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GEOGRAFIA POLÍTICA AULA 2 Prof. Pedro Vicente de Castro 2 CONVERSA INICIAL Nesta aula, você vai aprender o que são Estados nacionais e como eles surgiram. Hoje, quase todo o planeta é dividido entre territórios reconhecidos como pertences a Estados nacionais. Mas essa situação não é a regra ao longo da história. Como vimos anteriormente, o território de um Estado não é um pedaço de terra, mas o que determina sobre quais pessoas ele exerce poder. O exercício de poder sobre pessoas é o fundamental. Historicamente, muitas organizações políticas exerceram poder sobre pessoas por outros meios que não o controle de um espaço geográfico com fronteiras bem delimitadas. Os governantes dos grandes impérios da Antiguidade, como o romano, estavam mais preocupados com o controle de cidades e de rotas comerciais do que de fronteiras. O Estado nacional é um fenômeno histórico, contingente, que emergiu em um contexto específico. Esse contexto é a Europa do fim da Idade Média ao século XIX. Estados nacionais emergiram como efeito colateral da competição militar entre monarcas. Para prevalecerem militarmente, monarcas precisavam levantar e manter exércitos em uma escala crescente. Isso, por sua vez, significava que precisavam ser capazes de levantar fundos em uma escala crescente. Uma maneira de fazer isso era cobrando impostos da população sob seu poder. Para tanto, contudo, monarcas precisavam vencer a resistência não só de suas respectivas populações, mas da nobreza. Isso, por sua vez, envolvia eliminar instituições políticas com poderes próprios, como as assembleias aristocráticas medievais, e consolidar esses poderes no governo central. Os monarcas que conseguiram fazer isso conseguiram sobreviver à competição militar. O efeito colateral de suas ações foi a emergência de Estados politicamente e administrativamente centralizados, com monopólio da coerção e controle de território contínguos: isto é, os Estados nacionais. Os Estados europeus contemporâneos são resultado desse processo. Não havia nada de predestinado nesse resultado, que poderia ter sido diferente. Os Estados que hoje dividem o território do continente poderiam ter sido outros. O que hoje chamamos de Alemanha, por exemplo, não existia até o século XIX. E a miríade de principados e ducados que dividam o território hoje alemão não estava predestinada a ser unificada ou a ser unificada da forma como foi. Esses principados e ducados foram unificados pelos Hohenzollern. Mas eles poderiam 3 ter sido unificados pelos Habsburgo. Por um tempo, ambas as casas dinásticas eram pretendentes em pé de igualdade a governar sobre a consolidação política dos Estados do extinto Sacro-Império Romano-Germânico. Isso ocorreu sobre uma, mas poderia ter ocorrido sobre a outra. Isso significa que falar sobre a Alemanha, ou mesmo sobre a França ou a Inglaterra ao longo do período de formação dos Estados nacionais é anacrônico. Dá a entender que já existe algo claramente identificável como o Estado alemão, francês ou inglês, quando isso não é verdade. O que há é uma miríade de organizações políticas que convivem dentro de um espaço geográfico muitas vezes não claramente delimitado. Em comum elas têm o fato de estarem formalmente sob a autoridade de um mesmo príncipe. Mas isso frequentemente significa muito pouco. Às vezes, esse príncipe é pouco mais do que uma figura simbólica sem muito poder político. Foi conforme esses príncipes conseguiram estabelecer e expandir seu poder político que essa miríade de organizações foi sendo consolidada sob o que hoje chamamos de Estado nacional. TEMA 1 – O QUE SÃO ESTADOS NACIONAIS? A mais famosa definição de Estado é provavelmente a do sociólogo Max Weber: um grupo de pessoas que reivindica com algum nível de sucesso o monopólio do uso legítimo da violência dentro de um território determinado. Três elementos merecem destaque nessa definição: violência, legitimidade e monopólio dentro de um território determinado. O Estado não reivindica o monopólio do uso da violência à toa, mas com um objetivo. Esse objetivo é fazer as pessoas se comportarem da maneira como ele deseja. O Estado usa a ameaça de violência para conseguir isso. Em outras palavras, o Estado exerce coerção, que, como vimos anteriormente, é uma forma de poder. O segundo elemento é legitimidade. O Estado não apenas exerce coerção, mas reivindica que isso é legítimo. Em outras palavras, o Estado reivindica autoridade, que, como vimos anteriormente, é uma forma de poder ideológico. O Estado reivindica ser diferente de um ladrão que usa a ameaça de violência para fazer sua vítima entregar-lhe seus bens, por exemplo. O ladrão não reivindica autoridade, apenas exerce coerção. O terceiro elemento, por fim, é o monopólio dessa violência legítima dentro de um território determinado. O Estado não apenas exerce coerção para a qual alega legitimidade, mas reivindica que o único grupo de pessoas que pode exercer a coerção 4 legitimamente dentro de um espaço geográfico determinado. Dentro desse território, nenhum outro grupo exerce coerção legitimamente senão de maneira delegada pelo Estado. Esse elemento remete às noções de soberania e território, que abordamos anteriormente. Como discutimos então, essas noções representam mais uma ambição dos governantes pelo poder incontrastado do que uma realidade. Ao longo da história, a maior parte das formas de Estado não reivindicava soberania e não buscava exercer poder sobre as pessoas por meio do controle do território. A forma de Estado que melhor reflete essa descrição é o Estado nacional e é nele que Weber estava pensando ao elaborar sua definição. O Estado nacional é um fenômeno histórico, contingente, que emergiu em um contexto específico: a Europa do fim da Idade Média ao século XIX. O surgimento do Estado foi um efeito colateral da competição militar entre monarcas europeus durante esse período. Na Europa medieval o poder político era disperso entre diversos indivíduos e grupos. No interior, rural, a figura mais poderosa era o senhor feudal, que exercia poder quase absoluto sobre os servos ligados ao território por ele controlado. Esses senhores, por sua vez, eram ligados entre si por relações hierárquicas de suserania e vassalagem, em que o inferior, o vassalo, devia lealdade ao superior, já o suserano devia proteção ao inferior. Essas relações eram contratuais e estabeleciam direitos e deveres para ambas as partes, de forma que o suserano não gozava de poder absoluto sobre seus vassalos. Muitas cidades eram governadas por autoridades próprias, recrutadas dos mercadores, envolvidos com comércio de longa distância, que constituíam a elite urbana. Mas essas autoridades tinham de dividir o poder com guildas e corporações de ofícios, que, por meio de suas próprias leis e tribunais, exerciam poder sobre artesãos e mercadores. E todas essas figuras dividiam poder com a Igreja Católica, que, também por meio de suas próprias leis e tribunais, exercia poder sobre todos os fiéis, o que, na época, incluía todos aqueles nascidos na Europa católica. Hoje, o poder político é centralizado. Mesmo em Estados federativos, nos quais o governo federal convive com os estaduais, o poder político é concentrado no conjunto de organizações políticas que viemos a chamar de Estado nacional. O poder político deixou de ser disperso entre indivíduos e grupos para ser concentrado nessas organizações, que sequer existiam na Idade Média. O 5 governo das cidades foi igualmente absorvido pelo Estado nacional. Ainda que elas sejam governadas por autoridades próprias, essas autoridades são parte do conjunto de organizações que constituem o Estado nacional, e não algo à parte. Guildas e corporações de ofício deixaram de existir e o poder da Igreja Católica se tornou puramente espiritualpara aqueles que não fazem parte do clero. Em vez de estarem sujeitos a diversas fontes de poder político, os indivíduos estão sujeitos a uma: o Estado nacional. Como essa transformação aconteceu? TEMA 2 – FORMAÇÃO DOS ESTADOS NACIONAIS Teorias normativas do Estado, isto é, teorias que buscam justificar sua existência e estabelecer o que ele deve e não deve fazer, muitas vezes são formuladas como se fossem histórias sobre a origem do Estado. As teorias contratualistas, das quais a de Hobbes, que abordamos anteriormente, é um exemplo, seguem esse modelo. Essas teorias começam postulando um cenário imaginário ou contrafactual: como seria o mundo se não houvesse instituições políticas? É o chamado estado de natureza. O caminho convencional dessas teorias é, então, apontar as dificuldades e inconveniências que esse estado gera. Diferentes autores pintam esse cenário com diferente intensidade dramática. No caso de Hobbes, como vimos, essa intensidade é elevada. Seres humanos são basicamente reduzidos a uma existência animalesca. O Estado, então, é introduzido como a solução para essa situação. Ao estabelecer o Estado, os indivíduos resolvem as dificuldades e os inconvenientes do estado de natureza e podem gozar das vantagens a existência de organizações políticas. Como vimos, segundo Hobbes, essa vantagem é a paz civil. No argumento dele, essa vantagem é suficiente para que os indivíduos se submetam ao poder do Estado – mesmo um absoluto, como o que ele defende. Nessas histórias, o Estado surge como resultado de uma escolha autointeressada dos governados: eles escolhem se submeter ao poder do Estado porque isso é vantajoso para eles. Nada poderia ser mais longe da verdade. Na realidade, o Estado nacional é resultado das escolhas autointeressadas dos governantes, não dos governados. E a essas escolhas houve, inclusive, resistência, não raro armada, por parte dos governados. O exercício da coerção, como vimos, é um elemento central do Estado nacional. As teorias contratualistas, interessadas em justificar e a existência do Estado e estabelecer o que ele deve e não deve fazer, prescrevem que a coerção seja 6 exercida em benefício dos governados. Na realidade, ao longo da trajetória de formação dos Estados nacionais, a coerção foi exercida em benefício dos governantes. Assim como foi em benefício deles que sua intensidade foi aumentando ao longo do tempo. A coerção permite que o governante extraia recursos, por meio de impostos ou trabalho forçado, dos governados. Hoje, estamos acostumados a pensar que pagamos impostos para que o Estado nos forneça serviços públicos em retorno e a nos queixar quando acreditamos que os serviços oferecidos não valem o quanto de imposto pagamos. Nada poderia estar mais longe da verdade ao longo da história. Estados coletavam impostos para seu próprio benefício. Nem mesmo policiamento, algo que pode parecer integral à manutenção da paz civil em um Estado hobbesiano, era exercida pelo Estados nacionais até o século XIX, como conta o cientista político David Bayley (1975). Os recursos extraídos dos governados não só permitiam que os governantes vivessem luxuosamente, como que adquirissem a capacidade militar para fazer frente aos competidores. Há uma acirrada competição militar entre príncipes europeus do fim da Idade Média ao século XIX. Aqueles que ficam para trás na capacidade de travar e vencer guerras são derrotados e vão sendo eliminados do cenário. Para adquirir essa capacidade, príncipes precisam de recursos. E uma fonte de recursos é a extração daqueles que governam. Para extrair recursos dos governados por meio de impostos, príncipes precisam eliminar as resistências políticas à tributação e construir a estrutura administrativa necessária para a coleta de impostos. Aqueles que conseguem realizar essas tarefas adquirem maior capacidade militar e prevalecer sobre aqueles que não conseguem realizá-las. Os príncipes fracos, nesse sentido, vão sendo eliminados do cenário e os fortes vão anexando seus territórios. O resultado, ao final de séculos, é a emergência dos Estados nacionais: organizações políticas centralizas, com a capacidade de cobrar impostos dos governados e travar guerras, e que controlam territórios contíguos. Essa é, em síntese, a explicação oferecida pelo sociólogo Charles Tilly (1975) para o surgimento dos Estados nacionais. Ela envolve a interação entre quatro atores: um príncipe, que é no princípio frequentemente apenas o maior proprietário rural em uma região; grandes proprietários rurais, que constituem uma nobreza agrária; camponeses, isto é, trabalhadores rurais frequentemente 7 desprovidos de uma série de liberdades individuais, como a de procurar melhores condições de trabalho em outra propriedade – isto é, servos; e mercadores banqueiros, indivíduos envolvidos no comércio de longa distância e na prestação de serviços financeiros. Príncipe e nobreza estão principalmente no negócio de coerção: eles extraem recursos dos demais, em particular os camponeses e servos que empregam em suas propriedades rurais, por meio da ameaça de uso da violência. Já comerciantes e banqueiros estão no negócio da aplicação de capital: o uso de recursos acumulados para realização de atividades econômicas que envolvem risco, como o comércio ultramarino ou empréstimos de longo prazo. A interação entre esses quatro atores é o que vai configurar as diferentes maneiras como os príncipes travam guerras, pagam por elas e consolidam seu poder ao longo do tempo. TEMA 3 – TRAVANDO A GUERRA Um fator fundamental para a formação dos Estados nacionais foi a transformação da maneira de se travar guerras ao longo do tempo da Idade Média ao século XIX. Essa transformação foi provocada por inovações nas tecnologias de guerra, mas também na organização dos exércitos. A conjunção desses dois tipos de inovação constituiu os diferentes “formatos militares”, na expressão do historiador Samuel Finer (1975), que prevaleceram o longo do tempo nesse período. A grande consequência dessa transformação foi o encarecimento da guerra, o que levou à eliminação dos príncipes que não tinham a capacidade de levantar os recursos necessários para travá-las. No auge da Idade Média, o formato militar dominante era a cavalaria armada. Ela era constituída por cavaleiros e seus cavalos, ambos cobertos por armaduras, sendo os primeiros armados com lanças. Cada cavaleiro ainda precisava de um ou dos escudeiros para auxiliá-lo a vestir as pesadas armaduras e montar no cavalo. Tudo isso tinha um custo, que recaía sobre o cavaleiro. O cavalo e a armadura eram sua propriedade e os escudeiros seus servos. Quem desejasse entrar na guerra precisava estar em condições de arcar com esses custos. Como Finer (1975) coloca, é como se um soldado hoje tivesse de levar seu próprio tanque de guerra para o campo de batalha. Por isso, a guerra era uma atividade restrita aos ricos. Mais especificamente, aos grandes proprietários rurais. 8 O que eles recebiam em retorno por lutarem pelo príncipe eram novas propriedades rurais. A economia medieval era muito pouco monetizada; isto é, havia pouco dinheiro em circulação. Príncipes não tinham condição de pagar em dinheiro para seus soldados. Então pagavam em terras. Com a propriedade da terra, vinha uma série de prerrogativas sobre os camponeses que trabalhavam nela, servos ou não. Essas prerrogativas permitiam que o proprietário (ou senhor) extraísse recursos da propriedade. Tendo sua mobilidade vedada, servos eram obrigados a trabalhar na terra do senhor em quaisquer condições que ele oferecesse. Além disso, ele podia cobrar uma série de impostos e taxas dos demais camponeses, livres. Foi esse arranjo – serviço militar em troca de propriedade rural com prerrogativas senhoriais – que levou à formação do que ficou conhecido como feudalismona Europa. A nobreza agrária europeia foi originalmente uma classe militar. Essa maneira de arregimentar tropas começou a mudar com a invenção das picas e albardas: espécies de lanças que permitiam que soldados de infantaria derrubassem os cavaleiros de sua montaria. Essa inovação tecnológica tornou a cavalaria armada obsoleta. A partir de então, a peça central dos formatos militares passou a ser a infantaria. Soldados não precisavam mais ter seu próprio cavalo, armadura e escudeiros. Não precisavam mais, portanto, ser senhores de terras. A atividade da guerra, podemos dizer, se democratizou. Isso reduziu o custo per capita de arregimentar tropas e permitiu que príncipes recrutassem soldados entre toda a população, não só a nobreza. Isso, por sua vez, aumentou o tamanho que os exércitos podiam ter. E os exércitos cresceram de tamanho. Muito embora o custo por soldado tivesse se reduzido, com o crescimento constante do tamanho dos exércitos, o custo total também passou a crescer. Ao mesmo tempo, esses exércitos não podiam mais ser pagos em terras. Eles exigiam dinheiro. Na época da cavalaria armada, as tropas não eram arregimentadas diretamente pelo príncipe. O príncipe convocava os senhores imediatamente subordinados a si. Estes, por sua vez, convocavam seus vassalos e assim por diante. Com a obsolescência da cavalaria armada, a arregimentação de tropas permaneceu indireta. Mas, em vez de senhores que convocavam seus vassalos, o intermediário entre o príncipe e as tropas passou a ser um empreendedor profissional. Ele recebia uma determinada quantia e se comprometia a entregar um exército de determinado tamanho e, às vezes, 9 comandá-lo no campo de batalha. Esses empreendedores da guerra (ou mercenários) usavam diversas estratégias para recrutar soldados, inclusive a coerção. Mas eles próprios exigiam crescentemente pagamento em dinheiro. Gastando cada vez mais com seus exércitos, príncipes foram tomando medidas para aumentar seu controle sobre as tropas. Na época da cavalaria armada e dos mercenários, exércitos eram forças privadas, arregimentadas por agentes privados e colocados à serviço do príncipe. Com o crescente controle dos príncipes sobre os exércitos, eles foram se tornando públicos, leais ao príncipe e, mais tarde, ao Estado. Mas durante todo o período de formação dos Estados nacionais na Europa, tropas mercenárias representaram uma parcela relevante dos exércitos. E tropas mercenárias custam dinheiro. TEMA 4 – PAGANDO PELA GUERRA Como príncipes pagavam por isso? Como já dito, o príncipe era frequentemente apenas o maior proprietário rural em uma região. Como o historiador Rudolf Braun (1975) aponta, muito embora o príncipe gozasse de diversas prerrogativas sobre seus súditos, esperava-se que ele vivesse por conta própria, com as rendas geradas por suas terras, assim como a nobreza agrária vivia das rendas geradas pelas suas próprias terras. Essa renda inclui a cobrança de impostos e taxas, mas apenas dos camponeses que trabalham nas terras do senhor. O príncipe não podia cobrar qualquer imposto dos seus demais súditos. Como vimos, a cavalaria armada era composta pela nobreza agrária. Era uma forma de serviço militar obrigatório, exclusivo dessa classe. Esse serviço era, contudo, temporário, durando tipicamente 40 dias. Com a intensificação da competição militar entre os príncipes, as guerras foram se tornando mais frequentes e mais longas. O serviço militar temporário da nobreza agrária não era mais suficiente para suprir a necessidade de tropas. Príncipes pressionavam pelo aumento das obrigações militares dos nobres, a que eles resistiam. A solução do impasse foi a gradual e, no fim das contas completa, comutação da obrigação de serviço militar por contribuições em dinheiro, isto é, impostos. Mas, assim como o serviço militar, esses impostos eram temporários e devidos apenas em tempo de guerra. Eles também dependiam do consentimento dos nobres, que deliberavam a respeito do pedido do príncipe nas assembleias dos estados, instituições com origens medievais presentes em quase toda a Europa. 10 Os Estados eram compreensivelmente resistentes a concederem os pedidos dos príncipes por impostos, especialmente para campanhas militares ofensivas. Por que eles deveriam financiar as ambições imperiais do príncipe? Ele que pague por elas do seu próprio bolso. Príncipes respondiam que o sucesso dessas campanhas era crucial para manter a integridade do reino. Mas os pedidos por mais impostos eram sempre uma ocasião de conflito entre o príncipe a nobreza. Os príncipes que foram vencendo esses conflitos foram também, como efeito colateral, gradualmente expandindo seu poder sobre seus súditos. Ao mesmo tempo, esses príncipes, por conseguirem tributar seus súditos, adquiriam uma vantagem perante os demais na competição militar. Isso levou, ao longo do tempo, à sobrevivência dos príncipes politicamente fortes e à eliminação dos fracos. Mas conflitos são arriscados. Podem escalar para a violência, como a Guerra Civil entre o rei e o parlamento na Inglaterra no século XVII mostram. Por isso, príncipes que preferiam evitar o conflito quando possível. Aqueles que tinham acesso a outras fontes de recursos podiam se dar a esse luxo. Uma fonte importante era minérios, como ouro, prata e sal. Durante o período em que a Espanha e extensos territórios na Itália e na Europa central estiveram sob o mesmo domínio, o dos Habsburgo, a prata das colônias espanholas na América permitiu que mantivessem sua superioridade militar na Europa, embora não fossem capazes de impor seu poder às diversas nobrezas locais sobre as quais reinavam. Contudo, o fluxo da prata americana eventualmente caiu. Não tendo estabelecido sua capacidade de tributar seus súditos, os Habsburgo perderam a superioridade militar. Outra alternativa era recorrer a empréstimos. A maioria dos príncipes recorreu a empréstimos para financiar suas campanhas militares mais cedo ou mais tarde e em maior ou menor medida. Mas empréstimos precisam ser pagos em algum momento. Além disso, as condições dos empréstimos (isto é, os juros e os créditos) dependem da confiança que os banqueiros tinham de que os príncipes conseguiriam pagar as dívidas. Por isso, príncipes que já tinham conseguido estabelecer sua capacidade de tributar seus súditos conseguiam obter empréstimos em melhores condições. No final das contas, a capacidade de tributar era essencial. A superioridade militar da Inglaterra durante o século XVIII, por exemplo, se deveu em grande medida ao fato de que, diferentemente da sua maior 11 adversária, a França, a coroa, com a cooperação do parlamento, já tinha conseguido unificar as contas públicas. A Inglaterra tinha um orçamento e uma dívida pública unificados e uma instituição para financiá-la, o Banco da Inglaterra. Em virtude disso, ela conseguiu empréstimos em condições favoráveis para pagar por suas campanhas vitoriosas na Guerra da Sucessão Espanhola e na Guerra dos Sete Anos. Em contraste, as contas francesas não eram unificadas, nem mesmo discriminadas entre públicas (do Estado) e privadas (da pessoa do rei). Quando o ministro das finanças de Luís XVI, o reformista Jacques Necker apresentou uma prestação de contas unificada da situação financeira do reino, o que foi uma grande inovação. TEMA 5 – CONSOLIDANDO O PODER Para adquirir a capacidade de tributar seus súditos, príncipes precisavam vencer a resistência da miríade de organizações políticas com que tinham de conviver. Aqueles que tinham sucesso nisso, foram também, como efeito colateral, esvaziando essas organizações. Ao longo do tempo, isso levou à consolidação do poder político em um conjunto de organizações centralizado, isto é, o Estado nacional. Isso não significa que esses príncipes, no fim das contas, gozaram de poder absoluto. A expressãoabsolutismo monárquico, embora seja de uso consagrado, pode dar lugar a mal-entendidos. Em nenhum lugar príncipes governavam sozinhos. Em todo lugar eles dependiam do apoio da nobreza. Frequentemente, o príncipe tinha poder absoluto em teoria, mas dependia da nobreza na prática. Mas a expressão reflete o fato de que os príncipes absolutistas governavam organizações políticas muito mais centralizadas que seus predecessores. Mesmo onde a expressão não se aplica, como na Inglaterra, o poder foi ao longo do tempo sendo consolidado em um pequeno número de organizações centralizadas, com autoridade sobre todos os súditos e sobre todo o território. A consolidação do poder não é um fenômeno puramente formal. Não diz respeito apenas a quem é formalmente titular da autoridade. Para tributar seus súditos, não basta que o príncipe tenha a autoridade formal para tanto. Ele também precisa da capacidade administrativa para fazê-lo: ele precisa de pessoas que coletem os impostos e os depositem nos cofres da coroa. Em outras palavras, ele precisa de uma burocracia leal. A dependência do príncipe no consentimento dos nobres, nas assembleias dos Estados, não era uma questão 12 formal, apenas. O príncipe dependia do consentimento dos nobres porque dependia deles para coletar os impostos na prática. Os nobres coletavam impostos para o príncipe como parte das diversas prerrogativas de origem feudal de que gozavam. Para poder tributar seus súditos, o príncipe, portanto, precisava contar com o apoio da nobreza ou estar em condições de dispensá-la. Em alguns lugares, o príncipe foi adquirindo autonomia em relação à nobreza por meio da criação de uma burocracia própria, paralela às organizações políticas comandadas pela nobreza, que foi gradualmente absorvendo os poderes dessas. O exemplo clássico é a França. Desde a Idade Média a França era um mosaico de regiões com instituições políticas diferentes e igualmente diferentes relações com a coroa. À maneira pela qual os Bourbon adquiriram a capacidade de tributar seus súditos por meio de uma burocracia centralizada, leal à monarquia. Uma figura central dessa burocracia eram os chamados intendants, administradores locais subordinados diretamente ao rei. Eles eram os responsáveis por organizar a coleta dos impostos cobrados pela coroa. Adquirindo a capacidade de tributar seus súditos diretamente, os Bourbon puderam se dar ao luxo de deixar de convocar os estados gerais, a mais alta assembleia aristocrática do reino, por mais de um século. Já em outros, o príncipe foi adquirindo autonomia cooptando a nobreza a integrar a burocracia centralizada. O exemplo clássico é a Prússia, o reino com base no qual a Alemanha seria eventualmente unificada. Os Hohenzollern cooptaram a nobreza local, os junkers, a integrar a emergente burocracia do reino. Em uma mostra da associação íntima entre tributação e guerra na formação dos Estados nacionais, essa burocracia se desenvolveu por meio de órgãos encarregados da organização e do comando do exército, uma atividade para a qual os junkers se consideravam naturalmente vocacionados. A cooptação dos junkers os tornou dependentes da coroa, fazendo do reino da Prússia um dos mais politicamente centralizados e seu rei, um dos maiores expoentes do absolutismo. Os nobres não eram os únicos que resistiam às demandas dos príncipes por impostos. Entre a Idade Média e o século XVIII, a economia europeia se tornou muito mais comercial. Mas a imensa maioria das pessoas ainda era de trabalhadores rurais que produziam para consumo próprio. É difícil cobrar impostos das pessoas quando elas não ganham dinheiro. Os príncipes não deixaram de tentar e, dessa forma, incentivaram os camponeses a produzir para 13 o mercado para que pudessem ter dinheiro para pagar seus impostos. Mas, como aponta o historiador Gabriel Ardant (1975), a principal fonte de recursos ainda era composta por impostos sobre a compra e venda de mercadorias, que, envolvendo dinheiro, são fáceis de serem tributadas. Esses impostos naturalmente recaíam mais pesadamente sobre as cidades, onde a maior parte da circulação de mercadorias acontecia. E as elites municipais, entre elas mercadores e banqueiros, não gostavam nada disso. As cidades europeias costumavam ter governo próprio, comandado por essas elites, e resistiram a serem subjugadas por príncipes. Onde essas elites eram mais ricas e mais capazes de resistir por mais tempo, como nas repúblicas do norte da Itália e na Liga Hanseática, Estados nacionais demoraram mais para se formar. Às vezes a resistência dos súditos podia escalar para a violência. As grandes revoluções políticas dos séculos XVII e XVIII são episódios dentro da história mais ampla da formação dos Estados nacionais. A guerra civil na Inglaterra teve como causa o conflito entre o rei e o parlamento a respeito do poder de tributar do primeiro: o rei negava a necessidade de consentimento do parlamento para tanto, ao passo que este a afirmava. O conflito foi apaziguado apenas com a eventual “importação” de um rei, o holandês Guilherme de Orange, comprometido a respeitar a posição do parlamento, no episódio conhecido como Revolução Gloriosa. As revoluções americana e francesa são igualmente episódios dentro dessa história. No século XVIII, Inglaterra e França lutaram entre si em um conflito que se desenrolou na Europa e na América do Norte e que ficou conhecido como Guerra dos Sete Anos. A Inglaterra saiu vitoriosa, mas o conflito deixou ambos os países endividados. Para pagar suas dívidas, a Inglaterra começou a tributar mais pesadamente suas colônias na América do Norte, que até então sofriam pouca interferência da metrópole. O conflito que se seguiu escalou a ponto de as colônias se declararem independentes, provocando uma guerra com a metrópole. Vendo a oportunidade de reequilibrar a competição militar, a França entrou na guerra do lado dos revolucionários, garantindo-lhes a vitória. Essa decisão, contudo, comprometeu ainda mais as finanças francesas. A França já vivia um impasse quanto à situação de suas finanças. Ministério atrás de ministério tinha falhado em conseguir o apoio da nobreza para reformar a organização fiscal do reino, um passo importante para reconquistar a confiança dos banqueiros. A solução para 14 o impasse foi a convocação dos Estados gerais, ignorados há mais de cem anos. Foi a caixa de Pandora cuja abertura levou à eclosão da Revolução Francesa. Revoluções são episódios em que o conflito entre o príncipe e seus súditos não só escalou para a violência, como acabou em derrota para o príncipe. Mas se concentrar neles pode desviar nossa atenção da história mais ampla da centralização e fortalecimento dos Estados nacionais em que esses episódios se situam. O rei inglês saiu do século XVII mais fraco em relação ao parlamento do que tinha entrado. Mas o Estado inglês como um todo saiu mais forte. Da mesma forma, a Revolução Francesa acabou com o absolutismo no país, mas o Estado francês se tornou mais forte e mais centralizado. Como o famoso autor do século XIX Alexis de Tocqueville (2016) coloca, a revolução completou o trabalho que o antigo regime já tinha começado NA PRÁTICA O processo de formação dos Estados nacionais é o pano de fundo de muitos filmes de drama cuja narrativa se desenrola na Europa entre a Idade e Média e o século XIX. Um exemplo é o grande sucesso do cinema, Coração Valente, de 1995. O enredo é inspirado nos eventos que levaram a ascensão de Robert Bruce ao trono da Escócia, no século XIV. Embora não seja historicamente acurado, o filme retrata bem como pretendentes ao trono precisam do apoio da nobreza para fazerem valer sua pretensão. Outro exemplo são os filmes Elizabeth e Elizabeth: a Era de Ouro, respectivamente de 1998 e 2007, cujos enredos são inspirados na vida da rainha Elizabeth I daInglaterra. Apesar de também não ser historicamente acurado, o filme retrata as medidas que príncipes frequentemente tinham de tomar para vencer adversários internos e consolidar seu poder. Uma narrativa historicamente acurada dos eventos desses filmes pode ser vista nos episódios 4 e 7 da série A History of Britain, de 2000, produzida pela BBC e apresentada pelo historiador Simon Schama FINALIZANDO Nesta aula você aprendeu o que são Estados nacionais e como eles se formaram. Estados nacionais são conjuntos de organizações políticas que reivindicam com algum nível de sucesso o monopólio do uso legítimo da 15 violência dentro de um território determinado. Estados nacionais são um fenômeno histórico relativamente recente, contingente, que emergiu em um contexto específico: a Europa do fim da Idade Média ao século XIX. Não havia nada de predestinado no surgimento dos Estados nacionais. Ao longo da história, organizações políticas assumiram muitas outras formas que não a do Estado nacional. Mesmo a maior parte das formas de Estado não reivindicava soberania e não buscava exercer poder sobre as pessoas por meio do controle do território. Você aprendeu que o surgimento dos Estados nacionais foi um efeito colateral da competição militar entre príncipes europeus. Príncipes que não eram capazes de tributar seus súditos para arcar com os custos de travar guerras foram, ao longo do tempo, sendo eliminados. Os príncipes que sobreviveram não apenas encabeçavam Estados fortes e centralizados, como, por meio da anexação dos territórios antes governados pelos príncipes derrotados, governavam territórios contíguos, impondo um padrão geográfico específico para os territórios dos Estados nacionais que perdura até hoje. Tendo dividido o continente em territórios nacionais, os Estados nacionais europeus iriam se esforçar para fazer o mesmo com o resto do mundo, exportando para lá, ao mesmo tempo, sua forma específica de Estado. . . 16 REFERÊNCIAS ARDANT, G. Financial policy and economic infraestructure of modern states and nations. In: TILLY, C. The formation of national states in Western Europe. Princeton: Princeton University Press, 1975. BAYLEY, D. H. The police and political development in Europe. In: TILLY, C. The formation of national states in Western Europe. Princeton: Princeton University Press, 1975. BRAUN, R. Taxation, sociopolitical structure, and State-building: Great Britain and Brandenburg-Prussia. In: TILLY, C. The formation of national states in Western Europe. Princeton: Princeton University Press, 1975. FINER, S. State and Nation building in Europe: the role of the military. In: TILLY, C. The formation of national states in Western Europe. Princeton: Princeton University Press, 1975. TILLY, C. Coercion, Capital and European States: AD 990-1992. London: Blackwell, 1993. _____. Reflections on the history of european state-making. In: TILLY, C. The formation of national states in Western Europe. Princeton: Princeton University Press, 1975. TOCQUEVILLE, A. O antigo regime e a Revolução. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2016. WEBER, M. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 2011.
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