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521Registro Clínico: funções e benefícios A prática clínica compreende intervenções que transcendem os contextos tradicionais da psicoterapia. Nesse sentido, este conceito de procedimento clínico aplica-se às ativi- dades de prevenção e de intervenção não se limitando à psicoterapia. Desse modo, a en- trevista, por exemplo, é um procedimento clínico que pode ser realizado para atividades de prevenção, de intervenção, de psicoterapia e de pesquisa. As diferenças em termos de objetivos ou forma de realização do procedimento serão marcadas pelo tipo de demanda exigida pela situação do procedimento clínico. Também podem ser considerados proce- dimentos clínicos as atitudes ou atividades mentais do psicoterapeuta que resultem em ações clínicas tangíveis, como, por exemplo, processo de elaboração ou de reflexão das reações contratransferenciais. O procedimento clínico deve ser pautado em um referencial teórico e este precisa man- ter uma relação de intercâmbio com outros referenciais. Sem um referencial teórico definido, não temos como justificar o procedimento como diferente de outras práticas do senso comum. O procedimento clínico também não pode abster-se de uma prática pautada pela ética: ele tem um compromisso com o bem-estar e visa uma efetividade em relação ao sofrimento humano. O procedimento clínico justifica-se por este com- promisso. O referencial teórico é o modo pelo qual a profissão articula esta justificativa de suas ações. Assim, feitas as devidas considerações sobre o papel do registro na prática clínica, sobre suas funções e benefícios para o exercício profissional e para os consumidores ou usu- ários de serviços psicológicos e sobre a sua compreensão enquanto um procedimento clínico legítimo, é necessário definir e caracterizar o procedimento clínico de registro. Caracterização�e�definição�do�procedimento�clínico�de�registro� O termo documento deriva do latim documentu e também de docere (ensinar, mostrar) e significa “qualquer base de conhecimento, fixada materialmente e disposta de maneira que se possa utilizar para consulta, estudo, prova, etc.” (Aurélio, 2004). Nesse senti- do, serve para se consultar, instruir e provar. Significa também “escritura destinada a comprovar um fato; declaração escrita, revestida de forma padronizada, sobre fato(s) ou acontecimento(s) de natureza jurídica” (ibid, 2004). Nessa concepção também encon- tramos o sentido de provar e de instruir, além do sentido de declaração, de depoimento 522 e de comunicação. Por sua vez, o termo registro (do latim registru) é o “conjunto organi- zado de um ou mais dados, relacionados entre si, e tratado como uma única unidade” (Aurélio, 2004). Nessa perspectiva, o documento ou o registro relaciona-se com instru- ção, ensino, prova, organização e comunicação. Relaciona-se com registro organizado, com informação materialmente fixada, com padronização e memória. Relaciona-se com o armazenamento de informações diferenciadas como a fala do indivíduo, a inferência do clínico ou sua descrição do processo (Tavares, 2000), mas que estão presentes, ao mesmo tempo, num determinado contexto. Está, portanto, “ligado ao registro e à me- mória, à escuta e ao olhar, à transmissão e à comunicação”, ao mesmo tempo, “não é um objeto material, mas constitui o produto de uma relação entre materiais e um certo tipo de leitura e de interpretação” (Plaza, 2004, p.53). Em outras palavras, o documento de registro é uma construção dinâmica e viva na qual estão implicados diversos fatores relacionados ao profissional (sua formação, sua história de vida, seu referencial teórico, sua personalidade e aptidões, por exemplo) e à situação social na qual este profissional e a atividade realizada se inserem (restrições institucionais, de demanda, atividades práticas ou de pesquisa, entre outros). De acordo com Plaza (2004), o problema do documento coloca-se justamente pelo fato de o clínico ter de inscrever, de registrar alguma coisa referente à realidade na qual ele confrontou-se com pessoas, elaborou as questões a serem tratadas, objetivos e médoto, e construiu uma situação para poder colocá-la em perspectiva e a comunicar. Enfim, o problema do registro está em ter de lidar com o material clínico obtido através desses confrontos e fixá-los pela escrita. Isso porque o registro de uma situação, a inscrição dessa realidade fundamenta-se no ponto de vista daquele que registra, representa aque- la realidade que foi possível ser apreendida naquele momento pelo seu olhar e pela sua escuta. Representa um recorte (Nogueira, 2004), pois nenhum registro consegue cobrir ou esgotar o conjunto de todas as dimensões e parâmetros de uma situação. Sig- nifica que sempre subsistirão dimensões e parâmetros desconhecidos entre a experiên- cia vivida e o registro realizado. Significa também, que esses parâmetros e dimensões remanescentes devem ser tomados em consideração; podem e devem ser tratados por outros olhares de outros leitores. O registro, então, implica o clínico e o pesquisador na realização dos procedimentos clínicos envolvidos no seu trabalho. Implica-os também na própria realização do procedimento clínico de registro. O registro evoca a reflexão clínica sobre essa implicação, sobre suas suposições prévias e seus “pontos cegos” ou 523Registro Clínico: funções e benefícios desconhecimentos acerca da situação. Essa implicação pode estar no centro da dificul- dade frequentemente experimentada na realização de registros. Na definição proposta, o registro, como procedimento clínico, é um documento que apresenta um conjunto de informações, relacionadas entre si, sobre determinados fenô- menos ocorridos numa relação clínica, organizadas, elaboradas e registradas de acordo com a percepção e interpretação a partir do recorte do registrador. O registro clínico, portanto, trata de um documento assim constituído e caracterizado enquanto um pro- cedimento clínico utilizado nas pesquisas e práticas em Psicologia Clínica (Naves e Tavares, 2007). Com efeito, esta compreensão do registro enquanto um documento elaborado a partir das percepções, interpretações e organizações de um registrador acerca de um fenô- meno observado numa situação de relacionamento, evidencia a condição de ser um “ponto de vista”, um recorte, bem como sua condição de dinamicidade. Por um lado, ao evidenciar um “ponto de vista”, ou seja, a percepção e interpretação do registrador, o registro acaba denunciando as preferências, os desconhecimentos, os “pontos cegos” daquele que o elabora. Ao mesmo tempo, possibilita novas percepções, interpretações e elaborações, novos olhares ou pontos de vista, para além do registro, da escuta ou visão do registrador. Indagações e novas interpretações podem vir daqueles que acessam ou consultam esse registro. E é justamente essa possibilidade de novas elaborações e in- terpretações, por outro lado, que traz a condição de dinamicidade, pois evidencia que o registro é um documento constituído por material “vivo” que poderá ser reinterpretado e reelaborado a partir de cada nova consulta ou acesso a este documento. Nessa perspec- tiva, o registro pode ser considerado enquanto um documento de construção dinâmica, podendo ser ressignificado na medida em que representa um objeto vivo de construção de conhecimento acerca de uma situação ou fenômeno, pois, há que se considerar que o próprio olhar do registrador não é mais o mesmo num momento posterior de leitura. Como elemento vivo, a escritura dessas informações nos permite localizá-las do decor- rer do tempo, identificar fases no processo, evidenciar repetições, mapear a evolução de fenômenos (por exemplo, a transferência), identificar eventos precipitadores e clarificar a incidência dos processos psíquicos, passo a passo, ou melhor, sessão por sessão. 524 Delimitação�e�vicissitudes�do�registro�clínico� O clínico deve inscrever, deve registrar suas percepções,interpretações e elaborações dos fenômenos ocorridos na situação ou realidade na qual ele se confrontou com pesso- as, definiu objetivos e procedimentos a serem utilizados. Deve construir uma situação, colocá-la em perspectiva e a comunicar. Deve registrar o material clínico obtido nesses confrontos. Por sua vez, o registro desse material pode ocorrer através de diferentes modos de inscrição: por filmagem, por fotografia, por gravação de áudio e por escrita. O foco clínico usualmente recai sobre o registro escrito, que pode ser livre ou ter um modelo padronizado, cuja elaboração é feita, em geral, após o procedimento clínico. A delimitação do procedimento de registro clínico escrito evoca algumas vicissitudes que podem ser explicitadas recorrendo a uma alusão feita por Assouly-Piquet (2004). Com efeito, a autora enuncia que o procedimento clínico registrado é semelhante à estória do homem que viu o homem que viu o urso. O homem que viu o urso “(...) terá colhido traços, trabalhado sobre esses traços, brincado com traços e deixado traços para esse homem que lhe vem perguntar” (p.189). Assim, o homem que viu o urso torna-se o mediador e o transmissor das informações acerca do urso e o outro homem, mesmo não tendo visto o urso, sempre saberá alguma coisa a seu respeito graças aos traços dei- xados pelo homem que o viu. Nesse sentido, a função do traço seria justamente permitir a mediação e a transmissão dessas informações, no caso da estória, obtidas pelo contato com o urso. Fazendo alusão a essa estória apontada, podemos pensar no psicoterapeuta enquanto o homem que viu o urso. Ele colhe material clínico e os utiliza para o desenvolvimento da psicoterapia. Colhe, trabalha sobre traços e, também, deixa traços. O psicoterapeuta tem contato com o “urso”, mas só pode transmitir traços desse contato. E o outro, a quem esses traços podem se destinar (outros terapeutas e profissionais, supervisor, enfim, “leitores” do registro) só terá contato com o “urso” na situação clínica por via dos traços do psicoterapeuta, por via de sua mediação e interpretação. Desse modo, o registro clí- nico escrito torna-se o veículo de mediação e transmissão desses traços percebidos pelo psicoterapeuta. Feitas as devidas considerações sobre a prática do registro clínico escrito torna-se ne- cessário evidenciar o posicionamento e regulamentações sobre a realização do registro 525Registro Clínico: funções e benefícios escrito de informações clínicas aprovados pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), órgão que rege e regulamenta a prática do psicólogo brasileiro. Posicionamento�e�regulamentações�do�Conselho�Federal�de� Psicologia�a�respeito�do�registro�das�informações�clínicas Diversas mudanças ocorridas na sociedade acarretaram em novas e diferentes deman- das junto aos profissionais de psicologia, clínicos e pesquisadores, e aos usuários dos serviços psicológicos. Respondendo aos anseios da sociedade civil, profissional e acadê- mica, o Conselho Federal de Psicologia publicou, em 30 de março de 2009, a Resolução CFP Nº 001/2009 que tornou obrigatório o registro documental decorrente da presta- ção de serviços psicológicos. Sabe-se que a falta de registros clínicos que comprovem e caracterizem os atendimentos realizados representa o maior problema nos processos éticos nos Conselhos Regionais (CFP, 2007). Com efeito, a atual Resolução surge em consideração às urgências impostas: a) pelo exercício profissional do psicólogo; b) pelo reconhecimento dos consumidores usuários dos serviços psicológicos acerca de seus direitos levando-os às reivindicações éticas junto aos Conselhos; c) pela necessidade dos Conselhos de orientar e fiscalizar os serviços prestados e a responsabilidade técnica adotada; d) pelos anseios das comunidades acadêmicas no que se refere à importância do registro para as pesquisas e e) pela possibilidade do registro se constituir enquanto prova nos processos disciplinares e nas defesas legais dos psicólogos. A Resolução CFP Nº 001/2009 traz dois capítulos que orientam a elaboração dos re- gistros. Este trabalho não tem por objetivo discutir a Resolução, apontando dúvidas que porventura possam surgir da sua interpretação, lacunas em relação à orientação para elaboração dos registros, entre outras especificidades. Para o momento, é importante descrever sinteticamente os dois capítulos que estruturam a Resolução. O Capítulo I, Dos Registros Documentais, trata da obrigatoriedade desses registros dos serviços psico- lógicos prestados que não puderem ser mantidos prioritariamente em prontuários psi- cológicos. Também são oferecidas orientações sobre quais informações devem constar nesses registros, que serão compartilhados por outros profissionais e pelos usuários consumidores. O Capítulo II, Dos Prontuários, traz orientações específicas sobre o re- gistro documental na forma de prontuários cujas informações poderão ser compartilha- das com os usuários e outros profissionais, garantindo o direito do usuário ao acesso
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