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CIÊNCIA dos primórdios da formação humana até a revolução científica na era moderna uma síntese didática H I S T Ó R I A D A ANTONIO CARLOS HIDALGO GERALDO ANTONIO CARLOS HIDALGO GERALDO História da ciência: dos primórdios da formação humana até a revolução científica na era moderna, uma síntese didática. Primeira Edição Cuiabá, MT Edição do Autor 2018 Copyright © 2018 by Antonio Carlos Hidalgo Geraldo Todos os direitos reservados Ficha catalográfica Geraldo, Antonio Carlos Hidalgo História da ciência: dos primórdios da formação humana até a era moderna, uma síntese didática [livro eletrônico] / Antonio Carlos Hidalgo Geraldo. - 1ª edição - Cuiabá, MT: Edição do Autor, 2018. 117 p. Bibliografia ISBN: 978-85-540423-0-1 1.História da ciência – Síntese didática 2.Ensino das ciências naturais 3. Professores e Bacharéis – Formação profissional. CDU-001(091) 1ª Edição – agosto de 2018 Brasil Capa: Wesley de Oliveira Neto Edição do Autor ANTONIO CARLOS HIDALGO GERALDO achg2@hotmail.com PREFÁCIO Este livro tomou como base de conteúdo minha experiência como professor de “História e Filosofia do Conhecimento Biológico”, para alunos de licenciatura e bacharelado em Ciências Biológicas no Instituto de Biociências da Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT -, e o trabalho de pesquisa desenvolvido pelo autor no Programa de Pós- doutorado da Faculdade de Educação da UNICAMP, Campinas, SP, no período de julho de 2015 a junho de 2016, sob supervisão do Prof. Dr. Dermeval Saviani, na pessoa de quem venho agradecer a toda a equipe de trabalho do referido programa de pós-doutorado que tornou possível o desenvolvimento da pesquisa. Também foi importante para o desenvolvimento da pesquisa citada, o afastamento das minhas atividades de encargos didáticos por um ano, concedido pela UFMT, e o respaldo dos colegas de trabalho do Instituto de Biociências - IB -, desta mesma universidade, que assumiram meus encargos didáticos durante minha ausência naquele período, em especial a Profª. Drª Renata Cristina Cabrera, em nome de quem agradeço a toda a equipe do IB - UFMT. Antonio Carlos Hidalgo Geraldo Agosto de 2018 SUMÁRIO INTRODUÇÃO...............................................................................................................9 I - O CONHECIMENTO NA ERA PRIMITIVA..................................................23 1-Período paleolítico: dos primórdios da formação da espécie humana até aproximadamente 10.000 anos atrás.............................................................................23 1.1-Artes e Linguagens...................................................................................................26 1.2-Crenças e visão de mundo na era primitiva: a magia..........................................28 2-Da revolução neolítica à formação das primeiras civilizações: de 10.000 a 5.000 anos atrás..........................................................................................................................31 II - A MITOLOGIA E O NASCIMENTO DO PENSAMENTO RACIONALISTA: o conhecimento na Antiguidade, a era das primeiras grandes civilizações, de 5.000 anos atrás até o século V da era cristã..........................................................................37 1-A elaboração de calendários, a matemática, a linguagem escrita e a astronomia........................................................................................................................43 1.1-A matemática e a linguagem escrita.......................................................................51 2-A razão: o nascimento da filosofia na era antiga.....................................................54 3-A Metafísica Idealista de Platão: Grécia 427-347 ac...............................................56 4-A Filosofia Finalista de Aristóteles: Grécia 384-322 ac.........................................58 5-Principais características do pensamento aristotélico.............................................59 6-A ciência Helenística e a Escola de Alexandria.......................................................68 7-O conhecimento na transição da Era Antiga para a Era Medieval......................73 III - ASPECTOS GERAIS DA SOCIEDADE E DO PENSAMENTO NA EUROPA OCIDENTAL MEDIEVAL: do século V ao século XV da era cristã..................................................................................................................................81 1-O contexto sócio-econômico da Europa Medieval................................................81 2-Cristianismo e Conhecimento na Europa Medieval...............................................85 3-Características Gerais da filosofia Cristã: o credo, os dogmas católicos, a palavra revelada por Deus..............................................................................................88 4-A teologia natural na idade média.............................................................................91 IV - A REVOLUÇÃO CIENTÍFICA: o período que vai do século XV ao século XVII..................................................................................................................................95 1-O contexto econômico, social e político europeu nos séculos XV, XVI e XVII..................................................................................................................................95 2- O Humanismo, a Renascença e o Mecanicismo....................................................98 BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................115 INTRODUÇÃO O que entenderemos por conhecimento científico ao longo deste trabalho? O conhecimento científico é uma das formas em que se apresenta o conhecimento humano em sentido geral; dentre as diferentes formas de conhecimento com características específicas, podemos citar algumas: o conhecimento popular (conhecimentos prático-utilitários do cotidiano ou senso comum), o conhecimento mágico (que predominou na era primitiva), o conhecimento mitológico (que predominou na era antiga, na Mesopotâmia, no Egito, na Grécia, em Roma), o conhecimento artístico, religioso, filosófico, científico e outros. Estes tipos de conhecimento não são isolados entre si, pois sofrem influências mútuas. A ciência visa compreender os elementos e fenômenos da natureza e da sociedade e suas relações, buscando apreender as suas regularidades, seus padrões de comportamento e de transformação, objetivando estabelecer conceitos, leis, princípios, teorias, que representem e descrevam estes elementos, fenômenos, relações e regularidades por meio de uma linguagem própria de cada área de estudos e pesquisa; objetivando, também, resolver os problemas que surgem para o homem suprir suas necessidades no processo de produção de sua vida, controlando ou transformando estas relações entre os elementos e os fenômenos da natureza e da sociedade. Estas relações entre elementos e fenômenos podem ser: relações de causalidade, de identidade, de semelhanças e diferenças, de derivação, de quantidade, de variabilidade qualitativa e quantitativa, de transformação, de impulsionamentos recíprocos, de conexões, relações de complementariedade, relações de 10 ANTONIO CARLOS HIDALGO GERALDO contradição, e outras. Ao elaborar uma forma de compreender a natureza e a sociedade, a ciência contribui também para a construção de uma visão de mundo coerente e objetiva para a humanidade. “compreender e relacionar os fenômenos, revelar sua lógica de manifestação, controlá-los, conservá-los, transformá-los e adaptá-los às suas necessidades, seguindo alguns princípios teórico-metodológicos...”(Geraldo, 2014, p. 34) Quais as principais características do conhecimento científico? Dentre as principais características específicas do conhecimento científico, vejamos algumas: a objetividade, a metodologia, a concreticidade e a sistematização lógica. a) A objetividade: refere-se à condição de que os fenômenos da realidade sejam compreendidos a partir de suas características intrínsecas, isto é, compreender o objeto do conhecimento por seus elementos formadores, as relações que estes estabelecem entre si, tanto em suas partes como em sua totalidade e pelas causas materiais que determinam a sua existência e seu processo de mudanças. Buscando-se estabelecer uma conexão lógica objetiva, necessária, entre o objeto que é representado e a própria representação do objeto. b) A metodologia: refere-se à condição de que a elaboração do conhecimento científico passa necessariamente por um processo de problematização da realidade que se quer compreender, de forma planejada e sistemática, acompanhado de um levantamento e coleta de dados baseados na observação objetiva, numa fundamentação teórica, na experimentação, na comparação, na indução experimental, na dedução, na análise, na síntese e no registro de todas essas etapas, incluindo os resultados obtidos. 11 História da ciência: dos primórdios da formação humana ate a revolução científica na era moderna, uma síntese didática. c) A concreticidade: refere-se à relevância do conhecimento construído para o desenvolvimento da humanidade, em sentido cognitivo, emocional, comportamental, axiológico (valorativo), econômico, social, histórico e outros. Refere-se também à intencionalidade, ainda que implícita, do conhecimento. “Aqui entendida no âmbito da unidade teoria-prática social (...). Refere-se à densidade do conteúdo histórico-social do conhecimento, sua inserção enquanto parte de uma totalidade complexa que compõe a cultura humana (...). Sua contribuição consciente na construção da visão de mundo do homem e na melhoria da qualidade de vida dos homens”. (Geraldo, 2014, p. 39) Cabe aqui ressaltar que a característica acima refere-se ao conhecimento científico em sua totalidade, assim, podemos encontrar partes específicas da produção cientifica que, devido ao seu alto grau de especialização, não identificamos de forma imediata e direta sua concreticidade como foi definida acima, todavia quando esses conhecimentos específicos são compreendidos como parte fundamental de outros conhecimentos cuja relação com as práticas sociais são mais diretas, ai então, fica evidente a sua concreticidade mediadora. Como exemplo podemos citar os trabalhos de taxionomia entomológica e suas relações com as demais ciências que dependem dela: ecologia, agronomia, medicina e outras. Assim, podemos compreender a relevância histórico-social dos conhecimentos elaborados por um taxionomista curador de uma coleção entomológica, na medida em que estes conhecimentos são mediadores da elaboração de conhecimentos em outras áreas cuja aplicabilidade nas práticas sociais humanas são diretas, como as que citamos acima; além de que, os conhecimentos científicos específicos que não têm uma aplicabilidade social direta são fundamentais na edificação do arcabouço teórico-metodológico da 12 ANTONIO CARLOS HIDALGO GERALDO estrutura de totalidade lógica das ciências, e, também neste sentido, podemos compreender sua concreticidade mediadora. d) A sistematização lógica: refere-se à condição de coesão e coerência na estrutura lógica do conhecimento científico. “As ideias que compõem o conhecimento científico devem combinar-se e estabelecer conexões de sentido em dimensões parciais especificas e em dimensões de estrutura e totalidade do conhecimento: conexões de ordenação, de concatenação, de derivação, de interdependências, de codeterminações, de movimento em sua forma e conteúdo, segundo um conjunto de regras lógicas”... (Geraldo, 2014, p.40) O conhecimento forma uma estrutura conceitual sistemática, com os seguintes elementos básicos: fatos, fenômenos, conceitos, hipóteses, teses, leis, modelos, métodos, e teorias, organizados em derivação lógica e em conexão com princípios unificadores. Vejamos abaixo um exemplo das relações entre estes elementos básicos do conhecimento científico e a busca de conexões com princípios unificadores, conforme reflexão desenvolvida por Mayr (1998), sobre os estudos da classificação da biodiversidade ao longo da Era Moderna: “A quase inconcebível riqueza dos tipos de organismos, todavia, apresentou um sério desafio para a mente humana. O mundo ocidental preocupava-se com a procura das leis (naturais), desde a revolução científica na mecânica e na física. Contudo, nenhum outro aspecto da natureza era tão rebelde à descoberta de leis como a diversidade orgânica. A única maneira de poder detectar tais leis, assim se imaginava, era ordenar a diversidade, mediante sua classificação. Isso explica por que os naturalistas dos séculos XVII, XVIII e XIX eram tão obsessivos pela classificação. Isso lhes permitia colocar a desconcertante diversidade pelo menos numa espécie de ordem. Por coincidência, a classificação, eventualmente, conduziu de fato a uma 13 História da ciência: dos primórdios da formação humana ate a revolução científica na era moderna, uma síntese didática. procurada lei: descendência (por modificação) de um ancestral comum. Tão importante se afigurava esse proceder de ordenação aos zoologistas e botânicos do século XVIII, que a classificação era tratada quase como sinônimo de ciência.” (Mayr, 1998, p. 170) Encontramos esta estrutura lógica relacionada com o contexto histórico e social onde ocorre sua elaboração, no seu tempo e no seu espaço geográfico e social, bem como no processo mais geral da construção da humanidade em devir em sua totalidade. Isto significa que o conhecimento científico não pode ser verdadeiramente compreendido apenas como uma estrutura conceitual lógico-sistemática com significado em si e “per si”, fora das práticas sociais nas quais e para as quais foi construído. Portanto, precisamos apreender o conhecimento científico como prática social, como elemento da cultura humana, derivado das condições sociais das culturas onde é ou foi socialmente produzido. Como compreender o conhecimento científico como processo social, como produto cultural de um determinado período histórico, e, ao mesmo tempo, como resultado da elaboração individual do conhecimento, pelos homens de uma determinada sociedade? Consideramos que os processos de “produção social do conhecimento científico” e de “elaboração do conhecimento científico”, devem ser compreendidos em sua especificidade (sua diversidade) e em sua unidade (Saviani, 2000). Como esboço inicial para a compreensão das relações de unidade-diversidade nestes processos, podemos afirmar que o processo de elaboração do conhecimento é uma forma de trabalho, e, como tal, apresenta os mesmos momentos fundamentais apresentados pela categoria trabalho: apropriação e objetivação (Duarte, 1993). A apropriação se refere à assimilação da herança cultural dos conhecimentos (teorias, conceitos, categorias lógicas, métodos) já existentes, que os indivíduos que elaboram o 14 ANTONIO CARLOS HIDALGO GERALDO conhecimento têm que realizar antes e durante o processo de elaboração do conhecimento; e a objetivação se refere às inovações e ressignificações teórico-metodológicas criativas que os pesquisadores realizam no processo de elaboração do conhecimento científico, que podem ser considerados individualmente ou por grupos de pesquisadores. Assim, o processo de elaboração do conhecimento científico, como processo de trabalho, é mediado dialeticamente (determinado e determinante) pela “correnteza” da força do desenvolvimento do contexto cultural da sociedade ondevivem e trabalham os pesquisadores (Bernal, 1979), considerando-se as suas múltiplas determinações (econômicas, políticas, ideológicas, jurídicas, filosóficas, psicológicas, linguísticas e outras), na medida em que os pesquisadores, em seu processo de formação e desenvolvimento pessoal, assimilam e se apropriam dos conceitos, das teorias, das categorias lógicas e dos métodos advindos do passado e das práticas sociais de seu tempo; e é formado, conjuntamente, pela objetivação das inovações criativas desenvolvidas pelos pesquisadores no processo de elaboração e de ressignificação dos conhecimentos (descoberta de novos fatos, ressignificação dos fenômenos já conhecidos, novas hipóteses, novas teorias, novos métodos, etc.). O processo de produção social dos conhecimentos científicos, por sua vez, deve ser compreendido como momento do processo de produção e desenvolvimento do conhecimento humano em geral (agricultura, comércio, finanças, religiões, filosofia, artes, indústria, engenharias, medicina, regras sociais, etc.). A racionalidade e o conhecimento humano não têm origem exclusivamente genética, foram desenvolvidos ao longo do processo de evolução biológica e cultural do homem, no seio do processo de produção da sua subsistência, 15 História da ciência: dos primórdios da formação humana ate a revolução científica na era moderna, uma síntese didática. juntamente com o desenvolvimento da sua capacidade de trabalho, de organização em sociedades, das suas características emocionais e do desenvolvimento das linguagens complexas; portanto, a racionalidade e o conhecimento humano se originam e se transformam ao longo do processo de desenvolvimento das relações do homem com a natureza e com os outros homens, como processo social e histórico. A ação do homem evoluiu de, inicialmente, predominantemente reflexa, como os demais animais, para uma ação predominantemente reflexiva (Pinto, 1978), e o conhecimento foi sendo acumulando, fixado socialmente, transmitido para as novas gerações e desenvolvido historicamente, tendo os processos de produção social da vida material, do desenvolvimento emocional e do desenvolvimento da linguagem como principais elementos determinantes e mediadores. Desta forma, o homem desenvolveu ao longo do tempo, as seguintes funções: a sensação; a memorização; a percepção; a representação simbólica dos objetos, dos seres, das substâncias, dos fenômenos e de suas relações; a conceituação, como forma simbólica de fixação das representações mentais; a construção de redes de conceitos e de relações entre conceitos, isto é, as linguagens complexas; a imaginação, criando e codificando mentalmente relações e formas, a partir da estrutura cognitiva simbólica já existente e acumulada, que foi e ainda é fundamental para o desenvolvimento da criatividade humana; as habilidades cognitivas complexas (identificação, diferenciação, classificação, quantificação, elaboração de conceitos, generalização, indução, dedução, análise, síntese, resolução de problemas); a determinação de objetivos e de finalidades, tanto em sentido individual como social, tendo como referência suas necessidades; uma grande variedade e precisão dos movimentos corporais, como os movimentos das mãos e outros; a criação e a fixação social das técnicas e dos instrumentos de trabalhos; dos métodos; criação dos sistemas conceituais complexos, logicamente articulados e 16 ANTONIO CARLOS HIDALGO GERALDO estruturados, como as teorias; as formas estáveis de relacionamento e coesão social; as emoções; os sistemas de comportamento e de valores humanos; enfim, o conhecimento humano em sentido geral, acumulado e fixado socialmente durante milhares de anos, tendo como principal forma de materialização a linguagem e as construções materiais desenvolvidas pelo homem ao longo da história (Geraldo, 2014, p. 06 e 07); e, portanto, do conhecimento científico em particular, como parte deste processo de desenvolvimento histórico-cultural mais geral. Todo este processo de desenvolvimento irá constituir a cultura humana, em sua dimensão particular, nas diferentes sociedades que se formaram ao longo da história, e em sua dimensão universal, no conjunto que forma a cultura humana como totalidade em processo de transformação e desenvolvimento contínuo. A cultura deve ser compreendida como realidade em movimento, que influencia e impulsiona o desenvolvimento das aquisições materiais (instrumentos, construções e outras) e simbólicas (conceitos, métodos, técnicas, regras sociais e outras) do seu tempo e lugar e que é influenciada e impulsionada por estas mesmas aquisições; em outras palavras, a cultura influencia e impulsiona a síntese e os resultados dos conhecimentos materiais e simbólicos que são elaborados pelos indivíduos de um determinado período e que se fixam social e historicamente, e, ao mesmo tempo, é influenciada e tem o seu desenvolvimento impulsionado pelo processo de elaboração e de desenvolvimento material, emocional e conceitual-metodológico, ativo e criativo, realizado pelos indivíduos humanos deste mesmo tempo. Isto acontece, também, com o conhecimento científico e com seu processo de síntese e desenvolvimento, uma vez que este tipo de conhecimento é parte da cultura humana e será, então, efeito e causa ao mesmo tempo, determinado e determinante, impulsionado e impulsionador, do desenvolvimento cultural compreendido como totalidade histórica. 17 História da ciência: dos primórdios da formação humana ate a revolução científica na era moderna, uma síntese didática. Portanto, a produção social do conhecimento e a elaboração individual do conhecimento científico se complementam e se impulsionam dialeticamente. Enquanto a elaboração do conhecimento manifesta-se, principalmente, como um processo de construção e de evolução conceitual teórico-metodológico, de ressignificação e de criação, realizado por indivíduos ou por grupos de indivíduos, a produção social do conhecimento manifesta-se, principalmente, nos processos sócio-culturais que dão condições e suporte (material e intelectual) aos indivíduos que se dedicam à elaboração do conhecimento, bem como aos processos de seleção e fixação social e histórica destes conhecimentos, que dependem da sua viabilidade e aplicabilidade nas práticas sócio-culturais de uma determinada sociedade. Assim, apesar de suas especificidades, temos que apreender o movimento de síntese e unidade entre os processos de produção social do conhecimento e de elaboração do conhecimento, como momentos de um processo maior, coexistindo com suas diferenças e contradições, impulsionando-se e transformando-se mutuamente, e contribuindo para a totalidade dos resultados culturais da humanidade em seu devir histórico. Ainda na forma de esboço, podemos afirmar que as condições (materiais e intelectuais) existentes e as necessidades e problemas surgidos e enfrentados no processo de sobrevivência e de desenvolvimento social do homem, bem como a criatividade, a curiosidade e a imaginação, estão entre os principais elementos mediadores da unidade entre a produção social e a elaboração individual dos conhecimentos, como momentos do processo maior de desenvolvimento cultural da humanidade e do processo de humanização do homem, que não nasce homem, mas que se faz homem tanto no sentido genérico, da humanidade em devir, como no sentido particular, da construção da sua individualidade. 18 ANTONIO CARLOS HIDALGO GERALDO Estas categorias analíticas e descritivas podem contribuir para uma compreensão de síntese da história da ciência: tanto diante de uma abordagem “internalista”, como diante de uma abordagem “externalista”, uma vez que, em determinados trabalhos deste campo de estudos, pode predominar a necessidade de se enfatizar a evolução conceitual “interna” de determinadaárea da ciência, já em outros trabalhos pode predominar a necessidade de se enfatizar os determinantes culturais “externos” do surgimento e da fixação social do conhecimento científico, sem que isto signifique a exclusão da importância fundamental que ambas têm na compreensão do desenvolvimento científico e sócio-cultural humano. Devido à existência desta unidade-diversidade entre o processo social de produção dos conhecimentos científicos e o processo particular, específico, de elaboração dos conhecimentos científicos, às vezes, mais de um pesquisador em um mesmo contexto social, de forma independente, chegam a conclusões inovadoras semelhantes: como Charles Darwin e Alfred Russel Wallace, pesquisadores ingleses que desenvolveram seus trabalhos em meados do século XIX, ao estabelecerem, de forma independente e no mesmo período, a teoria da seleção natural como uma das principais causas da evolução e origem das novas espécies biológicas. Enfim, podemos afirmar que: a dimensão histórica do conhecimento científico é elemento fundamental para a sua compreensão objetiva e concreta, no sentido formal e dialético. Assimilando tanto a dimensão interna da sua evolução conceitual-metodológica, das influências mútuas dos conhecimentos específicos elaborados pelos homens de um determinado período e no passado, como a dimensão dos condicionamentos sócio-culturais, das práticas sociais, de seu contexto mais geral. 19 História da ciência: dos primórdios da formação humana ate a revolução científica na era moderna, uma síntese didática. Neste trabalho, vamos priorizar a exposição sintética do movimento histórico do conhecimento em sua dimensão sócio-cultural, como resultado e síntese de um determinado momento da totalidade do processo de desenvolvimento histórico das sociedades, em outras palavras, como resultado e síntese da totalidade das práticas sociais e do desenvolvimento específico do conhecimento humano em suas diferentes subáreas e das suas relações no processo de desenvolvimento da humanidade em devir. Os detalhes das suas relações na elaboração individual e específica do conhecimento, manifestados na sua evolução conceitual e metodológica, com seus fluxos de indução e dedução, de análises e sínteses, de reprodução, de ressignificação, de criação conceitual e metodológica, de inclusão e exclusão conceitual, de teses e antíteses, mutuamente partilhadas pelos homens de um determinado período e local, apesar de sua importância fundamental, não seriam possíveis de serem abordados e contemplados neste trabalho, devido aos objetivos de síntese didática e totalizadora a que nos propomos. Em sequência, precisamos nos perguntar: como se produz e se desenvolve socialmente o conhecimento científico? Como surgem, se fixam socialmente e se desenvolvem as novas teorias e os novos métodos científicos? Este processo ocorre num movimento histórico cíclico que se inicia com as necessidades surgidas no processo de produção e de significação da existência humana, que geram problemas para a humanidade; para a solução dos problemas o homem constrói seus conhecimentos, inclusive o conhecimento científico, delimitando assim, as técnicas, os métodos, as teorias, de um determinado período, ressignificando criativamente os conhecimentos já existentes e inovando, criando novos métodos, novos conceitos e novas relações entre conceitos; a aplicação prática dos métodos e teorias no processo de produção e representação da existência humana, e as novas necessidades sociais e individuais que surgem neste 20 ANTONIO CARLOS HIDALGO GERALDO processo, condicionam o surgimento e a delimitação de novos problemas, o que impulsiona a elaboração de novas hipóteses, novas soluções, novas teorias e novos métodos. E o ciclo se reinicia, com seus diferentes momentos impulsionando-se reciprocamente. “Do conhecimento já adquirido ao desconhecido, movido pela força da necessidade e das possibilidades humanas, sob as condições sociais materiais (...) e intelectuais vigentes. É, pois, com base na abordagem do problema histórica e socialmente considerado, abordagem esta que tem como fundamento os conhecimentos já desenvolvidos e acumulados, que se inicia a sistematização do conhecimento científico em novas teorias gerais e o processo de movimento, conexão e totalização da representação dos fatos, dos fenômenos, dos conceitos, dos modelos, das teses, das leis, das teorias, através de uma forma específica da atividade cognitiva analítico-sintética, pelos procedimentos lógicos de indução e dedução, próprios do conhecimento científico.” (Geraldo, 2014, p. 57). Na fase atual das sociedades contemporâneas, essa forma de conhecimento (a ciência) tornou-se dominante em relação às outras formas, como elemento fundamental no conjunto das forças produtivas e da superestrutura ideológica da humanidade, e deve ser socializada para todos os homens, como condição para a própria formação do indivíduo e sua capacitação para a vida plena na sociedade. O domínio do conhecimento científico é parte fundamental da formação da cidadania. É um direito objetivo de todos os homens, pois é um patrimônio da humanidade, na medida em que é produzido histórico-socialmente no seio das relações sociais de produção da existência humana e na medida em que é uma força produtiva, um meio fundamental do processo de produção. 21 História da ciência: dos primórdios da formação humana ate a revolução científica na era moderna, uma síntese didática. O acesso ao conhecimento científico tem consequências objetivas e diretas na distribuição do poder, nas relações de poder, no acesso ao controle sobre o presente e o futuro das relações do homem com a natureza (a tecnologia) e dos homens entre si (a sociedade). Assim, o ensino das ciências naturais deverá conter em seus princípios básicos os fundamentos históricos do conhecimento científico: estudar e socializar a ciência como processo e como produto, construído “a partir da” e “para a” práxis social humana, como parte do processo de desenvolvimento da humanidade (Geraldo, 2014). Para isto, o ensino das ciências naturais tem que considerar o desenvolvimento histórico das ciências e apreender os determinantes histórico-culturais do conhecimento científico, compreendendo: a contextualização, a problematização, a interdisciplinaridade, a dialogicidade, a sistematização e o enfoque histórico dos conteúdos. A aplicação adequada destes princípios didático-metodológicos, ao nosso ver, é condição para a objetividade, a sistematização lógica (formal e dialética), a totalidade teórico-metodológica e a concreticidade como características fundamentais do processo de ensino, em direção à construção de uma racionalidade crítica, problematizadora, contextualizada e participativa. Buscando contribuir com o ensino das ciências naturais desenvolvemos, neste trabalho, inicialmente, uma leitura analítica e comparativa de duas importantes obras de história do conhecimento científico: A Ciência na História, de J. D. Bernal (7 volumes) e O desenvolvimento do Pensamento Biológico, de Ernest Mayr (1.106 páginas). Foram também utilizadas como referências principais, as seguintes obras: Para Compreender a Ciência, (Andery, 2001); Ciência e existência (Pinto, 1978); História ilustrada da ciência (4 volumes) (Ronan, 1987). Com o objetivo de disponibilizar um texto didático sintético e conciso, com conteúdos sistematizados, problematizados, interdisciplinares e contextualizados, de 22 ANTONIO CARLOS HIDALGO GERALDO história das ciências naturais, acessível aos estudantes iniciantes das licenciaturas e bacharelados nas áreas das ciências naturais e aos professores da educação básica. Realizando o processo de transposição didática dos conteúdos científicos de história da ciência seguindo os princípios da compreensibilidade,da sistematização, da concisão, da fidedignidade com os conhecimentos científicos, da relevância e da coesão e coerência textual. Cabe finalmente ressaltar que, neste trabalho, nos limitamos ao período que vai dos primórdios da formação humana até a revolução científica na Era Moderna, tendo como foco as ciências naturais e sua produção como prática social, como síntese. Assim, o estudo se detém no século XVII com o mecanicismo, momento em que se configura a ciência no sentido que a entendemos hoje, como um tipo de conhecimento com características próprias, destacado da filosofia. 23 História da ciência: dos primórdios da formação humana ate a revolução científica na era moderna, uma síntese didática. CAPÍTULO I O CONHECIMENTO NA ERA PRIMITIVA Como surgiram e se desenvolveram as habilidades cognitivas complexas na espécie humana? 1- Período paleolítico: dos primórdios da formação da espécie humana até aproximadamente 10.000 anos atrás. Neste período ocorreu o estabelecimento de pequenos grupos sociais humanos contínuos, com a formação e desenvolvimento de uma cultura material e intelectual fixada socialmente, conservada, aperfeiçoada e transmitida para as novas gerações por uma linguagem cada vez mais complexa. No aspecto da cultura material, neste período os homens viviam da coleta de produtos naturais e da caça, e o elemento mais marcante é o início e a evolução da utilização de instrumentos feitos principalmente com pedra, madeira, ossos, peles de animais e fibras vegetais. Estes instrumentos eram mediadores das atividades cotidianas, tais como: instrumentos cortantes, raspadores, perfurantes, para amarração e para armazenamento e transporte de água e de alimentos, chegando até ao desenvolvimento do machado de pedra, da lança, do arco-e-flecha, da corda, dos cestos, da cabaça, e outros. No aspecto intelectual, vemos neste período a utilização de técnicas como: o controle do fogo; a culinária; a pintura rupestre; a manufatura de peças de estatuetas; a fixação de regras para a manutenção da coesão social; o reconhecimento e localização de plantas comestíveis e 24 ANTONIO CARLOS HIDALGO GERALDO medicinais; a identificação de animais para a caça; o conhecimento dos ciclos de crescimento e reprodução dos seres vivos, que possibilitaram a coleta, a caça e a recoleta de alimentos; e o desenvolvimento e fixação da linguagem lógica complexa. Observemos que toda esta “cultura primitiva” do homem já implica no conhecimento e na fixação social de diversas relações constantes e reiterativas entre os elementos e os fenômenos da natureza e da sociedade. “... os métodos que deram às sociedades humanas as vantagens de que gozaram dependiam, em larga medida, do uso de utensílios materiais para apanhar, reunir, transportar e preparar alimentos, e também de um meio de comunicação rápido que permitisse a cooperação nestas tarefas fundamentais – por outras palavras, uma linguagem. Pelo uso de utensílios, o homem consegue um domínio muito maior e muito mais generalizado sobre o meio ambiente que o de qualquer animal, por muito bem munido que esteja com dentes, garras ou cornos. A linguagem, através do gesto e da voz, além de servir para indicar a maneira mais eficaz de usar o utensílio, assegura também a coerência do grupo e garante a transmissão às gerações vindouras da cultura acumulada.” (Bernal, 1979, vol. I, p. 62-63) Os instrumentos, as técnicas, as linguagens, as regras sociais, se desenvolveram em inúmeras culturas humanas, de diferentes lugares, com uma certa uniformidade e continuidade no tempo, com aperfeiçoamentos, adaptações e combinações de métodos que descrevem a evolução destes elementos culturais no tempo e nos diferentes lugares onde habitou o homem primitivo. O desenvolvimento dos instrumentos e das técnicas, no processo de trabalho e produção da vida material, impulsionou o desenvolvimento das ideias, do planejamento e da experimentação por tentativa, erro e acerto, para a inovação e para a verificação dos aperfeiçoamentos dos utensílios, das ferramentas e dos 25 História da ciência: dos primórdios da formação humana ate a revolução científica na era moderna, uma síntese didática. elementos da natureza que eram utilizados na subsistência, juntamente com o desenvolvimento da linguagem, das emoções, das regras e dos comportamentos de convivência social. Estes processos foram fundamentais no desenvolvimento das habilidades cognitivas e das características emocionais da nossa espécie, compondo um conjunto de conhecimentos, habilidades e características que foram fundamentais para o desenvolvimento das funções cognitivas complexas (identificação, diferenciação, classificação, conceituação, quantificação, indução, dedução, análise, síntese, generalização, resolução de problemas). As operações mentais necessárias para se criar, fixar e desenvolver socialmente as regras de comportamento social, a linguagem, as ferramentas de trabalho, os instrumentos (mecanismos complexos como o arco-e-flecha), as técnicas, como o domínio do fogo e sua utilização na culinária, na cerâmica e posteriormente na metalurgia, irão formar a base das habilidades mentais e características emocionais necessárias para o desenvolvimento do conhecimento científico num momento bem posterior. O conhecimento do meio ambiente circundante pela observação, pela identificação dos hábitos e características dos animais e das diferentes plantas, dos seus ciclos de desenvolvimento e reprodução, suas regularidades, suas relações constantes e reiterativas, com o objetivo deliberado de suprir as necessidades de alimentação e defesa combinados com o planejamento social das ações; todos estes conhecimentos, sua fixação e transmissão social através da linguagem, somaram-se como aspectos importantes e determinantes na formação das habilidades cognitivas complexas e do desenvolvimento emocional da nossa espécie. Assim, no conjunto dos elementos culturais primitivos, ainda que de forma rudimentar, podemos visualizar as origens de diversas áreas do conhecimento sistemático que se desenvolveram posteriormente ao 26 ANTONIO CARLOS HIDALGO GERALDO longo da evolução da nossa cultura, tais como: o direito (as regras sociais), a mecânica (as técnicas, as ferramentas e seus mecanismos), a química (o fogo e sua utilização na transformação de materiais, como a culinária e a cerâmica por exemplo) e a biologia, com a observação, fixação e classificação dos diferentes tipos de seres vivos, de suas características e das relações que estabelecem com o restante do ambiente, tais como: as relações com a água, com o solo, com luz do sol, com as estações do ano e suas diferentes temperaturas, luminosidade, ventos, pluviometria. 1.1- Artes e Linguagens Qual a importância das artes e do desenvolvimento das linguagens na formação das habilidades cognitivas humanas? O desenvolvimento da pintura rupestre e das estatuetas de osso e barro também é bastante significativo para indicar o grande desenvolvimento das habilidades cognitivas complexas e das características emocionais desde a era primitiva: no preparo das tintas e dos instrumentos de pintura, nos ritos de sepultamento dos mortos, na sistematização da imaginação e da intenção de determinar o sucesso nas caçadas, e isso podemos constatar pelo grande número de pinturas, desenhos e esculturas encontrados em sítios pré-históricos: “Estas representações não se limitam exclusivamente ao aspecto exterior dos animais; encontram-se também desenhos de ossos, do coração, das entranhas, que nos oferecem prova de que a origem da anatomia se deve buscar na arte de talhar as carcaças dos animais caçados. (...) representações pictóricas que não são apenas a fonte das artes visuais, mas também a origem do simbolismo gráfico, da matemáticae da escrita, que vieram a tornar possível a criação da ciência racional”. (Bernal, 1979, vol. I, p. 68) 27 História da ciência: dos primórdios da formação humana ate a revolução científica na era moderna, uma síntese didática. O desenvolvimento da linguagem é outro aspecto fundamental a ser destacado no processo de formação e desenvolvimento das habilidades cognitivas e das características emocionais humanas. A vida cotidiana em sociedade e o trabalho coletivo só são possíveis pelo desenvolvimento da linguagem, em determinações recíprocas: à medida que se desenvolve a vida em sociedade e o trabalho coletivo, desenvolve-se conjuntamente a linguagem; e o desenvolvimento da linguagem impulsiona reciprocamente o desenvolvimento da capacidade de produção, de representação, de racionalização, as características emocionais e as regras de coesão social. Temos que apreender as relações de unidade- diversidade destes processos como totalidade em movimento, as suas relações de mediação e de impulsionamentos recíprocos. A linguagem é um elemento universal das diferentes culturas existentes no tempo e no espaço, com as funções de comunicação, de fixação cultural e de transmissão dos conhecimentos. Constitui em si uma estrutura lógica de codificação, fixação, abstração e generalização: dos elementos da natureza, dos fenômenos e de suas relações constantes e reiterativas, das emoções, da imaginação, das intenções, do planejamento individual e coletivo das ações humanas, do comportamento e das regras sociais. Juntamente com o desenvolvimento das formas de produção material da existência, a evolução da linguagem, desde a era primitiva, constituiu-se numa das bases principais para o desenvolvimento da racionalidade e da emotividade humana: da capacidade de pensamento, de raciocínio, de planejamento social das ações com base em finalidades previamente definidas; desde as mais primárias características emocionais e as mais rudimentares habilidades cognitivas até a cognição metódica, racionalizada e sistematizada. Desenvolvendo-se as seguintes funções: a sensação; a memorização; a percepção; a representação mental; a identificação de características, propriedades e relações reiterativas dos 28 ANTONIO CARLOS HIDALGO GERALDO objetos e fenômenos; a conceituação (generalização); a imaginação; a diferenciação; a classificação; a qualificação-quantificação; a análise- síntese; a indução-dedução; a delimitação e resolução de problemas; as características emocionais e o comportamento social humano. “No próprio ato de criar uma linguagem, as sociedades humanas são obrigadas a generalizar, a permitir que uma palavra sirva para exprimir muitas coisas diferentes, a usar uma espécie de simbolismo ou estenografia verbal. É a manipulação, dentro do cérebro, destes símbolos, juntamente com a imaginação visual direta do que eles representam, que constitui o pensamento humano. As fórmulas e teorias da ciência são apenas as extensões naturais e cautelosas do processo de estruturar uma linguagem”. (Bernal, 1979, vol. I, p. 71) 1.2- Crenças e visão de mundo na era primitiva: a magia De que forma o pensamento mágico primitivo contribuiu para o desenvolvimento da racionalidade humana? Outro aspecto importante da cultura primitiva deste período é o desenvolvimento da visão mágica sobre o mundo, sobre as relações entre os homens e destes com a natureza: a magia. Algumas das principais características desta concepção de mundo são: A realidade é compreendida como sendo formada pela dualidade espírito-matéria: espiritualismo. O mundo é povoado por espíritos que habitam e dão vida aos homens, aos animais, às plantas, aos astros (sol, lua, estrelas), ao mar, aos rios, ao vento, ao trovão, ao relâmpago, à chuva, etc: animismo. 29 História da ciência: dos primórdios da formação humana ate a revolução científica na era moderna, uma síntese didática. As relações podem ser determinadas por imitações simpáticas: comer a carne de um animal ou vestir a sua pele para adquirir suas qualidades; pintar seres nas rochas para aumentar as chances de obter sucesso na sua caça ou na sua coleta; fazer rituais de cantos e danças para provocar chuva (associação de fatos ou fenômenos por semelhanças e coincidências), prevenir os perigos, para ter sucesso na caça e na coleta de alimentos: simpatia. A origem e a organização da realidade são explicadas por meio de totens, lendas e mitos. Estes se baseiam em animais, plantas, objetos ou pessoas (ancestrais), que têm importância no cotidiano do grupo e são reverenciados e considerados sagrados. Os indivíduos da tribo, que se dedicam às tarefas de criação e reprodução da magia são chamados de magos, pajés, oráculos, xamãs ou sacerdotes, geralmente liberados da coleta de alimentos e da manufatura, dedicam-se para: Comunicar-se com os espíritos através de: invocações (chamamentos, contatos); feitiços; poções mágicas; rituais... Conhecer as ervas medicinais e os rituais religiosos que ligam os homens aos espíritos. Prever o futuro; pedir aos deuses para interferirem nos fenômenos da natureza (a chuva; a colheita; as doenças). A magia é um conhecimento baseado nas relações do homem com as condições que ele encontrava ao seu redor, nos fenômenos e nos elementos da natureza, nas relações sociais, nas emoções e na imaginação humana; com base numa referência: simbólica, simpática, imitativa, espiritualista e animista. Os mitos da era primitiva se referem a espíritos sagrados que originavam e ordenavam a vida de todos os homens em igualdade, refletindo o modo de vida e a organização social 30 ANTONIO CARLOS HIDALGO GERALDO destas populações, organizadas na forma de “comunidades primitivas igualitárias”. Os espíritos, inicialmente, eram ideias imaginativas da continuidade da vida dos ancestrais após sua morte, provavelmente ligadas aos fenômenos psíquicos do sonho, da lembrança, do medo e da imaginação e à crença na ideia de que os mortos continuavam influenciando no mundo real, interferindo nos fenômenos naturais e nos destinos da comunidade, por ação direta ou por magia. O conceito de espírito viria a formar o conceito de “Deus” (espírito superior) que, posteriormente, seria central na formação das religiões institucionalizadas (Bernal, 1979, vol. I). Quando o mago ou curandeiro se propõe a provocar chuva por meio de rezas, cantos, danças e rituais mágicos, baseia-se na compreensão da relação que existe entre a chuva e o desenvolvimento das plantas, e de que a sobrevivência dos homens depende do mundo natural. “Ele sente que há alguma conexão entre o homem e o mundo que o cerca, algum entendimento primitivo de que, conhecido o procedimento correto, o homem pode controlar as forças da natureza e colocá-las ao seu serviço.” (Ronan, 1987, vol. I) Além dos conhecimentos complexos descritos acima, os magos ou sacerdotes, formulavam e reproduziam os mitos e rituais de magia; detinham conhecimentos sobre várias substâncias e seus efeitos para o homem: analgésicas, alucinógenas, abortivas, laxativas, embriagantes, venenosas, estimulantes, relaxantes, nutritivas, e outras, baseados em experiências do tipo “tentativa-erro-acerto”. Assim, controlavam o conhecimento da natureza e o acesso direto aos espíritos, o que lhes conferia uma função social e um status de poder que foi aumentando 31 História da ciência: dos primórdios da formação humana ate a revolução científica na era moderna, uma síntese didática. com o desenvolvimento das sociedades. Aqui podemos ver os rudimentos da formação, no pensamento humano, da necessidade de conhecer, controlar e transformar a natureza e as regularidades nos seus fenômenos (determinismo); compreender as relações sociais e seus conflitos; e a necessidade de um conjunto ideológico sistematizado, fixado culturalmente, etransmitido socialmente, importante na manutenção e reprodução da coesão social e que serão partes significativas da consciência científica futura. Com a manipulação das ervas e poções, os magos, pajés ou curandeiros, desenvolviam um certo conhecimento empírico das substâncias naturais, inicialmente escolhidas por associações mágicas, mas, gradualmente, seu sucesso ou fracasso determinaria a fixação das substâncias mais eficazes, estabelecendo as suas relações reiterativas de causa e efeito. Lentamente, um conjunto de conhecimentos práticos seria reunido, utilizado e desenvolvido à luz da experiência, assim, os magos tornaram-se os pioneiros no desenvolvimento dos rudimentos da investigação experimental, ao fazer testes para encontrar as substâncias que produzissem os efeitos desejados. Vemos aí os rudimentos dos princípios da causalidade e da experimentação, que mais tarde serão básicos para o desenvolvimento da racionalidade científica humana (Ronan, 1987, vol. I). 2- Da revolução neolítica à formação das primeiras civilizações: de cerca de 10.000 até aproximadamente 5.000 anos atrás. Como o surgimento da agricultura e das cidades-estados influenciaram no desenvolvimento da racionalidade humana? Neste período constituíram-se as primeiras sociedades humanas sedentárias, tendo como principal desenvolvimento técnico inicial a agricultura e a pecuária, e em decorrência destas: o aumento 32 ANTONIO CARLOS HIDALGO GERALDO populacional; a construção de casas; a construção de canais para o controle da água; o estabelecimento das cidades; o desenvolvimento dos calendários; o desenvolvimento inicial da matemática; da escrita; da metalurgia, da astronomia; da astrologia; da medicina... Como vimos acima, toda esta evolução cultural foi possível a partir do desenvolvimento gradual: Dos instrumentos: lanças, arco-e-flecha, machados, enxadas, cabanas, barcos e outros; Das técnicas de interferência e controle dos fenômenos naturais: controle do fogo, recoleta de plantas e caça de animais, cultivo e utilização de plantas, domesticação de animais, cerâmica, tecelagem, etc...; Da linguagem e das relações sociais, das regras de convivência e da divisão social do trabalho. Das habilidades cognitivas e das características emocionais humanas, com todos os aspectos que já comentamos acima e que impulsionaram o desenvolvimento da racionalidade, da capacidade de planejamento social das ações, da imaginação, das emoções e do comportamento humano. A agricultura e a sedentarização da sociedade, o aumento populacional, o desenvolvimento da divisão social do trabalho, o desenvolvimento dos instrumentos de trabalho e das técnicas de produção, possibilitaram que o homem deixasse de ser predominantemente coletor e caçador para ser predominantemente produtor dos seus alimentos. Possibilitaram, também, a acumulação de produtos alimentares vindos da agricultura e da criação de animais, com a produção de excedentes que condicionaram: a necessidade da construção e administração de canais de irrigação; a necessidade da construção de armazéns para guardar o excedente da produção; a 33 História da ciência: dos primórdios da formação humana ate a revolução científica na era moderna, uma síntese didática. necessidade da instituição de exércitos para vigiar e proteger os produtos armazenados; e a necessidade do desenvolvimento dos meios de transporte dos alimentos, tanto por via terrestre como fluvial e marítima. Todos estes processos sociais culminaram com a instituição de diferentes classes sociais dentro de uma mesma população; a instituição da propriedade privada dos bens naturais e dos bens de produção, surgindo também a instituição de uma classe social especializada na administração das obras de interesse comum (tais como: canais de irrigação, armazéns, templos, estradas, armas para a guerra...); especializada também na organização e manutenção dos exércitos e na reunião e distribuição do excedente produzido. Em outras palavras, o acúmulo de produtos do trabalho gerou acúmulo de poder, divisão e diferenciação social, e este poder foi apropriado pelas classes sociais que passaram a administrar e dirigir as necessidades sociais comuns, instituindo-se os primeiros estados. O aumento populacional e o desenvolvimento da divisão social do trabalho, com a formação de indivíduos especializados em diferentes ocupações como: a cerâmica, a metalurgia, a manipulação e preparo do couro, a manufatura de diferentes tipos de utensílios, ferramentas e armas; a centralização dos templos destinados às práticas religiosas, a centralização da administração da sociedade e dos conflitos nas relações sociais; todos estes fatores em conjunto impulsionaram a formação e desenvolvimento das cidades, que, juntamente com o desenvolvimento e institucionalização social dos estados, formarão as primeiras cidades- estados (Uruk, Ur, Nippur, Lagash, Umma, Tebas, Mênfis, Ugarit, Biblos, Gericó, ... ) e as primeiras grandes civilizações (Mesopotâmia, Egito e outras) 34 ANTONIO CARLOS HIDALGO GERALDO Neste processo de formação das primeiras civilizações, o conjunto de avanços acima descritos impulsionaram o desenvolvimento da racionalidade, conduzindo a um início de separação da abordagem espiritualista para a abordagem técnica (empírico-experimental) desenvolvendo-se cada vez mais e mais rapidamente: a agricultura; a astronomia; a medicina; a metalurgia; a cerâmica; a tecelagem; a construção civil (construção de casas, canais, templos, estradas); a construção naval (barcos); o comércio; a matemática; as linguagens, incluindo a criação da escrita (cuneiforme na Mesopotâmia, hieróglifos no Egito e alfabética na Fenícia e depois na Grécia e em Roma); as relações sociais; as características emocionais; o comportamento e as regras sociais. Observe-se que neste processo evolutivo, a racionalidade, as técnicas, os instrumentos, a linguagem e as relações sociais, as características emocionais e o comportamento social, impulsionam-se reciprocamente. Nesta abordagem, a evolução humana não é constituída e derivada de uma racionalidade fixa e inata (que nasce com o indivíduo e é herdada geneticamente). Compreendemos aqui, que a evolução humana ocorre a partir do desenvolvimento de uma racionalidade em constante transformação, que é constituída por componentes biológicos e culturais e cujo desenvolvimento é impulsionado reciprocamente com o desenvolvimento das formas de produção, reprodução e representação da vida material, emocional e social da humanidade: os meios de produção (que incluem os instrumentos, as técnicas, as linguagens, os bens naturais) e as relações sociais de produção, de representação, de sentimentos e de convivência social. O que consideramos como inatas no indivíduo são as possibilidades biológicas de desenvolver a racionalidade e de 35 História da ciência: dos primórdios da formação humana ate a revolução científica na era moderna, uma síntese didática. desenvolver as características emocionais e comportamentais humanas, isto é, são transmitidas geneticamente as caraterísticas biológicas do homem, tais como: a estrutura morfofisiológica do sistema nervoso, a estrutura da mão, mas mesmo neste aspecto ocorre evolução, como na estrutura fisiológica das relações entre a mão, o cérebro e o olho; as demais características humanas, incluindo as habilidades cognitivas, as linguagens, as regras sociais, as teorias, os métodos, as técnicas, os instrumentos, as características emocionais e as regras do comportamento social, são desenvolvidos histórico-culturalmente desde os primórdios da evolução humana e deverão ser transmitidos para as novas gerações, deverão ser assimilados e apropriados pelas novas gerações no processo de desenvolvimento cultural, no seio do processo histórico-socialde produção e reprodução dos bens materiais e das relações da vida em sociedade. Observemos, também, que nesta perspectiva a categoria “trabalho” é essencial (fundamental e primordial). Portanto, em nossa abordagem, as categorias culturais, tais como: trabalho, sociabilidade, linguagem, racionalidade, educabilidade e as características emocionais humanas, estão historicamente imbricadas, inter-relacionadas, em dependência, determinação e impulsionamentos recíprocos, formando uma totalidade complexa em transformação ao longo da história da humanidade. 36 ANTONIO CARLOS HIDALGO GERALDO 37 História da ciência: dos primórdios da formação humana ate a revolução científica na era moderna, uma síntese didática. CAPÍTULO II A MITOLOGIA E O NASCIMENTO DO PENSAMENTO RACIONALISTA: o conhecimento na Antiguidade, a era das primeiras grandes civilizações, de aproximadamente 5.000 anos atrás até o século V da era cristã. Que fatores contribuíram para o desenvolvimento da mitologia e das religiões institucionalizadas na era antiga? Quais as principais características que diferenciam a magia, a mitologia e as religiões monoteístas? Quais as características principais do racionalismo da filosofia Grega e como ele se diferencia das abordagens míticas sobre o surgimento e o desenvolvimento dos fenômenos naturais? Quais fatores sociais foram fundamentais para o desenvolvimento da racionalidade na era antiga e quais características se desenvolveram na racionalidade humana neste período? As novas técnicas; o desenvolvimento da divisão social do trabalho; a formação das sociedades sedentárias; o desenvolvimento da agricultura; a domesticação e criação de animais; a metalurgia; a construção de represas e de canais de irrigação; o grande crescimento populacional; a formação dos exércitos; o acúmulo, armazenamento e conservação de alimentos e outros produtos; o surgimento e o crescimento do comércio contínuo e sistemático; a formação das cidades-estados; a instituição da propriedade privada; do dinheiro; da escravidão; da servidão coletiva; das diferentes classes sociais... Todo este 38 ANTONIO CARLOS HIDALGO GERALDO complexo cultural desenvolvido no período neolítico, impulsionou o surgimento da realeza, que se uniu aos sacerdotes para administrar as necessidades comuns da sociedade, para se impor como classes privilegiadas e hierarquicamente superiores às demais classes sociais e para garantir e reproduzir a coesão social. Portanto, a realeza e os sacerdotes uniram-se: Para manter e reproduzir o processo de produção dos bens materiais e a forma das relações sociais de produção: a escravidão, a servidão coletiva, a servidão individual e familiar, as formas de apropriação dos bens materiais e intelectuais e a legitimação social destas formas de apropriação, como a propriedade privada ou familiar, por exemplo; Para garantir e proteger o armazenamento e a distribuição dos excedentes de alimentos e demais produtos; Para garantir e desenvolver o comércio e as guerras de conquista e domínio; Para garantir o estabelecimento de leis, bem como a legitimação e cumprimento das leis e dos costumes. Ao longo da formação das primeiras cidades-estados, os sacerdotes se especializaram, cada vez mais, na elaboração de um conjunto de dogmas e práticas religiosas ritualísticas para reproduzir e perpetuar o consenso social, para além da comunicação com os espíritos, num mundo cada vez mais cheio de diversidades e desigualdades. O surgimento e crescimento da propriedade privada, das diferentes classes e setores sociais, da escravidão e da servidão coletiva, foram fatores muito significativos neste processo. 39 História da ciência: dos primórdios da formação humana ate a revolução científica na era moderna, uma síntese didática. Assim se formaram as bases para se desenvolverem a mitologia e as religiões politeístas e monoteístas, deístas e institucionalizadas: como instituições sociais sistematizadas, com diferentes funções, trabalhos especializados, hierarquia e um corpo sacerdotal estabelecido; arrecadação de bens e de dinheiro e acúmulo de poder (exemplo: o dízimo era obrigatório desde o velho testamento). Observemos que os totens e mitos da era primitiva eram espíritos sagrados que originavam e ordenavam a vida de todos os homens em igualdade; já os deuses e os mitos das cidades-estados e das civilizações da era antiga, eram seres superiores que devam origem, governavam, controlavam e ordenavam os homens, reproduzindo suas diferenças e hierarquias de poder (veja-se a mitologia egípcia, mesopotâmica, grega e romana), portanto, a mitologia, as religiões politeístas e monoteístas da era antiga irão se constituir e se institucionalizar como uma nova forma de crenças e ideologia, não mais baseadas na igualdade entre os homens e na magia simpática e animista, como predominava na era primitiva, mas sim, baseadas nas desigualdades e nas relações de poder, na hierarquia de poder e na dominação de uns homens sobre os outros e na apropriação do produto do trabalho pelas classes detentoras do poder. Os mitos criados e legitimados neste período irão se compor de narrativas que explicavam a origem (a história) e a organização da realidade social, da natureza, do próprio homem, de suas relações com a natureza e entre si, geralmente por meio de seres sobrenaturais (deuses, espíritos, totens, criaturas lendárias: centauro, gigantes, heróis e outros). Comunicando um sentimento coletivo sobre a realidade, cuja narrativa e os fundamentos eram aceitos e partilhados com os demais membros das comunidades, geralmente elaborados ou confirmados por uma autoridade para estes assuntos, e esta autoridade geralmente é baseada: na função social, como o sacerdote; no poder, como o rei; na pureza ou na inocência, como no relato de uma criança. 40 ANTONIO CARLOS HIDALGO GERALDO O mito estabelece sentido, identidade e coesão à vida social na medida em que: atribui identidade entre os homens de um mesmo grupo social (relações de parentesco); fixa modelos da realidade, dos comportamentos, das emoções e das atividades humanas (trabalho, crenças, sentimentos, regras sociais, ritos); e explica a origem do mundo, dos homens e da natureza. Estas características formam critérios para sua aceitação. O mito estabelece, também, formas de interferência na realidade, pela invocação dos “seres espirituais” (chamamento, súplica, pedido) que se acredita terem poderes sobrenaturais sobre a realidade objetiva e que alguns homens teriam poder e autoridade para se comunicar com estes seres sobrenaturais. Como se o homem pudesse “determinar”, através dos mitos, orações e rituais, realidades e fenômenos naturais e culturais que não estão ao alcance de suas determinações físicas imediatas (vai chover ou não? quem vai ganhar a guerra? a caça ou a coleta vai ser produtiva?). O discurso mitológico é formado por ideias aglomeradas, mediadas e determinadas por: Emoções, sensações, imaginações, desejos; Associações de fragmentos heterogêneos de ideias (exemplo: os raios e os ventos fortes são produzidos pela ira dos deuses; chove porque uma deusa chora de paixão); Intuições, causalidades finalistas baseadas na imaginação, no interesse e na admissão da existência de uma dualidade material e espiritual na realidade. Em resumo, a mitologia como forma de pensamento é baseada predominantemente: na intuição, pressentimento ou adivinhação; na imaginação; na emoção; na autoridade, no poder ou na tradição; na fé, na crença, na confiança e nos compromissos intersubjetivos... Assim, chega- 41 História da ciência: dos primórdios da formação humana ate a revolução científica na era moderna, uma síntese didática. se à conclusão de um problema, predominantemente,a partir dos elementos e características citadas acima, e não, predominantemente, a partir de uma base racional, empírica e objetiva. Observemos que as características da magia e da mitologia se fundiram e coexistiram ao longo da história, com vários pontos em comum, tais como: a valorização do espiritualismo (crença na coexistência da dualidade espírito-matéria na realidade); a estrutura lógica mediada e condicionada, predominantemente, por emoções, imaginações, necessidades e consensos intersubjetivos; veja-se, por exemplo a história do Oráculo de Delfos na Grécia Antiga. Para maiores detalhes sobre a mitologia grega, pode-se consultar as obras de Jean- Pierre Vernant (“O Universo, os Deuses, os Homens” e “Mito e Pensamento Entre os Gregos”, este último publicado pela editora Paz e Terra, 1990); ou diretamente nas obras de: Hesíodo (“Teogonia”, sobre a origem dos deuses), Ovídio (“Metamorfoses”) e Homero (“Ilíade” e “Odisseia”). Apesar dos pontos em comum, a magia e a mitologia também apresentam pontos importantes que as diferencia: a magia, animista e simpática, predominou na era primitiva, quando as sociedades não eram baseadas na diferenciação de classes, assim, a magia, como visão de mundo, tinha as funções de representação e organização das relações dos homens entre si e de suas relações com a natureza no âmbito das comunidades primitivas, que eram baseadas na produção para a subsistência igualitária e na divisão social do trabalho baseada predominantemente nas diferenças de gênero e idade e portanto com uma superestrutura ideológica hegemônica adequada às relações sociais do modo de produção das comunidades primitivas; a mitologia, deísta, politeísta e associada às funções da realeza e da aristocracia, tinha funções de legitimação da diferenciação social e das hierarquias de poder e controle sobre a maior parte da população e se desenvolveu 42 ANTONIO CARLOS HIDALGO GERALDO juntamente com a formação das primeiras grandes civilizações (Mesopotâmia, Egito, Fenícia, Grécia, Roma, etc.), quando se desenvolveu a divisão social do trabalho e predominou os modos de produção escravista e de servidão coletiva; portanto, a mitologia reproduzia os modelos de ideologia adequados a estas sociedades divididas em diferentes classes e com diferenças no acesso à propriedade dos bens naturais e culturais, com hierarquias de poder e diferenciação nas condições da qualidade de vida dos homens que conviviam numa mesma sociedade. Podemos destacar também, que as mitologias (Egípcia, Mesopotâmica, Grega, Romana) constituíram a base para o desenvolvimento das grandes religiões monoteístas (Judaísmo, Cristianismo, Islamismo) como instituições sociais, com funções e trabalhos especializados, com um corpo sacerdotal organizado e com hierarquia, arrecadação de bens e acúmulo de poder, com uma literatura e uma liturgia sagrada unificada, seguindo a lógica e a estrutura organizacional das sociedades onde se formaram e se desenvolveram. Por consequência do que vimos acima, os processos cognitivos de indução e dedução, de análise e síntese, desenvolvidos no âmbito do pensamento mágico-mitológico, são mediados e determinados predominantemente e intrinsecamente por emoções (medos, pressentimentos, desejos e outros), por interesses subjetivos, por imaginações simbólicas, por necessidades individuais e sociais, e se estabeleceram, se reproduziram e se fixaram socialmente, tendo como base predominante a sua aplicabilidade social e o consenso intersubjetivo. Portanto, neste tipo de pensamento a objetividade e a sistematização teórica, são subordinadas e dependentes da mediação das categorias acima descritas (emoções, imaginações, necessidade, consenso intersubjetivo), e, assim, os processos de indução, de dedução, de análise, de síntese, de conceituação e até mesmo de identificação, apresentam 43 História da ciência: dos primórdios da formação humana ate a revolução científica na era moderna, uma síntese didática. estrutura lógica e resultados bem diferentes de como as entendemos na abordagem científica atual. Com isto não estou dizendo que deixam de ser “verdadeiras” ou “corretas”, apenas digo que apresentam estrutura lógica próprias do conhecimento mágico-mitológico; e, apesar destas diferenças, foi a partir das práticas sociais deste período, da estrutura lógica deste tipo de racionalidade, da sua transformação e da sua superação em novas sínteses cognitivas que se desenvolveram as habilidades cognitivas de indução e dedução, de análise e de síntese, como as entendemos atualmente, determinadas predominantemente por uma abordagem empírica, experimental, metódica, logicamente estruturada e sistematizada. Vejamos adiante, com mais detalhes, algumas das práticas sociais deste período. 1- A elaboração de calendários, a matemática, a linguagem escrita e a astronomia. As fases de desenvolvimento das plantas, como a germinação, o crescimento, a floração e a frutificação, geralmente ocorrem acompanhando os ciclos anuais das diferentes estações climáticas. O desenvolvimento biológico e o comportamento dos animais nos ecossistemas também, geralmente, se relaciona com as diferentes estações climáticas, como os períodos de fertilidade reprodutiva, o nascimento, as migrações. Como o homem primitivo dependia da coleta de vegetais e da caça dos animais para sua sobrevivência, desde os primórdios de sua evolução, necessitava de um certo domínio de conhecimentos sobre os ciclos das fases e dos períodos temporais do desenvolvimento das plantas e dos animais, além disso, as estações climáticas, tais como: o verão, a primavera, o inverno e o outono, estabelecem, para uma determinada região geográfica, ciclos ambientais de variações relativamente regulares na temperatura, na pluviosidade, na luminosidade, o que determina necessidades e possibilidades nas ações e 44 ANTONIO CARLOS HIDALGO GERALDO no comportamento humano, específicas para cada estação do ano, assim como nas características e fases fenológicas das plantas, no desenvolvimento e no comportamento dos animais. Portanto, para se relacionar com o ambiente, o homem tem que adequar suas ações, aos ciclos da natureza, e para isso precisa conhecer e prever o desenvolvimento destes ciclos. Daí decorre a necessidade do estabelecimento, do registro, da fixação e da transmissão social de conhecimentos sobre estes ciclos climáticos e suas relações com os ciclos e fases de desenvolvimento das plantas e dos animais, portanto, daí também decorre a necessidade do estabelecimento, do registro e da fixação cultural de calendários, com os quais se pode prever os períodos de tempo em que estes ciclos ocorrem nos diferentes tipos de ecossistemas. Assim, o homem precisou desenvolver sistemas de registro e contagem do passar do tempo, relacionando esta contagem do passar do tempo com os ciclos climáticos das diferentes regiões onde ele habitava: os calendários anuais. Em outras palavras o homem precisava, e precisa até hoje, conhecer e registrar os períodos de tempo e os ciclos que transcorrem entre as diferentes fases de desenvolvimento das plantas e do comportamento dos animais para resolver problemas, tais como: quando coletar os frutos de uma determinada planta? Quando é o melhor período para a caça de determinados tipos de animais? Quando é preciso armazenar alimentos para sobreviver no inverno? Quanto alimento precisa armazenar para sobreviver no inverno? Quanto alimento precisa coletar para suprir as necessidades de todo o grupo? Estas são questões fundamentais para o planejamento de todas as atividades dos diferentes grupos humanos. Além de ter que resolver o problema de “como” coletar alimentos, caçar animais, transportar, armazenar e conservar os alimentos, o homem precisava resolver “quando”, “quanto” e “onde” realizar estas tarefas. 45História da ciência: dos primórdios da formação humana ate a revolução científica na era moderna, uma síntese didática. Conhecer e registrar os ciclos das estações do ano, com a contagem dos períodos de tempo que transcorre entre as diferentes fases destes ciclos, suas diferentes características e influências nas características do meio ambiente e dos seres vivos; calcular o tempo que já se passou e prever o tempo que ainda falta para se chegar a uma determinada estação do ano, seja o inverno, a primavera, o verão ou o outono, são conhecimentos fundamentais para o planejamento das ações e para a própria sobrevivência do homem. Assim, para suprir estas necessidades e resolver estes problemas, o homem desenvolveu os calendários: um sistema de contagem do tempo, de registro e fixação do conhecimento sobre os períodos de tempo que transcorrem ao longo dos ciclos naturais das diferentes estações do ano. Para isso o homem, desde os primórdios da sua evolução, teve que se basear nos próprios ciclos da natureza que se relacionam direta ou indiretamente com as diferentes estações climáticas, e os ciclos escolhidos para servirem de referência para se estabelecerem calendários, foram os ciclos dos movimentos aparentes do sol, das demais estrelas e da lua. Podemos categorizar os movimentos do sol, das demais estrelas e da lua, observáveis a olho nu, como aparentes, pois, na realidade estes movimentos são causados pela interação entre os movimentos destes astros com os movimentos do planeta terra (rotação em torno do seu próprio eixo e translação em torno do sol por exemplo). Os homens primitivos e da era antiga consideravam a terra como um ponto fixo para a observação dos movimentos dos astros, assim, o resultado que obtinham é o que chamamos de movimentos aparentes do sol, das demais estrelas e da lua, e que passo a descrever a seguir, de forma simplificada e em breves palavras. Um observador no hemisfério sul, contemplando o horizonte durante a noite, vê o movimento em bloco das estrelas ao redor da terra: 46 ANTONIO CARLOS HIDALGO GERALDO como se estas estivessem presas, em posições fixas, numa “abóboda celeste”, ou melhor, numa “esfera celeste” que gira ao redor da terra, sendo que as mesmas estrelas sempre nascem na mesma posição no horizonte e fazem sempre a mesma trajetória. Já o sol, visível durante o dia, também faz uma trajetória ao redor da terra todos os dias, mas não nasce nem se põe na mesma posição do horizonte todos os dias: a partir do dia 22 dezembro, aproximadamente, um observador no hemisfério sul, olhando para o ponto onde nasce o sol, verá o sol nascer diariamente no horizonte em pontos sempre mais a sua esquerda, em comparação com um ponto fixo no horizonte da terra. Então, o sol, a partir de 22 de dezembro, aproximadamente, se desloca em dois movimentos aparentes distintos, um ao redor da terra (de aproximadamente vinte e quatro horas), e outro em direção à esquerda de um observador olhando para o sol ao nascer, como se traçasse uma trajetória em espiral, até o dia 22 de junho, aproximadamente, quando o sol deixa de se deslocar para a esquerda do observador e, a partir deste dia, começa a se deslocar no sentido contrário, à direita do observador, voltando neste sentido até o dia 22 de dezembro, quando se inicia um novo ciclo. Portanto, durante seis meses (aproximadamente 182 dias), para um observador no hemisfério sul olhando para o ponto do horizonte onde nasce o sol, com o passar dos dias, o ponto onde nasce o sol se desloca, a partir de 22 de dezembro, para a esquerda do observador, até o dia 22 de junho, a partir daí, e nos próximos seis meses, o ponto onde nasce o sol se desloca no sentido contrário, com o sol nascendo diariamente mais à direita do observador, um pouco por dia, até voltar à sua posição de 22 de dezembro e o ciclo recomeça. Neste caso, o dia 22 de dezembro é chamado de solstício de verão e o dia 22 de junho é chamado de solstício 47 História da ciência: dos primórdios da formação humana ate a revolução científica na era moderna, uma síntese didática. de inverno (estas datas podem variar de um ou dois dias de um ano para o outro). O ponto médio que marca esta trajetória aparente do sol em espiral ocorre quando o dia tem duração igual à duração da noite, isto ocorre duas vezes (para um observador no hemisfério sul), uma vez quando o ponto onde nasce o sol está se deslocando para a esquerda do observador, no caso considerado acima, no dia 21 de março, e outra vez quando o sol está se deslocando no sentido contrário, no dia 22 de setembro. Estes dias são chamados de equinócio de outono (21 de março) e equinócio da primavera (22 de setembro) e também podem variar de um ou dois dias de um ano para o outro. Observemos que quando o sol inicia seu deslocamento aparente para a esquerda do observador, no caso considerado acima em 22 de dezembro, no hemisfério sul, inicia-se a estação de verão, quando o sol atinge a metade da sua trajetória para a esquerda, em 21 de março, inicia- se a estação do outono, quando o sol inicia sua trajetória aparente de volta, no sentido contrário, à direita do referido observador, dia 22 de junho, inicia-se a estação do inverno e quando o sol atinge a metade desta trajetória, dia 22 de setembro, inicia-se a estação da primavera. Estes “movimentos” aparentes do sol, para a esquerda do observador do nascer do sol durante seis meses e no sentido contrário nos seis meses seguintes, vistos por um observador do nascer do sol localizado no hemisfério sul, na realidade resultam do movimento orbital da terra em torno do sol (translação), que dura um ano, isto é, aproximadamente 365 dias; e as diferentes estações climáticas que se sucedem ao longo deste período, resultam da interação deste movimento orbital da terra com a inclinação (23° 27 minutos) do “eixo” central do planeta terra em relação ao plano que contém sua órbita ao redor do sol, que tem como consequência uma variação cíclica na quantidade de luz 48 ANTONIO CARLOS HIDALGO GERALDO solar que cada região da terra recebe ao longo do ano. Mas, como já dissemos acima, os povos primitivos e da era antiga consideravam o planeta terra como ponto estático no centro do universo, por isso visualizavam e registravam os “movimentos” aparentes do sol na forma como descrevemos anteriormente (durante seis meses, para a esquerda do observador do nascer do sol e, nos próximos seis meses, para a direita do mesmo observador localizado no hemisfério sul, perfazendo sempre um ciclo anual). O movimento aparente da lua é semelhante ao do sol, também faz uma trajetória ao redor da terra, e também se desloca para a esquerda e para a direita do observador, mas num ciclo bem mais rápido que o sol: a cada 27, 33 dias a lua volta a ocupar o mesmo lugar na esfera celeste, enquanto o sol demora 365 dias. A Lua apresenta um fenômeno característico que são as quatro diferentes fases lunares: lua nova é quando ela está quase invisível, vê-se somente uma borda crescente muito fina do disco lunar; lua crescente é quando visualizamos metade crescente do disco lunar até atingir a totalidade do disco; lua cheia é quando todo o disco lunar é vivível; e lua minguante é quando a parte visível da lua vai diminuindo até atingir o estágio de lua nova e o ciclo se reinicia. Cada fase da lua dura aproximadamente uma semana, ou pouco mais de 7 dias, e na totalidade, o ciclo completo das fases da lua dura 29,5 dias, aproximadamente um mês. Há registros históricos de que o homem conhece e utiliza estes ciclos de movimentos aparentes do sol, das demais estrelas e da lua, para estabelecer calendários anuais, dividindo o ano em 360 dias, em diferentes estações climáticas e em blocos de aproximadamente 30 dias, os meses, baseados nas fases da lua, desde aproximadamente 6.000 anos atrás.
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