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Psicologia Clínica e Cultura Contemporanea-32

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utilizado, optou-se pela entrevista semi-estruturada, aplicada em nove sujeitos do sexo 
masculino, entre 30 e 51 anos de idade e de distintas classes sócio- econômicas. Como 
parte dos resultados, verificou-se a demanda pela interrupção do ciclo de violência 
intrafamiliar, mimetizado na dimensão intergeracional e relacionado com o abuso ou 
dependência de bebidas alcoólicas dos pais. 
Introdução�
A compreensão da drogadição, enquanto fenômeno sustenta-se na consideração da trí-
ade na qual se tem um sujeito consumidor, uma droga eleita que é consumida e um 
contexto no qual o uso da mesma é realizado (Colle, 2001; Kalina & Kovadloff, 1983; 
Olievestein, 1985). No consumo de bebidas alcoólicas, esta configuração não se revela 
diferente, exigindo-se a profunda compreensão de cada um desses elementos em relação 
entre em si. Quando se busca ampliar a consideração do comportamento etilista para 
além da díade sujeito-bebida, possibilita-se a contemplação da dimensão contextual 
que pode estar situada no eixo horizontal ou vertical do sistema sócio-familiar. Como 
eixo horizontal, pode-se compreender o contexto atual da família, enquanto o eixo ver-
tical refere-se à dimensão histórica das gerações familiares (Penso, Costa & Ribeiro, 
2008). 
A coesão familiar é, em parte, mantida pela transmissão de regras, de valores e 
de expectativas que podem ter diversos níveis de visibilidade e que moldam formas de se 
comportar, de se situar no mundo e na vida. Recebe-se em herança, tudo o que as 
gerações precedentes adquiriram, fazendo de cada ser humano não mais do que 
um elo numa longa cadeia de transmissões que datam do primórdio da humanida-
de (Prieur, 1999). Não obstante, nesta herança podem ser transmitidos padrões disfun-
cionais e nem sempre claramente perceptíveis, capazes de imprimir exigências sutis e 
dificilmente recusáveis. Como destacaram Nichols e Schwartz (1998), carrega-se, onde 
quer que se esteja, a reatividade emocional não resolvida com os pais, sob a forma de 
vulnerabilidades para mimetizar os mesmos antigos padrões em todo relacionamento 
novo e intenso que se inicia. 
Diante de inúmeras evidências em torno das influências dos legados familiares de ou-
tras gerações na família atual, constatou-se a fecundidade de estudos que exploraram 
157De escravo a herdeiro: o pedido silencioso de alcoolistas no contexto do acolhimento
a dimensão multigeracional - diversidade de gerações anteriores - e intergeracional 
- influências entre gerações familiares (Bowen, 1991; Bucher-Maluschke, 2008; Penso 
& Costa, 2008). Destarte, verificou-se coexistir um mimetismo do problema em gerações 
distintas o que ampliou o olhar em direção à verticalidade da presença dos problemas 
associados ao consumo de álcool, verificando-se a presença de padrões transmitidos trans-
geracionalmente (Krestan & Bepko, 1995; Silva, 2009; Steinglass, 1997; Trindade, 2007). 
Entende-se que uma herança pode se tornar uma escravidão, quando os padrões exigem 
sacrifícios capazes de comprometer a saúde mental dos herdeiros, mesmo que estes 
não tenham consciência disso. No complexo movimento dialético de pertencimento e 
separação, ampliado para o processo de transmissão multigeracional, estabelece-se a exis-
tência de padrões herdados de gerações anteriores para as seguintes, que transferem 
expectativas por meio de delegações e exigem lealdades no cumprimento das mesmas. 
A assimilação das delegações desta herança e lealdade na continuidade das mesmas 
oferece elementos para a constituição e manutenção da identidade individual e cole-
tiva dos membros familiares, assim como podem gerar aprisionamentos em torno 
de padrões que solapam a possibilidade de renovação do funcionamento familiar. Deste 
modo, a demanda percebida em alguns colaboradores da pesquisa, revela-se no sentido 
de buscar romper com padrões insalubres e promover possibilidades de novos níveis 
de autonomia. 
Método�
Este estudo apoiou-se na Epistemologia Qualitativa defendida por González Rey (2005) 
que se funda em torno de três princípios: 1) o conhecimento é uma produção 
construtivo- interpretativa, o que significa afirmar que o conhecimento não traduz 
a somatória de fatos definidos por constatações imediatas do momento empírico. 
A interpretação se caracteriza enquanto um processo no qual o pesquisador integra, 
reconstrói e apresenta em construções interpretativas, indicadores obtidos no decor-
rer da pesquisa, que não possuiriam sentido se fossem tomados isoladamente, como 
constatações empíricas; 2) o caráter interativo do processo de produção do conhe-
cimento, que aponta que as relações pesquisador-pesquisado são uma condição para o 
desenvolvimento das pesquisas nas ciências humanas. A dimensão interativa é essencial 
no processo de produção de conhecimentos, revelando-se as relações entre os envolvidos 
no processo de construção da informação o principal cenário da pesquisa; e 3) a signifi-
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cação da singularidade como nível legítimo da produção do conhecimento. Este 
aspecto ressalta um resgate da singularidade enquanto fonte legítima de conhecimen-
to científico. Dessa maneira, o conhecimento científico, diante da perspectiva qualitativa, 
não se destaca pela quantidade de sujeitos a serem estudados, mas pela qualidade de 
sua expressão. 
A pesquisa aconteceu em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas 
do Distrito Federal, no contexto do acolhimento deste serviço. Utilizou-se uma en-
trevista semi- estruturada com nove homens de idades entre 30 e 51 anos, que buscaram 
o serviço volitivamente em decorrência do alcoolismo. As entrevistas foram gravadas e 
degravadas, mediante autorização por escrito dos participantes. A discussão dos dados 
baseou-se na análise de discurso advogada por González Rey (2005), resultando, portan-
to, na construção de indicadores e zonas de sentido. 
Os participantes da pesquisa foram selecionados entre os usuários que chegaram ao 
serviço pela primeira vez; a partir de demanda espontânea; com histórico de abuso e 
dependência de bebidas alcoólicas nos últimos 2 anos; não ter associado ao problema 
com o álcool consumo de drogas ilícitas nos últimos 10 anos e ter assinado o termo de 
consentimento livre e esclarecido.
Discussão�dos�resultados
Da análise dos achados, percebeu-se existir o pedido pela interrupção de ciclos de 
violência intrafamiliar que se reproduziram em distintas gerações familiares provocan-
do lembranças dolorosas como a brutalidade do pai/padrasto; ser receptáculo da violência 
materna e tornar-se reprodutor da violência sofrida, porém sem desejá-lo. As discussões 
das informações obtidas nesta pesquisa estão dispostas na sequência.
1) “O que me machuca mais é a lembrança”: trajetória de vida marcada 
pela violência intrafamiliar, pela negligência e pelo desamparo
Nas histórias reconstituídas a partir das narrativas dos participantes da pesquisa, perce-
beu- se a presença do consumo de bebidas alcoólicas (BA) no subsistema parental. 
Notou-se a existência de pais e mães habituados com padrões de consumo suficientes 
159De escravo a herdeiro: o pedido silencioso de alcoolistas no contexto do acolhimento
para a produção, no mínimo, de intoxicação alcoólica. O padrão abusivo ou dependente 
do consumo de BA feita por estes pais não apenas foi apontado como fator influencia-
dor do início do consumo dos filhos. Também revelou indícios de repercussões negativas 
no âmbito familiar no qual os participantes da pesquisa foram criados, uma vez que os 
pais alcoolistas não puderam cumprir com seus papéis para com os filhos. 
Para Minuchin e Fishman (1985), a família representa o contexto natural para crescer 
e para receber auxílio. Caracteriza-se também pelo locus no qual os indivíduos receberão 
apoio para a individuação sem perda do sentimento de pertencimento. Na família, os 
filhos têm o direito de serem cuidados, protegidos e socializados, internalizando regras evalores, assim como estilos de enfrentamento de conflitos e de negociação dos mesmos. 
As famílias assumem ou renunciam suas funções de acordo com as necessidades cultu-
ras ou conforme a capacidade psíquica e maturidade de seus membros. 
Para Krestan e Bepko (1995) o nascimento de um primeiro filho pode despertar antigos 
conflitos conjugais ou mais antigos do que o advento do matrimônio e ainda não resolvi-
dos. Essa sensação de inabilitação para lidar com as responsabilidades pela criação 
dos filhos pode desencadear um quadro de futuro alcoolismo como forma de lidar com 
a erupção dessas questões conflituosas. Considerando-se a presença de pais alcoolistas, 
as funções dos mesmos para com os filhos ficam prejudicadas. De acordo com Gomes, 
Deslandes e Veiga (2002), os problemas associados ao consumo de BA podem pro-
vocar comportamentos agressivos, negligência e abandono dos cuidados com os pró-
prios filhos. Também representa fator de risco para maus-tratos contra crianças (Ramos & 
Oliveira, 2008). Diversas evidências empíricas apontam para o fato que o consumo de 
BA no âmbito familiar potencializa a ocorrência de conflitos interpessoais; desen-
tendimentos familiares e afetivos; separação de casais; abuso físico e sexual; homicídio; 
suicídio e envolvimento em manifestações de violência no âmbito intrafamiliar (Peluso 
& Blay, 2008). 
Das narrativas apresentadas pelos participantes, destacou-se a trajetória de vida na qual 
a violência se revelou recorrente. Não raramente, a cultura do beber associada à violência, 
vitimou mães, irmãos e os próprios sujeitos. Embora a ênfase na modalidade de violência 
física tenha sido destaque na fala dos colaboradores, não significa afirmar que outros tipos 
de violência não tenham ocorrido. “(...), problema mesmo assim familiar, né (...) só mes-
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mo que meu pai me batia em mim e na minha mãe é só isso ai (JEOVÁ) na metodologia é 
preciso dizer se os nomes são fictícios ou não. 
De acordo com Guerra (2001), reconhecem-se quatro tipos de violência doméstica: 
violência sexual, violência física, violência psicológica e negligência. A primeira caracteri-
zar-se- ia como toda ação ou jogo sexual, relação hetero ou homossexual entre um ou mais 
adultos e uma criança ou adolescente, tendo por objetivo estimular sexualmente esta 
criança ou adolescente ou utilizá-lo para lograr estimulação sexual sobre sua pessoa 
ou de terceiro. Embora esta manifestação de violência doméstica não tenha sido ver-
balizada, deve-se considerar que por sua natureza, normalmente assume a dimensão 
de segredo familiar, expressando-se de forma camuflada (Ramos & Oliveira, 2008). 
Adicionalmente, existem correlações significativas entre o histórico de abuso sexual e o 
consumo posterior de drogas e álcool (Bastos, Bertoni & Hacker, 2005), assim como o 
consumo de BA atua como fator de risco para abuso sexual (Chavez Ayala et al, 2009). 
A violência física, de acordo com Guerra (2001), revela-se enquanto conceito controver-
so. Existem segmentos que afirmam tratar-se de atos que resultam em danos físicos às 
vítimas. Outras correntes a definem como todo ato capaz de causar, no mínimo dor 
física nas vítimas. Sem embargos, esta prática constitui-se como uma das principais 
causas de mortalidade de crianças e adolescentes em todo mundo (Gomes et al., 2002). 
Em situações nas quais a prática de violência física não resulta em óbito, ela produz 
marcas no corpo que se tornam registros eternizados na pele dos vitimados, que po-
derão ativar lembranças e o sofrimento vivenciado, configurando-se em uma contínua 
tortura psíquica, que poderá solapar as potencialidades de realização dessas vítimas na 
vida. Essas conseqüências danosas se amplificam quando existe a presença da violência 
psicológica e a negligência associada à anterior. Para Ballone e Ortolani (2002) e Guerra 
(2001), a violência psicológica se caracterizaria pelos atos de depreciação, de hu-
milhação, de discriminação, de chantagens e xingamentos cujos efeitos podem causar 
danos emocionais para o resto da vida. Enquanto a negligência se define como atos de 
omissão dos pais às necessidades dos filhos quanto à alimentação, condições de vida, 
educação, carinho (Lippi, 1985). Essas desassistências são capazes de provocar danos du-
radouros no psiquismo das vítimas. 
Em uma das narrativas, apresentou-se o histórico de um dos participantes que quase 
teve seu braço decepado pelo padrasto quando criança. Olhar para a marca no braço, 
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