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271Narcisismo e estados limites secundário, momento em que é possível a percepção de uma maior diferenciação entre o Eu e o objeto, e momento em que o Eu consegue desinvestir o objeto redirecionando o investimento para si próprio. Podemos observar que Freud considera a questão da descoberta da escolha narcísica de objeto a razão mais forte para aceitar a hipótese do narcisismo. Desta forma, o Eu não seria mais um representante apenas dos interesses de conservação do indivíduo, ele também seria permeado pelo erotismo. Esta foi talvez a maior importância teórica do conceito de narcisismo para a concepção psicanalítica do Eu, ou seja, o fato de o Eu se constituir como objeto libidinalmente investido e não apenas um representante dos in- teresses da autoconservação, como postulado na primeira teoria freudiana das pulsões. No artigo de 1914, Freud vai dizer ainda que o ser humano sente com certa facilidade um fascínio por si mesmo desde o início da vida psíquica. Enfatiza também a concep- ção do narcisismo dominada pela ideia de um fechamento em si mesmo. É através da formulação da metáfora do protozoário ressaltada no texto de 1914 que Freud vai dizer que na etapa narcísica há uma indiferenciação entre o eu e a realidade exterior, porque nessas condições tudo é uma posse exclusiva de si mesmo. A�retirada�dos�investimentos�do�mundo�exterior Freud (1914) faz referência às “parafrenias”, modernamente concebidas como psicoses que englobam a paranoia e a esquizofrenia, para explicar o fenômeno do narcisismo quando da retirada dos investimentos no mundo exterior. Essas patologias evidenciam o fenômeno da perda de interesse de tudo o que diz respeito ao mundo exterior. Nesses casos, o que ocorre é um exagero e uma distorção no campo do patológico, mas que pode ser utilizado para compreendermos o fenômeno também quando pensamos na dimensão neurótica. Teoricamente, a perda de interesse no mundo exterior diz respei- to a uma concentração desse interesse sobre a própria pessoa. A retirada do interesse dessas pessoas do mundo externo não configura, segundo Freud, uma atitude perversa, mas uma defesa do Eu ligada à necessidade de sobrevivência do indivíduo em função da autoconservação, de tal forma havendo um reinvestimento no Eu da libido retirada dos objetos. 272 Na segunda parte do texto de 1914, Freud torna evidente alguns outros caminhos: a ob- servação da doença orgânica, a hipocondria e a vida amorosa das pessoas. Com respeito à doença orgânica, Freud observa que, para os termos próprios da teoria da libido, o doente recolhe seus investimentos libidinais para o Eu e torna a enviá-los após a cura. Quanto à hipocondria, esta se comporta como doença orgânica. Haveria, desse modo, uma diferença entre a hipocondria e a doença orgânica, pois nesta as sensações desa- gradáveis calcam-se sobre alterações comprováveis e naquela não. Freud explica que na hipocondria estaríamos lidando com uma erogeneidade que emana de uma parte do corpo e envia estímulos sexuais em direção à vida psíquica, em analogia à concepção de localização de zonas erógenas no corpo que substituem os órgãos genitais e se compor- tam de maneira análoga a eles. Freud (1914) encontra na vida amorosa a terceira via de acesso ao narcisismo. É impor- tante ressaltar a forma de Freud enfocar como a criança vai fazendo suas escolhas obje- tais. Ele deixa claro que a criança toma seus objetos sexuais a partir de suas primeiras experiências de satisfações sexuais autoeróticas vividas em conexão com funções vitais que servem ao propósito de autoconservação. No texto podemos destacar que aqueles que se envolvem nos primeiros cuidados com a criança vão se tornar seus primeiros objetos sexuais e que as pulsões sexuais, a princípio, vão se apoiar nas pulsões do eu, apesar de distintas. Freud diz que de maneira geral a opção narcísica faz com que a pessoa ame segundo o que ela é (a si mesma), o que ela foi, o que ela gostaria de ser, uma parte de si tomada independente. Do interesse que o indivíduo tem de seu próprio corpo, diz ele, orienta-se para um objeto exterior semelhante a ele, ou seja, homossexual. Esta etapa será (ou não) superada pela escolha heterossexual, segundo as condições da vida libidinal. É a busca da diferença que vai propiciar o alcance do objeto de tal forma que ele passe a pertencer ao dinamismo sexual. Esse movimento para a eleição objetal narcísica, movimento da libido em direção às relações objetais, na qual o critério de escolha dos objetos segue o modelo do Eu da pes- soa, ou seja, a busca no outro do que ela foi, é ou gostaria de ser, constitui-se num dos caminhos apontados por Freud para o desenvolvimento do Eu. 273Narcisismo e estados limites Segundo Green (1988), o advento do narcisismo na teoria e no pensamento freudia- no não só foi um marco, mas também um parêntese. Antes dele foram as pulsões de autoconservação e depois dele as pulsões de morte. Com a introdução do conceito de narcisismo surge claramente no pensamento de Freud a libidinização das pulsões do Eu até então destinadas a autoconservação. Segundo Green, foi um salto decisivo para Freud levar a sexualidade ao seio do Eu, quando este último parecia, numa primeira abordagem, escapar à sua influência. O narcisismo é a inclusão do Eu na teoria da libido e no circuito do discurso da psicanálise ou, como coloca Birman (1999), “a descoberta do narcisismo implicou justamente a erotização do Eu” (p.41). O narcisismo é então, para a teoria do Eu, a passagem do que diz respeito à autoconser- vação ou necessidade básica para o amor, a libido. Introduzir o narcisismo na teoria das pulsões implica fazer com que as pulsões tomem o Eu como objeto de investimento, o que se dá pela erotização do próprio corpo. Nesse novo esquema o Eu aparece como uma das possíveis localizações da libido. O Eu passa a ser também objeto da pulsão se- xual tanto quanto os demais objetos, só que de maneira um tanto quanto diferenciada, a qual Freud dá o nome de libido narcísica. A questão que aqui se interpõe é a seguinte: como pode o indivíduo, a partir de um eu unificado, fechado em si mesmo, seguir rumo à abertura, rumo à escolha do outro como objeto de amor? Uma das prerrogativas dessa questão é que o fechamento man- tém o sujeito num verdadeiro “amor de si”, agigantado, onde os campos do outro e dos objetos ficariam eclipsados por este grandiosismo do Eu, senhor e centro do mundo. Por outro lado, a percepção da realidade externa forçaria o Eu a dirigir aos objetos suas cargas libidinosas, sob pena de que poderá adoecer se não o fizer, isto é, poderá romper o vínculo com a realidade (Lazzarini, 2006). No amor do outro o eu se desprenderia de parte desse investimento, alocando-o no campo do objeto. André (l996) nos esclarece que esta saída para o amor pelo outro é a própria saída para a alteridade, ou seja, o eu necessitaria mesmo de um confronto amoroso com o outro para que se possa estabelecer esta saída. Entretanto, a tendência do eu vai ser a de sem- pre tirar proveito e benefício da situação, o amor por si tendendo a encobrir o amor pelo outro e passando a ser a dinâmica narcísica aquilo que trabalha para voltar a fechar as brechas abertas pela irrupção da alteridade. Ao permanecer fechado na vida adulta, o eu 274 tenderá a se perceber como engrandecido, eu centro do mundo, o que poderá caracteri- zar uma formação patológica. Narcisismo�e�psicanálise�contemporânea:�reflexos�na�cultura Tem havido uma crescente preocupação por parte dos psicanalistas contemporâneos com a modificação do perfil da demanda clínica que remonta a fins do século passado. O que vem sendo observado é um progressivo deslocamento dos quadros neuróticos para as patologias que envolvem de alguma forma as questões narcísicas, fazendo-se pertinente uma revisão nos aspectos relacionados a essa demanda e à clínica da atuali- dade. Depressão,drogadição, anorexia, bulimia, síndromes complexas de toda ordem constituem reflexos de uma cultura que passa por momentos de indefinição e mudança com relação a valores sociais, rompendo com aspectos que eram considerados primor- diais nos tempos de Freud. Como observa Lipovetsky (2005) a respeito da eclosão de tais fenômenos na contemporaneidade: “A patologia mental obedece à lei da época que tende à redução da rigidez assim como a liquefação das relevâncias estáveis: a crispação neurótica foi substituída pela flutuação narcísica. Impossibilidade de sentir vazio emocional, donde a dessubstancialização chegou a seu fim, explicitando a verdade do processo narcisista, como estratégia do vazio” (p.55). O que podemos dizer de uma sociedade como a nossa que se vê exaltada pelos avanços científicos e tecnológicos, e em descompasso, muitas vezes, com a possibilidade de o in- divíduo apreender esses mesmos avanços? O que dizer de uma sociedade competitiva, aquela que gera o empobrecimento da experiência coletiva e valoriza os interesses e as demandas íntimas? Que bases essa mesma sociedade estaria oferecendo para a cons- tituição da individuação/subjetivação? O que dizer dos sujeitos caracterizados como casos limites? Eles não estão evidenciando uma sobrecarga de tarefas e não estariam prejudicados pelos padrões de eficiência dessa sociedade altamente desenvolvida? São estas algumas das questões que se encontram no compasso dos estudos da conjugação entre cultura contemporânea e psicanálise. As subjetividades contemporâneas refletem esses descompassos e uma das consequên- cias desse processo sobressai no sofrimento psíquico do sujeito, que ganha na atualida- 275Narcisismo e estados limites de novos contornos. Estamos cientes de que apesar de ser uma problemática da clínica, esse processo se encontra mediado também pela cultura calcada na própria crise da subjetividade fundamentada na modernidade. A grande parte das queixas e perturbações se apresentam hoje sob a forma de um mal estar difuso e invasor, um sentimento de vazio interior, uma incapacidade de sentir as coisas e as pessoas ou, dito de outra forma, as configurações subjetivas contemporâneas tendem a apresentar uma ausência de sofrimento devido a conflitos neuróticos clássi- cos regulados pela lógica da castração e do desejo. Fala-se que algo da ordem do desam- paro primordial, disposto por Freud em sua obra, tem encontrado espaço diferenciado em nossos dias. Os sintomas neuróticos que correspondiam em grande parte a uma sociedade mais repressiva, tirânica, autoritária e puritana deram lugar às desordens narcisistas, fruto de uma sociedade mais permissiva e também mais eclética em suas manifestações. Os pacientes não sofrem tanto mais de sintomas fixos e exuberantes na sua forma, mas, sim, de perturbações vagas e difusas, com sentimentos de vazio inte- rior e incapacidade de sentir as coisas e as pessoas. Dos�estados limites�e�a�fragilidade�das�fronteiras�do�Eu� Sabemos o quanto a teoria psicanalítica se atualiza em uma interação direta e contínua com a prática clínica de psicanalistas. Mesmo que a denominação estados-limite seja pós- -freudiana e diga respeito a um modo de organização do psiquismo que se tornou de importância na atualidade, compreendemos que os casos-limite de todos os tempos são aqueles que desafiam os diversos profissionais a se deslocarem de seus usuais lugares de atuação e compreensão. Podemos dizer que todos os casos publicados por Freud ser- viram para ele de (pre)texto para que sua teoria e prática fossem (re)visadas. Do mesmo modo, os denominados na literatura psicanalítica atual de estados limite, casos-limite ou borderline têm exigido que psicanalistas ampliem suas escutas. O método tradicional do trabalho com pacientes neuróticos, a análise das transferências, cede par- te do espaço para a escuta daquilo que Green (1988b) chama de “a loucura pessoal do paciente”. Se no trabalho analítico com pacientes neuróticos o predomínio é a presença da ansiedade de castração e uma busca da resolução edípica da neurose infantil, o tra- balho com os casos-limite revela uma dupla ansiedade, a ansiedade de separação e a de
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