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Teoria da Literatura II Andrey Pereira de Oliveira Letras Teoria da Literatura II Natal – RN, 2015 Andrey Pereira de Oliveira Teoria da Literatura II 1ª Edição Letras Governo Federal Presidenta da República Dilma Vana Rousseff Vice-Presidente da República Michel Miguel Elias Temer Lulia Ministro da Educação Renato Janine Ribeiro Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN Reitora Ângela Maria Paiva Cruz Vice-Reitor José Daniel Diniz Melo Diretora da EDUFRN Maria da Conceição Fraga Diretor Adjunto da EDUFRN Wilson Fernandes de Araújo Filho Conselho Editorial Maria da Conceição Fraga (Presidente) Ana Karla Pessoa Peixoto Bezerra Anna Emanuella Nelson dos S. C. da Rocha Anne Cristine da Silva Dantas Carla Giovana Cabral Edna Maria Rangel de Sá Eliane Marinho Soriano Fábio Resende de Araújo Francisco Wildson Confessor George Dantas de Azevedo Lia Rejane Mueller Beviláqua Maria Aniolly Queiroz Maia Maria da Conceição F. B. S. Passeggi Maria de Fátima Garcia Maurício Roberto Campelo de Macedo Nedja Suely Fernandes Paulo Ricardo Porfírio do Nascimento Paulo Roberto Medeiros de Azevedo Regina Simon da Silva Rosires Magali Bezerra de Barros Tânia Maria de Araújo Lima Tarcísio Gomes Filho Supervisão Editorial Alva Medeiros da Costa Supervisor Gráfico Francisco Guilherme de Santana Secretaria de Educação a Distância – SEDIS Secretária de Educação a Distância Maria Carmem Freire Diógenes Rêgo Secretária Adjunta de Educação a Distância Ione Rodrigues Diniz Morais Coordenadora de Produção de Materiais Didáticos Maria Carmem Freire Diógenes Rêgo Coordenadora de Revisão Maria da Penha Casado Alves Coordenador Editorial José Correia Torres Neto Projeto Gráfico Ivana Lima Legendagem e Audiodescrição Jefferson Fernandes Alves Andrea Gurgel de Freitas Gestão do Fluxo de Revisão Rosilene Alves de Paiva Revisão de Estrutura e Linguagem Eugenio Tavares Borges Revisão de Língua Portuguesa Emanuelle Pereira de Lima Diniz Julianny de Lima Dantas Simião Margareth Pereira Dias Orlando Brandão Meza Ucella Revisão de Normas da ABNT Cristiane Severo da Silva Verônica Pinheiro da Silva Revisão Tipográfica Leticia Torres Revisão de Prova Fabíola Barreto Gonçalves Diagramação Carolina Aires mayer Criação e Edição de Imagens Amanda Duarte Anderson Gomes do Nascimento Catalogação da Publicação na Fonte. Bibliotecária Verônica Pinheiro da Silva CRB-15/692. Todas as imagens utilizadas nesta publicação tiveram suas informações cromáticas originais alteradas a fim de adaptarem-se aos parâmetros do projeto gráfico. © Copyright 2005. Todos os direitos reservados a Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – EDUFRN. Nenhuma parte deste material pode ser utilizada ou reproduzida sem a autorização expressa do Ministério da Educação – MEC Oliveira, Andrey Pereira de. Teoria da Literatura II / Andrey Pereira de Oliveira. – Natal, RN: EDUFRN, 2015. 276 p.: il. ISBN 978-85-425-0475-0 Caderno do Curso de Letras, Educação a Distância. 1. Literatura. 2. Espécies de Narrativas. 3. Análise Linguística. 4. Letras. I. Título. CDU 82 Sumário Apresentação institucional 5 Apresentação da disciplina 7 Aula 1 Por que ler narrativas de ficção 11 Aula 2 A epopeia 33 Aula 3 O romance 59 Aula 4 O conto 79 Aula 5 A crônica 99 Aula 6 A personagem de ficção 125 Aula 7 O enredo de ficção 143 Aula 8 O ponto de vista do narrador 165 Aula 9 O tempo na narrativa 193 Aula 10 O espaço ficcional 215 Aula 11 Estudo analítico-interpretativo da narrativa de ficção 235 Aula 12 Elaboração de artigo acadêmico dedicado ao estudo da narrativa de ficção 253 Referências 277 Perfil do autor 285 Apresentação institucional A Secretaria de Educação a Distância – SEDIS da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, desde 2005, vem atuando como fomentadora, no âmbito local, das Políticas Nacionais de Educação a Distância em parceira com a Secretaria de Educação a Distância – SEED, o Ministério da Educação – MEC e a Universidade Aberta do Brasil – UAB/CAPES. Duas linhas de atuação têm caracterizado o esforço em EaD desta instituição: a primeira está voltada para a Formação Continuada de Professores do Ensino Básico, sendo implementados cursos de licenciatura e pós-graduação lato e stricto sensu; a segunda volta- -se para a Formação de Gestores Públicos, através da oferta de bacharelados e especializações em Administração Pública e Administração Pública Municipal. Para dar suporte à oferta dos cursos de EaD, a SEDIS tem disponibilizado um conjunto de meios didáticos e pedagógicos, dentre os quais se destacam os materiais impressos que são elaborados por disciplinas, utilizando linguagem e projeto gráfico para atender às necessidades de um aluno que aprende a distân- cia. O conteúdo é elaborado por profissionais qualificados e que têm experiên- cia relevante na área, com o apoio de uma equipe multidisciplinar. O material impresso é a referência primária para o aluno, sendo indicadas outras mídias, como videoaulas, livros, textos, filmes, videoconferências, materiais digitais e interativos e webconferências, que possibilitam ampliar os conteúdos e a inte- ração entre os sujeitos do processo de aprendizagem. Assim, a UFRN através da SEDIS se integra ao grupo de instituições que assumiram o desafio de contribuir com a formação desse “capital” humano e incorporou a EaD como modalidade capaz de superar as barreiras espaciais e políticas que tornaram cada vez mais seleto o acesso à graduação e à pós- graduação no Brasil. No Rio Grande do Norte, a UFRN está presente em polos presenciais de apoio localizados nas mais diferentes regiões, ofertando cursos de graduação, aperfeiçoamento, especialização e mestrado, interiorizando e tornando o Ensino Superior uma realidade que contribui para diminuir as diferenças regionais e transformar o conhecimento em uma possibilidade concreta para o desenvolvimento local. Nesse sentido, este material que você recebe é resultado de um investimento intelectual e econômico assumido por diversas instituições que se comprometeram com a Educação e com a reversão da seletividade do espaço quanto ao acesso e ao consumo do saber E REFLETE O COMPROMISSO DA SEDIS/UFRN COM A EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA como modalidade estratégica para a melhoria dos indicadores educacionais no RN e no Brasil. Secretaria de Educação a Distância SEDIS/UFRN 7 Apresentação da disciplina ECaro (a) aluno (a), você tem em mãos o livro da disciplina Teoria da Li-teratura II. Nesta disciplina, nossas atenções estão voltadas ao estudo da narrativa de ficção. Nosso percurso está dividido em 12 aulas, elaboradas de modo a você poder, com boa autonomia, acompanhar as reflexões teóricas e pôr à prova sua compreensão por meio de atividades e autoavaliações. Na Aula 1, que tem um caráter introdutório, discutiremos uma questão fun- damental para os estudantes do Curso de Licenciatura em Letras: por que ler nar- rativas de ficção? É para propor algumas respostas consistentes a essa pergunta que a nossa primeira aula foi elaborada. Em seguida, as Aulas 2 a 5 compõem um bloco em que estudaremos as quatro principais espécies de narrativas de ficção: a epopeia, o romance, o conto e a crônica. Outro bloco é formado pelas Aulas 6 a 10. Cada uma tem por objetivo o estudo de um importante elemento constitutivo das narrativas ficcionais: personagem, enredo, narrador, tempo e espaço. Já a Aula 11 tem como objetivo discutir como os cinco elementos narrativos estudados nas aulas anteriores funcionam de modo integrado na estrutura da obra de ficção. Para tanto, acompanharemos uma proposta de estudo analítico-interpretativo de um conto de Dalton Trevisan. Por fim, na Aula 12, encerrando o ciclo da disciplina Teoria da Literatura II, teremos a oportunidade de ver como todas essas informações estudadas ao longoda disciplina podem ser transformadas num artigo acadêmico. Todas as aulas apresentam a mesma estrutura: Apresentação, Objetivos, Con- teúdo teórico, Atividades, Leituras complementares, Resumo e Autoavaliação. Na Apresentação e nos Objetivos, você tem os propósitos da aula: o que é estudado, as etapas de apresentação dos conteúdos, bem como os objetivos da aula. Em seguida, inicia-se a parte mais fundamental e mais longa de cada aula, ou seja, o Conteúdo teórico, que, no caso particular desta disciplina, são sempre tópicos relacionados à narrativa ficcional. Essas discussões do conteúdo teórico são intercaladas por algumas Atividades que devem lhe auxiliar em seu estudo, seja por meio de ações que estimulem a fixação dos conteúdos, seja por meio de ações que estimulem a aplicação prática do que está sendo discutido. Em seguida, são apresentadas as Leituras complementares, um elenco de textos que podem (e devem) ser lidos visando ao aprofundamento do conteúdo da aula. Finalizam a aula o Resumo e a Autoavaliação. No primeiro item, você terá um sumário breve do conteúdo tra- balhado na aula, e, no segundo, um elenco de atividades fundamentais para que você possa averiguar o quanto do conteúdo da aula conseguiu assimilar. Nossa expectativa é que você conclua a disciplina Teoria da Literatura II com um novo olhar sobre a narrativa de ficção, um olhar que possa ir além da superfície do texto e que possa, respaldado em conhecimentos teóricos, fruir ainda melhor sua manifestação estrutural, simbólica, enfim, estética. Deixo, portanto, meus votos de bons estudos. Andrey Pereira de Oliveira 9 Por que ler narrativas de ficção 1 Aula 1 2 13 Apresentação Caro(a) aluno(a), iniciaremos esta nossa primeira aula discutindo uma questão fundamental para os estudantes do Curso de Li-cenciatura em Letras, futuros professores de língua portuguesa e literaturas de língua portuguesa. Certamente, daqui a alguns anos, como professor, você será indagado(a) por seus alunos sobre questões como: por que ou para que ler ou para que estudar literatura? É bem possível que quando estudante do ensino fundamental ou médio você mesmo(a) já tenha levantado tais questões. E é para propor algumas respostas consistentes a elas que esta aula foi elaborada. Objetivos Identificar a importância sociocultu- ral da narrativa de ficção. Listar as funções socioculturais da narrativa de ficção. Saiba mais Aula 1 Teoria da Literatura II 15 Narrativa literária: ler por quê? Ler para quê? Há espaço para a narrativa de ficção nos dias de hoje? Num mun- do descrito como cada vez mais marcado pela competição entre os indivíduos, pela velocidade crescentemente acelerada, em que as urgências práticas do dia a dia parecem consumir toda a nossa ener- gia, a ficção tem alguma contribuição importante a nos dar? Ela não é apenas um escape irresponsável, um mero passatempo que nos distrai e nos desorienta das coisas realmente relevantes da vida? Em palavras claras: ler ficção no mundo atual não é uma perda de tempo? De fato, neste contexto cada vez mais pautado por uma orien- tação pragmática, é, no mínimo, esperado que se pergunte por que ou para que ler ou estudar literatura. Essas questões precisam ser constantemente levantadas por quem, como os professores de língua portuguesa, lida com a literatura em seu cotidiano, conduzindo, in- clusive, dezenas ou centenas de indivíduos em formação, que são os seus alunos, a se debruçarem sobre os livros de literatura. Nesta primeira aula, abordaremos as questões anteriormente le- vantadas, a partir de algumas reflexões de dois grandes nomes do campo da literatura: Antonio Candido e Mario Vargas Llosa, defen- sores da relevância da arte da ficção, seja para o indivíduo, seja para o conjunto da sociedade. Antonio Candido de Mello e Souza nasceu no Rio de Janeiro em 1918. Fez toda sua formação acadêmi- ca no estado de São Paulo, onde atuou como professor da USP por mais de três dé- cadas. É considerado um dos principais historiadores e críticos da literatura brasilei- ra. Entre as suas obras mais importantes destacam-se Aula 1 Teoria da Literatura II16 Formação da literatura brasileira: momentos decisi- vos (1959), Literatura e sociedade (1965) e O discurso e a cidade (1993). Fazendo jus a sua formação em So- ciologia e em Estudos Literários, é uma marca dos es- tudos de Candido a apreensão da literatura tanto como fato histórico-social quanto como fato estético-formal. Fonte: Foto por Marcos Santos/USP Imagens. Disponível em: <http://www.imagens. usp.br/wp-content/uploads/14032013Prof_antoniocandidofotomarcosfoto008.jpg>. Acesso em: 27 fev. 2014. Mario Vargas Llosa nas- ceu em Arequipa, no Peru, em 1936. É um dos escritores lati- no-americanos mais reconhe- cidos em todo o mundo, tendo vencido alguns dos mais notá- veis prêmios literários, entre eles o Prêmio Nobel de Litera- tura em 2010. Autor de nume- rosos romances, peças de teatro e ensaios literários e políticos, Llosa tem entre suas obras mais destacadas os romances A cidade e os cachorros (1962), Conversa na Catedral (1969) e Pantaleão e as visitadoras (1973). Parte consi- derável de sua produção ficcional, sem descuidar da alta qualidade estética, mostra-se politicamente engajada. Fonte:<http://www.alfaguara.com/uploads/imagenes/noticia/principal/201010/ principal-presentacion-suen-celta-nueva-novela-mario-vargas-llosa.jpg>. Acesso em: 27 fev. 2014. Aula 1 Teoria da Literatura II 17 Antonio Candido escreveu ao menos dois textos em que pôs em primeiro plano de discussão o que genericamente podemos chamar de funções da literatura. O primeiro deles, “A literatura e a formação do homem”, foi originalmente proferido como palestra na XXIV reu- nião anual da SBPC, em São Paulo, em julho de 1972. O segundo, “O direito à literatura”, foi pronunciado, também como palestra, no curso organizado pela Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, em 1988. Já Mario Vargas Llosa escreveu vários textos sobre o tema em pauta. Destacamos dois deles: “A verdade das men- tiras”, de junho de 1989 e “A literatura e a vida”, de abril de 2001. Mais do que mero entretenimento, um direito humano Vargas Llosa, em “A literatura e a vida”, afirma existir uma con- cepção bastante disseminada segundo a qual a literatura é uma atividade prescindível, um entretenimento, seguramente elevado e útil para o cultivo da sensibilidade e das maneiras, um adorno que pode se permitir quem dispõe de muito tempo para a recreação, e que deveria ser afiliado entre os esportes, o cinema, o bridge ou o xadrez, porém, que pode ser sacrificado sem escrúpulos na hora de estabelecer uma ordem de prioridades nos afazeres e nos compromissos indispensáveis da luta pela vida (LLOSA, 2004, p. 349). Como vemos, segundo essa visão, a literatura poderia ser dispen- sada sem grandes perdas para a sociedade. Sua importância seria secundária, serviria apenas para a diversão das pessoas em mo- mentos de lazer ou ainda para dar um “verniz cultural” àqueles que a cultivassem. Sempre que comparada às atividades consideradas “práticas”, a literatura se mostraria inútil e irrelevante. É sempre importante sabermos quando os textos que estudamos foram escritos, uma vez que o contexto de enunciação sempre, de algum modo, direciona os enunciados. Por essa razão, sabendo do contexto, compreendemos melhor os textos. Miguel de Cervantes, em sua obra-prima O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha, publicada em 1605, ironicamente parece fazer coro com essa visão depreciativa da literatura de ficção como um exercício de diletantismo inútil. Já no “Prólogo” da obra, ele se dirige ao leitor com as seguintes palavras: “Desocupado leitor”. (CERVANTES SAAVEDRA, 2007, p. 29) Concepção semelhante a essa é expressa pela personagem Bazárov, do romance Pais e filhos, de Ivan Turguêniev, publicado em 1862: “Um químico honesto é vinte vezes mais útil do quequalquer poeta” (TURGUÊNIEV, 2004, p. 52). Aula 1 Teoria da Literatura II18 Figura 1 – Dom Quixote em sua biblioteca, desenho de Gustave Doré. Fonte: Don Quijote: Engravings by Gustavo Doré. Disponível em: <http://www.doreillustrations.com/ donquixote/dore-quixote144.html>. Acesso em: 22 mar. 2013. Antonio Candido, por sua vez, em “O direito à literatura”, observa que, em geral, quando as pessoas pensam em direitos humanos, enu- meram alimentação, moradia, vestuário, transporte, instrução, saúde, liberdade individual, amparo da justiça pública, entre outros itens que “asseguram sobrevivência física em níveis decentes”. Todavia, dificilmente lembram-se de colocar nessa lista itens que “garant[a]m a integridade espiritual, a exemplo do direito à crença, à opinião, ao lazer [...], à arte e à literatura” (CANDIDO, 1995, p. 241). Ao considerar que a literatura não é vista como um direito humano, Candido, do mesmo modo que Vargas Llosa, também constata que a literatura tem sido considerada por muitos como uma atividade prescindível, como algo que não necessariamente precisa ser assegurado às pessoas. É contra essa concepção que redutoramente enxerga a literatura como inútil, como desimportante, como, no máximo, uma necessidade secundá- ria, que Vargas Llosa e Antonio Candido se insurgem, propondo argumen- tos que sustentam uma perspectiva contrária a essa. Mais do que verem na leitura da literatura uma atividade que se limita a uma experiência do campo do lúdico e do prazer, ambos a enxergam como uma prática imprescindível para a plena integridade do homem e da sociedade. Aula 1 Teoria da Literatura II 19 Para Antonio Candido, a literatura é algo tão relevante que deveria ser enumerada entre os direitos garantidos a todos os indivíduos. Ela deveria estar, portanto, entre os bens incompressíveis, ou seja, entre os bens que nunca poderiam ser negados a nenhum indivíduo, uma vez que corresponderiam “a necessidades profundas do ser humano, a necessidades que não podem deixar de ser satisfeitas sob pena de desorganização pessoal, ou pelo menos frustração mutiladora” (1995, p. 241). Para ele, a literatura é um instrumento de humaniza- ção que porta uma função humanizadora, visto ter a capacidade de “confirmar a humanidade do homem” (2002, p. 77). Nesse contexto, Candido (1995, p. 249) entende por humanização o processo que confirma no homem aqueles traços que repu- tamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais com- preensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante. Vargas Llosa, por sua vez, põe-se declaradamente contrário à ideia de “literatura como um passatempo de luxo” ou como “um dos enri- quecedores afazeres do espírito”. Defendendo o caráter insubstituível da literatura para a formação dos indivíduos e para a constituição de uma sociedade democrática, afirma estar convencido de que uma sociedade sem literatura, ou na qual a literatura foi relegada, como certos vícios inconfessáveis, às margens da vida social e convertida pouco menos que num culto sectário, está condenada a se barbarizar espiritualmente e a comprometer sua liberdade (LLOSA, 2004a, p. 350). Cabe-nos, a partir de agora, acompanhar os argumentos que movem os dois autores a verem a leitura da literatura como uma prática tão importante a ponto de afirmarem que ela deveria ser considerada um direito humano, um instrumento de humanização, bem como a defen- derem que sem a sua presença plena uma sociedade estaria condenada a se barbarizar espiritualmente e a comprometer a sua liberdade. 1Atividade Aula 1 Teoria da Literatura II20 No primeiro passo da atividade, faça entrevistas com cinco pes- soas de seu convívio – seus pais, irmãos, amigos – a fim de saber o que eles pensam acerca da leitura de narrativas de ficção nos dias atuais. Para melhor organizar as entrevistas, antes de ir a campo, elabore um questionário com aproximadamente cinco questões. Esse questionário deve ser flexível, a fim de poder se adaptar com naturali- dade à situação de cada entrevista. Como exemplo de perguntas, você pode indagar se a leitura de narrativas de ficção pode trazer algum benefício aos indivíduos, se é uma atividade essencialmente lúdica, se é um passatempo, se deve ser evitada quando se tem algo mais sério a se fazer, se é importante para pessoas de qualquer idade, se deve ser considerado um direito humano, se faz alguma diferença no convívio dos indivíduos de uma sociedade etc. Evite sugestionar as respostas. No segundo passo da atividade, faça uma reflexão acerca das respostas obtidas e elabore um texto ressaltando as visões predo- minantes dos entrevistados acerca da leitura da narrativa de ficção. Aula 1 Teoria da Literatura II 21 A literatura e a satisfação da necessidade universal de fantasia Parece ser comum a todos os povos a necessidade da imaginação e da manutenção de algum contato com a fantasia, com alguma espécie de ficção. Sejam as narrativas que vivenciamos em nossos sonhos, sejam as fábulas, os chistes, as piadas, as histórias em qua- drinhos, os filmes, as canções, nenhum indivíduo é “capaz de passar as vinte quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado” (CANDIDO, 1993, p. 242). É nesse sentido que se afirma que essa função da literatura, tanto em suas manifesta- ções mais espontâneas quanto em suas realizações mais sofisticadas, possibilita-nos contato com experiências do universo fabular. Ainda de acordo com Candido, “a literatura é o sonho acordado das civiliza- ções. Portanto, assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem literatura” (CANDIDO, 1995, p. 242-3). Algo semelhante é percebido por Mário Vargas Llosa, quando, no ensaio “A verdade das mentiras”, afirma que Quando lemos romances, não somos o que somos habitualmen- te, mas também os seres criados para os quais o romancista nos transporta. Esse traslado é uma metamorfose: o reduto asfixiante que é nossa vida real abre-se e saímos para ser outros, para viver vicariamente experiências que a ficção transforma como nossas. Sonho lúcido e fantasia encarnada, a ficção nos completa – a nós, seres mutilados, a quem foi imposta a atroz dicotomia de ter uma única vida, e os apetites e as fantasias de desejar outras mil. Esse espaço entre a vida real e os desejos e as fantasias, que exigem que seja mais rica e mais diversa, é preenchida pelos livros de ficção (LLOSA, 2004b, p. 17). Aula 1 Teoria da Literatura II22 A função cultural integradora da literatura Numa época cada vez mais marcada pela especialização, em que o desenvolvimento das ciências e das técnicas segrega em seus res- pectivos nichos os entendidos em cada área do conhecimento, a tendência é que os indivíduos tornem-se mais e mais distanciados da convivência num universo sociocultural mais amplo, passando a compartilhar apenas com os poucos de sua “espécie” o mesmo voca- bulário, valores e interesses. Nas palavras de Llosa, essa progressiva especialização “conduz à incomunicabilidade social, ao esquarteja- mento do conjunto dos seres humanos em assentamentos ou guetos culturais de técnicos ou especialistas” (LLOSA, 2004a, p. 351). Uma das consequências dessa incomunicabilidade social é a forma- ção de grupos cada vez mais confinados em seus próprios repertórios culturais. Seus integrantes acabam perdendo a capacidade de lançar ao mundo um olhar mais totalizador que veja a si, aos seus próximos e aos que pertencem a outros grupos socioculturais como membros de um único conjunto de seres humanos. Como resultado desse alhe- amento, há o acirramento das tensões entre indivíduosou povos que, por não se conhecerem e não se respeitarem, desfiguram e rebaixam uns aos outros, potencializando mal-entendidos, ódios e violências. Nesse contexto, a literatura apresenta-se como um fundamental instrumento de aproximação e boa coexistência entre os grupos so- ciais. Isso porque, inversamente ao que ocorre com a ciência e com a técnica, a literatura apresenta um potencial integrador da coletividade humana. Mesmo quando lemos obras escritas por escritores que viveram em épocas ou em espaços geográficos muito diversos dos nossos, percebemos que compartilhamos com esses escritores e suas personagens de ficção muitos de nossos atributos e sentimentos, que são, até certa medida, universais e atemporais. No ato da vivência ficcional, podemos nos dar conta de um conjunto de “denominado- res comuns da experiência humana, graças ao qual os seres vivos se reconhecem e dialogam, não importa o quão distintas sejam suas ocupações e desígnios vitais, as geografias e as circunstâncias em que existem, e, inclusive, os tempos históricos que determinam seu horizonte” (LLOSA, 2004a, p. 352). A despeito das notáveis diferenças socioculturais que há entre os leitores do século XXI e os homens da Grécia arcaica representados na ficção de Homero, podemos nos identificar e nos ver refletidos, de alguma forma, na ira e na bravura de Aquiles, na honradez de Heitor, na astúcia de Ulisses, na fidelidade de Penélope, no amor filial de Telêmaco, ou ainda, na arrogância de Agamêmnon, no des- comedimento de Pátroclo e no desrespeito dos pretendentes à mão Aula 1 Teoria da Literatura II 23 de Penélope, uma vez que esses atributos e sentimentos são ele- mentos inerentes à natureza humana de qualquer época e lugar. Chegaríamos a conclusões semelhantes se nos confrontássemos com as personagens criadas por ficcionistas que distam de nós, se não temporalmente ao menos geograficamente, como o indiano Salman Rushdie, autor do polêmico romance Os versos satânicos (1988), ou o angolano Pepetela, autor de Mayombe (1980). Mesmo retratando ficcionalmente universos culturais tão distantes do nosso, essas obras apresentam-nos personagens que, a despeito de suas peculiaridades, são, no fim das contas, humanas como nós. Ao ingressarmos nos mundos ficcionais – mesmo naqueles pro- duzidos em épocas tão distantes quanto as milenares epopeias ho- méricas – vivenciamos uma experiência de coletividade. Segundo Llosa, “Esse sentimento de pertencer à coletividade humana, através do tempo e do espaço, é a realização mais elevada da cultura, e nada contribui tanto para renová-lo, a cada geração, como a literatura” (LLOSA, 2004a, p. 353-4). De modo complementar, a narrativa de ficção também nos permite enxergar, além dos denominadores comuns, as diferenças de valo- res socioculturais dos indivíduos e das comunidades. Por seu meio, experimentamos novos mundos, diferentes daquele a que estamos rotineiramente acostumados, ou vivenciamos o nosso mundo a partir de outros olhos – do ficcionista e suas personagens. Quando, no ato da leitura, vivenciamos ficcionalmente a experiên- cia das personagens com todas as suas idiossincrasias – suas crenças, angústias, ambições, condições socioeconômicas e culturais –, am- pliamos nossa própria percepção das coisas. Damo-nos conta de que é possível enxergar o mundo por um ângulo diferente daquele que até então nos era familiar. É nesse momento, quando há uma tensão entre os modos distintos de encarar as coisas, que a literatura atua como um ampliador de nossas experiências. Experimentando a vida ficcional a partir de outros olhos, podemos conhecer, compreender e, em consequência, respeitar os modos de perceber o mundo e viver a vida particulares a outros indivíduos e comunidades. Em suma, por um lado, a ficção nos faz perceber o quanto os indivíduos das sociedades mais distantes no tempo e no espaço par- ticipam todos de uma mesma coletividade humana. Por outro, ela nos permite observar e respeitar as visões de mundo que especificam cada sujeito e cada grupo sociocultural como entidades singulares. 2Atividade Aula 1 Teoria da Literatura II24 Nesta segunda atividade, propomos um bom exercício para que você possa avaliar a pertinência da afirmação de que a literatura pode nos abrir os horizontes para novos modos de enxergar a realidade. A atividade gira em torno dos contos “O cobrador” e “Feliz ano novo”, de Rubem Fonseca, que apresentam protagonistas pratican- do ações de extrema brutalidade. Antes de ler as narrativas, reflita sobre pessoas que, de modo extremamente brutal e, aparentemente, gratuito, matam outras que lhes são desconhecidas. São marginais que merecem reprovação e punição da sociedade? Agem movidos por instinto de crueldade? Após a reflexão, proceda a leitura dos contos tentando observar as razões que movem os protagonistas a agir como agem. Faça então uma nova reflexão sobre a situação das personagens, que, numa leitura apressada poderiam ser reduzidas a marginais desprezíveis e violentos, e observe se sua experiência de vivenciar a marginalidade a partir da perspectiva dos próprios marginais não lhe estimula a, no mínimo, começar a relativizar o sentido mais tradicional e restrito do que seja a violência, podendo, inclusive, lhe fazer concluir que as personagens praticam tal grau de violência física porque são, de antemão, elas próprias vítimas de violência social e simbólica. Aula 1 Teoria da Literatura II 25 A literatura e a ampliação da percepção linguística do mundo Sendo uma forma de arte que se estrutura em linguagem verbal, não poderíamos deixar de destacar o quanto a literatura, já por meio de sua estrutura linguística, contribui para os indivíduos e as comunidades. É por meio da linguagem que apreendemos o mundo. Sem a linguagem não teríamos como vincular partes do mundo a conceitos, e sem os conceitos não teríamos como apreender intelectualmente as coisas. O mundo não seria mais do que continuum amorfo e incompreensível. Para vermos a importância da linguagem verbal na percepção do mundo, basta irmos até um ambiente que para nós não seja familiar. Por exemplo, se não conhecermos nada de agropecuária, ao nos aproximarmos de um criadouro bovino, não veremos muito mais do que bois e vacas. Faltando-nos o conhecimento do vocabulário típico dessa atividade, estaremos muito pouco aptos para distinguir as raças dos animais. A partir do momento em que aprendemos a associar certas características a certas raças, não só o nosso vocabu- lário aumenta, junto com ele aumenta também a nossa capacidade de distinguir particularidades onde antes não víamos mais do que um conjunto uniforme: onde só víamos gado indistintamente, pode- remos enxergar exemplares de zebu, nelore e guzerá, dentre tantos outras. Em outras palavras, o incremento vocabular amplia nossa capacidade de observarmos e compreendermos o mundo com mais detalhes, com mais sutileza e complexidade. É nesse mesmo sentido que Vargas Llosa afirma, de modo enfático e sem preocupação em ser politicamente correto, que Uma pessoa que não lê, lê pouco ou que só lê lixo, pode falar muito, porém dirá sempre poucas coisas porque dispõe de um repertório mínimo e deficiente de vocábulos para se expressar. Não é uma limitação somente verbal; é, ao mesmo tempo, uma limitação intelectual e de horizonte imaginário, uma indigência de pensamentos e de conhecimentos, porque as ideias, os con- ceitos, mediante os quais nos apropriamos da realidade existen- te e dos segredos da nossa condição, não existem dissociados das palavras, através das quais a consciência os reconhece e os define (LLOSA, 2004, p. 355). Sabemos que a leitura de um modo geral é um formidável exer- cício de enriquecimento vocabular e intelectual. A leitura de textos literários, por sua vez, é a experiência humana que mais potencializa esse enriquecimento. Ao nos proporcionar o transporte imaginário para uma infinitude de outros universos que não o do nossoconvívio Aula 1 Teoria da Literatura II26 cotidiano, a narrativa ficcional coloca-nos em contato com todo um conjunto de palavras que ampliam nosso repertório e afinam nosso contato com o mundo. Além disso, de um modo geral, os textos li- terários são as construções em que a linguagem verbal se apresenta com toda a potencialidade de sua complexidade e variedade. A leitura de um romance como O nome da rosa (1980), de Um- berto Eco, enriquece nosso universo cultural quando nos oferta uma gama de termos do cotidiano monástico do início do século XIV, bem como da filosofia escolástica. Os ratos (1935), de Dyonélio Machado, por sua vez, oferta-nos o linguajar da “arraia-miúda” que circulava pelo centro de Porto Alegre no início do século XX. Já narrativas como as de James Joyce ou as de João Guimarães Rosa, notáveis pelo alto grau de inventividade da linguagem, vão além de nos possibilitar um contato com palavras que desconhecemos ou conhece- mos num sentido diverso do empregado pelo escritor. O que temos em obras como Grande sertão: veredas (1956) ou nos contos de Tutaméia (1967) é um conjunto de palavras criadas por meio das quais o autor tenta captar frações da realidade até então despercebidas ou apenas referidas pelos falantes da língua portuguesa por meio de circunlóquios. Num conto como “Desenredo”, por exemplo, nós leitores nos depara- mos com termos como “desmastreio”, “abusufrutos”, “franciscanato”, “descaluniá-la”, “amatemático”, “antipesquisas”, “acronologias”, “ufa- nático” (ROSA, 2001, p. 72-5). Esses neologismos parecem ser resultado do esforço do escritor em sanar algumas carências da língua para dar conta de certas coisas, situações ou sentimentos que lhe escapam. Obviamente a contribuição linguística da literatura para nosso apri- moramento intelectual e subjetivo não se limita à ampliação de nosso vocabulário. O trato literário das narrativas também se impõe nas esferas da sintaxe, do ritmo, do tom etc., de modo que um bom texto literário, entre outras coisas, possibilita-nos experimentar o mundo por novos ângulos que nos são apresentados pelos novos arranjos da linguagem. Além disso, como nos lembra Candido, as obras literárias, entre elas as narrativas ficcionais, funcionam como espécies de modelos de organização do mundo. Cada narrativa constrói e nos propõe um modo de ordenar as coisas, resultando num “modelo de coerência, gerado pela força da palavra organizada” (CANDIDO, 19995, p. 245). Os diversos textos literários que a humanidade vem acumulando fornecem-nos um vasto e variadíssimo acervo de estruturas linguísti- cas, cada qual reconfigurando e recriando esteticamente o universo, seja das ações e coisas práticas seja dos valores e sentimentos abstra- tos. É por isso que se pode afirmar que “o caráter de coisa organizada da obra literária torna-se um fator que nos deixa mais capazes de ordenar a nossa própria mente e sentimentos; e em consequência, mais capazes de organizar a visão que temos do mundo” (CANDIDO, 19995, p. 245). Aula 1 Teoria da Literatura II 27 Mais uma vez de forma contundente, Llosa defende que Aprende-se a falar com correção, profundidade, rigor e suti- leza graças à boa literatura, e somente graças a ela, nenhuma outra disciplina, tampouco um ramo das artes pode substituir a literatura na formação da linguagem com que as pessoas se comunicam. [...] Falar bem, dispor de uma fala rica e diversa, encontrar a expressão adequada para cada ideia ou emoção que se quer comunicar, significa estar mais bem preparado para pensar, ensinar, aprender, dialogar e, também fantasiar, sonhar sentir e se emocionar (LLOSA, 2004, p. 355). A literatura como instrumento de percepção crítica da realidade Concluindo esta nossa primeira aula, passemos a discutir outra importante função social da ficção: sua capacidade de aguçar nossa percepção crítica da realidade. Existe uma série de narrativas em que se percebe uma evidente intenção de se posicionar ética ou politicamente diante de eventos ou valores da sociedade. Não devemos, todavia, vincular diretamen- te o grau de engajamento ético e político de uma obra à qualidade estética. São inúmeros os romances que, a despeito das ideias defendidas e mesmo do impacto político que causaram no público leitor, não resistem a uma leitura de avaliação estética. É o caso de A escrava Isaura (1875), de Bernardo Guimarães, e de A cabana do Pai Tomás (1851-1852), da norte-americana Harriet Elizabeth Beecher-Stowe. Es- sas obras são respectivamente fortes libelos contra a escravidão negra no Brasil e nos Estados Unidos – esta última, como bem lembra Llosa, “parece ter desempenhado um papel importantíssimo na tomada de consciência social, nos Estados Unidos, sobre os horrores da escravi- dão” (LLOSA, 2004a, p. 361) –, mas carecem de qualidade artística. O mesmo descompasso entre consciência sociopolítica e elaboração estética também se verifica em diversas narrativas produzidas sob a égide do realismo socialista soviético, que declaradamente serviam para propagandear o regime stalinista. Aula 1 Teoria da Literatura II28 Figura 2 – Folha de rosto de “A cabana do Pai Tomás” (da edição americana de 1852). Fonte: <http://cdn.dipity.com/uploads/events/df7d8c6dcb1de8fd9c02839162413f08_1M.png>. Acesso em: 22 mar. 2013. O problema de obras dessa natureza é que, segundo Candido, apresentam “posição falha e prejudiciais à verdadeira produção lite- rária, porque têm como pressuposto que ela se justifica por meio de finalidades que alheias ao plano estético, que é o decisivo.” Ele ainda completa: “De fato, sabemos que em literatura uma mensagem ética, política, religiosa ou mais geralmente social, só tem eficiência quando for reduzida a estrutura literária, a forma ordenadora” (CANDIDO, 1995, p. 250). Já romances como Os miseráveis (1862), de Victor Hugo, Guerra e Paz (1865-1869), de Liev Tolstói, Germinal (1885), de Émile Zola, Vidas secas, de Graciliano Ramos, e Quarup (1967), de Antonio Callado, são exemplos de obras notáveis em que vemos unidas a qualidade estética e a visão crítica do mundo. Restringindo-nos a estas duas últimas obras, de escritores brasileiros, podemos ressaltar o quanto o leitor pode nelas perceber, considerações sobre a situação de miséria fruto da estrutura social que impera em regiões como o Nordeste do país, e considerações sobre as lutas sociais pautadas em reivindicações por reforma agrária. Ao mesmo tempo que esses dois romances possibilitam-nos compreender melhor nossa socieda- Aula 1 Teoria da Literatura II 29 de, contribuindo para nossa formação sociopolítica, permitem-nos também uma incursão numa experiência eminentemente estética. Além de termos o cuidado para não confundir qualidade estética e discurso sociopolítico, não podemos reduzir o potencial crítico da literatura a certo pedagogismo direto. As grandes narrativas de ficção não são aquelas que trazem um discurso doutrinário explícito, que julgam o mundo, que afirmam o que é certo e o que é errado, que apontam quais os caminhos a seguir etc. Ao contrário, as obras que têm perdurado como notáveis são justamente aquelas que, apesar de comportarem um discurso questionador do mundo em que vivemos, mais do que afirmar caminhos de modo definitivo, o que fazem é desestabilizar valores e práticas sedimentadas, provocando nos lei- tores não certezas, mas momentos de reflexão crítica. Mais do que dogmáticas, as grandes obras narrativas são quase sempre ambíguas. A função crítica da literatura dá-se de modo bastante diverso do que tradicionalmente se entende por ensinamento educativo, que marcado por noções com alto grau de rigidez e por regras normativas. Como muito bem observa Antonio Candido, A literatura pode formar; mas não segundo a pedagogia oficial, que costuma vê-la ideologicamente como um veículo da tríade famosa – o Verdadeiro, o Bom, o Belo, definidos conforme os interesses dos grupos dominantes, para reforço da sua con- cepçãode vida. Longe de ser um apêndice da instrução moral e cívica (esta apoteose matreira do óbvio, [...]), ela age com o impacto indiscriminado da própria vida e educa como ela – com altos e baixos, luzes e sombras (CANDIDO, 2002, p. 83). E ainda complementa: a literatura “não corrompe nem edifica [...]; mas trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza no sentido profundo, porque faz viver” (CANDIDO, 2002, p. 85). Aula 1 Teoria da Literatura II30 BERNARDO, Gustavo. A ficção cética. São Paulo: Annablume, 2004. Nesse livro pouco ortodoxo de teoria da literatura, Gustavo Ber- nardo desenvolve uma reflexão aprofundada sobre o caráter cético e ambíguo da ficção. BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451: a temperatura na qual o papel do livro pega fogo e queima. Tradução de Cid Knipel. São Paulo: Globo, 2007. Nesse romance, publicado originalmente em 1953, narra-se um tempo futuro em que os livros são todos proibidos e, quando encon- trados, queimados. Trata-se de uma narrativa distópica que alerta para as consequências nefastas de estados totalitários que impedem o contato dos indivíduos com os livros, vistos como símbolos de resistência crítica. Em 1966, seu enredo foi adaptado para o cinema, sob a direção de François Truffaut. JOUVE, Vicente. Por que estudar literatura?. Tradução de Marcos Bagno e Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2012. Assim como Antonio Candido e Mario Vargas Llosa, Vicent Jou- ve também faz uma apologia da literatura. Seu estudo parte da ideia nuclear de que só se pode perceber o valor fundamental da literatura quando se leva em conta seu estatuto de objeto artístico. Livro de linguagem simples, mas de discussão densa, enfrenta a questão a partir de múltiplas perspectivas. LLOSA, Mario Vargas. “Elogio de la lectura y la ficción”. Trata-se do discurso proferido pelo autor peruano na cerimônia de recebimento do Prêmio Nobel de Literatura, em Estocolmo, na Suécia, em 7 de dezembro de 2010. Disponível em: http://www. nobelprize.org/nobel_prizes/literature/laureates/2010/vargas_llosa- -lecture_sp.pdf (O vídeo que registra a leitura do discurso de Llosa durante a referida premiação está disponível em http://vimeo.com/17573870) SKÁRMETA, Antonio. O carteiro e o poeta. Tradução de Beatriz Sidou. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996. Nesse romance, publicado em 1985 sob o título original espa- nhol “Ardiente paciência”, narra-se a história da amizade entre o poeta chilena Pablo Neruda e um carteiro semianalfabeto. Dessa relação e do progressivo contato do carteiro com a literatura, vemos o amadurecimento humano do carteiro. Em 1994, o diretor Michel Radford transpôs a obra literária para o cinema. Leituras complementares 1 2 3 4 Aula 1 Teoria da Literatura II 31 TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Tradução de Caio Meira. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009. Nesse livro, Todorov faz uma crítica aos programas de ensino que sufocam o contato dos alunos com a literatura em prol de uma discussão abstrata de teoria literária. A essa perspectiva, ele contra- põe a proposta de que a literatura deva ser lida e vivenciada como um instrumento de conhecimento humano. Resumo Nesta primeira aula, vimos que a leitura de obras literárias, dentre elas as narrativas de ficção, é uma atividade que vai muito além do mero passatempo ou de um hobby erudito. Acompanhando as posições de Antonio Candido e Mario Vargas Llosa, você deve ter percebido que a literatura é uma prática social de extrema relevância para os indivíduos e para a sociedade. Isto porque as narrativas de ficção podem exercer as seguintes funções: contribui para atender à necessidade humana de fabulação; possibilita-nos vermos como pertencentes a uma coletividade humana, ao mesmo tempo em que nos faz conhecer e respeitar as peculiaridades dos indivíduos e povos; amplia nossa percepção linguística do mundo; ajuda-nos a aprimorar o senso crítico com que vemos nossa realidade. Autoavaliação Qual a importância para um estudante de Licenciatura em Letras de refletir acerca de o porquê ler narrativas de ficção? Como a literatura pode contribuir para atender à necessi- dade humana de fabulação? Em que consiste a função cultural integradora da literatura? De que modo a leitura de textos literários (inclusive narra- tivas de ficção) pode contribuir para a ampliação da per- cepção linguística do mundo? 5 6 Aula 1 Teoria da Literatura II32 Cite e comente três obras de ficção narrativa da literatura brasileira que, no seu entender, podem atuar como instru- mentos de aprimoramento do senso crítico da realidade. Leia o fragmento textual a seguir, do escritor argentino Jor- ge Luis Borges, e relacione a afirmação em destaque com al- gumas das ideias de Antonio Candido e Mario Vargas Llosa. Dos diversos instrumentos utilizados pelo homem, o mais espetacular é, sem dúvida, o livro. Os demais são extensões de seu corpo. O microscópio, o telescópio são extensões de sua visão; o telefone é a extensão de sua voz; em seguida, temos o arado e a espada, extensões de seu braço. O livro, porém, é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação (BORGES, 1987, p. 5, grifo nosso). Anotações A epopeia 2 Aula 1 3 2 35 Apresentação Prezado(a) aluno(a), nesta segunda aula, teremos como objeto de estudo uma das manifestações mais antigas do gênero nar-rativo: a epopeia. Iniciaremos nossa discussão com algumas considerações preliminares acerca do gênero narrativo. Após esbo- çarmos uma conceituação da epopeia, faremos uma breve exposição acerca das narrativas orais mais primitivas. Só então discorreremos, em linhas gerais, acerca da epopeia que tem sido considerada como a obra literária ocidental mais antiga que chegou até os nossos dias, a Ilíada, do poeta grego Homero. Por fim, abordaremos outras epopeias surgidas posteriormente às criações homéricas. Objetivos Distinguir o gênero narrativo frente aos gêneros lírico e dramático. Conceituar epopeia. Identificar a evolução histórica da epopeia. Aula 2 Teoria da Literatura II 37 Considerações preliminares sobre o gênero narrativo Certamente, você se lembra da discussão empreendida na dis- ciplina Teoria da Literatura I acerca dos gêneros literários. Naquela ocasião, vimos que tradicionalmente os textos literários têm sido agrupados em três grandes gêneros: o gênero lírico, o gênero narra- tivo e o gênero dramático. Enquanto o gênero lírico foi estudado na disciplina anterior, nesta, iremos nos ocupar do gênero narrativo, que, por vezes, é também chamado de gênero épico. Recorrendo à etimologia, podemos afirmar que o adjetivo “épico” que qualifica os textos do gênero narrativo deriva do vocábulo grego épos, que significa recitação ou aquilo que é expresso pela fala. Um dos traços comuns e mais fundamentais das obras que integram esse gênero é a presença imprescindível de um narrador, que transmite ao público ouvinte ou leitor o conjunto dos eventos (ficcionais). Nisto essas obras diferenciam-se substancialmente das obras líricas e das obras dramáticas. Nas obras líricas, a voz enunciadora – chamada de eu-lírico –, mais do que veicular eventos passados dos quais se mantem dis- tanciada, exprime sua percepção subjetiva das coisas. Desse modo, mesmo quando observamos elementos narrativos em alguns textos líricos, geralmente tais elementos nos são expressos já contaminados pelo estado interior da voz lírica, de modo que podemos afirmar que o produto da voz lírica não são as coisas em si, mas a própria ex- pressão de seu estado anímico. Já em relação às obras dramáticas, as obras narrativas compartilham a presença de personagens em ação. Todavia, nos textos dramáticos não há narrador relatando os eventos, uma vez que o enredo nos é transmitido diretamente por meio das ações encenadas e das falas trocadas em diálogo pelas personagens. Limitando-nos às manifestações que são tipicamente transmitidas em registro escrito, podemos enumerar entreas principais espécies – ou subgêneros – do gênero narrativo, a epopeia (que estudaremos nesta aula), o romance (tema da aula seguinte), a canção de gesta, a novela, o conto e a crônica (esses dois últimos serão objetos das aulas 4 e 5, respectivamente). Cada uma dessas espécies, para além de compartilharem entre si aspectos comuns ao gênero narrativo, apresentam elementos que lhes são peculiares. Personagens É importante frisar que essas diferenças entre os gêneros não são rigorosas, pois é possível que se encontrem obras que apresentem traços de mais de um gênero. Aula 2 Teoria da Literatura II38 Conceituação de epopeia Ao considerarmos a etimologia, vemos que “A palavra grega épopoia é composta pelo substantivo épos (aquilo que é expresso pela fala) e de um derivado do verbo poïen (fazer, fabricar).” (STALLONI, 2003, p. 77). Uma das primeiras tentativas de se conceituar a epopeia encontra- -se na Poética, de Aristóteles. Escrito na segunda metade do século IV a.C., esse tratado tem como objeto central de reflexão a tragédia, todavia, em diversas passagens, o filósofo grego estabelece compa- rações entre a tragédia – gênero literário que a seu ver supera todos os demais – e a epopeia. Dessas comparações, diluídas ao longo do tratado, é possível apreendermos a caracterização aristotélica da epopeia: trata-se de um texto literário narrativo de longa extensão, com versificação em metro regular, que narra as ações empreendidas por grandes homens, que ele chama “seres superiores” ou pessoas “melhores do que somos”. Caracteriza-se ainda por apresentar uma multiplicidade de fábulas adequadamente desenvolvidas ao longo da narrativa e por comportar o irracional, que é a fonte principal do maravilhoso (ARISTÓTELES, 1997). É importante salientar que o modelo em que Aristóteles baseia-se para descrever a epopeia são as duas grandes obras de Homero, as quais ele recorre para exemplificar diversas das características dessa espécie narrativa. A seu ver, a Ilíada e a Odisseia são poemas “com- postos com a maior perfeição” (ARISTÓTELES, 1997, p. 52). Além desses traços apresentados por Aristóteles, podemos ain- da considerar como características fundamentais da epopeia alguns outros aspectos. Primeiramente, devemos destacar que a epopeia é considerada um texto fundador, uma representação da totalidade de um povo, assim, mesmo havendo um herói em destaque, ele é visto como a síntese de uma comunidade. Os episódios narrados são ilustres, grandiosos, quase sempre centrados em ações bélicas; giram em torno da gênese ou dos momentos mais sublimes da nação. Os acontecimentos históricos aos quais a epopeia se refere são, na maior parte das vezes, antiquíssimos, de modo a possibilitar ao poeta a liberdade de se valer, em sua composição, dos mitos e lendas tradi- cionais, bem como de sua própria fantasia. Apesar de os enredos se constituírem eminentemente como ações heroicas, há possibilidade da ocorrência de alguns episódios líricos. No que diz respeito à estrutura da epopeia, acrescentaríamos à descrição aristotélica a informação de que, em geral, a obra divide-se em cantos. O termo canto tanto é utilizado para se referir a uma epopeia como um todo como para indicar uma de suas partes. Neste segundo sentido, portanto, é sinônimo do que modernamente de- 1Atividade Aula 2 Teoria da Literatura II 39 nominamos capítulo. Normalmente, a epopeia apresenta três partes de tamanhos desiguais: a proposição, a invocação e a narração pro- priamente dita. Na proposição, o poeta anuncia em breves palavras o argumento do poema, ou seja, o tema que irá narrar. Na invocação, ele pede inspiração e auxílio às musas para que orientem o seu can- to. Na narração propriamente dita, que ocupa a grande maioria dos versos da epopeia, o poeta efetivamente narra as ações empreendidas pelos heróis. Por fim, ressaltamos que é muito comum a epopeia apresentar uma estrutura narrativa conhecida pela expressão latina in medias res, que significa, literalmente, no meio das coisas. Isso significa que, em vez de o narrador começar seu relato narrando a história a partir de seu início, ele inicia-o em um ponto já avançado da história. Só num segundo momento ele recua no tempo e narra os fatos anteriores. Por fim, ele retoma o ponto em que havia iniciado seu relato e segue até o fim. Leia a “Introdução” e o “Canto Primeiro” do poema narrativo Os Timbiras, do poeta romântico brasileiro Gonçalves Dias, e, baseando-se nas características fun- damentais da epopeia, determine em que aspectos o poema aproxima-se e em que aspectos distancia-se da epopeia padrão. O poema encontra-se disponível no seguinte link: <http://www.dominiopublico.gov.br/ pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_ obra=1825>. Aula 2 Teoria da Literatura II40 A epopeia: origens Para muitas pessoas, ao se falar de epopeia, é quase imediata a associação dessa forma literária ao nome do poeta grego Homero. De fato, a Ilíada e a Odisseia têm sido consideradas por muitos estu- diosos como as primeiras obras literárias do Ocidente e têm servido, há milênios, como modelo de excelência desse subgênero narrativo. Essa consideração da Ilíada como obra fundadora da literatura ocidental merece ser assimilada com cautela para não nos levar a mal-entendidos. Ao mesmo tempo em que talvez possamos tomar a Ilíada como o texto mais antigo já elaborado com uma consciência autoral individual, também devemos observar que antes de Homero já existiam um sem-número de narrativas nas quais ele se inspirou para realizar sua própria obra. Albin Lesky, a esse respeito, afirma que desde muitos séculos antes da epopeia homérica já existiam nu- merosos poemas épicos, todos inseridos num contexto de oralidade, e que, portanto, circulavam sem o apoio de registros escritos. No século VIII a.C., época em que se acredita ter Homero vivido, essa longa tradição épica oral estava chegando a seus termos, mas du- rante centenas de anos, foi o modo no qual muitos povos conservaram e transmitiram parte importante de suas tradições culturais. A ideia de autoria individual como comumente concebemos nos nossos dias não existia. As narrativas se compunham a partir de um repertório temáti- co e de um conjunto de técnicas literárias que eram comuns a todos. Além disso, por se tratar de uma época em que não se podia dispor da escrita, os poetas precisavam recorrer a uma série de procedimen- tos estruturais para tornar seus cantos mais facilmente assimilados e memorizados pela comunidade. Lesky cogita que, nesse contexto, O cantor deve estar munido de duas coisas: do conhecimento do tesouro de lendas do seu povo e do arsenal completo de fórmulas [...]. Mas isto é tudo: não conhece um texto preexis- tente e cria sempre de novo a sua canção. É evidente que a maior parte das vezes, parte daquilo que ele e outros cantaram, mas nunca tem que se ater a um texto para, simplesmente, o reproduzir. Vai variando sem cessar e, em geral, isso leva à ampliação do que antes se havia cantado (LESKY, 1995, p. 33). No que concerne à forma, a narrativa oral era composta predomi- nantemente em versos não rimados, porém fortemente metrificados e ritmados. Havia uma utilização intensa de elementos típicos, também chamados de fórmulas por alguns estudiosos. Essas fórmulas eram repetições constantes tanto de vocábulos ou expressões – como se vê nos epítetos redundantemente atribuídos às personagens –, quanto de Ocidente Considerando-se a literatura em âmbito mundial, e não apenas nos limites do Ocidente, muitos apontam o épico babilônico Gilgamesh, de autoria desconhecida, de que restaram apenas fragmentos, como a obra mais antiga de que se tem conhecimento. Essa narrativa traz como personagem central o rei Gilgamesh, que teria reinado na cidade Uruk, na Suméria, em algum momento entre os séculos XIX e XVI a.C. Aula 2 Teoria da Literatura II 41 passagens mais longas. Além disso, os poetas amparavam-se em padrõesrecorrentes de ação, de modo que as cenas de chegada, as batalhas, os rituais fúnebre, por exemplo, obedeciam a padrões estruturais regulares. De acordo com Peter Jones, os poetas orais precisavam ter memoriza- das “milhares de frases, sentenças e até cenas completas semiprontas mas ainda flexíveis, que se ajustassem à métrica e, durante séculos de declamação, tivessem se tornado indispensáveis à construção imediata de longos poemas épicos” (JONES apud HOMERO, 2013, p. 28). Já no tocante ao conteúdo dessas narrativas orais primitivas, po- demos ter a seguinte descrição: Sempre encontramos no centro de tais cantos o herói que so- bressai entre os demais pela coragem e força física. As suas ações são determinadas unicamente pelo conceito ainda não problematizado da honra. Também pode sobressair na amiza- de. Esta poesia tem sua origem e é cultivada geralmente numa classe superior dos cavaleiros que têm por conteúdo da sua vida a luta, a caça e os prazeres da mesa; entre estes últimos, conta-se também a canção do cantor. O que se interpreta em tais círculos converte-se normalmente mais tarde em patrimô- nio da comunidade. O pano de fundo de semelhante poesia heroica é constituído por uma época de heróis que se considera como um passado que supera a época presente. A uma ale- gria ingênua da realidade, que se exprime na descrição longa de carros, barcos, armas e roupas, corresponde uma exclusão considerável de elementos mágicos. [...] Esta poesia heroica tem sempre a pretensão de narrar fatos verdadeiros, pretensão essa que se fundamenta na venerabilidade da tradição ou na inspiração divina (LESKY, 1995, p. 32). Sobre este último ponto, a inspiração divina dos poetas, convém mencionarmos a concepção exposta por Platão no Íon, diálogo do período de sua juventude, composto por volta de 390 a.C., cujo tema central é justamente a inspiração poética. Sócrates, personagem central do diálogo, defende que os poemas criados pelos poetas não são produto de uma técnica racional, mas sim fruto da inspiração divina. Existiria uma espécie de cadeia magnética que articularia numa sequência contínua e hierárquica os Deuses – as Musas – os poetas – os rapsodos – os espectadores. Os deuses, por intermédio das Musas, inspirariam os poetas. Estes, também conhecidos como aedos, movidos por uma capacidade divina, criariam suas obras, as quais seriam divulgadas e difundidas pelo trabalho dos rapsodos, que as cantariam ou recitariam nos lugares mais diversos diante de um público espectador (PLATÃO, 2007). Poemas épicos Muitos dos traços formais das épicas orais ainda se encontram conservados na prática poética dos poetas populares nordestinos, a exemplo dos repentistas e emboladores. Saiba mais Aula 2 Teoria da Literatura II42 De acordo com uma das tradições que nos chega- ram, as musas, num total de nove, são os frutos de nove noites de amor entre Zeus e Mnemósine (personi- ficação da Memória). Além de serem cantoras divinas, elas são as inspiradoras das diversas formas de arte e pensamento. Cada uma das musas possui o dom de inspirar uma atividade específica: Calíope, a principal das musas, cujo nome significa “a de belo canto”, é considerada a musa da poesia épica, Clio é a musa da história, Polímnia é a musa da mímica, Euterpe é a musa da flauta, Terpsícore é a musa da dança, Érato é a musa da poesia coral lírica, Melpômene é a musa da tragédia, Talia é a musa da comédia e Urânia é a musa da astronomia (GRIMAL, 1990, p. 281-282). A “questão homérica” Foi nesse ambiente repleto de narrativas orais que, por volta do século VIII a.C. surgiram a Ilíada e a Odisseia. Muito já se discutiu acerca da autoria dessas obras. Essas discussões tem recebido o nome de “Questão homérica”. Já houve quem afirmasse que esses poemas narrativos não tiveram um autor individual, uma vez que teriam sido gestados, anônima e coletivamente, como que de modo espontâneo, no seio de uma comunidade anterior à escrita. Os defensores (cada vez menos numerosos) dessa hipótese, consideram que apenas sé- culos depois de sua criação, após anos e anos de transmissão oral, os poemas foram fixados em escrita e atribuídos, equivocadamen- te, a um poeta chamado Homero, que provavelmente sequer teria existido. De outro modo, há pesquisadores que defendem a ideia de que os poemas homéricos foram ditados por um aedo analfabeto a alguém que sabia escrever. Por fim, há os estudiosos, que, em número cada vez mais frequente, defendem a hipótese de que Homero não só existiu como já vivia em uma época em que a escrita já estava disponível. Consideram que parte considerável dos assuntos e dos procedimentos narrativos utilizados por Homero provinha da tradição oral, mas tomam como certo que a Ilíada foi concebida por escrito, graças à escrita e em função da escrita. Saiba mais Aula 2 Teoria da Literatura II 43 Toda essa polêmica se dá, entre outros fatores, pelo fato de na Ilíada e na Odisseia haver um número elevado de marcas de técni- ca oral. Isso faz o primeiro grupo de estudiosos defender a autoria coletiva numa época de oralidade, bem como faz os integrantes do segundo grupo, mesmo assumindo a possibilidade de os poemas terem tido registro imediatamente após a concepção, não deixar de supor que o criador das obras era um poeta analfabeto. Já os pesquisadores que se aliam à ideia da autoria individual e por escrito de Homero argumentam que a presença – pacificamente assumida como óbvia por todos – de técnicas orais nas epopeias em questão não significa necessariamente um processo de composição oral. Como Homero teria vivido numa época de transição da tradição oral para a tradição escrita, a assimilação por ele de elementos do repertório poético que lhe havia sido legado era inevitável. Num con- texto em que o respeito às tradições ancestrais ainda se fazia pleno, essa assimilação seria mais do que desejada pelo poeta. Consideram também que a transmissão da epopeia homérica, “mesmo no tempo do livro já desenvolvido, continuaram vivas principalmente através da exposição oral dos rapsodos” (LESKY, 1995, p. 31). O ponto central de suas divergências com as duas primeiras vertentes de estudiosos reside na constatação da presença de elementos estruturais que se- riam impossíveis sem o auxílio determinante da escrita. Outras duas questões recorrentes na “Questão homérica” giram em torno de se determinar se a Ilíada e a Odisseia teriam sido compostas por um mesmo indivíduo; e, ainda, de se determinar o quanto essas obras, em suas transmissões, do momento de suas elaborações até os dias atuais, sofreram modificações, sejam acréscimos ou supressões. Albin Lesky, cogitando a existência histórica de Ho- mero, supõe que ele teria vivido no século VIII a.C., possivelmente nas cidades de Quios ou Esmirna. Di- versamente do que é alimentado pela lenda românti- ca, ele não teria sido um mestre escola ou um cantor ambulante pobre, mas sim um rapsodo que mantinha relações estreitas com as cortes dos príncipes de seu tempo. Há ainda quem levante a hipótese de seu nome original ter sido Melesígenes (LESKY, 1995, p. 56). Aula 2 Teoria da Literatura II44 Tratando da imagem lendária que descreve Homero como cego, Arnold Hauser, esclarece que A imagem tradicional do velho rapsodo cego de Quios é predominantemente composta de remi- niscências que remontam ao tempo em que o poe- ta era um vate – um vidente ou profeta respeitado como sacerdote e inspirado pelos deuses. Sua ce- gueira é meramente o sinal externo da luz interior que lhe enche o ser e o habilita a ver coisas que outros não podem ver (HAUSER, 1998, p. 55). Figura 1 – Busto de Homero localizado no Museu Britânico. Fonte: <http://www.britishmuseum.org/explore/highlights/highlight_image.aspx?image=k60882. jpg&retpage=18177>. Acesso em: 27 mar. 2013. Aula 2 Teoria da Literatura II 45 Ilíada Para tornarmos nosso estudo da epopeia algo mais concreto, centra- remos nossa atenção naquelaque tem sido considerada a mais perfeita realização dessa forma narrativa: a Ilíada. Esse longo poema narrativo é dividido em 24 cantos. Há quem diga que esse era o livro que Alexandre, o Grande, sempre levava consigo em suas grandiosas campanhas militares. Se considerarmos a Ilíada como a primeira narrativa literária do Ocidente, teremos que concluir que nossa literatura iniciou-se com um poema sobre a cólera, sobre a ira. De fato, trata-se de uma nar- rativa bélica em que dois povos repletos de grandes homens se põem em combate mortal. De um lado, vemos os gregos, ultrajados em sua honra ao terem a esposa de um de seus líderes raptada: Helena, a mais bela das mortais, a famosa esposa de Meneleu. De outro, vemos os troianos – povo governado por Príamo, pai de Heitor e de Páris, o raptor de Helena – que precisam se defender das sucessivas investidas gregas às suas muralhas. A guerra entre os gregos e os troianos tem a duração de dez anos. A Ilíada, todavia, concentra quase que a totalidade de seus versos na narração de episódios ocorridos no último ano da guerra, mais precisamente do conflito entre os líderes gregos Aquiles e Agame- non até os rituais fúnebres de Heitor, o principal guerreiro troiano. É comum aos que leem a Ilíada pela primeira vez a surpresa de não encontrar nessa obra qualquer menção ao famoso episódio do cavalo de Troia. Aliás, para sermos precisos, devemos dizer que, na verdade, o poema encerra-se antes mesmo que se narre a queda de Troia e a vitória dos gregos. As últimas cenas narradas são os ritos fúnebres de Heitor, após este ter sido morto por Aquiles. É verdade que, aos leitores da Ilíada fica a sensação de que após a morte de seu grande príncipe os troianos não terão mais como resistir aos avanços dos gregos. Mas, de fato, o desfecho da Guerra Troia só será narrada na Odisseia e, com bastante mais detalhes, na Eneida, obra datada de 17 a.C., do poeta latino Virgílio. Há, ao longo da trama da Ilíada, um elevado número de flash- backs, em que o poeta informa-nos acerca do passado próximo ou longínquo de algumas personagens, bem como de momentos ante- riores ao cerco dos gregos aos troianos. Todavia, esses flashbacks, apesar de trazerem informações relevantes, não chegam, em termos de quantidade de versos, a formar uma percentagem tão relevante dentro do conjunto da obra. Eis como Homero inicia seu poema: Aula 2 Teoria da Literatura II46 Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida (mortífera!, que tantas dores trouxe aos Aqueus e tantas almas valentes de heróis lançou no Hades, ficando seus corpos como presa para cães e aves de rapina, enquanto se cumpriu a vontade de Zeus), desde o momento em que primeiro se desentenderam o Atrida, soberano dos homens, e o divino Aquiles (HOMERO, 2013, p. 134). Nesses primeiros sete versos, temos a invocação e a proposição do poema. Ouvimos o poeta clamando pela inspiração divina e anun- ciando o argumento de sua narrativa. Como vimos, os poetas antigos eram considerados porta-vozes dos deuses. Mais do que criadores em si, assumiam-se como instrumentos da fala divina. É nesse sentido que devemos entender a solicitação do poeta para que a deusa cante. De fato, ele a invoca para que ela cante através dele. Já na proposição, o poeta anuncia que o canto versará sobre a cólera mortífera de Aquiles, que causou a morte de tantos heróis, cumprindo o desejo de Zeus. Em linhas muito gerais, podemos resumir o núcleo narrativo prin- cipal da Ilíada do seguinte modo: no nono ano de cerco grego à ci- dade troiana, há um conflito entre Aquiles, o mais forte e destemido dos guerreiros gregos, e Agamenon, irmão de Meneleu e principal comandante de todas as tropas gregas. A intriga se dá porque, ao dividirem os despojos de guerra obtidos num recente combate a uma cidade próxima a Troia, Agamêmnon, sem saber, acabou por tomar como sua escrava a jovem Criseida, filha de um sacerdote do deus Apolo. Crises, o velho sacerdote, ao ir à tenda dos gregos para resga- tar a filha em troca de um importante pagamento que estava disposto a ofertar, é humilhado e ameaçado de morte por Agamêmnon, que se recusa a lhe devolver a jovem filha. O velho, então, dirige-se em preces a Apolo e implora que o deus vingue-se dos gregos, no que é logo atendido. É nesse momento que, atacados pela cólera de Apolo, que causa grande destruição e inúmeras mortes nos acampamentos dos gregos, estes, são convocados por Aquiles para uma reunião em que solicitam que Agamêmnon devolva a filha de Crises. Só depois de muitas disputas e trocas de pesadas acusações entre Aquiles e Agamêmnon, o arrogante comandante resolve ceder e entregar a moça. Ameaça, contudo, que tomará para si a moça que coubera a Aquiles na mesma divisão em que obtivera Criseida. Vendo cumprida a ameaça de Agamêmnon, Aquiles retira-se da guerra, vociferando que não lutaria ao lado nem sob o comando de tal homem. Ao se retirar da batalha, Aquiles pede a sua mãe Tetis, Aquiles Ao longo da narrativa, os gregos são referidos por diferentes nomes, como aqueus, argivos e dânaos. Já os troianos são chamados de dárdanos, dardânidas ou dardânios. Também é comum que as personagens sejam referidas pela ascendência paterna, de modo que Aquiles é o Pelida, ou seja, filho de Peleu; Agamêmnon é o Atrida, filho de Atreu, etc. Aula 2 Teoria da Literatura II 47 uma deusa marinha, que vá ao Olimpo interferir junto a Zeus para que este ponha os gregos em dificuldades frente aos troianos, de modo que, em desgraça, venham a lhe implorar humildemente que volte à guerra. Enquanto Aquiles está ausente dos combates, o poeta narra as ações de outros heróis grandiosos, como Diomedes e Ájax. Em situação cada vez mais difícil, os gregos fazem algumas ten- tativas para convencer Aquiles a voltar ao campo de batalha, mas sempre sem sucesso. Apenas ao saber que Pátroclo, seu companheiro mais próximo, foi morto por Heitor, é que Aquiles decide retornar à luta. Munido de armadura e escudo recém-feitos pelo deus ferreiro Hefesto, o herói grego, enfurecido, dirige-se a Troia, e, após duelar com o príncipe troiano Eneias – que só não foi morto graças ao auxílio de Apolo –, persegue, sozinho, centenas de troianos, que, apavorados, lançam-se ao rio Xanto, como vemos nos versos a seguir: Ora quando chegaram ao vau do rio de lindíssimo fluir, o Xanto cheio de redemoinhos, a quem gerara Zeus imortal, foi aí que Aquiles os dividiu: a uns perseguiu pela planície até a cidade, aonde os Aqueus espantados tinham fugido No dia anterior, quando desvariava o glorioso Heitor. Para lá se entornavam em debandada; e Hera espalhou à frente deles cerrado para os impedir. Mas a outra metade era empurrada para as fundas correntes do rio de prateador torvelinhos. Para lá se atiraram com grande estrondo; ecoaram as correntes que fluíam a pique e os barrancos em derredor ressoaram. Aos berros nadavam eles em várias direções, rodopiando nos redemoinhos. [...] Em seguida o herói gerado por Zeus deixou a lança na ribeira, inclinada contra um tamarindo, e mergulhou como um deus, segurando apenas a espada: planejava no espírito trabalhos ruins. Pôs-se a dar golpes com a espada, às voltas no rio. Surgiram gritos pavorosos dos que ele feria; a água ficou vermelha de sangue. Tal como quando de um golfinho, grande cetáceo, os demais peixes fogem para encher os recessos de um porto de bom ancoradouro, aterrorizados; pois sofregamente ele devora tudo o que apanha – assim os Troianos caíram nas correntes terríveis do rio, sob os barrancos escarpados. E Aquiles, quando se fartou da matança, tirou vivos do rio doze mancebos: o preço do morto Pátroclo, filho de Menécio. Levou-os de lá, assarapantados como gamos, e atou-lhes as mãos atrás com as belas correias que eles traziam como adereços nas túnicas bem tecidas, e deu-os aos amigos para os levarem para as naus recurvas. Depois se lançou de novo, ávido de mais morticínio (HOMERO, 2013, p. 575-576). Aula 2 Teoria da Literatura II48 Vemos nessapassagem o quanto a morte de Pátroclo acendeu a ira facínora de Aquiles, causadora do pânico e morte dos amedrontados guerreiros troianos. A quantidade de troianos mortos por Aquiles, nesse momento do combate, é tão grande que o rio Xanto, abarrotado pela montanha de cadáveres atirados ao seu leito por Aquiles, não consegue mais seguir seu curso natural. Tenta, então, na tentativa de recobrar seu curso, matar o herói grego lançando-se contra ele em ondas gigantes. Aquiles, conta-nos Homero, será salvo graças à intervenção de seus deuses protetores. Os troianos que até então escaparam da fúria de Aquiles, fogem para dentro das muralhas de Troia, com exceção de Heitor, que, mes- mo sabendo da impossibilidade de derrotar o inimigo grego, prefere morrer honrado a fugir ao combate. Ao verem Heitor exposto, Pría- mo e Hécuba, seus pais, imploram para que ele desista de enfrentar Aquiles. Trata-se de um dos momentos mais sublimes do poema: [...] e com as mãos [Príamo] arrancou os cabelos brancos da cabeça. Mas não conseguiu persuadir o coração de Heitor. Por seu lado a mãe lamentava-se lavada em lágrimas, desapertando o vestido e com a outra mão mostrando o peito. E vertendo lágrimas lhe dirigiu palavras aladas: “Heitor, meu filho, respeita este peito e compadece-te de mim, se alguma vez te apaziguei dando-te o peito para mamares. Lembra-te disto, querido filho, e repulsa aquele inimigo do lado de cá da muralha: não te ponhas aí para o enfrentar. Pois ele é duro e cruel; e se ele te matar, nunca eu te porei Num leito para te chorar, ó rebento amado!, que dei à luz, nem tua mulher prendada. Mas lá longe de nós, junto das naus dos Aqueus, os rápidos cães te devorarão” (HOMERO, 2013, p. 601). Nessa sua fala, Hécuba demonstra temer o terrível destino que aguarda o seu filho não apenas em vida, mas também após a morte. De fato, depois de matar Heitor num combate singular, Aquiles, ain- da plenamente dominado pelo desejo de vingar a morte de Pátroclo, nega-se a entregar o corpo do inimigo para que os familiares lhes prestem as honras fúnebres. Ata pelos pés o corpo já bastante dila- cerado de Heitor ao seu carro e arrasta-o até o seu acampamento, onde, todos os dias, por três vezes, arrodeia o corpo embalsamado de Pátroclo. Para recuperar o corpo do filho, Príamo vai até a tenda do herói grego, aos pés de quem se humilha e suplica a devolução. Mesmo assim, Aquiles não cede de imediato. Apenas ao recordar do seu próprio pai é que se vê tocado e permite que Príamo leve os restos Saiba mais Aula 2 Teoria da Literatura II 49 mortais de Heitor. Por nove dias, os gregos e troianos suspendem os combates para recolherem os corpos de seus respectivos mortos e darem encaminhamento a seus funerais. O poema encerra-se com a descrição dos rituais fúnebres dedicados a Heitor. Após sua composição no século VIII a.C. e de apro- ximadamente dois séculos circulando em raríssimos e precários manuscritos bem como através da oralidade, a primeira edição oficial da Ilíada só foi providenciada no século VI a.C., em Atenas. Nessa edição, os estu- diosos tentaram estabelecer, a partir das várias versões do poema que circulavam, a versão mais fidedigna à criação original do poeta. No século IV a.C., também diante de várias versões, Aristóteles preparou uma edi- ção que seria lida por Alexandre, o Grande, seu famoso discípulo. Na época áurea da Biblioteca de Alexandria, já havia um grande quantidade de edições críticas e estudos sobre o poema homérico. Nenhuma dessas edições chegou até nós de forma integral. Delas res- tam apenas alguns fragmentos. Os manuscritos mais antigos que ainda existem e que trazem a integridade do poema são os que foram elaborados pelos copis- tas eclesiásticos bizantinos por volta do século VIII da era cristã. No Renascimento, foram feitas diversas tra- duções da Ilíada, inicialmente para o latim e, depois, para línguas neolatinas. Já sua primeira edição impres- sa, considerada a edição princeps, foi publicada em Florença, em 1488, por Demétrio Calcôndiles. 2Atividade Aula 2 Teoria da Literatura II50 Figura 2 – Fragmentos de papiro contendo passagem do Canto XXII da Ilíada. Fonte: <http://library.duke.edu/rubenstein/scriptorium/papyrus/images/150dpi/4r-at150.gif>. Acesso em: 27 mar. 2013. Pesquise em enciclopédias, livros ou na internet o porquê de a epopeia de Homero se chamar Ilíada. Ao descobrir, você não terá dificuldades em identificar Troia no mapa seguinte: Fonte: <http://fail92fail.files.wordpress.com/2008/09/ancient-greece-map.jpg>. Acesso em: 27 mar. 2013. Aula 2 Teoria da Literatura II 51 Outras epopeias Do mesmo modo que a Ilíada, a outra epopeia atribuída a Ho- mero, a Odisseia, também tem recebido por milênios as mais altas considerações. Juntas, têm sido considerados os modelos a serem seguidos pelos poetas épicos. Como bem afirma Bernard Knox, “Odisseia” é uma palavra comum a várias línguas, com suas respectivas variações, e significa, em uma definição genérica, “uma longa jornada cheia de aventuras e eventos inesperados”. Já a palavra grega Odusseia, a forma da qual o termo deriva, significa meramente “a história de Odisseu” [em latim, Ulisses], herói grego da guerra de Troia que levou dez anos para regres- sar ao lar na ilha de Ìtaca, ao largo da costa oeste da Grécia continental (KNOX, 2011, p. 7) De fato, essa transformação do sentido estrito da palavra odisseia em um substantivo comum a várias línguas já demonstra a força e abran- gência da influência do poema ao longo do tempo em todo o mundo. É nessa narrativa épica – que tem como argumento central a fabulosa e perigosa viagem de retorno de Ulisses de Troia ao seu reino em Ítaca – que se encontram diversas personagens que ainda hoje integram o repertório mais frequentemente visitado da cultura ocidental: Ulisses com sua incomum inteligência, Penélope com sua inquestionável fidelidade, Telêmaco com seu amor filial, Polifemo com sua ingenuidade, as sereias com seu canto belo e mortal, etc. Apenas para aguçarmos o interesse na leitura integral da Odisseia, transcrevemos seus versos iniciais: Fala-me, Musa, do homem astuto que tanto vagueou, Depois que de Troia destruiu a cidadela sagrada. Muitos foram os povos cujas cidades observou, Cujos espíritos conheceu; e foram muitos no mar Os sofrimentos por que passou para salvar a vida, Para conseguir o retorno dos companheiros a suas casas. Mas a eles, embora o quisesse, não logrou salvar. Não, pereceram devido à sua loucura, Insensatos, que devoraram o gado sagrado de Hipérion, O Sol – e assim lhes negou o deus o dia do retorno. Destas coisas fala-nos agora, ó deusa, filha de Zeus (HOMERO, 2011, p. 119). Após Homero, vários outros grandes poetas empreenderam es- forços na elaboração de epopeias. Estes, todavia, diferentemente do Poetas épicos As epopeias homéricas já serviram de base para uma grande quantidade de filmes, entre os quais destacamos: Ulisses, de Mario Camerini, lançado em 1955; Odisseia, de Andrei Konchalovski, lançado em 1997, e Tróia, de Wolfgang Petersen, lançado em 2004. Aula 2 Teoria da Literatura II52 poeta grego, já viviam em épocas em que a palavra escrita dominava plenamente os círculos da cultura erudita. Entre esses autores, mere- cem destaque o poeta latino Publius Vergilius Maro, mais conhecido por Virgílio, e o português Luís Vaz de Camões. Depois de Homero, Virgílio foi o poeta mais célebre da Antigui- dade. A Eneida, sua grande epopeia – assim como as Bucólicas e as Geórgicas, suas principais obras não-épicas – foram exaustiva- mente imitadas. Durante muitos séculos a influência da Eneida foi maior que a dos poemas homéricos, entre outras razões, pelo fato de a língua grega não ter o mesmo número de leitores que a língua latina. O poema de Virgílio serve-se imensamente das epopeias ho- méricas e apresenta como núcleo narrativo central a venturosa saga de Enéias, príncipe troiano, que foge das ruínas de Troia para fundar uma nova cidade,
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