tortura estúpida, chorosa e rancorosa, ruminando constantemente os três piores pecadores no Inferno.‖ (KELLY, 2008, p. 311). 265 RUSSELL, 2003, p. 221. 266 RUSSELL, 2003, p. 221. 267 RUSSELL, 2003, p. 217. 268 RUSSELL, 2003, p. 210 143 que, estando Satanás o mais longe possível de Deus, quanto maior a sua ―massa de matéria moribunda‖, mais ele expressa sua não existência. No que tange à sua feiura, J. B. Russell dirá que ela está ―em contraste completo à beleza de Deus (Par. 7.64-66). Por orgulho, ousou ele desafiar o seu criador, e o mergulho do céu transformou toda a sua beleza em feiura.‖269. Ainda segundo o autor, seu corpo felpudo e bestial ―enfatiza que ele é o oposto polar da razão, verdade, e espírito.‖270. Antes de passar para as representações imagéticas do Diabo dantesco, há ainda dois pontos que gostaria de comentar: eles se referem às suas três faces e suas seis asas (um par para cada face). Comecemos por estas últimas. Tal característica, comumente atribuída aos Serafins, parece indicar sua posição hierárquica antes da queda. Suas asas, no entanto, diferentemente das dos anjos, não são emplumadas, mas sempenas, como as de um morcego, o que, nas palavras de J. B. Russell, seria ―um símbolo da sua escuridão e cegueira.‖271. No que tange às suas três faces, elas parecem ser uma paródia da Santíssima Trindade e, conforme menciona J. B. Russell, numerosas teorias foram elaboradas para explicar suas três cores (branco-amarelado, vermelho e preto). A partir da análise de John Freccero, o historiador explica que as cores, provavelmente vêm da fruta amora. Tudo se inicia com uma passagem do Evangelho segundo São Lucas, no qual [...] Cristo diz que com fé profunda o bastante a pessoa poderia pedir para uma amoreira se mover e ela se moveria. Santo Ambrósio usou amoreira como um símbolo do Diabo, pois da mesma maneira que sua fruta começa branca, amadurece e fica vermelha, e então fica preta, assim o Diabo começa glorioso e branco, brilha vermelho no poder dele, e então fica preto com o pecado. (RUSSELL, 2003, p. 224) Feitas estas considerações, vejamos agora a representação de alguns artistas para ―o imperador do doloroso reino‖. A primeira delas é de Botticelli (Figura 26), a segunda de William Blake (Figura 27), e a terceira de Gustave Doré (Figura 28). É válido apontar para o leitor, desde já, que, embora sua figura ainda seja um tanto quanto bestial, a 269 RUSSELL, 2003, p. 217. 270 RUSSELL, 2003, p. 222. 271 RUSSELL, 2003, p. 221. 144 partir do século XVIII se vê uma retomada da ―humanização‖ de seu semblante. Falo em ―retomada‖ pois, segundo J. B. Russell, No século XI o Satanás é normalmente humano ou humanóide; a partir do século XI é mais provável que ele seja animal ou um monstro humano-animal; a partir do século XIV ele fica crescentemente grotesco. [...] antes do século XII ele é apresentado ocasionalmente bonito ou agradável. Ele muito raramente é feminino, mas pode se disfarçar em qualquer forma que queira. Como animal, frequentemente é mais um dragão ou uma serpente. (RUSSELL, 2003, p. 203 – grifos meus) Dito isto, passemos então às representações. Figura 26: Detalhe de Lúcifer, de Botticelli. Fonte: http://www.florenceinferno.com/wp-content/uploads/2013/09/Botticelli- divine-comedy.jpg Acesso em: 14/01/2019. 145 Figura 27: Lúcifer, William Blake. Fonte: https://www.ngv.vic.gov.au/explore/collection/work/26903/ Acesso em: 14/01/2019.272 272 Disponível em: < > . Acesso em: 14 jan. 2019. 146 Figura 28: Morada de Lúcifer, de Gustave Doré. Fonte: http://4.bp.blogspot.com/- WK7nhWqKAPI/TlS4lFKVAsI/AAAAAAAAA40/KM- iakN3JjA/s1600/Canto%2BXXXIV%2B-%2B1.jpg Acesso em: 14/01/2019. 4.1.2 Um Diabo zombeteiro – Gil Vicente e o Auto da Barca do Inferno ―À barca, à barca, boa gente, que queremos dar a vela! Chegar a ela! Chegar a ela! Muitos e de boa mente! Oh! que barca tão valente!‖ (Gil Vicente) Nosso próximo convidado para esse festim diabólico é ninguém menos que o Diabo do Auto da Barca do Inferno (1517), de Gil Vicente, autor que pode ser considerado tanto como o último dramaturgo medieval quanto como o primeiro dramaturgo moderno. Conforme apontou Francisco Achcar em sua ―Introdução‖ à referida peça, podemos considerá-lo medieval na medida em que não apenas seu coração estava voltado para a antiga sociedade medieva, a qual ele ―imaginava estável e bem regrada‖273, mas também pelo fato de que ―se manteve fiel às formas poético-dramáticas do fim da Idade Média: o 273 ACHCAR, 1999, p. 11. 147 modelo teatral do auto e os versos redondilhos‖274; no entanto, também podemos considerá-lo moderno ―pelo uso estético que faz da variedade de línguas, pela reprodução virtuosística dos diversos discursos que corriam na sociedade; pela estrutura de representação não-clássica, ‗não- aristotélica‘; pelo tom e teor de sua sátira‖275. A peça escolhida para apresentar uma de suas concepções do Diabo276 foi o mencionado Auto da Barca do Inferno, representada pela primeira vez em 1517, e publicada em 1518. Diz seu nome que se trata de um ―auto‖, mas que tipo de peça seria essa? Conforme explica João Adalberto Campato Júnior no E-dicionário de termos literários de Carlos Ceia, a definição do termo é bastante problemática, em virtude de que na Idade Média o termo era utilizado indiscriminadamente para se referir a todos os tipos de peça de teatro e ―poderia denominar uma farsa, uma moralidade, um mistério, um milagre, uma tragicomédia etc.‖277. Nesse caso, apesar dessa dificuldade de definição, o ―prefácio‖ da obra nos ajuda a entender que tipo de obra se trata, explicando que ela é um auto de moralidade. τ mesmo ―prefácio‖ também nos fornece o enredo, descrito da seguinte forma: no presente auto, se fegura* que, no ponto que** acabamos de expirar,*** chegamos supitamente**** a um rio, o qual per força havemos de passar em um de dous batéis***** que naquele porto estão, scilicet,****** um deles passa pera o Paraíso, e o outro pera o Inferno; os quais batéis tem cada um seu arrais******* na proa: o do Paraíso um Anjo, e o do Inferno um Arrais infernal e um Companheiro. (VICENTE, 1999, p. 27)278 274 ACHCAR, 1999, p. 11. 275 ACHCAR, 1999, p. 9. 276 Digo que é ―uma de suas concepções do Diabo‖, pois esta não é a única peça em que Gil Vicente se utiliza de tal personagem e, tampouco, a única forma em que ela aparece. Como exemplo, podemos trazer também o Auto da Alma, em que o Diabo é retratado mais como o tentador, isto é, aquele que faz de tudo para afastar a Alma (com maiúscula, por se tratar de uma personagem da peça) dos preceitos da religião e, consequentemente, de Deus. 277 Para uma definição acerca do vocábulo ―Auto‖, consultar o E-dicionário de termos literários, de Carlos Ceia. Disponível em: <http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/auto/>. Acesso em: 14 jan. 2019. 278 Notas da edição utilizada: * Fegura: representar figurativamente (isto é, por meio de figura, símbolo ou alegoria). ** No ponto que: no momento em que. 148 Vale mencionar que, segundo J. B. Russell, em seu Lúcifer – o Diabo na Idade Média (2003), uma das características das peças de moralidade que floresceram no século XV e início do XVI é que elas se utilizaram de sermões e literatura penitencial. Elas descreveram a tensão entre o bem e o mal na vida de um ser humano comum que faz livres escolhas morais. Todo homem começa a vida na inocência; ele cai em pecado e corrupção; com ajuda da graça se arrepende, é salvo. O Diabo está frequentemente presente no palco nas peças sobre moralidade e espreitando sempre fora do palco, porque ele é a última fonte do pecado, que nos arrasta para longe de Deus; ele pode aparecer pessoal ou indiretamente na forma de vícios ou caráter associado com os vícios. (RUSSELL, 2003, p. 238 – grifo meu) Embora esta descrição pareça se adequar mais ao Auto da Alma do que ao Auto da Barca do Inferno propriamente dito, ela é importante por nos trazer alguns pontos importantes da peça: essa ―tensão entre o bem e o mal‖, as ―livres escolhas morais‖, o contraponto entre ―a inocência‖ e ―o pecado e a corrupção‖, a questão do ―arrependimento‖ e a possibilidade de salvação, bem como a presença do Diabo. Nesta peça, no entanto, como nenhum dos pecadores se arrependeu de suas atitudes em vida, mas somente após seu encontro com o Diabo e sua condução para o Inferno, a nenhum deles é concedido o embarque no batel da salvação, com exceção do ―Parvo‖, o qual, em vida, não teria errado por malícia, conforme a fala do Anjo (v. 299-307). Mas, passemos agora à figura do Diabo, que é o motivo que nos trouxe até aqui. Gil Vicente, infelizmente, não nos legou uma descrição detalhada da figura dessa personagem, nem sequer nas didascálias de sua peça; tampouco temos como saber de que forma eram caracterizados os atoresquando a representaram em sua época. No entanto, algumas das falas das personagens e do próprio Diabo nos fornecem pistas sobre a forma pela qual ela seria apresentada, bem como algumas de suas características. *** Expirar: morrer. **** Supitamente: subitamente. ***** Batel: navio, barco. ****** Scilicet: (latim) isto é, a saber. ******* Arrais: comandante, marinheiro. 149 Uma das primeiras falas que nos fazem imaginar sua forma é a de dom Anrique (Henrique), quando este chega ao batel infernal e chama o Diabo de ―senhora‖ (v. 2λ). Este logo o corrige, afirmando ser um senhor e se colocando à disposição para levá-lo (v. 30). A partir desse início do diálogo é possível supor que, na peça, o Diabo teria feições andróginas, e que, quem sabe, talvez fosse interpretado por uma mulher, o que possivelmente realçaria a comicidade279. Outro ponto interessante é que na peça temos um Diabo poliglota, que fala português, espanhol (v. 110-111) e latim (v. 623, 642, 648-650). Há, ainda no diálogo com o fidalgo, dois pontos que não podem passar despercebidos: o fato de o Diabo rejeitar a cadeira ―que esteve na igreja‖ (v.1ι0) e que a danação se inicia na própria barca do Inferno (Cá lha darão de marfim [a cadeira],/ marchetada de dolores,/ com tais modos de lavores,/ que estará fora de si… – v. 172-175), procedimento que também será aplicado aos outros condenados. Vale mencionar que, de todos os personagens (Fidalgo, Onzeneiro, Judeu, Alcoviteira, etc.), é o Parvo Joane280 quem nos fornece mais pistas sobre a forma que o Diabo estava presente no imaginário popular. Em sua longa lista de insultos ao Diabo (v. 268- 295), o Parvo aponta recorrentes características da personagem281. Vejamos algumas delas282: ―cornudo‖, pelo fato de ter chifres; ―Pero Vinagre‖283; ―beiçudo‖; ―sapateiro da Candosa284‖; ―antrecosto [costas] 279 Vale dizer, no entanto, que, conforme explica J. B. Russell, o Diabo raramente era uma fêmea. Ele ―quase sempre é visto como masculino pela razão masculina que é a regra do inferno, como o rei do céu deve ser masculino‖, embora ele geralmente tenha sido ―assistido e sustentado por espíritos femininos a quem o folclore transforma em bruxas.‖ (RUSSELL, 2003, p. 142) 280 Forma antiga de João. 281 É preciso esclarecer que não se pode dizer com certeza que estas características sejam utilizadas na ―fantasia‖ do ator, mas, conforme dito, servem como indícios de suas características presentes no imaginário da época. 282 Quando necessário para a compreensão, acrescento as explicações paratextuais de Francisco Achcar entre colchetes. 283 ―Pero‖, aparentemente, pode ser uma corruptela de ―Pedro‖. Quanto ao ―Vinagre‖, o dicionário Priberam indica que, em sentido figurado, também serve para uma ―pessoa de modos ásperos, desabridos‖. Disponível em: <https://dicionario.priberam.org/vinagre>. Acesso em: 14 jan. 2019. 284 De acordo com o site da Freguesia de Candosa, o lugar teria sido ―um pequeno concelho medieval. [...] A 12 de Setembro de 1514, D. Manuel concedeu-lhe foral, passando a ser vila e sede de concelho entre 1514 e 1κ42.‖ Disponível em: <http://freguesiacandosa.pt/historia/>. Acesso em: 14 jan. 2019. 150 de carrapato‖; ―filho da grande aleivosa [mulher traidora, falsa]‖, talvez em alusão à Lilith, que alguns dizem ser a primeira mulher de Adão e que é comumente associada como mãe do Diabo; ―tua mulher é tinhosa [nojenta] e há de parir um sapo chentado [colocado] num guardanapo‖; ―neto de cagarrinhosa [―cagona‖, medrosa]‖; ―furta-cebola‖, isto é, ladrão barato; ―escomungado [sic] nas erguejas‖; ―Burrela285, cornudo sejas! / Toma o pão que te caío [caiu]!/ A mulher que te fugio/ pera a Ilha da Madeira!‖, versos em que, ao que tudo indica, o Diabo seria enganado por sua ―esposa‖. Para sintetizar de forma bastante geral, é possível dizer que Diabo do Auto da Barca do Inferno, tal como o Diabo da cultura e dos ritos populares, é irônico, zombeteiro e bastante loquaz. É preciso esclarecer, no entanto, que, aqui, diferentemente de outras peças e histórias (como as hagiográficas, por exemplo), ele não é ludibriado por ninguém e tampouco seria o responsável pelos fracassos e males da humanidade. Nesse sentido, pode-se dizer que seu papel está mais para um juiz ou, melhor seria dizer, um advogado de acusação286 do que para o de tentador da humanidade. Pode-se dizer, então, que sua função na peça é a de trazer à tona as mais profundas faltas de cada personagem, exibindo o que elas tentam esconder. Também vale mencionar que esse papel do Diabo como acusador das almas não é inovação de Gil Vicente, pois, nas artes plásticas, já existiam diversas representações do Diabo em disputa com Miguel sobre o peso de uma balança, o que, segundo Link, é provavelmente uma incorporação da pesagem das almas egípcia287. Para finalizar, vejamos algumas ilustrações que o Diabo vicentino recebeu. 285 Francisco Achcar traz em nota de rodapé a explicação de A. Saraiva para este termo. De acordo com os autores, o vocábulo ―parece ter origem numa cerimônia pela qual as mulheres acusadas de menos honestidade eram expostas, montadas num burro, aos apuros [vaias] dos rapazes.‖ (VICEσTE, 1λλλ, p. 42) 286 Vale lembrar que, em sua etimologia, a palavra grega diabolos também significa ―acusador‖. 287 Sobre este ponto, conferir o tópico ―A pesagem das almas‖ (p. 125-129), no terceiro capítulo (Heresia e Inferno), do livro O Diabo: a máscara sem rosto, de Luther Link. 151 Figura 29: Capa Ed. Ática. Fonte: https://http2.mlstatic.com/l1751-auto-da-barca-do-inferno-farsa-de-ins- pereira-vicente-D_NQ_NP_652411-MLB20533819814_122015-F.jpg Acesso em: 14/01/2019. Figura 30: Capa Ed. Objetivo. Fonte: https://www.portaldoslivreiros.com.br/imagens/71801/auto.jpg Acesso em: 14/01/2019. 152 Figura 31: Capa Porto Editora. Figura 32: Capa Ed. Brasiliense . Fontes: https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcSAKf09jJxSaytDXI 92vbZw-qvi7Zku8Si_taYjjEwzFvdjQi0Y Acesso em: 14/01/2019. https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcRaBQqvLpx_WiSH buVZ_xnQ0lRGqMJe5gnSPKrxlRJOMJA1hVhsog Acesso em: 14/01/2019. Figura 33: Ilustração do Diabo. Fonte: VICENTE, Gil. Autos e Farsas de Gil Vicente. São Paulo: Ed. Melhoramentos Ltda., 2014. 153 Embora não sejam traçadas a partir das características descritas no texto vicentino, trago essas diferentes ilustrações para que se perceba a diversidade de formas em que o mesmo Diabo foi representado, sendo o artista praticamente livre na hora de sua confecção. É interessante perceber que, embora o primeiro (Figura 29) possua uma face no estômago, provavelmente remetendo ao demônio da gula, e o segundo (Figura 30) seja uma criatura bestial, toda cheia de pelos, algo que lhes confere uma aparência mais ao sabor do medievo, nenhum dos dois possui chifres. No que tange aos outros três (Figuras 31, 32 e 33), é válido notar que, salvo algumas pequenas diferenças, praticamente todos possuem as mesmas características: os chifres, as asas (escondidas ou inexistentes no primeiro), a barbicha (inexistente no primeiro), o tridente (que, no segundo, parece um forcado), a cor vermelha (que, no último, por ser uma ilustração em preto e branco, não consta). 4.1.3 Melhor ser rei no inferno do que servir no céu – O Satã de John Milton Here at least We shall be free; the almighty hath not built Here for his envy, will not drive us hence: Here we may reign secure, and in my choice To reign is worth ambition though in hell: Better to reign in hell, than serve in heaven. (John Milton)288 Encontrei a definição de beleza, da minha beleza. É uma coisa apaixonada e triste [...] Não consigo imaginar a belezaonde não haja adversidade [...] É difícil para mim concluir que o tipo mais perfeito de beleza viril é Satã — ao modo de Milton. (Baudelaire)289 288 ―Aqui seremos livres; o magnânimo/ σão alçou cá a inveja, nem daqui/ σos levará. A salvo reinaremos,/ Que é digna ambição mesmo se no inferno:/ Melhor reinar no inferno que no Céu/ Servir.‖ (I, 25λ-264). Salvo quando sinalizado em contrário, utilizarei sempre a tradução de Daniel Jonas. Desta forma, para facilitar a localização das passagens citadas, utilizarei sempre os numerais romanos para os livros (I-XII) e os numerais arábicos para os versos. 289 Citado por Luther LINK, 1998, p. 192. 154 Nosso terceiro representante da tradição diabólica é ninguém menos que o Satã de Paradise Lost (1667), de John Milton. Sua presença aqui justifica-se tanto pelo aspecto singular e revolucionário que recebeu através da pena de Milton quanto pela influência que exerceu sobre a literatura (ampliando-se pela cultura) ocidental. No que tange ao primeiro ponto, penso nas palavras de P. Stanford, quando afirma que ―o que há de singular em Milton é sua poética, e também a forma inédita de retratar o Diabo. Nela esse personagem é equilibrado, crível, muitas vezes simpático, e sempre sedutor.‖290. Além disso, ainda segundo o autor, Inicialmente, o aspecto mais revolucionário do Paraíso Perdido encontra-se no papel de herói que é dado ao Diabo, como primeiro rebelde. Independente das descrenças ou suspeitas que o leitor possa ter com relação ao Diabo, para ele é quase impossível não admitir que o ser diabólico é magnífico nas mãos de Milton. Na sua pintura desse personagem não existem cascos fendidos, assim como não aparecem sinais que o identifiquem como malévolo — salvo os traços do rosto, quando realçados pela luz. (STANFORD, 2003, p. 259-260 – grifos meus) Sua influência, por sua vez, tem estreita relação com a forma dada por Milton à sua personagem. Tanto a descrição quanto a centralidade traçadas nos dois livros iniciais, fizeram com que a recepção de seus primeiros críticos (incluindo-se aí românticos como Byron, Shelley, Coleridge, etc.) o alçassem à condição de herói épico. No entanto, vale dizer que, atualmente, muitos críticos questionam tal papel para Satã no poema291, afirmando que ele não seria seu herói. Nesse sentido, vale lembrar as palavras de Luther Link quando explica que mesmo que essa interpretação seja ―errônea‖ e Milton tenha mostrado a ―cegueira moral e as imperdoáveis violações de Satã‖292, ainda assim 290 STANFORD, 2003, p. 259 – grifo meu. 291 Sobre esta discussão, cf. o interessante artigo de Fabiano Seixas Fernandes, intitulado ―τ Satã de John Milton‖, no livro O demoníaco na literatura (2012). 292 LINK, 1998, p. 191. 155 os poetas e escritores do século XIX viam Satã de outro modo. Para Coleridge, Byron, Hazlitt, e Shelley, por exemplo, o Satã heroico foi uma das maiores realizações de Milton. Para William Blake, Milton escreveu em liberdade quando escreveu sobre Satã, pois ―foi um verdadeiro poeta e do partido do Diabo sem o saber‖. O partido do Diabo era o partido da liberdade humana lutando contra uma sociedade repressiva. (LINK, 1998, p. 191 – grifos meus) Dito isto, passo a seguir a mesma linha expositiva que venho traçando, isto é, apresentarei a obra e, em seguida, teço/trago comentários sobre os traços da personagem. Dividido em XII livros (ou cantos), o poema de Milton é escrito em versos brancos e heroicos, isto é, sem rimas e em pentâmetro jâmbico293. Os versos heroicos são utilizados em virtude do tema narrado, que pede um estilo elevado; e é escrito em versos brancos, pois, de acordo com o poeta, as rimas seriam um ―complemento desnecessário ao bom poema e ao verso capaz e, enquanto ornamento, dispensável, especialmente nas obras mais longas‖294. Falando de forma bastante geral, pode-se dizer que a épica miltoniana tem como tema central a queda do primeiro casal, Adão e Eva; mas, para ser um pouco menos sintético, me parece interessante trazer o ―Argumento‖ do primeiro livro, no qual o poeta resume de que forma se inicia a trama. A citação é longa, mas além de nos fornecer um panorama mais vasto sobre a obra, ela traz alguns pontos importantes acerca da concepção de 293 Em português, o verso heróico é reconhecido pela tônica na sexta e na décima sílabas. Em inglês, no entanto, o verso heróico é o pentâmetro jâmbico, isto é, um decassílabo com sílabas alternadas entre fraco (-) e forte (/), isto é, cinco vezes de ―- /‖. Vale dizer que, embora este seja o padrão ―básico‖, ele pode ser substituído por outros ritmos — como o anapesto (- - /), o troqueu (/ -), o espondeu (/ /) ou o pírrico (- -) — a fim de fugir da monotonia causada pela eterna repetição do mesmo ritmo. Para uma discussão sobre formas de tradução para o pentâmetro jâmbico, cf. BRITTτ, Paulo Henrique. ―Padrão e desvio no pentâmetro jâmbico inglês: um problema para a tradução.‖. In: X Congresso da ABRALIC, 2006. Rio de Janeiro [Anais…]. Rio de Janeiro: UERJ, 2006. (inédito). Disponível em: <http://www.letras.puc- rio.br/media/filemanager/professores/paulo_britto/Britto%20- %20Padrao%20e%20desvio%20no%20pentametro%20jambico.pdf>. Acesso em: 14 jan. 2019. 294 MILTON, 2015, p. 27. 156 Milton sobre a queda, seja dos anjos seja do casal edênico. Diz o poeta o seguinte: Este livro propõe, primeiro em resumo, o assunto geral, a desobediência do homem, e a respectiva perda do Paraíso onde fora posto. Depois aborda a primeira causa da sua queda, a Serpente, ou antes Satanás na Serpente; o qual, rebelando-se contra Deus, e acompanhado por muitas legiões de anjos, foi por ordem de Deus expulso do Céu e lançado ao grande fosso. Ultrapassada esta ação, ocupa-se o poema com o meio das coisas, apresentando Satanás e os seus anjos agora caídos no inferno, descrito aqui não no centro (pois céu e terra ainda se dão como não criados, certamente não amaldiçoados) mas num lugar de trevas profundas, daí chamado Caos. Aqui Satanás, com os seus anjos boiando no lago de fogo, atordoados e atingidos por raios, recupera após certo tempo, como que de perplexidade, chama o seu imediato em hierarquia e dignidade e que também por perto jaz; conferenciam acerca da malograda queda. Satanás acorda todas as suas legiões, que até ali estavam igualmente aturdidas; levantam-se, seus números, ordem de batalha, os principais chefes chamados, de acordo com os ídolos conhecidos mais tarde em Canaã e nas terras adjacentes. A estes discursa Satanás, conforta- os na esperança de ainda reconquistarem o Céu, mas diz-lhes por último do novo mundo e nova criatura a serem criados, segundo uma antiga profecia ou relatos no Céu; pois que a existência de anjos era bem anterior à criação visível na opinião de muitos Pais da igreja. Para saber a veracidade desta profecia, e o que deliberar em relação a ela, recorre a um conselho pleno. O que então empreendem os seus companheiros. Subitamente surge Pandemônio, o palácio de Satanás, erguido das funduras: os infernais pares lá se sentam em conselho. (MILTON, 2015, p. 29 – grifos meus) 157 Vejamos agora alguns pontos desse resumo do Livro I. O primeiro ponto que merece atenção é que Milton apenas parece seguir de forma fiel a união entre a Serpente, da narrativa de Gênesis 3295, e Satanás, conforme feita em Apocalipse 12:9296. Na narrativa de Milton, no entanto, Satanás não é a Serpente, ele entra nela, quase que como numa ―possessão‖, e com isso consegue enganar Eva. τutro ponto que merece menção é que, enquanto Dante sugere que o Inferno esteja situado no centro da Terra, para Milton, o Inferno fica ―num lugar de trevas profundas, daí chamado Caos‖297. Além disso, vale frisar que Satanás não almeja retornar ao Céu para ser novamente subservientea Deus, mas para tomar sua posição, isto é, para ficar em seu lugar e reinar sobre todos. Ainda outro ponto interessante é que Satanás recorre a um ―conselho‖, isto é, a uma discussão entre seus pares, tanto para descobrir qual o melhor meio de atacar o Onipotente (se por confronto direto ou por artimanhas) quanto para saber quem deverá executar a dificílima tarefa de sair do Abismo para confirmar ―a veracidade da profecia‖ acerca das novas criaturas e do novo mundo que foram/serão criados, o que sugere uma espécie de organização democrática do Inferno. Feitas estas considerações, vejamos agora de que forma o poeta narra e descreve as atitudes e feições de sua personagem. Antes, porém, vale explicar o motivo pelo qual, para Milton, Satã teria caído: de acordo com o poeta, teria sido ―o orgulho‖ que ―Do Céu o expulsou, com sua hoste/ De anjos rebeldes‖ (I, 36-38). É preciso esclarecer, no entanto, que seu orgulho nasce apenas quando o Altíssimo anuncia a concepção ―daquele que declara ser seu único Filho‖298 e o nomeia como líder dos anjos299, asseverando que quem negar-lhe obediência, nega-O também e quebra a união e, uma vez assim, cairá 295 ―A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos, que Iahweh Deus tinha feito.‖ (Gênesis 3:1) 296 ―Foi expulso o grande Dragão, a antiga serpente, o chamado Diabo ou Satanás, sedutor de toda a terra habitada — foi expulso para a terra, e seus Anjos foram expulsos com ele.‖ (Apocalipse 12:9 – grifo meu) 297 ―Longe de Deus e luz celeste quanto/ Do centro três vezes aquém do polo.‖ (I, 73-ι4) Conforme explica o tradutor em nota de rodapé, ―Enquanto Homero posiciona o Hades abaixo da terra em proporcionalidade direta com a distância desta ao Céu acima, e Virgílio o Tártaro duas vezes abaixo daquela, Milton estabelece uma relação geométrica através da qual chama a atenção para a proporção numérica de Céu/terra, terra/inferno. A terra divide o intervalo entre Céu e inferno. ‗Três vezes‘ é apenas modo intensivo.‖ (MILTON, 2015, p. 39) 298 ―whom I declare/ My only Son‖ (V, 603-604). Tradução minha. 299 ―your head I him appoint‖ (V, 606). Tradução minha. 158 ―[à]s trevas exteriores, no abismo,/ Seu lar sem redenção nem fim p‘ra dores.‖300. Em outras palavras, mesmo que Satã desejasse algum tipo de ―redenção‖, o Deus miltoniano não a concederia301. Após tais declarações, Satã se considera injustiçado e resolve aliciar outros anjos para tentar tomar aquilo que acredita ser seu por direito. Nesse sentido, concordo com Luther Link quando este declara que ―τ Satã de Milton arrebata nossa imaginação porque está convencido de que ele foi injustiçado, e seu desafio a Deus é infindável.‖302 Vejamos agora algumas passagens do poema para observar de que forma Milton descreve seu anti-herói. É ainda no Livro I que encontramos a primeira descrição acerca de sua personagem. Levantando-se da queda, Satã aparece ―Soerguendo da onda a fronte e olhos/ Que chispantes ardiam, e outras partes/ De borco na corrente, ao longo e ao largo/ De muitas milhas, em tamanho porte/ Como o que chamam fábulas de monstro,/ Titânico ou gigante, [...]‖303. Um pouco mais adiante, diz o poeta que Alongado o imenso arcanjo mau/ Nos grilhões do lago folhão, não mais/ Erguera a cerviz, mas isso a vontade/ E alto favor do Céu que tudo rege/ Deixou à solta aos seus negros desígnios,/ Que p‘los recalcitrantes crimes viesse/ Sobre si maldição, ao intentar/ Mal p‘ra outros, e visse enraivecido/ Como o seu mal apenas promovera/ Um bem infindo, graça e mercê vistas/ No homem que tentou, contudo nele/ Aguda confusão, ira e vingança. (I, 209-220, p. 49 – grifos meus) Nesta passagem, conforme aponta Daniel Jonas em nota de rodapé, ―É Deus quem permite mobilidade a Satã para fora do abismo e, nessa medida, promove a tentação do Homem e o pecado do iníquo, 300 No original: ―[...] him who disobeys/ Me disobeys, breaks union, and that day/ Cast out from God and blessed vision, falls/ Into utter darkness, deep engulfed, his place/ Ordained without redemption, without end.‖ (V, 611-615). 301 Por motivos diferentes, o Deus de José Saramago em O Evangelho segundo Jesus Cristo também nega o perdão ao Diabo. Nesse sentido, talvez fosse interessante traçar uma comparação entre ambos e suas motivações. 302 LINK, 1998, p. 175. 303 I, 193-202 – grifos meus. 159 apesar de inocente em todo este processo.‖304 Seguindo a narrativa, o poeta compara a dimensão do escudo de Satã com o tamanho da Lua e diz que sua lança é semelhante a um ―alto pinho‖ (I, 2κ4-298). É preciso mencionar que, embora caído, Satã mantém sua forma e mostra todo o seu brilho de origem, apesar de ter perdido um pouco de seu esplendor (I, 591-594). Além disso, sua face agora ostenta as marcas dos trovões recebidos em batalha (I, 600-602). Ainda no primeiro livro, encontramos Satã e suas hostes explorando e forjando sua nova morada com aquilo que encontram. No segundo livro, por sua vez, vemos Satã afirmar ser o líder dos rebeldes, no início pelas leis fixas do céu, isto é, pela hierarquia existente, mas depois por seu livre arbítrio (II, 18-20). É também neste livro que vemos Satã se oferecendo para levar a cabo a missão de confirmar a profecia e colocar as novas criações em perdição. Nesse sentido, conforme aponta Fabiano S. Fernandes, devido à sua apresentação inicial, isto é, a que é feita nos dois primeiros livros é a missão de Satã que nos é inicialmente apresentada como a missão ―épica‖ do poema: desbravar um mundo novo em sua luta contra o Criador. Esta missão faz com que desempenhe papéis semelhantes aos de heróis da épica clássica: guerreiro intrépido (lembrando Aquiles ou Heitor), líder militar (como Enéias), estrategista (como Odisseu), viajante, como todos os três, e mesmo como aponta Steadman, espião e mestre dos disfarces (como Odisseu) (1976: p.269). A ira de Satã – ultrajado pela ascensão do Filho – é semelhante à de Aquiles; sua busca por um novo lar (o novo mundo) em meio ao Caos ecoa a de Enéias, e sua astúcia a de Odisseu. (FERNANDES, 2012, p. 127 – grifos meus) Não é nosso intuito comentar a narrativa miltoniana, mas é interessante perceber que a partir do terceiro livro ela muda de foco e o poeta de atitude. Enquanto nos dois primeiros livros vemos o poeta em atitude quase que favorável ao anjo caído, do terceiro em diante vemos o poeta adotar o lado de Deus e a observar Satã por outro prisma. Neste terceiro livro, é Deus quem dá o enfoque para a narrativa. Sob seu olhar, vemos Satã como um viajante bastante solitário, cruzando o caminho do 304 MILTON, 2015, p. 49. 160 Caos até a Terra – com a permissão divina, que a tudo observa –, onde encontrará o casal edênico. Uma vez na terra, Satã põe-se a lamentar sobre sua nova condição, mas logo torna ao seu rancor (IV, 32-113). Vale relembrar aquilo que foi dito no primeiro capítulo, a saber, que sua empresa, no entanto, se mostra no poema como exitosa e frustrada de antemão. Exitosa porque sabemos que ele conseguirá fazer com que o casal caia em tentação, frustrada, pois sua ação acaba criando condição tanto para a demonstração do livre arbítrio305 quanto pela expiação dos pecados do casal (e, consequentemente, da humanidade), uma vez que, enquanto Satã ainda estava a caminho, o Onipotente (e Onisciente) já sabia de tudo e discutia o destino da criação com seu Filho; para dizer de outro modo, é pelo mal executado por Satã que, em contrapartida, advém o bem feito pelo Filho. Nesta cena do diálogo entre Nume-Pai e Nume-Filho, este, ao saber o que se passa, questiona sobre a decisão de deixar que a nova criação pereça (III, 144-166), ao que o Nume-Pai responde que, para que a graça seja oferecida ao casal, é preciso que haja satisfação da justiça divina; em outras palavras, suaofensa teria sido tão grande, que o seu extermínio seria necessário para que a justiça fosse restaurada. A única saída seria encontrar alguém que fosse suficientemente nobre para responder por sua ofensa, sujeitando-se ao castigo divino. Então, o Onipotente pergunta às suas hostes celestiais se alguém gostaria de se tornar mortal para redimir tal crime (III, 168- 216), e é, como se sabe, o Nume-Filho quem se oferece para expiar o pecado do casal (III, 227-265). Encerro neste ponto a narrativa, pois não seria proveitoso ao leitor que eu a continuasse. Mas, rumando para o fim deste subcapítulo, gostaria de sintetizar as principais características que vimos e algumas outras que se encontram no poema. Vemos que, após a queda, Satã continua com seu brilho e semblante, embora obscurecido e marcado pelos raios (I, 591-594); apesar de ter sido lançado ao Abismo como punição, Deus permite a Satã se mova livremente (I, 209-220); nós o vemos como intrépido viajante (II, 466-1055); seu tamanho é, inicialmente, colossal, tanto que poderia ser comparado a um Titã ou um gigante (I, 193-202), mas, posteriormente, nós o vemos ficar cada vez 305 Embora esta fala de Deus se refira aos anjos caídos, ela também se adequa perfeitamente ao casal: ―σão livres, que cabal prova dariam/ De lealdade veraz, amor, fé firme,/ Onde só o que devem fazer fazem,/ Não o que querem? Que louvor há nisso?‖ (III, 103-106) 161 menor, a ponto de ―caber‖ dentro da Serpente (IX, 1κκ-191306); em outro ponto do poema vemos que ele é capaz de mudar de forma (ele se transforma em ―corvo-marinho‖ – IV, 196 – e, posteriormente, em neblina – IX, 70-1κι); trama sua vingança ―por fraude e mentira‖ (V, 243), menção que parece ecoar as palavras do Evangelho segundo São João 8:44307; nós o vemos como líder militar e guerreiro intrépido (VI, 188-405); engenhoso estrategista (VI, 470-514), etc. Para finalizar, vejamos algumas das ilustrações que recebeu a personagem. Figura 34: Satã encontra sua prole, Pecado e Morte, nos portões do Inferno, de John B. Medina (1688). Fonte: https://i.pinimg.com/originals/8e/3d/41/8e3d4159dda06a2636d05a5e4ddb1030.j pg Acesso em: 14/01/2019. 306 ―P‘la boca entrou-lhe o mau, e os seus instintos,/ Fronte e coração, tomando- os encheu/ Com intelecto ato; mas seu sono/ Não perturbou, à espera da manhã.‖ 307 ―Vós sois do diabo, vosso pai, e quereis realizar os desejos de vosso pai. Ele foi homicida desde o princípio e não permaneceu na verdade, porque nele não há verdade: quando ele mente, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira.‖ (Grifo meu) 162 Figura 35: Satã despertando os anjos rebeldes, de William Blake (1808). Fonte: https://i2.wp.com/www.brainpickings.org/wp- content/uploads/2014/02/blake_paradiselost_butts3.jpg?w=680&ssl=1 Acesso em: 14/01/2019. 163 Figura 36: Satã no Éden, de Gustave Doré (1866). Fonte: https://i.pinimg.com/originals/0d/f8/ac/0df8ac88e45b7299c236344e6416f46e.jp g Acesso em: 14/01/2019. 4.1.4 O gênio que sempre nega – O Mefistófeles goetheano ―Digo ao senhor: o diabo não existe, não há, e a ele eu vendi a alma... Meu medo é este. A quem vendi? Medo meu é este, meu senhor: então, a alma, a gente vende, só, é sem nenhum comprador…‖ (Guimarães Rosa) Diferentemente de todos os outros, não podemos dizer que nosso penúltimo convidado seja exatamente o Diabo; por isso, talvez fosse 164 melhor dizer que ele é um diabo308. O leitor sabe, pelo título do tópico, que estou tratando aqui do Mefistófeles do Fausto (1808309) de Goethe e que, mesmo que ele não seja ―Satã em pessoa‖, este estudo não estaria completo sem a sua presença. Digo isso, pois tanto a obra quanto a personagem são mencionadas e citadas em algumas das mais marcantes passagens dos escritos de nosso Bruxo do Cosme Velho, como a menção ao par de figuras de Fausto e Mefistófeles entalhadas em bronze na sala de Rubião, em Quincas Borba; a citação truncada de Bentinho (―Aí vindes outra vez, inquietas sombras?‖) tomada da ―Dedicatória‖ do poema (―Tornais, vós, trêmulas visões, que outrora/ Surgiram já à lânguida retina./ Tenta reter-vos minha musa agora?‖310), em Dom Casmurro; o pedido do narrador à Clara (―Cita Goethe, amiga minha, cita um verso do Fausto, adequado: Ai, duas almas no meu seio moram!‖), em Esaú e Jacó; ao comentário do Conselheiro Aires à sua irmã, no Memorial de Aires (―- Mana, você está a querer fazer comigo a aposta de Deus e de Mefistófeles; não conhece?‖), etc. A história/estória de Fausto, um mago andarilho que vende sua alma ao Diabo em troca de conhecimento, é lendária e assaz conhecida. De acordo com o historiador Henry A. Kelly, sua lenda remete à de Teófilo, uma das primeiras histórias existentes acerca de pactos com o Demônio311. Há indícios de que, para além da lenda, tenha realmente 308 Esta, pelo menos, é a forma como interpreto a personagem. É difícil afirmar com certeza, pois, diferentemente do português, em alemão todos os substantivos (comuns e próprios) se iniciam com letra maiúscula. Além disso, é possível que Goethe não fizesse uma distinção precisa entre Mefistófeles e o próprio Satã, uma vez que, em algumas passagens, Mefistófeles afirma ser o próprio Diabo, e não um diabo. Um exemplo disso é sua última fala no ―Prólogo do Céu‖, na qual se lê o seguinte: ―É, de um grande Senhor, louvável proceder/ Mostrar-se tão humano até pra com o demônio.‖ (GτETHE, 1λκ1, p. 3λ – grifo meu). σo original: ―Es ist gar hübsch von einem großen Herrn,/ So menschlich mit dem Teufel selbst zu sprechen.‖ (GτETHE, 2004, p. κ – grifo meu) 309 Esta data corresponde à publicação da primeira parte, intitulada Faust, eine Tragödie (Fausto, uma tragédia). A segunda parte, intitulada Faust. Der Tragödie zweiter Teil in fünf Akten (Fausto. Segunda parte da tragédia, em cinco atos), só apareceria em 1832. Utilizo apenas a primeira parte pelo fato de ela conter dados suficientes para a caracterização da personagem. 310 GOETHE, 1981, p. 27. 311 Tal lenda pode ser encontrada no livro de Jacopo de Varazze, a Legenda Aurea ou Lenda Dourada. De acordo com Hilário Franco Jr., na ―Apresentação‖ de sua tradução, a história seria conhecida em grego desde o século VII e teria sido traduzida para o latim no século IX. Ainda na 165 existido o ―indivíduo de nome Georg Faust, de duvidosa reputação, natural de Knittlingen.‖312, mas esta é uma questão a parte. Segundo P. Stanford, sua história teria sido inicialmente transposta para livro em 1540 por Melancton, um dos seguidores de Lutero. Décadas depois, em 1587, o tema foi retomado por Johann Spiess, em sua Historia von Dr. Fausten – livro que ficou popularmente conhecido como Faustbuch (O livro de Fausto) – e por Christopher Marlowe, em sua peça The tragical history of Doctor Faustus (A trágica história do Doutor Fausto), apresentada pela primeira vez em 1588 ou 1592. Ainda de acordo com Stanford, Goethe, em sua versão, teria dado ―um novo rumo para essa história, aproximando-a do Iluminismo da época.‖313. Além disso, também vale dizer que, tal como o Satã de Milton, ―seu Mefistófeles bebe em fontes bem diferentes da tradição cristã‖314. Mas, antes que passemos a ele, vejamos rapidamente alguns elementos da obra. τ livro, propriamente falando, é aberto com a ―Dedicatória‖ (Zueignung) e o ―Prelúdio no Teatro‖ (Vorspiel auf dem Theater), mas sua narrativa tem início com o famoso ―Prólogo no Céu‖ (Prolog im Himmel), onde os três arcanjos Rafael, Gabriel e Miguel cantam louvores acerca da criação. Mefistófeles, em um claro intertexto com os dois capítulos iniciais do Livro de Jó315, está presente entre os ―Filhos de ―Apresentação‖, o historiador/tradutorexplica sinteticamente que ―o clérigo Teófilo, através de um contrato escrito, entregou sua alma ao Diabo em troca de favores materiais, porém ao se arrepender pôde, com a ajuda da Virgem, rescindir tal contrato e salvar-se (capítulo 126, item λ)‖ (VARAZZI, 2003, p. 19). 312 THEODOR, 1981, p. 1. Para mais detalhes sobre este ponto, cf. os prefácios de Erwin Theodor e Antônio Houaiss para a tradução de Jenny Klabin Segall (Ed. Itatiaia, 1981), bem como o interessante livro de Jayme Mason, intitulado O doutor Fausto e seu pacto com o demônio: o Fausto histórico, o Fausto lendário e o Fausto literário (1989). 313 STANFORD, 2003, p. 271. 314 STANFORD, 2003, p. 271. 315 ―No dia em que os Filhos de Deus vieram se apresentar a Iahweh, entre eles veio também Satanás. Iahweh então perguntou a Satanás: "Donde vens?" — "Venho de dar uma volta pela terra, andando a esmo", respondeu Satanás. Iahweh disse a Satanás: "Reparaste no meu servo Jó? Na terra não há outro igual: é um homem íntegro e reto, que teme a Deus e se afasta do mal." Satanás respondeu a Iahweh: "É por nada que Jó teme a Deus? Porventura não levantaste um muro de proteção ao redor dele, de sua casa e de todos os seus bens? Abençoaste a obra das suas mãos e seus rebanhos cobrem toda a região. Mas estende tua mão e toca nos seus bens; eu te garanto que te lançará 166 Deus‖ e com este faz uma aposta sobre seu servo Fausto. Menciono a questão da aposta, pois o livro gira ao seu redor, uma vez que não apenas Deus e Mefistófeles fazem uma acerca do destino de Fausto, como também este aposta com Mefistófeles – vale dizer, além disso, que ambas têm a alma de Fausto como prêmio. O teor desta última aposta é o seguinte: Fausto, em sua ânsia de superar a insatisfação que sente – tanto no que tange aos seus conhecimentos quanto no que tange às sensações316 –, sustenta que Mefistófeles seria incapaz de lhe dar um momento tão gratificante, tão pleno de satisfação, que o fizesse manifestar o desejo de que aquele instante fosse eterno317. Após o ―Prólogo no Céu‖, adentramos na tragédia (ou, mais precisamente, no drama) em si, a qual, nesta primeira parte, pode-se dizer que gira em torno de três grandes eixos: i) a frustração de Fausto com sua vida; ii) a aposta (e/ou o pacto) com Mefistófeles; e iii) o ―romance‖ com Margarida (Margarette ou Gretchen). Dito isto, passemos à forma como Mefistófeles se mostra na trama. Sua primeira aparição, conforme dito, ocorre ainda no ―Prólogo no Céu‖ e ecoa o início do Livro de Jó; porém, diferentemente deste, no qual Satã parece estar em pé de igualdade com os ―Filhos de Deus‖, naquele, ele aparece ―rebaixado‖, escarnecido pelos outros anjos por não se utilizar da mesma linguagem elevada e não cantar louvores à criação. É interessante mencionar, ainda em sua primeira fala, o desdém que mostra pela humanidade e seu escárnio para com o uso pobre que ela faz da luz divina (a Razão) que lhe foi conferida. Ao que responde o maldições em rosto." Então Iahweh disse a Satanás: "Pois bem, tudo o que ele possui está em teu poder, mas não estendas tua mão contra ele." E Satanás saiu da presença de Iahweh.‖ (Jó, 1: 6-12) 316 ―Mefistófeles: Queres, sem freio ou mira estreita,/ Provar de tudo sem medida,/ Petiscar algo de fugida?/ Bem te valha, o que te deleita!/ Porém, agarra-o, sem pieguice!// Fausto: Não penso em alegrias, já to disse./ Entrego- me ao delírio, ao mais cruciante gozo,/ Ao fértil dissabor como ao ódio amoroso./ Meu peito, da ânsia do saber curado,/ A dor nenhuma fugirá do mundo,/ E o que a toda a humanidade é doado,/ Quero gozar no próprio Eu, a fundo,/ Com a alma lhe colher o vil e o mais perfeito,/ Juntar-lhe a dor e o bem estar no peito,/ E, destarte, ao seu Ser ampliar meu próprio Ser,/ E, com ela, afinal, também eu perecer.‖ (GOETHE, 1981, p. 85) 317 σo original: ―Werd‘ ich zum Augenblick sagen:/ Verweile doch! Du bist so schön!/ Dann magst du mich in Fesseln schlagen,/ Dann will ich gern zugrunde gehn!‖ (GτETHE, 2004, p. 33). σa tradução de Jenny K. Segall: ―Se vier um dia em que ao momento/ Disser: Oh, pára! és tão formoso!/ Então algema-me a contento,/ Então pereço venturoso!‖ (GτETHE, 1λκ1, p. κ3) 167 Altíssimo: ―σada mais que dizer-me tens?/ Só por queixar-te, sempre vens?/ σada, na terra, achas direito enfim?‖318; e o primeiro ―σão, Mestre! acho-o tão ruim quão sempre; vendo-o assim/ Coitados! em seu transe os homens já lamento,/ Eu próprio, até, sem gosto os atormento.‖319. Destas palavras é possível compreender duas coisas: a primeira, que Mefistófeles costuma fazer visitas ao Altíssimo (mesmo que esporádicas, conforme ele mesmo diz nos versos finais do ―Prólogo‖); a segunda, que os seres humanos se incumbem de seus próprios males, tanto que até mesmo o demônio perdeu o gosto de atormentá-los, embora ainda o faça. Também no ―Prólogo‖, sua penúltima fala nos traz uma informação interessante, na qual, já feita a aposta, Mefistófeles pede ao Altíssimo que, caso alcance o seu propósito, lhe seja permitido exaltar seu triunfo a plenos pulmões320, e que Fausto se deleite comendo poeira, ―como a Serpente, minha ilustre prima‖321. Assim, diferentemente da exegese cristã e também de Milton, Goethe descreve a Serpente como prima do Diabo, e não como sendo ele mesmo ou como mero receptáculo de Satã322. Logo abaixo, vemos uma das ilustrações de E. Delacroix para a obra de Goethe (Figura 37). Um detalhe interessante nela é que Mefistófeles, diferentemente da concepção que desde Dante vem sendo propagada, tem asas de anjo, emplumadas, e não de morcego. A próxima aparição de Mefistófeles ocorre na cena em que Fausto e Wagner, seu discípulo (ou orientando, como diríamos hoje), estão dando um passeio pela cidade e percebem um ―cão negro a errar 318 GOETHE, 1981, p. 36. 319 GOETHE, 1981, p. 37. 320 Que vai ecoar em Machado de Assis no conto ―A igreja do Diabo‖, quando o narrador afirma que ―τ Diabo alçou brados de triunfo.‖. 321 GOETHE, 1λκ1, p. 3κ. σo original: ―Wenn ich zu meinem Zweck gelange,/ Erlaubt Ihr mir Triumph aus voller Brust./ Staub soll er fressen, und mit Lust,/ Wie meine Muhme, die berühmte Schlange.‖ (GOETHE, 2004, p. 8 – grifo meu). O que, traduzindo ao pé da letra fica assim: ―Se meu objetivo for alcançado,/ Permita Vós que meu triunfo a viva voz seja exaltado./ Pó deveria ele comer, e com deleite,/ Como minha prima, a ilustre (ou célebre) Serpente.‖.Vale mencionar que, mais adiante, na cena em que, usando a aparência de Fausto, Mefistófeles conversa com um Estudante que veio pedir conselhos, ele repete a afirmação de que a Serpente é sua prima. 322 Torno a dizer que não há como saber se Goethe faz, efetivamente, uma distinção entre Mefistófeles e Satã. No entanto, ao chamá-la de ―prima‖ (Muhme), Mefistófeles parece excluir a possibilidade de que ela seja Satã. 168 pelo restolho e seara‖323, que está a rondá-los (Figura 38). Fausto desconfia do perro, mas Wagner o dissuade da ideia e eles logo chamam-no para perto. Figura 37: Mefistófeles voando sobre Wittenberg, de E. Delacroix (1828). Fonte: http://cdn8.openculture.com/wp-content/uploads/2015/06/faust- princeton.jpg Acesso em: 14/01/2019. 323 GOETHE, 1981, p. 65. 169 Figura 38: Wagner, Fausto e o cão negro, de Delacroix. Fonte: http://4.bp.blogspot.com/-- Q4xbJQ6MAc/TxSXu_nKrjI/AAAAAAAACug/4LrihSFt5ZM/s1600/faust.wag ner.meph.jpg Acesso em: 14/01/2019. σa cena seguinte, Fausto está retornando ao seu ―gabinete‖ com o cão junto a si. Uma vez lá, Fausto passa a discorrer sobre seu atual estado de espírito324 e o animal a farejar o aposento, tão agitado que chega a incomodar o doutor. Ele manda que o perro se cale e começa a trabalhar na tradução do Evangelho segundo São João, quando, de repente,o cão começa a uivar e a ganir. Fausto manda que ele se vá, mas algo espantoso acontece. Eis sua fala: Mas que me surge à vista?/ Não é possível que isso exista!/ Meu perro! que alto fica e enorme!/ Que violento se ergue do chão!/ Isto não é forma para um cão!/ Que assombração trouxe eu pra casa!/ Um hipopótamo parece já,/ Com guela atroz, olhos em brasa. (GOETHE, 1981, p. 68 – grifos meus) 324 Pouco antes de seu passeio com Wagner, Fausto havia levado uma taça de veneno à boca para cometer suicídio, mas foi interrompido pelo ―Coro dos anjos‖ e o ―Coro das mulheres‖, que celebravam a Páscoa, isto é, a ressurreição de Cristo. Na cena de agora, logo no início, vemos sua esperança sendo reanimada aos poucos. 170 Fausto procura dominar a situação com um feitiço de um grimório chamado Chave ou Clavícula de Salomão. Ele tenta se valer de um encanto cujo efeito recai sobre os quatro elementos, mas, como Mefistófeles não é feito de nenhum deles, ele não reage. Fausto apela para outro feitiço mais poderoso (ou mais adequado para o exorcismo), e então o perro Preso atrás do fogão, gigante/ Incha-se como um elefante,/ Sobe alto, enchendo o quarto inteiro,/ Tende a dissolver-se em nevoeiro./ Não subas para o teto em esparramo!/ Deita-te aos pés de teu mestre, de teu amo!/ Já vês que em vão eu não te ameaço./ Com luz sagrada em pó te faço!/ Não chames, não,/ O tríplice flâmeo clarão!/ Não chames, não./ Meu lance mais devastador! (GOETHE, 1981, p. 70 – grifo meu) Logo após, ―a neblina se dissolve‖ e ―Mefistófeles sai por detrás do fogão, vestido como um escolar viandante‖325. Em sua primeira fala dirigindo-se a Fausto, pergunta: ―Por que o barulho? Estou às ordens do senhor!‖326 (Figura 39). Eles trocam algumas palavras, e Fausto pergunta-lhe o nome. Mefistófeles se esquiva da resposta, mas o doutor insiste em perguntar-lhe quem é. Embora as partes importantes da resposta de Mefistófeles pudessem ser mencionadas em pequenas citações, trago o trecho em quase toda sua extensão a fim de dar ao leitor uma visão mais detalhada do diálogo que se trava entre eles. Ei-lo: MEFISTÓFELES: Sou parte da Energia Que sempre o Mal pretende e que o bem sempre cria.327 325 GOETHE, 1981, p. 70 – grifo meu. σo original: ―wie ein/ fahrender Scholastikus‖. (GτETHE, 2004, p. 25-26) 326 GOETHE, 1981, p. 70. 327 σo original: ―Ein Teil von jener Kraft,/ Die stets das Böse will und stets das Gute schafft.‖ (GOETHE, 2004, p. 26). Trago a frase no original, para ajudar na compreensão. Se entendi corretamente, Mefistófeles está dizendo que é parte do Poder (Kraft) que quer fazer o mal, mas que acaba criando o bem. Se assim for, sua resposta parece ser um eco invertido da fala de Satã a Belzebu em Paraíso Perdido, na qual se lê o seguinte: ―τ bem jamais será nossa tarefa,/ Mas o mal nosso único prazer,/ Como o oposto da altíssima vontade/ Que combatemos. Se então a presciência/ Propuser outro bem do nosso mal,/ Deve ser mister 171 FAUSTO: Com tal enigma, que se alega? MEFISTÓFELES: O Gênio sou que sempre nega! E com razão; tudo o que vem a ser É digno só de perecer; Seria, pois, melhor, nada vir a ser mais. Por isso, tudo a que chamais, De destruição, pecado, o mal, Meu elemento é, integral. FAUSTO: Mostras-te inteiro e dizes que és parcela? MEFISTÓFELES: Verdade, afirmo-te, singela. Quando o homem, o pequeno mundo doudo, Se tem habitualmente por um todo; Parte da parte eu sou, que no início tudo era, Parte da escuridão, que à luz nascença dera, À luz soberba, que ora, em brava luta, O velho espaço, o espaço à Noite-Mãe disputa; Tem de falhar, porém, por mais que aspire à empresa, Já que ela adere aos corpos, presa. Dos corpos flui, beleza aos corpos dá, Um corpo impede-lhe a jornada; Creio, pois, que não dure nada, E é com os corpos que perecerá. (GOETHE, 1981, p. 71-72 – grifos meus) nosso pervertê-lo,/ E do bem achar meios para o mal,/ O que sucede amiúde, e assim talvez/ O moleste, salvo erro, e desoriente/ Seus íntimos conselhos do alvo quisto.‖ (I, 15λ-168 – grifo meu) 172 Figura 39: Fausto e Mefistófeles, de Delacroix. Fonte: https://i0.wp.com/www.brainpickings.org/wp- content/uploads/2015/04/delacroixfaust5.jpg?w=600&ssl=1 Acesso em: 14/01/2019. A próxima cena que nos interessa ocorre pouco depois. Mefistófeles, que havia fugido do quarto de Fausto onde estava preso por conta de um pentagrama desenhado na parede, retorna agora por conta própria e pede para que seja convidado a entrar, desejo que é satisfeito pelo doutor. Ao que Mefistófeles exclama: Bem, assim me agradas./ Havemos de ser camaradas!/ Para que as cismas vãs te enxote,/ Vim como nobre fidalgote,/ Em rubras vestes de veludo,/ Capa de rígido cetim,/ Pena de galo no chapéu pontudo,/ Afiada a ponta do espadim. (GOETHE, 1981, p. 78 – grifo meu) Esta cena é importante por apontar sua nova feição – já o vimos como cão negro, como neblina, como um escolar viandante –, agora vestido como fidalgo. Vale dizer que é a partir dessa descrição que Delacroix fez algumas de suas ilustrações (Figura 40). 173 Figura 40: Fausto, Margarida e Mefistófeles, de Delacroix. Fonte: http://www.ideafixa.com/oldsite/wp- content/uploads/2015/05/delacroixfaust8.jpg Acesso em: 14/01/2019. Outra passagem que nos interessa ocorre na cena da Taberna de Auerbach, na qual Siebel, um dos convivas, ao dar as boas-vindas aos forasteiros (Fausto e Mefistófeles), pergunta-se em voz baixa, olhando para Mefistófeles, ―Por que é que manca o bruto de uma perna?‖328. Esta pergunta remete à tradição popular, na qual se acredita que o Diabo é manco por conta de sua queda no Inferno, pois se apoiou em um de seus pés, o que o teria deixado eternamente manco. Ainda na Taberna, Mefistófeles se utiliza de ilusões para enganar aos beberrões. A próxima cena em que encontramos algumas descrições de nossa personagem ocorre na ―cozinha da Bruxa‖. Esta última, retornando ao lar após alguns de seus afazeres, depara-se com dois intrusos, Fausto e Mefistófeles, e se assusta com sua presença. Nisso, ela ―introduz com violência a escumadeira no caldeirão e despeja chamas sobre Fausto, Mefistófeles e os animais‖329 que estavam presentes. Encolerizado com a recepção, Mefistófeles passa um sermão na Bruxa. 328 GOETHE, 1981, p. 101. 329 GOETHE, 1981, p. 117. 174 Seu diálogo, pelas informações que traz, vale ser observado em toda sua extensão: MEFISTÓFELES: Sabes quem eu sou? monstro, esqueleto infando! Vês teu senhor e amo, e não pasmas? Por pouco não te arraso e a este teu bando Monstruoso de animais fantasmas! Não tens respeito ao gibão rubro? Não vês a pena azul de galo? Meu rosto acaso não descubro? Meu nome ignoras? devo eu declará-lo? A BRUXA: Perdoai-me, ó mestre, a rude saudação! Nenhum pé de cavalo vejo. E os vossos corvos, onde estão? MEFISTÓFELES: Desta vez saís-te ainda do gracejo, Pois deveras um bocado Que não nos temos encontrado. A cultura, outrossim, que lambe o mundo, à roda, Tem-se estendido sobre o diabo; O nórdico avejão já não está na moda; Onde vês garras, chifres, rabo? E quanto ao pé, que não dispenso, sinto Que em público me faz de mal visto e de intruso; Eis por que, como mais de um fidalgão distinto, Há tempos panturrilhas falsas uso. A BRUXA: (dançando freneticamente) Perco a razão, perco o sentido, Ao ver Dom Satanás de novo aqui metido! MEFISTÓFELES: Mulher, proíbo esse apelido! A BRUXA: Por quê? que vos tem ele feito? MEFISTÓFELES: No livro das ficções de há muito está gravado; 175 Mas, para os homens, sem proveito, O Gênio Mau se foi, mas os maus têm ficado. Sou cavalheirocomo os mais, aliás; Podes chamar-me de Senhor Barão; De meu fidalgo sangue não duvidarás; Olha pra cá, eis meu brasão! (Faz um gesto obsceno) (GOETHE, 1981, p. 118-119 – grifos meus) Um ponto a ser realçado é quando a Bruxa questiona Mefistófeles acerca dos ―nórdicos avejões‖, os quais parecem fazer referência aos corvos de Odin, Huginn (pensamento) e Muninn (memória ou mente), um sinal da incorporação de elementos de divindades de outros cultos como sinais demoníacos. Mas, ainda mais interessante é perceber que, apesar de se proclamar o ―senhor e amo‖ da Bruxa, Mefistófeles parece dar mais ênfase ao ―gibão rubro‖ e à ―pena azul de galo‖ como sinais de distinção que o fazem merecedor de respeito, do que à sua condição de senhor das trevas. A possibilidade dessa interpretação é reforçada não apenas quando, logo em seguida, explica que ―para os homens, sem proveito,/ τ Gênio Mau se foi‖ e que ―os maus têm ficado‖, mas também quando proíbe ser chamado de ―Dom Satanás‖ (Junker330 Satan) e manifesta o desejo de ser chamado doravante de ―Senhor Barão‖ (Herr Baron). Em outras palavras, a partir de agora, o Demônio como símbolo do Mal (com letra capital) passa a ser uma fábula, embora ainda existam os homens maus e suas ações maléficas. Com isso, Goethe parece estar tecendo um comentário (e uma crítica) sobre a Modernidade, em especial à Aufklärung, que teria colaborado para a diminuição na crença dos poderes do Demônio para causar o mal, mas que, no entanto, não teria auxiliado a erradicar a maldade da humanidade e seus sofrimentos auto-infligidos. Seguindo nessa linha de raciocínio, é interessante trazer a síntese feita por R. Muchembled, quando explica que Mefistófeles [...] conserva traços antigos, tal como os pés fendidos ora escondidos por calçados, mas [não possui] nem os cornos nem a 330 De acordo com o Dicionário Online Pons, o termo significa ―jovem fidalgo, nobre proprietário de terras‖. O termo também é utilizado em inglês com o sentido de ―landowner‖ (proprietário de terras‖, mas, de acordo com Cambridge Dictionary, ele tem um sentido pejorativo. 176 cauda, tornando-se sobretudo uma face sombria do sujeito pensante. O autor reúne assim os principais traços de uma evolução iniciada em meados do século XVII, e acentuada nos anos de 1720-1730. O Satã infernal perdeu a partida, apesar do vigor das reações de seus defensores, em favor de um demônio mais familiar, diretamente ligado a cada mortal: o inferno é, antes de mais nada, o próprio homem, como proclamam cada vez mais artista e autores que se debruçam sobre as profundezas da natureza humana. (MUCHEMBLED, 2001, p. 215 – grifos meus, acréscimo meu entre colchetes) Assim, com o inferno sendo, ―antes de mais nada, o próprio homem‖, cabe assinalar, juntamente com P. Stanford, a semelhança que o Mefistófeles goetheano apresenta com o Martin da obra Cândido, de Voltaire, bem como o fato de ele também ser ―um crítico irônico e ameaçador da sociedade.‖331. Ainda na esteira de Stanford, também é interessante notar que, enquanto personagem, Mefistófeles ―é simultaneamente um observador desinteressado e um demônio ativo, além de ser também porta-voz do anticristianismo e uma metáfora do lado menos atraente da vida.‖332. Apenas para finalizar, trago as palavras de Stanford uma vez mais para ressaltar que A genialidade do Fausto de Goethe pode ser atribuída ao tratamento subversivo que a lenda recebeu do autor. σa cena da ―cozinha da bruxa‖, por exemplo, o diabólico Mefistófeles recua para lançar o olhar crítico sobre si mesmo e melhor observar suas próprias fraquezas, de maneira a se colocar distante de sua antiga figura sinistra e ameaçadora. Mas, afora isso, os chifres e o rabo já não existem nele, embora os cascos fendidos da sua antiga armadura 331 STANFORD, 2003, p. 271. Sobre esse ponto, cf. o interessante artigo de Luciano Souza intitulado ―A crítica pelo escárnio: notas sobre o sarcástico discurso mefistofélico na primeira parte do Fausto de Goethe.‖. Revista Magma, 12. ed., 2015/2. Disponível em: <http://www.periodicos.usp.br/magma/article/view/96784>. Acesso em: 14 jan. 2019. 332 STANFORD, 2003, p. 271 – grifo meu. 177 permaneçam ocultos dentro dos seus sapatos. As palavras de Goethe parecem, portanto, estar avalizando o declínio do Diabo na época do Iluminismo, até porque o personagem satânico já não pode mais ser identificado no meio da multidão; agora o mal é mais sutil, um pouco mais pernicioso, e, no que concerne a Mefistófeles, menos sincero e bem mais complexo e inseguro em suas motivações. (STANFORD, 2003, p. 272 – grifos meus) 4.1.5 Pedagogia satânica – O Satã de Macário ―Quando me quiseres é fácil chamar- me. Deita-te no chão com as costas para o céu; põe a mão esquerda no coração: com a direita bate cinco vezes no chão, e murmura: – Satã!‖ (Álvares de Azevedo) Para encontrar nosso último representante da tradição e nobre conviva desse festim diabólico, daremos agora um salto sobre o Atlântico e chegaremos à ―Terra Brasilis‖. Assim, o leitor poderá, então, dar um caloroso ―τlá!‖ ao Satã de Macário (1855), de Álvares de Azevedo. Embora mantenha alguns traços da linhagem da cultura popular, o Satã do poeta da Lira dos Vinte Anos possui traços que lembram o Mefistófeles de Goethe. Ele é bastante irônico e espirituoso, porém, não tem cheiro de enxofre, nem chifres, nem rabo. Mas, antes que nos detenhamos em seus traços, vejamos de que forma Álvares de Azevedo articulou sua peça/conto/romance. O livro se inicia com uma espécie de prefácio-manifesto intitulado ―Puff‖, que pode ser visto como uma justificativa para a forma de sua composição. Nele, o jovem poeta expressa algumas de suas ―ideias teóricas sobre o drama‖ e aponta diversos elementos de vários autores (gregos, ingleses, espanhóis e alemães) que gostaria de se utilizar em suas composições333. A narrativa é dividida em dois episódios: no primeiro, com quatro cenas, vemos Macário chegar em 333 Vale mencionar que, posteriormente, em uma crítica de 1879 a Antônio José, na Revista Dramática, Machado de Assis defenderia algo muito semelhante em sua ―teoria do molho‖ (como a denominou Afrânio Coutinho), isto é, que o escritor ―pode ir buscar especiaria alheia, desde que seja para temperá-la com o molho de sua fábrica.‖. Cf. ASSIS, 1λλ4, II, p. ι2ι. 178 uma estalagem de beira de estrada, onde, logo após, encontrará um Desconhecido, o qual posteriormente descobrimos ser Satã, que o levará em viagem até uma cidade que tem nome ―de um santo‖; no segundo episódio, com dez cenas, muda-se de foco e de lugar: agora, a cena se passa na Itália e, embora ainda apareça na segunda cena e retorne no final da trama, o enfoque não é mais o diálogo entre Satã e Macário, mas entre este e Penseroso, seu amigo334. É válido lembrar que, em seu ensaio ―A educação pela noite‖, Antonio Cândido afirma que Álvares de Azevedo teria feito ―um desdobramento da clássica dupla Homem/Diabo, tão em voga no Romantismo‖335 e acredita que, sendo assim, Penseroso, Satã e Macário podem ser vistos, respectivamente, como ―Homem-Angélico, Homem Diabólico e Homem Homem‖336. Além disso, mais adiante, o autor também sugere um ―desdobramento do ser‖ do próprio Macário, sendo Penseroso e Satã os seus ―outros‖337. Nesse sentido, Macário seria uma espécie de ―frágil síntese de ambos, encarnando a suprema ‗binômia‘ do bem em face do mal, das forças que arrastam para os impulsos ‗inferiores‘ e das que resistem a elas‖338. Dito isto, passemos à personagem. Conforme dito, o Satã de Macário, além de seu tom mordaz e zombeteiro, características que figuram igualmente no Diabo da cultura popular e naquele retratado por Gil Vicente, também possui traços que lembram o Mefistófeles de Goethe, isto é, ele ―perde‖,ou melhor, deixa de lado algumas de suas características populares, como o rabo, o tridente, os chifres, o cheiro de enxofre e passa a ostentar a imagem de um cidadão do mundo, uma imagem mais cosmopolita. Além disso, o Satã azevediano se mostra, em diversos pontos, assaz erudito, citando obras e personagens literárias em meio a suas falas. Em seu texto ―τ demônio de Álvares de Azevedo‖ (1λλ5) para a Folha de São Paulo, Décio de Almeida Prado parece ser da mesma opinião, uma vez que, para o crítico, o Satã de Macário é ―moderno, nórdico, aristocrático‖ e ―pouco tem a ver com o velho demônio do cristianismo‖; suas falas, principalmente no que tange à cidade para 334 Diante da profusão de cenas e acontecimentos, é difícil resumir este segundo episódio de forma mais adequada. 335 CÂNDIDO, 1989, p. 14. 336 CÂNDIDO, 1989, p. 14. 337 CÂNDIDO, 1989, p. 18. 338 CÂNDIDO, 1989, p. 14. 179 onde se dirigem339, são corroídas ―pelo ceticismo e pelo espírito de maledicência‖. Além disso, ainda nas palavras do autor, ―seu aspecto físico é tão agradável, tão contrário à ideia do Mal absoluto, que ele tem de recorrer à eloquência para persuadir Macário quanto à sua verdadeira identidade‖. Como exemplo, o autor nos traz a passagem em que Macário pergunta ―E tu és mesmo Satã?‖, ao que este responde: É nisso que pensavas? És uma criança. Decerto que querias ver-me nu e ébrio como Calibã, envolto no tradicional cheiro de enxofre! Sangue de Baco! Sou o diabo em pessoa! Nem mais nem menos: porque tenha luvas de pelica, e ande de calças à inglesa, e tenha os olhos tão azuis como uma alemã! Queres que to jure pela Virgem Maria? (AZEVEDO, 2014, p. 46 – grifos meus) Assim, de forma semelhante ao Mefistófeles goetheano, o Satã de Macário se adequa à imagem moderna, perdendo algumas de suas principais características esboçadas na cultura popular, mantendo, todavia, os pés de cabra (ou de cavalo, no caso de Goethe). Outro paralelo interessante com Goethe foi traçado por Francisco Roberto Szezech Innocêncio, em sua dissertação Um Fausto sem Mefistófeles: o mito de Fausto na obra Macário, de Álvares de Azevedo (2007). Conforme aponta este autor, o Satã de Macário, tal como o Mefistófeles de Goethe, parece ser afeito a rituais340. Innocêncio explica que enquanto este último, para poder sair do aposento de Fausto precisa que o pentagrama que está na porta seja desfeito e para poder retornar precisa ser convidado três vezes, o primeiro, por sua vez, vai entrar na pensão justamente no momento em que Macário profere uma blasfêmia e atira o prato na cabeça da estalajadeira. De acordo com o autor, esta cena ―refere-se à crença popular segundo a qual proferir heresias 339 Conforme aponta o crítico, as poucas informações que recebemos – ―tem o nome de um santo; foi fundada por jesuítas; é um centro estudantil; não fica muito distante do mar, separando-se dele, contudo, por uma escarpada subida de terra‖ – são precisas o suficiente para identificá-la como São Paulo. No entanto, lembrando as palavras de Antonio Cândido, o crítico faz uma ressalva: ―Será com certeza São Paulo, mas transfigurada pelo que Antonio Cândido qualificou, apropriadamente, de ‗invenção literária da cidade de São Paulo‘.‖ (PRADτ, 1995, s/p) 340 Cf. INNOCÊNCIO, 2007, p. 117-118. 180 envolvendo alusões ao demônio é o suficiente para invocar sua presença.‖341. É válido mencionar que, embora já tenham se ―esbarrado‖ por duas vezes no caminho até a estalagem, o diálogo entre Satã e Macário só inicia a partir deste ponto. Conforme mencionado por Décio Prado, o aspecto físico de Satã, ao que tudo indica, é bastante agradável, dado seu trajar (praticamente como um ―cavalheiro‖). σo entanto, conforme aponta o autor em seu texto, sua condição infernal se mostra por algumas características. Uma delas é a frieza de seu corpo, inicialmente mencionada na conversa a respeito do primeiro encontro entre ambos, quando o Desconhecido, vestido ―com um ponche vermelho e preto‖342, teria roçado com a bota em sua perna, a qual, segundo a personagem, era ―fria como o focinho de um cão.‖343, e, posteriormente mencionada acerca de suas mãos344, quando Macário e o Desconhecido brindam após este ter lhe fornecido um pouco de vinho. Aliás, o crítico ainda comenta que a garrafa de vinho e o cachimbo já pronto para ser aceso na vela também se mostram como ―truques do ofício‖ que também delatariam sua condição infernal. Vale dizer que a cena do vinho faz uma espécie de eco à da ―Taberna de Auerbach‖, no Fausto de Goethe, na qual Mefistófeles distribui diferentes tipos de bebidas para os presentes. Outro ponto interessante da peça ocorre quando Macário está idealizando as belas mulheres que irá encontrar na cidade para onde vão, comparando-a com o ―Paraíso de Mafoma‖ (Maomé), e Satã, destruindo suas fantasias e o fazendo tornar à ―realidade‖, afirma que a única que ele ganhará ―será nojenta‖345. Trava-se, então, o seguinte diálogo: MACÁRIO: És o diabo em pessoa. Para ti nada há bom. Pelo que vejo, na criação só há uma perfeição, a tua. Tudo o mais nada vale para ti. Substância da soberba, ris de tudo o mais embuçado no teu desdém. Há uma tradição, que quando Deus fez o homem, veio Satã; achou a criatura adormecida, apalpou-lhe o corpo: achou-o perfeito, e deitou aí as paixões. SATÃ: Essa história é uma mentira. O que Satã pôs aí foi o orgulho. E o que são vossas 341 INNOCÊNCIO, 2007, p. 118. 342 AZEVEDO, 2014, p. 19. 343 AZEVEDO, 2014, p. 19. 344 AZEVEDO, 2014, p. 20. 345 AZEVEDO, 2014, p. 43. 181 virtudes humanas senão a encarnação do orgulho? (AZEVEDO, 2014, p. 43 – grifos meus) Este trecho nos interessa por alguns motivos. O primeiro, pela possibilidade de paralelo com o ―Prólogo no Céu‖, do Fausto de Goethe, quando Mefistófeles reclama da humanidade e o Altíssimo lhe responde: ―σada mais que dizer-me tens?/ Só por queixar-te, sempre vens?/ Nada, na terra, achas direito enfim?‖346; o segundo, por nos mostrar que, assim como para Milton, na concepção de Álvares de Azevedo, o orgulho é uma das características de Satã; e o terceiro, por fim, pelo paralelo que posteriormente iremos traçar com o conto ―Adão e Eva‖, de Machado de Assis. Outro aspecto do Satã de Azevedo que vale a pena mencionar é que, diferentemente de Milton e de outros românticos, ele é menos um herói revoltado do que um pedagogo. Menciono esse aspecto pensando, principalmente, no referido texto de A. Cândido, ―A educação pela noite‖. σesse texto, o autor aventa a hipótese de que a Noite na taverna seria uma continuação para Macário, dado o seu final que clama por uma continuação, bem como pela cena assaz similar que se passa entre ambas. Segundo Cândido, Satã ―quer iniciar Macário nos aspectos mais convulsos e extremos da vida, satisfazendo como se fosse um alter-ego a curiosidade de seus impulsos.‖347. Assim, prossegue o autor mais adiante, a Noite na taverna seria uma espécie de pesquisa das fronteiras dúbias que o poeta aborda em seu prefácio-manifesto, e ―sua matéria parece concebida e escolhida por Satan [sic] como episódio duma espécie de anti-Bildungsroman, que ele propusesse para a formação às avessas do seu pupilo.‖348. Cândido também argumenta que Se estruturalmente o Macário e A noite na taverna estão ligados, no que toca aos significados profundos haveria nesta ligação uma pedagogia satânica visando a desenvolver o lado escuro do homem, que tanto fascinou o Romantismo e tem por correlativo manifesto a noite, cuja presença envolve as duas obras e tantas outras de Álvares de Azevedo como ambiente e signo. (CÂNDIDO, 1989, p. 18) 346 GOETHE, 1981, p. 36. 347 CÂNDIDO, 1989, p. 15. 348 CÂNDIDO, 1989, p. 15-16. 182 É nesse sentido, explica Cândido,que, se Satã e Penseroso são uma espécie de desdobramento da personalidade de Macário, o primeiro lhe propõe uma espécie de ―educação pela noite‖ (expressão que faz alusão à ―educação pela pedra‖, de João Cabral de Melo σeto), a qual, consoante as palavras do crítico, ―partiria das conotações de mistério e treva, para chegar a um discurso aproximativo ou mesmo dilacerado, como convém ao derrame sentimental unido à liberação das potências recalcadas do inconsciente.‖349 Para finalizar, gostaria de trazer alguma ilustração da figura do Satã de Álvares de Azevedo. Digo que gostaria, pois, infelizmente, ao que parece, até agora não foi feita nenhuma ilustração das personagens, salvo aquelas utilizadas na composição das capas, as quais quase nunca levam em conta o conteúdo do texto. Destarte, trarei apenas uma, que, dentre todas, me pareceu a mais adequada e a mais condizente com aquilo que se lê na obra. Note o leitor que, se este é Satã, e imagino que seja, ele não traz nenhum dos traços clássicos que o caracterizam, nem mesmo a barbicha ou os pés de bode e está vestido como um cavalheiro, sinal de que o Mal, agora, caminha despercebido entre os homens. Figura 41: Capa Ed. Mercado Aberto. Fonte: http://d1pkzhm5uq4mnt.cloudfront.net/imagens/capas/956078424e601fe5385df 654c9f9756d8fb3016f.jpg Acesso em: 14/01/2019. 349 CÂNDIDO, 1989, p. 18. 183 4.2 Uma (con)fusão dos Diabos… Esboçados os perfis de todos os convidados, isto é, dos representantes daquilo que chamei de tradição diabólica, podemos observar agora os traços em que se assemelham e em que se distinguem, bem como se algum traço se sobressai mais em um dos textos ou em outros. Em suma, vejamos o que Machado de Assis deixa de lado e o que mantém da tradição. Comecemos pelo conto ―A igreja do Diabo‖. Sobre este Diabo, é possível dizer que ele é uma mistura, uma fusão dos traços de pelo menos três dos cinco representantes da tradição diabólica, a saber, do Diabo vicentino, do Satã miltoniano e do Mefistófeles goetheano. Ele carrega traços do Satã miltoniano por sua estadia no Inferno; por seus traços varonis, bem como por seus olhos ―acesos de ódio‖ e ―ásperos de vingança‖; por sua resolução de se opor ao Céu não com uma batalha, mas com um ardil (isto é, pela fundação de uma igreja, pervertendo assim o sentido de algo sagrado); por todos os sentimentos que expressa, como o sentimento de humilhação, o seu amor-próprio, o assombro, a desorientação, a agonia, a raiva, etc.; pela atitude de tentar afastar a humanidade de Deus. Do Diabo vicentino por sua eloquência e ironia, traços que compartilha com os outros dois; por seus ―braços abertos‖, recebendo a todos, mesmo os mais tementes a Deus, contanto que se prestem a seguir seus preceitos, é claro. Do Mefistófeles goetheano, por sua ida ao Céu, o que também o aproxima do Satã do Livro de Jó; por seu ceticismo em relação ao bem praticado pelo velho que acabara de chegar; por afirmar ser ―o espírito que nega‖; pelas promessas que faz àqueles que o seguirem. Outro ponto que o liga a todos os três é sua feição, que aparentemente, pelo silêncio do conto, nada tem de horrenda. Vale complementar, no entanto, que, em certa medida, o Diabo deste conto também se aproxima do Diabo da cultura popular, especialmente pelo fato de ser o enganador que, no final, acaba sendo enganado. Além disso, também seria possível aproximá-lo do Satã azevediano por sua erudição, pois, enquanto um cita diversas obras e personagens literárias para dar maior efeito a suas falas, o outro se utiliza de obras e personagens históricas e literárias para justificar seus argumentos; e ainda pela subversão de valores que ambos fazem, uma vez que enquanto o Satã de Macário associa as virtudes humanas ao orgulho, o Diabo machadiano associa diversos pecados às suas respectivas virtudes contrárias. Há ainda outro ponto que, dependendo da forma que o leitor interpreta, pode ligar o Diabo machadiano ao Lúcifer dantesco, a saber, suas asas, que, pela falta de descrição no conto, pode ser imaginada 184 tanto emplumada quanto lisas, tal qual as dos morcegos; vale frisar, no entanto, que esta é uma mera especulação σo segundo conto, ―Adão e Eva‖, existem certos contrastes entre o Diabo que aparece e aqueles que acabamos de ver. No entanto, por mais paradoxal que possa parecer, é justamente seu contraste que nos faz lembrar delas e possibilita aproximá-los. Para esclarecer esse ―paradoxo‖, precisarei efetuar uma espécie de teologia negativa do Diabo deste conto. Uso o termo teologia negativa, pois, dada a escassez de descrição da personagem nesse conto, é bastante difícil tecer afirmações consistentes. Por isso, pretendo, inicialmente, apontar aquilo que ele não é e/ou não faz e realçar o mencionado contraste. Vejamos, em primeiro lugar, o exemplo de Dante. Com exceção do antagonismo, ou melhor, do paralelo negativo que faz com Deus, o Diabo deste conto em nada parece se assemelhar ao Lúcifer da Divina Comédia; ele não é gigantesco, ele não é horrendo, ele não está preso no Abismo e tampouco pode mastigar pecadores, uma vez que ainda não existe humanidade. Também não podemos dizer que se assemelha ao Diabo do Auto da Barca do Inferno, pois, dada a ausência de pecadores, além de não haver acusações e pessoas para levar para o Inferno, nós também mal o vemos falar. Com algumas ressalvas, talvez fosse possível aproximá-lo ao Satã de Paraíso Perdido, na medida em que seu plano para a queda do primeiro casal é o mesmo – fazê-los comer da Árvore do Conhecimento (ou ―da ciência do Bem e do Mal‖) -; é preciso lembrar, todavia, que isso já está em Gênesis, capítulo 3, e que, além disso, diferentemente do Satã de Milton, que vai em pessoa até o Jardim do Éden e entra no corpo da Serpente para falar com Eva, o Tinhoso, neste conto, ―não podia ir ao paraíso, onde tudo lhe era avesso‖ e por isso manda a Serpente, sua filha. Neste ponto, isto é, no caso da Serpente, vale lembrar que Machado de Assis se distancia tanto da Bíblia, ou, para ser mais preciso, do Livro do Apocalipse, quanto de Milton e de Goethe, uma vez que seu Diabo não é a ―antiga serpente‖, e ele tampouco se instala em seu corpo, assim como também não é seu primo, mas seu pai/criador – algo que também diverge da narrativa de Gênesis 3, na qual se lê que Iahweh havia criado a serpente; nós também não o vemos como guerreiro, como líder de uma hoste de anjos rebeldes, como estrategista militar ou como explorador de novos mundos, mas como criador do mundo (mesmo que com intervenções do Altíssimo), ponto este que também diverge de todos os outros, inclusive da narrativa bíblica e do Catecismo da Igreja Católica, pois de acordo com o §31κ do livro, ―[n]enhuma criatura tem o poder infinito que é necessário para ‗criar‘ no sentido próprio da palavra, isto é, produzir dar 185 o ser àquilo que não o tinha de modo algum (chamar à existência ‗ex nihilo‘).‖350. No que tange ao Mefistófeles do Fausto, com exceção da mencionada Serpente, não há nada que se possa comparar, uma vez que, conforme dito, não encontramos descrição da personagem, nem a vemos falar em profusão. Há, todavia, a possibilidade de comparação com o Satã de Macário, no referido trecho em que Macário está delirando sobre as mulheres que irá encontrar e que Satã o traz de volta à realidade. Vejamos novamente o diálogo entre ambos: MACÁRIO: És o diabo em pessoa. Para ti nada há bom. Pelo que vejo, na criação só há uma perfeição, a tua. Tudo o mais nada vale para ti. Substância da soberba, ris de tudo o mais embuçado no teu desdém. Há uma tradição, que quando Deus fez o homem, veio Satã; achou a criatura adormecida, apalpou-lhe o corpo: achou-o perfeito, e deitou aí as paixões. SATÃ: Essa história é uma mentira. O que Satã pôs aí foi o orgulho. E o que são vossas virtudes humanas senão a encarnação do orgulho? (AZEVEDO, 2014, p. 43 –grifos meus) Comparemo-la agora com este trecho de ―Adão e Eva‖ no sexto dia foi criado o homem, e logo depois a mulher; ambos belos, mas sem alma, que o Tinhoso não podia dar, e só com ruins instintos. Deus infundiu-lhes a alma, com um sopro, e com outro os sentimentos nobres, puros e grandes. (MACHADO DE ASSIS, 1994, II, p. 526 – grifo meu) Perceba o leitor uma similaridade e um contraste entre ambos. Enquanto Macário, na narrativa de Álvares de Azevedo, afirma que Satã acredita ser a única perfeição da natureza, isto é, daquilo que foi criado por Deus, e que teria posto nos humanos as paixões, na narrativa machadiana, o Sr. Veloso afirma que a criação seria obra do Diabo e que o casal teria sido criado belo, mas apenas com instintos ruins. O contraste se dá, pois, enquanto que para o primeiro o Diabo não encontra nada que lhe agrade, para o segundo, por sua vez, o mundo, apesar das 350 CATECISMO, 1998, p. 85. 186 intervenções divinas, parece estar como deveria ser, tendo em vista que ele mesmo o criou. Já a semelhança pode ser vista no que tange às paixões e aos ruins instintos, uma vez que ambos, em seus respectivos textos, possuem conotações negativas. Há, além disso, a resposta de Satã, na qual explica ter ―posto‖ o orgulho, e que este seria o substrato das virtudes humanas, ponto em que está mais próximo ao Diabo de ―A igreja do Diabo‖ e de ―τ sermão do Diabo‖. Mas, antes de passar a este último, vejamos rapidamente a crônica de 1885. Nela, menos ainda que no conto que acabamos de ver, praticamente não há como se traçar comparações com os cinco representantes da tradição diabólica que foram expostos, tendo em vista que a única característica que encontramos no texto é o fato de o Diabo poder entrar no corpo de alguém, no caso, o do narrador. Embora se possa dizer que o Satã de Milton ―possui‖ o corpo da Serpente e que a possibilidade de que esta possa ser uma das características de outros Diabos que vimos, não me parece haver qualquer outra semelhança com estes. Desta forma, seria muito mais sensato compará-lo, ou pelo menos ―filiá-lo‖ ao Diabo dos Evangelhos, nos quais encontramos algumas possessões demoníacas, sendo o caso mais notório deles o do ―endemoninhado de Gadara‖ nos Evangelhos segundo São Marcos (5: 1-20) e segundo São Lucas (8: 26-39)351. Assim sendo, é válido ressaltar uma diferença entre os demônios dos Evangelhos e aquele que encontramos na crônica, a saber, que enquanto os primeiros, ao possuírem uma pessoa, causavam enfermidades e anomalias na personalidade, no segundo caso, nada disso ocorre, uma vez que o ―proprietário‖ do corpo estava, digamos, voando por aí com seu espírito, e o Diabo tomou seu corpo como quem senta em uma cadeira para fazer uma pausa. Além disso, também vale dizer que é o próprio narrador, e não o Diabo, quem associa e compara o ato de ele se levantar e mostrar um anúncio no jornal a respeito de um remédio que deixará de existir (ou de ser utilizado) em prol de outro com o ―deixar de existir‖ do próprio Diabo. Passando agora para ―τ sermão do Diabo‖, vemos que nele a presença do diabo goetheano é muito mais marcante do que a de todos os outros, tanto pelo ―ar mefistofélico‖ descrito pelo narrador, quanto pelo seu cinismo, característica pertencente a ambos. Mas, e quanto aos outros? Será que em nada se parece com eles? Vejamos… Escusado é dizer que em nada se parece com o Lúcifer dantesco, uma vez que 351 Vale dizer que, neste caso, não estou diferenciando entre os demônios de todas as espécies e o Diabo/Satã ele mesmo. 187 nenhuma de suas características está presente. Todavia, no que concerne aos outros autores, Gil Vicente, J. Milton e Álvares de Azevedo, talvez não seja tão simples descartar as ―semelhanças‖. Pensando em relação a Gil Vicente, não podemos descartar que existam semelhanças com sua concepção/representação do Diabo, pois, se pensarmos no Auto da Alma, a proximidade fica mais evidente, tendo em vista que ambos fazem o papel do ―tentador‖, isto é, daquele que quer afastar as pessoas dos preceitos religiosos e, por conseguinte, de Deus. No entanto, se pensarmos estritamente no Auto da Barca do Inferno, a semelhança é praticamente nula, para não dizer inexistente, tendo em vista que, como se disse, na peça vicentina, o Diabo parece muito mais um advogado de acusação do que um tentador que afasta as pessoas da divindade. Apesar dessa diferença, é válido ressaltar a loquacidade de ambos, embora com a diferença que enquanto o Diabo vicentino aponta de forma jocosa o porquê de cada pecador ser levado para o Inferno, o Diabo do ―Sermão‖ tenta persuadir seus ouvintes a participar de seu ethos, a partilhar de sua ética. Este aspecto, em certa medida, também está presente no Satã miltoniano, uma vez que ele também tenta (e consegue) persuadir não apenas os seus companheiros, mas também Eva a seguir aquilo que diz. Outro aspecto em que podemos aproximá-los seria extensivo ao último e diz respeito a sua ardilosidade, isto é, à forma como ambos se esquivam de um (novo) confronto direto com Deus, preferindo atacar sua criação, naturalmente mais frágil que o Onipotente. No que tange aos outros atributos do Satã de Milton, isto é, seu brilho menos intenso, sua vontade inflexível, seu tamanho, etc., não temos como traçar comparações, uma vez que o texto machadiano não entra nesses detalhes. Pensando agora em Álvares de Azevedo, ou, melhor dizendo, no Satã de Macário, o paralelo é reforçado, antes de tudo, por sua própria semelhança com o Mefistófeles goethiano. Mas, para além disso, é possível colocá-los lado a lado se pensarmos naquilo que A. Cândido chamou de ―pedagogia satânica‖ e lembrarmos que o sermão proferido pelo Diabo funciona como os preceitos de sua doutrina. Força é dizer que, embora se possa aproximá- los nesse aspecto, o que ocorre em Macário é diferente, pois enquanto aqui Satã conduz a personagem principal, dando assim um sentido mais literal o epíteto de ―pedagogo‖352, o Diabo do ―Sermão‖, por sua vez, apenas profere sua doutrina e deixa a critério dos ouvintes tornarem-se ou não seus discípulos. 352 Do grego paidós (criança) + agogia (conduzir/condução). 188 Por fim, com relação ao capítulo IX de Dom Casmurro, força é dizer que, dentre todos os textos que acabamos de observar, este pode ser encarado como o mais distanciado de todos os outros, seja dos cinco autores que vimos, seja dos próprios textos machadianos. Digo isso, pois, salvo o orgulho – que o aproximaria dos Satãs de Milton e de Álvares de Azevedo – e o fato de ter sido expulso do (conservatório do) Céu, o Satanás que encontramos nesse capítulo não possui semelhança com nenhum dos outros. Ou, para ser mais preciso, talvez fosse prudente dizer que não temos evidências textuais acerca de suas semelhanças ou diferenças. No entanto, apesar desse distanciamento, não se pode dizer que tal concepção do Diabo seja inventada por Machado de Assis, uma vez que, na cultura popular, existe a crença de que, no Céu, os anjos passem seus dias a tocar suas harpas e a cantar louvores a Deus. Vale explicar que, dependendo da tradução utilizada, tal crença possui certo respaldo bíblico, pois é possível encontrar na Bíblia algumas passagens com associações dos anjos à música e a cantos de louvor353. Todavia, diferentemente de ambas, é interessante frisar que na concepção machadiana (ou, melhor seria dizer, na concepção de Marcolini), o que há no Céu não é um simples cantar, um canto de puro louvor, mas uma eterna competição entre todas as hostes celestiais. Assim sendo, é possível dizer que Machado de Assis reatualiza, isto é, faz uma releitura da concepção cristã do Diabo e de sua queda, o que torna a personagem neste excerto de Dom Casmurro a mais sui generis dentre todas as outras. Apóseste longo percurso, o leitor deve estar se perguntando o propósito de todas essas comparações, isto é, aonde elas nos levaram. Por isso, é preciso explicar que além daquilo que já foi dito no início do capítulo, isto é, que tais comparações servem para demonstrar que Machado de Assis se insere naquilo que chamei de tradição diabólica, o intuito deste capítulo também foi o de ressaltar, a partir das semelhanças e diferenças com outros autores da tradição, as diferenças existentes nos cinco textos machadianos que me propus a explorar, uma vez que minha hipótese inicial era a de que eles seriam diferentes. Minha questão, conforme esbocei no final do capítulo anterior, era se o Diabo 353 Algumas dessas passagens se encontram no Livro de Jó, 38: 7; no Livro do Apocalipse, 5: 7-12; no Evangelho segundo São Lucas, 2: 13-14. É preciso ressaltar que, conforme dito, isso depende das tradução utilizada. Na Bíblia de Jerusalém, por exemplo, nenhuma dessas passagens parece se relacionar ao canto, já na edição Almeida Corrigida Fiel, em contrapartida, essa possibilidade existe. 189 machadiano seria uno ou múltiplo, ou se era múltiplo e comum; para ser mais claro, se em cada texto ele era sempre o mesmo e idêntico, se eram vários Diabos diferentes entre si, cada qual com sua forma, ou, ainda, se Machado teria retratado a mesma personagem de múltiplas formas. Neste momento, podemos afirmar com mais segurança que, não obstante as diferenças, trata-se aqui da mesma personagem, em outras palavras que o Diabo machadiano seria múltiplo e comum. Embora a afirmação pareça trivial, uma vez que, conforme vimos no primeiro capítulo acerca de sua história, apesar de suas variações de imagem, o Diabo sempre foi visto como um único ser, ou, para usar novamente as palavras de Luther Link, sempre foi uma ―máscara sem rosto‖ cuja essência é a mesma. Todavia, ainda na esteira de Link, é válido dizer que suas máscaras mudam conforme o tempo e o lugar, bem como, ainda, de acordo com o inimigo a ser combatido. Nesse sentido, cada nova representação do Diabo serve como um novo significante, uma espécie de novo símbolo cujo significado se adequa aos propósitos do momento e/ou do autor. Claro está que a interpretação desse novo significante/símbolo não precisa, necessariamente, seguir essas ―pistas‖, embora possa se valer delas para estabelecer conexões. E é justamente esse caminho que passamos a trilhar a partir de agora. 190 191 5 Capítulo IV: Faces do Diabo na obra de Machado de Assis. ―τ levantamento de algumas dessas indagações irresolutas através da análise do significado da presença da figura diabólica em seus textos é o mote central deste ensaio. Também nos propomos a buscar, mas não nos comprometemos com a certeza de que haja algo a ser encontrado a não ser a constante repetição do jogo alternado entre procurar – achar – tornar a procurar.‖ (Magali Moura354) Eis que finalmente chegamos ao nosso último capítulo. Nele, tentarei apontar alguns sentidos para o Diabo nos textos de Machado de Assis que vimos ao longo desta dissertação. Ao fazê-lo, o intuito é não apenas corroborar com a afirmação que encerra os capítulos anteriores, isto é, que o Diabo machadiano é múltiplo e comum, mas também trazer novas interpretações para o Diabo dentro da obra machadiana e assim contribuir com sua Fortuna Crítica. Antes de passar para o primeiro tópico, gostaria de explicar que, neste capítulo, não farei justaposição dos textos por gênero ou por ordem cronológica; aqui, colocarei lado a lado os textos que possuem uma temática semelhante. Destarte, a organização ficará da seguinte forma: em primeiro lugar, veremos as ―σarrativas da criação‖, com o conto ―Adão e Eva‖ e o nono capítulo de Dom Casmurro, ―A ópera‖; em segundo lugar, veremos as ―Panaceias da humanidade‖, com a crônica das Balas de Estalo, que, por não se aproximar tematicamente das outras, permanecerá sozinha; e em terceiro e último lugar, veremos ―τ ethos diabólico‖, com os textos ―τ sermão do Diabo‖ e ―A igreja do Diabo‖. Outro ponto que deve ser esclarecido para que possamos prosseguir, é o fato de que, antes de tentar encontrar sentido(s) para o Diabo nos textos, pretendo interpretar os próprios contos de forma mais abrangente, partindo assim da estrutura global da narrativa para chegar a um ponto particular: nossa personagem. Penso que este método tem a vantagem de tornar a interpretação não apenas mais abrangente, como também mais fecunda. Dito isto, sigamos adiante. 354 MOURA, 2008, p. 135. 192 5.1 O Diabo tem sentido? ―Aqui há sentido, que tem sabedoria.‖ (Livro do Apocalipse, 17:9) De acordo com a doutrina cristã, o Diabo ou Satã/Satanás é o anjo caído por excelência, o líder da rebelião que houve no céu e que, uma vez caído, tornou-se um ente maligno que quer nos afastar dos caminhos de Deus; como tal, o Diabo tornou-se um símbolo que personifica o Mal e a eterna perdição. Vimos, ainda no primeiro capítulo (1.1), que foram os românticos que, pela insubordinação de Satã às leis divinas, o redimiram, interpretando-o como um símbolo da rebeldia, da liberdade, do progresso, etc. Menciono estes aspectos, pois quero chamar a atenção para o caráter simbólico de sua ―existência‖ e do uso que Machado de Assis fez de tais sentidos para construir suas narrativas. Em outras palavras, quero chamar a atenção para o fato de que, na maioria das vezes, o Diabo machadiano (embora não somente ele) pode ser interpretado de duas formas: literalmente, isto é, como uma figura autônoma, em função de si mesma, e alegoricamente, ou seja, como uma figura heterônoma, em função de outro assunto. Vale explicar que, ao utilizar o termo símbolo para me referir ao Diabo, eu o faço retomando o sentido dado por Paul Ricoeur em seu O conflito das interpretações (1λικ), a saber, como uma ―estrutura de significação em que um sentido direto, primário, literal, designa, por acréscimo, outro sentido, indireto, secundário, figurado, que só pode ser apreendido através do primeiro.‖355. Desta forma, veremos aqui, de forma mais acentuada que nos capítulos anteriores, um trabalho de interpretação, também esta tomada no sentido dado por Ricoeur, a saber, como ―o trabalho de pensamento que consiste em decifrar o sentido oculto no sentido aparente, em desdobrar os níveis de significação implicados na significação literal.‖356. Penso que, de modo geral, Machado de Assis se utiliza do sentido primário – isto é, do Diabo enquanto ser maléfico, e portanto, enquanto um símbolo do Mal e daquilo que tenta nos afastar de Deus (ou, diríamos, dos caminhos ―corretos‖) – para alcançar outros sentidos em suas narrativas, muitas vezes invertendo (ou pervertendo?) seu sentido ―originário‖. Vale ressaltar que, assim sendo, para que possamos compreender e alcançar outros sentidos para o Diabo machadiano, é 355 RICOEUR, 1978, p. 15 – em itálico no original. 356 RICOEUR, 1978, p. 15 – em itálico no original. 193 preciso ter sempre em mente esse ―sentido primário‖, uma vez que é ele que nos possibilita observar diferentes coisas nessas narrativas do autor. Além disso, a partir do momento que se estabelece que esse ―sentido primário‖ é compartilhado por todas as representações machadianas do Diabo, fica mais fácil de perceber o porquê de lhe chamarmos de ―múltiplo e comum‖, apesar de o escritor representá-lo de diversas formas. 5.1.1 Narrativas da Criação: ―Atenda-me, doutor; sejamos justos com a natureza humana. Virtudes inteiriças são invenções de poetas.‖ (Iaiá Garcia) Disse acima que, neste tópico, abordarei as duas narrativas machadianas da criação, a saber, ―A ópera‖, nono capítulo de Dom Casmurro, e ―Adão e Eva‖, conto de 1κκ5. Mas, por que abordá-las em conjunto? Ora, para além dofato de que ambas tratam do mesmo assunto, isto é, a criação do mundo, críticos como Afrânio Coutinho (1959), John Gledson (1991), Raymundo Faoro (2001) e Paul Dixon (2016), entre outros, também apontaram a proximidade entre elas. Além disso, tanto ―A ópera‖ quanto ―Adão e Eva‖ me parecem levantar uma questão semelhante, a saber, sobre a ambiguidade, a ambivalência do mundo e da própria humanidade. Para tentar demonstrar esse ponto de forma mais eficaz, começarei por esta última. Para tal, gostaria de retomar alguns pontos mencionados no segundo capítulo desta dissertação. Acalme-se leitor, não pretendo ficar repetindo aquilo que você já leu; quero apenas retomar algumas das discussões levantadas para que a interpretação dos contos e, por conseguinte, da personagem, seja mais satisfatória. No segundo capítulo, iniciei uma discussão com a interpretação de Afrânio Coutinho sobre o conto ―Adão e Eva‖. Conforme vimos, para este autor, o conto possui um ―tom jansenista‖, e, consoante suas palavras, vemos nele ―o dualismo da explicação do mundo, o Mal, obra do Demônio, e o Bem, obra de Deus‖357 e que ―no mundo só há lugar para o Mal‖358, além do fato de que ―[n]a terra imperam os vícios e as maldades, uma abominação completa, a que nada empresta a nota da 357 COUTINHO, 1959, p. 100. 358 COUTINHO, 1959, p. 100. 194 esperança e da piedade.‖359. Vale dizer (ou lembrar) que Coutinho não é o único a ver um tom pessimista no conto. Também John Gledson, em seu livro Machado de Assis: impostura e realismo (1991), vê no conto certas rabugens de pessimismo, para usar da expressão de Brás Cubas. O crítico inglês vê, não apenas no conto, mas na obra machadiana de um modo geral, uma grande afinidade com a filosofia de Schopenhauer360. Embora se possa dizer que Afrânio Coutinho já havia assinalado essa aproximação361, força é dizer que o crítico brasileiro coloca o escritor mais próximo de Pascal do que do filósofo alemão. Em todo caso, o epíteto que dão a Machado de Assis – e eles não são os únicos – é sempre o mesmo, a saber, o de pessimista362. Vimos também, juntamente com Paul Dixon (2016), que neste conto, pelo menos, não se trata especificamente de pessimismo. Ao que nos parece, os críticos que o veem assim possuem uma compreensão equivocada acerca dele, uma vez que a narrativa do sr. Veloso, personagem do conto, joga uma nova luz sobre a narrativa de Gênesis, propondo aos convivas – e a nós, enquanto leitores – uma reflexão acerca da criação. Neste sentido, é válido lembrar as palavras de Sônia Brayner quando explica que É uma estratégia do texto machadiano desde seus primeiros escritos na área do conto e da crônica utilizar-se de um discurso proferido por um personagem vindo de fora dos hábitos e costumes reinantes, para forçar, com a nova perspectiva do recém-chegado, o paradoxal oculto nas significações cristalizadas e arbitrárias. (BRAYNER, 1981, p. 431) 359 COUTINHO, 1959, p. 100. 360 Cf. o quarto capítulo do livro de Gledson, intitulado ―Ideologia e Religião‖. 361 Outro autor que, antes de Gledson, também aproxima a obra machadiana à doutrina de Schopenhauer é o brasileiro Raymundo Faoro, em sua obra Machado de Assis: A pirâmide e o trapézio (2001). Cf. seu quinto capítulo: ―τs santos óleos da teologia‖, item 1. 362 Não pretendo entrar nessa discussão aqui, mas Enylton de Sá Rego, em seu livro O Calundu e a Panacéia: Machado de Assis, a sátira menipéia e a tradição luciânica (1989), vai argumentar que o pessimismo comumente atribuído ao próprio Machado é, na verdade, uma estratégia narrativa, sendo, portanto, um falso pessimismo. Para mais sobre o assunto, conferir o último tópico de seu terceiro capítulo, intitulado ―τ ponto de vista do Kataskopos e o falso pessimismo de Machado‖. 195 É preciso perceber, todavia, que no conto não há exatamente uma dualidade entre Bem e Mal/Deus e Diabo, mas uma polaridade, uma complementaridade entre ambos. Além disso, conforme disse no segundo capítulo, o conto me parece menos um confronto entre Bem e Mal do que um subterfúgio para contrapor ―curiosidade‖ e ―obediência cega‖ e subverter, assim, a visão corrente da narrativa de Gênesis, uma vez que o conto, de um modo geral, nos faz perceber (e/ou lembrar) que, sem o chamado ―pecado original‖, não haveria humanidade, tendo em vista que, se tivesse obedecido cegamente ao Senhor, tal como no conto, o casal poderia ter ganhado o Paraíso Celestial como recompensa e, com isso, a terra teria ficado abandonada, abrigando apenas as criações/obras do Tinhoso. Ao propor esta reflexão, torno a dizer, o conto subverte não apenas a própria narrativa bíblica, mas também a concepção que temos da curiosidade e da desobediência, que, no caso, ocasionou o ―pecado original‖. Mas, e quanto ao Diabo? Será que podemos vê-lo exclusivamente como um símbolo do Mal, ou será que ele esconde algo mais? Para tentar responder a estas perguntas, precisamos deixar de lado o conto como um todo e levar em conta apenas a narrativa do sr. Veloso, considerando-a verdadeira, embora saibamos que ele a desmente logo em seguida. Fazendo isso, poderemos refletir de modo mais livre acerca de sua narrativa. Para começar, vale dizer que se levarmos em conta apenas os trechos em que o escritor faz com que Veloso afirme que o criador do mundo e do primeiro casal tenha sido o Diabo, poderemos pensar que Machado de Assis, ao escrever seu conto, estava sugerindo que nosso mundo é corrompido e que a humanidade só possui instintos ruins, daí os epítetos de pessimista e descrente da raça humana – bem como muitos outros – dados por alguns de seus críticos. Todavia, não podemos esquecer que Deus também participa da criação, corrigindo e atenuando a obra, ―a fim de que ao próprio mal não ficasse a desesperança da salvação ou do benefício.‖. Sendo assim, podemos pensar que a sugestão deixada pelo conto, então, não é a de que a humanidade seja completamente ruim, absolutamente corrompida, mas de que seja feita de duas matérias, uma boa e uma ruim. Lembro-me de já ter inferido que no conto ―A igreja do Diabo‖ a discussão me parecia levar a uma conclusão semelhante, e, como Clara, citei um verso de Goethe: ―Ai, duas almas no meu seio moram!‖, a fim de nos lembrar dessa ambiguidade humana, dessa 196 ―contradição essencial do homem em matéria moral‖363 – a qual, vale lembrar, é mencionada pela Divindade no final do referido conto. Vale dizer que essa ambiguidade moral, essa condição da humanidade ―em sua situação de ser duplo, [de] ser tanto do bem como do mal‖, também é apontada pela professora Magali Moura (2008). De acordo com ela, ao ler as palavras do sr. Veloso – que o mundo havia sido criado pelo Diabo –, o leitor que facilmente se identifica com o bem, vê também justificado o seu ―lado negro‖ como contraparte original, portanto integrada em si como contraste complementar e, como veremos, necessário para a própria dinâmica da existência. A simples dicotomia é desestruturada nos textos de Machado, assim como nos de Goethe, com isso as certezas são ameaçadas e a moral contestada. (MOURA, 2008, p. 135 – grifo meu) Ora, então, o Diabo seria simplesmente a parte ruim da humanidade, seu lado obscuro? Pode-se dizer que sim, mas creio que não possamos nos dar por satisfeitos e parar por aí. É preciso refletir um pouco mais. Embora, aparentemente, tudo leve a essa concepção, penso que, talvez, também devêssemos encarar as ações do Diabo como algo de bom. Explico-me. Conforme afirmei agora há pouco, a narrativa de Veloso joga uma nova luz sobre a narrativa de Gênesis 3, nos fazendo refletir sobre ela, uma vez que nos faz observar não apenas a ação do casal, mas também a do Diabo (ou da Serpente) por outro prisma. Digo isso, pois seja na leitura cristã, na qual Satanás ou Diabo em forma de Serpente tentou e ocasionoua queda do casal edênico, ou na narrativa de Veloso, na qual o Diabo criou o mundo e Deus apenas corrigiu a obra, é preciso reconhecer que sem as obras do Diabo, o mundo, tal como o conhecemos, não existiria. Na narrativa de Veloso, podemos dizer que, sem a atitude criadora do Tinhoso, o mundo não existiria, pois, ao que tudo indica, Deus parecia estar satisfeito com sua ociosidade, sendo adorado por seus anjos; além disso, conforme pudemos ver, sem a ―curiosidade‖ e a desobediência do casal – e, por conseguinte, sem o êxito da Serpente, filha do Diabo –, não haveria humanidade, pois o casal teria sido 363 BARRETO FILHO, 1981, p. 356. 197 ―arrebatado‖ antes mesmo de a história começar. Com isso, podemos perceber a luz que é jogada na leitura cristã de Gênesis, isto é, que não poderia haver humanidade – e, por conseguinte, história – sem o Diabo364. Ao observar a narrativa por este ângulo, podemos perguntar: estaria a narrativa sugerindo que o Mal é aquilo que move o mundo, aquilo que gera as ações, sejam elas de Deus ou dos homens? Se assim for, é possível interpretar o Diabo não apenas como símbolo do Mal, como algo que tenta afastar a humanidade de Deus, mas também como uma força criadora e/ou propulsora, como aquilo que gera e/ou faz germinar a própria vida, uma vez que, de acordo com a narrativa de Veloso e a nova forma de encarar a narrativa de Gênesis proporcionada por ela, sem as ações do Diabo (ou da Serpente), torno a dizer, não haveria mundo ou sequer humanidade. É preciso esclarecer, no entanto, que afirmar que as ações do Diabo fazem com que o mundo e a humanidade possam existir não é dizer, tal como Gledson supõe, que ―[o] Mal – ou o egoísmo – é o motor básico da maioria das ações do homem‖365, tendo em vista que, enquanto naquela existem opostos complementares que trazem uma espécie de equilíbrio para a criação; nesta, por sua vez, parece haver apenas uma balança viciada, que sempre pende para o lado do Mal. Dito isto, voltemos à nova forma de encarar a narrativa bíblica. Torno a esse ponto para que possamos entrar no nono capítulo de Dom Casmurro, o qual faz algo semelhante – embora, talvez, de forma mais radical –, tendo em vista que Marcolini acredita em sua narrativa e que Bento dá crédito a ela, uma vez que, também lá, se não fosse pela atitude do Diabo de recolher o libreto, compor a música e solicitar que Deus a ouvisse, também não existiria o mundo, pois tal palco não existiria e tampouco seria necessário. Além disso, aqui também é preciso reconhecer a atitude criadora do Diabo, só que desta vez não exatamente enquanto criador do mundo, mas como compositor. 364 Vilém Flusser, em seu livro A história do Diabo, possui uma concepção parecida, uma vez que, para ele, a história pertenceria ao Diabo. De acordo com o autor, ―a Divindade é intemporal, Ela simplesmente é, e a correnteza dos acontecimentos transcorre alhures. O diabo é possivelmente imortal, mas certamente surgiu em dado momento. Ele nada na correnteza do tempo, quiçá a dirige, ele é histórico no sentido estrito do termo. É possível a afirmativa de que o tempo começou com o diabo, que o seu surgir ou a sua queda representam o início do drama do tempo que ‗diabo‘ e história‘ são dois aspectos do mesmo processo.‖ (FLUSSER, 2008, p. 21) 365GLEDSON, 1991, p. 149. 198 Já mencionei a opinião de John Gledson (1991) acerca deste capítulo de Dom Casmurro, mas, vale a pena vê-la novamente. Em sua leitura, o autor diz o seguinte: ―Deus escreve o libreto, ou seja, o sentido oficial e superficial da peça, ao passo que Satã, o compositor, embora jamais seja capaz de se exprimir de maneira aberta e lógica, tem, não obstante, o controle do âmago da questão.‖366. Conforme vimos, esta interpretação está relacionada à sua concepção de que a filosofia de Schopenhauer teria influenciado boa parte da obra machadiana. Para o filósofo alemão, a música estaria ―intimamente ligada com a vontade, a ‗coisa-em-si‘, que constitui a realidade fundamental do universo, e também se identifica com a dor, o sofrimento e o egoísmo.‖367. Nesse sentido, ainda para Gledson, sob a metáfora aparentemente jocosa de Marcolini subjaz ―a nota mais baixa do pessimismo filosófico‖, uma vez que, ―[q]uaisquer boas ações serão inevitavelmente distorcidas pela natureza da própria humanidade, justamente como as palavras de Deus são abafadas pela música de Satã.‖368. Mas, será que podemos concordar plenamente com o crítico inglês? Será que a natureza humana é completamente corrompida, tal como ele dá a entender? Vale relembrar que discordo da ontologia metafísica subjacente a esta visão. Mas, para tentar possibilitar certo distanciamento da visão de Gledson, me parece interessante trazer as palavras de Raymundo Faoro – outro autor que também enxerga a filosofia schopenhaueriana nos escritos do Bruxo do Cosme Velho –, quando, escrevendo sobre ―A ópera‖, nos diz o seguinte: Certo, o mal, o grotesco, o vil teriam sido obra do Diabo, em colaboração que desfigura o plano original. Mas no polo negativo não estaria a verdade do mundo? O outro lado, o bem e a harmonia, não seriam senão fantasias inspiradas pela astúcia da maldade humana? Por outra maneira: o mal é o sal da terra e só por via dele, reinterpretado de sua sombra ilusória, o homem se realiza. Na obra comum, tecida de fios divinos e de fios diabólicos, ultrapassando a dissensão maniqueísta, tudo aporta no demoníaco. Deus autoriza o trabalho do Diabo, mas, a 366 GLEDSON, 1991, p. 151 – grifos meus. 367 GLEDSON, 1991, p. 151. 368 GLEDSON, 1991, p. 152 – grifo meu. 199 despeito da vênia, ele atua por si próprio, senhor do mundo. (FAORO, 2001, p. 405) Vale dizer que também não concordo plenamente com a leitura de Faoro. Que a colaboração do Diabo desfigure o plano original, vá lá. Mas, que a verdade do mundo esteja no polo negativo e que só por via do mal o homem se realize369, me parece um pouco forçado, uma vez que a criação é feita por ambos e que somente em alguns lugares ―o verso vai para a direita e a música, para a esquerda‖; em outras palavras, seria possível dizer que nem toda a composição do Diabo é uma ―violência interpretativa‖ em cima dos versos de Deus. Nesse sentido, também podemos contestar em parte a leitura de Gledson, uma vez que, embora a música possa estar ligada à vontade e, por conseguinte, à dor, ao sofrimento e ao egoísmo, é preciso reiterar que não é a todo momento que as palavras de Deus são abafadas pela música de Satanás ou, para dizer de outra forma, embora a música possa dar o tom ou o andamento das ações humanas, nem sempre ela é exclusivamente má, pois, torno a dizer, há casos em que a música do Diabo está em consonância com os versos de Deus. Além disso, vale lembrar, junto com o próprio Faoro, que o ―demoníaco não se confunde com o diabólico‖370, uma vez que o ―demoníaco é a energia que está fora do alcance da razão, penetrando a natureza toda, no mundo visível e no invisível‖371 e que a ―presença do demoníaco frequenta todos os homens, colocando-os fora do bem e do mal‖372; e que, além do mais, o demoníaco só se torna diabólico quando a humanidade valoriza o pecado, ―racionalizando as forças da natureza, sem amor às virtudes.‖373. Desta forma, penso que não podemos concordar com as leituras que veem nas narrativas de Marcolini e do sr. Veloso um puro pessimismo, uma visão de que a humanidade seja essencialmente corrompida e que tenda ao mal, pois ambas as narrativas me parecem jogar com essa ambiguidade humana, com esse duplo aspecto do ser humano, que possui, sim, um lado mau, mas que, em contrapartida, também possui um lado bom. Neste sentido, penso que é 369 Penso que, aqui, o verbo ―realizar‖ gera uma ambiguidade. Se Faoro quiserdizer que é somente por via do mal que a humanidade consegue alcançar suas metas, seus objetivos, podemos discordar. No entanto, se ele estiver a dizer que é somente por via do mal que a humanidade se torna real, que passa a existir, aí sim podemos concordar com sua interpretação – pelo menos neste ponto. 370 FAORO, 2001, p. 403. 371 FAORO, 2001, p. 403. 372 FAORO, 2001, p. 404. 373 FAORO, 2001, p. 404. 200 mais plausível a leitura de Lúcia Miguel-Pereira, quando menciona o ―relativismo moral‖ presente em muitas das narrativas machadianas374. Feitas essas ressalvas, é preciso tornar àquilo que nos trouxe aqui e fazer uma breve síntese sobre o(s) sentido(s) que o Diabo pode receber na narrativa de Marcolini. Como vimos, embora seja necessário partir de sua significação como símbolo do Mal – e, por isso, sua música, tal como a interpreta John Gledson, possa ser lida como a ―vontade‖ schopenhaueriana, identificando-a com a dor, ao egoísmo e ao sofrimento –, também é possível encarar o Diabo da narrativa de Marcolini, tal como na de Veloso, tanto como a contraparte da criação de Deus e da humanidade isto é, como seu contraste complementar, quanto como a partir de seu potencial criador, algo que nos possibilita realizar uma inversão nos valores e interpretá-lo no sentido de algo benéfico para a humanidade, uma vez que a divindade se desfez de seu libreto e que, mesmo após a composição da música, continuou sem se interessar por ele. Nesse sentido, mas com certas ressalvas, talvez também possamos vê-lo como ―o sal da terra‖, tal como o fez Raymundo Faoro, embora, torno a dizer, possamos discordar que é somente por via do mal que o homem se realiza. Ao vê-lo como o ―sal da terra‖ penso, juntamente com aqueles alguns da narrativa de Marcolini (―Há quem diga que…‖), que o Diabo e suas ações – ou sua música, para ficarmos com o texto – quebram justamente a monotonia do libreto, fazendo com que os desconcertos da composição – isto é, quando ―o verso vai para a direita e a música, para a esquerda‖ – a tornem mais bela. O que falta perguntar é se, seguindo esta linha de raciocínio, não estaria eu me tornando o Dr. Pangloss375 e acreditando que ―tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis‖? 5.1.2 Panaceias da humanidade. ―Mirando os remédios vivos e eficazes, faço esta pergunta a mim mesmo: Por que é que os remédios morrem?‖ (Machado de Assis) O próximo texto que veremos, conforme disse, é aquela crônica do dia 5 de abril de 1κκ5, da seção ―Balas de Estalo‖. σela vemos um 374 Cf. MIGUEL-PEREIRA, 1955, p. 229-230. 375 Personagem de Voltaire, da obra Cândido, ou O otimismo (1759), que serve para ironizar a teoria de Leibniz. 201 Machado já bastante maduro em sua escrita, além de assaz irreverente com suas ironias, cujo tom satírico é aparente. Já mencionei no segundo capítulo (2.2.1) que esta crônica chama muito mais atenção pelo que traz acerca do espiritismo do que sobre o Diabo em si, uma vez que seu mote parece ser a intenção de discutir e ridicularizar a ―nova doutrina‖. Além disso, conforme apontam Mauro Roberto Dias Miranda e André Luiz Anselmi em seu artigo ―Machado de Assis cronista e o processo de modernização do Rio de Janeiro‖, é preciso notar que, além dessa ironia com o espiritismo, a crônica também vai mostrar o ―descaso [do cronista] com os modismos europeus‖376, manifesta pela afirmação de que ―Eu, em geral, creio em tudo aquilo que na Europa é acreditado.‖. Outro autor que nos fornece pistas para que possamos interpretar não apenas a crônica, mas também a personagem, é Daniel Piza, um dos mencionados biógrafos machadianos. Conforme explica o autor, por volta de 1κικ, o Machado cronista começa a se utilizar de ―um tipo de humor peculiar. Em sua coluna quinzenal, mistura comentários de uma vintena de linhas sobre assuntos como a política, a ópera, a literatura, as modas e a religião, sempre tirando reflexões sobre a natureza humana, sobre os brasileiros, sobre a civilização.‖377. Além de todos esses assuntos, o cronista ―[t]ambém comenta os anúncios de ‗droguistas‘ (farmacêuticos) que invadiam os jornais.‖378. Ainda no mesmo período, Machado, em suas crônicas, ―[t]ambém ri de uma casa espírita e dos ‗crédulos que já no tempo da Escritura eram a maioria do gênero humano‘.‖379. Já em 1κιλ, ―os debates que o moviam não eram apenas políticos ou econômicos. Machado também observava com olhos tristes a atitude radical do realismo estético em relação ao passado. Não gostava do endeusamento da ciência, embora não fosse também religioso.‖380. Aqui, para que possamos nos direcionar ao ponto em que pretendo chegar, vale a pena trazer um excerto mais longo, no qual o biógrafo 376 MIRAσDA, Mauro R. D.; AσSELMI, André L.. ―Machado de Assis cronista e o processo de modernização do Rio de Janeiro‖. Vocábulo – Revista de Letras e Linguagens midiáticas. Volume XI, 2º semestre de 2016. Disponível em: <http://www2.baraodemaua.br/comunicacao/publicacoes/vocabulo/pdf/11/4_ma chado_de_assis_cronista_11.pdf>. Acesso em: 14 jan. 2019. 377 PIZA, 2008, p. 177 – grifo meu. 378 PIZA, 2008, p. 177 – grifo meu. 379 PIZA, 2008, p. 186. 380 PIZA, 2008, p. 195 – grifo meu. 202 unifica algumas das informações que acabamos de ver. Ele diz o seguinte: Um tema que Machado vivia comentando, relacionado a esses [política, economia, estética], eram os remédios anunciados à mancheia nos jornais e revistas da época. Os remédios não prometiam apenas aliviar sintomas de dores no estômago, nos olhos ou na cabeça: prometiam curar tudo, inclusive as dores morais. Eram elixires, bálsamos, pílulas ―catárticas‖, verdadeiras panacéias para o corpo e também para o espírito. As farmácias, assim, não eram muito diferentes das casas de espiritismo, sonambulismo e hipnotismo que também eram moda na cidade; a diferença é que estas queriam curar o corpo por meio do espírito, e aquelas o contrário. Esses camelôs da ilusão, curandeiros que lucravam com a credulidade popular, eram constantemente satirizados por Machado, ao lado dos políticos – entre os quais se distinguia cada vez menos quem era conservador e quem era liberal – e da humanidade em geral. (PIZA, 2008, p. 195 – grifos meus) Também vale lembrar, juntamente com seu biógrafo, que o cronista-personagem Lélio, da seção ―Balas de Estalo‖, de onde retirei a crônica que ora interpreto, ―significou novo amadurecimento de Machado no gênero, que praticava com um senso muito apurado para o tom de conversa e a noção de síntese.‖381. Ainda consoante às suas palavras, ―[o] que é novamente visível nessas crônicas é o olhar de Machado sobre a transitoriedade das coisas e a credulidade das pessoas.‖382. Feitas estas considerações iniciais, o leitor já deve ter desconfiado qual a minha interpretação a respeito da crônica. Não? Então, vamos lá... Penso que Machado conseguiu muito mais do que se propôs nesta pequena crônica. Digo isso, pois ela parece nos fornecer alguns elementos que podemos relacionar tanto à crítica ao espiritismo e ao gosto brasileiro pelos ―modismos europeus‖, quanto sobre a natureza humana e, talvez, sobre estética. Tentarei explicar. 381 PIZA, 2008, p. 232. 382 PIZA, 2008, p. 232. 203 Se levarmos em conta não apenas esta crônica, mas o repertório machadiano como um todo, pode ser que tenhamos margem para identificar e relacionar esses outros elementos com aquilo que a crônica trata. Em primeiro lugar, de uma forma mais próxima ao texto, veremos que ele se relaciona não apenas com a religião (ou a doutrina) Espírita, mas também com a moda – no sentido que vimos de ―modismo‖, e não de vestuário. Em segundo lugar, ainda próximo ao texto, perceberemos que o ataque do cronista também recai sobre os farmacêuticos, levando em conta que são suas inúmeras promessas