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Introdução à ética Neandro Vieira Thesing 1ª Edição Coordenação de Educação a Distância Faculdade de Direito de Santa Maria - FADISMA Copyright © 2020 - FADISMA - Todos os direitos reservados Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 1 INTRODUÇÃO À ÉTICA Para início de estudo Existe um manual de instruções para a vida? Devemos seguir normas de comportamento ou fazer tudo aquilo que desejamos? Quando agimos, precisamos pensar no bem-estar dos outros ou apenas em nós mesmos? As respostas para estas perguntas nos jogam para o coração dos estudos relacionados à moral e à ética. É a respeito desses temas que trataremos nesta seção. Como primeiros passos em nossa caminhada, é importante que façamos definições sobre muitas palavras, à princípio, familiares, que utilizamos cotidianamente, mas que aqui precisam ser distinguidas em seus diferentes sentidos possíveis. Das muitas maneiras que podem ser compreendidas, adotaremos algumas. Nesta seção iniciaremos diferenciando ética e moral, compreendendo o que cada conceito significa, caracterizando-os, falando também sobre como nós, seres humanos, realizamos julgamentos e escolhas baseados em algo muito importante, os valores. Em seguida, veremos que falar sobre ética é falar também de liberdade, ou seja, de como cada um de nós aceita ou rejeita a moral coletiva, trilhando caminhos entre o bem e o mal. Por fim, relacionaremos a ética ao que podemos chamar de vida coletiva, ou seja, como as nossas ações individuais acabam afetando aqueles que nos cercam e a própria sociedade como um todo. Um profissional da segurança pública muitas vezes tem o cotidiano marcado pela pressão, precisando realizar escolhas importantes diariamente em sua rotina de trabalho. Dessa forma, é importante refletir sobre seu comportamento, aquilo que convém ou não fazer, além de analisar os valores que carrega e acabam refletidos em sua prática profissional. Como servidor(a) público(a) é importante notar as responsabilidades da função e de como suas ações afetam Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 2 não apenas a si mesmo, mas também são parte de um todo maior que visa proteger a vida humana nas cidades e estados. Tendo por base esses esclarecimentos iniciais, prosseguiremos com o estudo do conteúdo. Para isso, a temática está dividida em subtítulos, a contemplar: 1. Ética e moral; 2. Liberdade para escolher e agir; 3. Dever e liberdade: aprender a conviver; 1. Ética e moral Ética e moral são palavras que utilizamos cotidianamente: isto é uma atitude ética, aquilo é imoral; Maria é moralista, João é um profissional ético. Por serem familiares, são palavras que aparentam ter fácil definição, mas que na verdade fazem parte de uma longa tradição de discussões e debates. Então é importante entendermos alguns pontos centrais antes de seguirmos em frente. Imagine a seguinte situação: após um naufrágio, há três pessoas em um bote salva-vidas com quase nenhuma chance de sobrevivência a não ser que uma dessas pessoas saia dele. As três pessoas são: o capitão, que é quem sabe navegar; um homem forte e jovem; e um velho fraco com um ombro quebrado e que não pode remar eficientemente. Nenhum deles quer saltar do bote espontaneamente. O que fazer? Um guarda está realizando a fiscalização de trânsito. Ao abordar um condutor, percebe que a carteira de habilitação está expirada e há itens de segurança do veículo com problema. O motorista então oferece suborno para que o agente o deixe passar e esqueça aqueles "pequenos detalhes". Não há ninguém por perto. O que ele deve fazer? Aceitar ou rejeitar o suborno? De maneira geral podemos dizer que a ética e a moral tratam de momentos assim, situações em que ficamos com NOTA EXPLICATIVA O caso do bote salva-vidas é um exemplo conhecido de dilema ético. A forma adotada aqui foi retirada de: GHILLYER, A. Ética nos negócios. 4ª ed. Porto Alegre: AMGH, 2015. Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 3 dúvidas quanto a que decisão tomar. Como devemos agir? Por que os seres humanos agem de uma determinada maneira e não de outra? Para complicar ainda mais, sabemos que no momento em que agimos, nossas ações têm consequências para nós mesmos e para os outros. Para muitos autores, a pergunta central da ética é: qual é a melhor maneira de viver e conviver? Essas dúvidas são responsáveis por colocar à prova nossos valores (justiça, honra, integridade), provocando também sentimentos (admiração, vergonha, medo, culpa). Então, para falarmos de ética, precisamos começar por um conceito mais amplo, o de valor. Os valores são aquilo de que não abrimos mão, o que acreditamos ter a maior importância. São o alicerce das práticas que realizamos na vida. Os valores podem ser de várias naturezas: de utilidade (esta caneta é útil ou inútil), estéticos (ela é bonita ou feia), morais (é boa ou má), econômicos (é mais barata ou mais cara), dentre muitos outros, mas são sempre positivos ou negativos, nos mobilizam. Então, como escolhemos e orientamos nossos atos está baseado em valores. Escolher nos acompanha, seres humanos, desde muito tempo atrás, nos define inclusive. Um gato não escolhe ser um gato, ele apenas é. Nós, por outro lado, escolhemos o que mais gostamos, qual roupa vestir, com quem nos relacionar, ou seja, os caminhos possíveis que vamos seguir na vida que nos cabe viver. Os sentimentos e as ações, nascidos de uma opção entre o bom e o mau ou entre o bem e o mal, também estão referidos a algo mais profundo e subentendido: nosso desejo de afastar a dor e o sofrimento e de alcançarmos a felicidade, seja por ficarmos contentes conosco mesmos, seja por recebermos a aprovação dos outros [...]. Dizem respeito às relações que mantemos com os outros e, portanto, nascem e existem como parte de nossa vida intersubjetiva. (CHAUÍ, 1995, p. 335). A citação acima introduz algumas ideias importantes, vamos desdobrá-las. A primeira nos diz que os valores têm uma relação com o coletivo. Por conta disso, são, num Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 4 primeiro momento, herdados. Quando nascemos somos mergulhados em uma cultura desde os primeiros anos de vida. Aprendemos como andar, quando brincar, qual roupa usar em determinadas situações, como comportar-se à mesa (etiqueta, a pequena ética). E também a gostar do que é belo, rejeitando o que é feio, o que é proibido e o que é permitido etc. Conforme crescemos, nossos comportamentos são avaliados de acordo com os valores coletivos, ou seja, se são bons ou maus. Se forem julgados indesejáveis ou incorretos pelos outros, sofremos sanções negativas, caso seja julgado como positivo ou desejável, podemos ser recompensados (sanções positivas). Assim, vamos sendo educados pelas normas do grupo ao qual fazemos parte, aderindo ou rejeitando aquilo ao qual devemos seguir. Passamos então a justificar das mais diferentes formas (para nós mesmos e aos outros) as razões de nossas decisões e ações. Dentre o conjunto de valores, os que mais nos interessam aqui são os valores éticos e morais. Ambos se referem ao conjunto de regras e condutas a serem consideradas como obrigatórias, regendo o comportamento humano. Por conta desse relacionamento íntimo, são usados constantemente como iguais. Contudo, ética e moral não são sinônimos. A palavra moral vem do latim mos ("costumes"). Pode ser vista como o conjunto de regras, valores e normas de comportamento que regulam e/ou determinam as ações dos indivíduos em um grupo social. Toda cultura humana tem moral, normas de conduta próprias, acatadas pela coletividade como algo positivo, valoroso, ou detestável, negativo. Chamamos isso de códigos morais. O "comportamento moral não se baseia numa reflexão, mas nos costumes de determinada sociedade em determinado lugar". (ALMEIDA, 2009, p. 5). A moral, então, tem caráter histórico e social. É o comportamento social tradicional, passado de geração a geração: "as coisas sempre GLOSSÁRIO Sanção: aplica-se no campo do direito (sanção jurídica) ou no campo da moral, quando um comportamento pode ser aprovadoe recompensado ou reprimido e punido (castigo físico, olhar de reprovação, prisão). ATENÇÃO Diferença entre moral e ética. Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 5 foram assim por aqui". Quando as relações entre os indivíduos se alteram, lentamente as normas do comportamento coletivo alteram-se também. Por exemplo: pensemos no lugar da mulher na sociedade brasileira há 50 anos. É o mesmo de hoje? Conforme a forma de viver de uma sociedade se altera, a moral é alterada também, havendo pessoas que defenderão a mudança e outras que se colocarão contra. A ética, por sua vez, deriva do grego ethos ou ethikos ("modo de ser, "comportamento") – ou seja, querem dizer quase a mesma coisa. É um ramo do conhecimento (filosofia prática ou moral) que reflete sobre a moral, sobre as ações dos seres humanos, ou seja, sobre o comportamento das pessoas e suas relações, consigo mesmas, entre si e com o mundo. Ética é a maneira como se pensa a moral, colocá-la na frente do espelho. É a reflexão sobre as noções e princípios que fundamentam a moral. É uma disciplina teórica, portanto um sistema conceitual, um conjunto de conhecimentos, de ideias, que reflete sobre a ação humana, procurando entender os atos morais, vendo-os como objeto. Assim, definimos a relação entre as duas: a moral é objeto da ética. Como todo conjunto de conhecimentos, a ética tem preceitos, precisa partir de algum lugar. O ponto de partida dessa reflexão é entender os pressupostos dos diferentes sistemas morais criados pela humanidade, isto é, qual é a concepção de ser humano que fundamenta as normas e as proibições, e no que ela se sustenta? Por exemplo: as respostas para a pergunta "o que é o bem e o mal" variam se consideramos o fundamento da moral como a vontade de Deus ou a própria consciência humana, se o ser humano foi criado por alguma divindade ou não. Outro ponto relaciona-se à citação no início do material: o que devemos fazer para chegar ao bem supremo. A reflexão ética (em suas diferentes escolas de pensamento) procura estabelecer o que é o bem viver, o que uma vida humana precisa para ser boa? Dependendo da escola de Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 6 pensamento, a resposta pode ser a felicidade, pode ser a salvação após a morte, pode ser o prazer, pode ser a liberdade. As respostas variam. Assim, a ética procura unir o conhecimento teórico com a ação prática. Como podemos viver bem e estabelecer o bem comum? 2. Liberdade para escolher e agir Qual a relação entre a reflexão ética e a liberdade? Se ética é o estudo de como podemos conviver, falar de ética não significa estabelecer regras a serem cumpridas por todos, sendo o sujeito ético aquele que obedece, e está resolvido o problema? Não é tão simples. Como já falamos até aqui, no momento em que tomamos decisões e agimos de determinada maneira, cada um de nós está diante da liberdade de escolher caminhos, para o bem ou para o mal, para direita ou para esquerda, para cima ou para baixo, mas sempre de acordo com nossos valores. Se a vida fosse um barco a navegar, a liberdade seriam as águas do mar. Para tornar essa ideia mais clara, precisamos entender que além da dimensão coletiva que já falamos anteriormente, a moral tem uma relação com cada um de nós, subjetivamente. O sujeito moral é aquele "que age bem ou mal na medida em que acata ou transgride as regras morais admitidas em determinada época ou por um grupo de pessoas" (ARANHA, 2009, p. 214). Dizemos que a moral é coercitiva, como as leis de um país, mas ao contrário destas, necessita, em grande medida, da aceitação de cada indivíduo ou grupo social para ser cumprida. Então, além do conjunto de regras de conduta para os indivíduos de um grupo (dimensão social, cultural, herdada), a moral diz respeito à aceitação dessas normas por parte do indivíduo, cada um de nós. Assim, a moral "funciona" apenas se for aceita Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 7 intimamente, só existe e é transmitida se todos os indivíduos a interiorizarem como suas próprias normas pessoais. Como depende da escolha de cada um, a norma moral tem tudo a ver com a liberdade. Se matar é considerado errado, mesmo que fosse invisível, eu não mataria. O que você faria se fosse invisível? É difícil notarmos essa origem cultural dos nossos valores, porque desde pequenos somos educados para naturalizá-los, não percebendo que foram cultivados em nós. A partir de determinado momento em nossas vidas, tomamos consciência das normas morais (especificamente na adolescência, quando começamos a questionar as regras). Desenvolvemos então uma consciência moral, ou seja, a capacidade de olhar e julgar nossos próprios atos, hoje, amanhã e depois. Lembra-se daquela máxima: será que o Fulano dorme com a consciência tranquila? A culpa é um dos elementos da consciência moral. Julgamos atribuindo valor, entre o bem e o mal. Depois deste julgamento, escolhemos entre os caminhos possíveis. Essa possibilidade que cada indivíduo tem de construir sua maneira de ser e sua história, fazendo escolhas através da convicção pessoal e do grupo, compõe a liberdade. Se estamos livres para escolher entre o bem e o mal, entre esta ou aquela ação, quando escolhemos nos tornamos responsáveis pelo que praticamos. Responsável é toda pessoa que assume a autoria de suas escolhas e ações, respondendo pelas consequências. Por outro lado, se não há liberdade, quando ocorre coação, não há escolha moral. Se meu ato foi determinando, inconsciente e não intencional, é impossível julgá-lo moralmente. Quando se escolhe o bem, acreditamos estar no caminho da virtude, realizando uma ação moralmente boa. Virtude é tudo aquilo que dignifica o ser humano. Para Aristóteles, por exemplo, seria a coragem, a prudência, o respeito próprio, entre outros. Quando se escolhe o mal, Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 8 optamos pelo vício, o uso da liberdade sem responsabilidade moral. Podemos citar a violência, a deslealdade, a injustiça, etc. (COTRIM, 2016). 3. Dever e liberdade: aprender a conviver Nós estamos todos entrelaçados. Como somos seres sociais, nossas ações não ocorrem no vazio, pois não vivemos numa ilha deserta. Qualquer escolha nossa adquire uma dimensão social, impacta os outros. Por exemplo: um político corrupto que desvia os recursos destinados à compra de remédios, provavelmente fará com que pessoas percam a vida em algum hospital público. É como jogar uma pedra em um lago: as ondas se espalham por toda superfície. O ato moral deve ser ainda solidário. Por quê? Pois pressupõe a solidariedade e a reciprocidade com aqueles com os quais nos comprometemos. Esse compromisso não é superficial e exterior, mas revela-se como uma "promessa" pela qual nos vinculamos à comunidade – ou a rejeitamos, escolhendo o nosso benefício pessoal em detrimento dos outros. Desse compromisso é que advém a noção de dever: a obediência à lei livremente escolhida (lembre-se que o comportamento moral é livre, responsável e consciente) não é coerção, não significa que alguém impôs um código de comportamento que eu devo seguir, ao contrário, é uma escolha minha, feita livremente. Eu imponho que devo cumprir a norma. Criamos um juiz interno: nossa consciência moral avalia a situação, consulta as normas estabelecidas, interiorizando como nossas (ou não), toma decisões e julga seus próprios atos. "O compromisso humano é a obediência à decisão livremente assumida." (ARANHA, 2009, p. 216) No entanto, o compromisso não exclui a desobediência, o que determina justamente o caráter moral ou imoral do nosso ato: por sermos livres, podemos Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 9 transgredir a norma, tanto a coletiva quanto os nossos valores pessoais, mesmo aquela que nós mesmos escolhemos respeitar. Portanto, a moral não é um obstáculo, uma limitação da nossa liberdade, mas fundamenta-se no questionamento: o que estamos fazendo uns com os outros? Percebemos então aquilo que chamamos de intersubjetividade. O que significa isso? De maneira bem simples: estamosligados uns aos outros, tanto fisicamente quanto moralmente. As condutas morais de cada um de nós estão ligadas intimamente às pessoas com as quais convivemos. Equilibrar essas dimensões, subjetiva e objetiva, é uma tarefa complicada. Mas, se quisermos aprendermos a viver juntos, conviver, devemos construí-la através do diálogo e do entendimento. As outras pessoas, a sociedade em que vivemos, não são um limite para a nossa liberdade, mas uma condição para atingi-la. Conclusão Retomando: a ética é um tipo de conhecimento que reflete sobre a moral, que são as normas de comportamento social de um grupo humano, ao mesmo tempo em que são as escolhas que cada indivíduo faz em relação a essa moral coletiva. O mais delicado é que ao estudarmos sobre ética, percebemos que vamos escolhendo a nossa própria vida. Não tem nenhuma relação com decorar as virtudes e evitar os vícios, porque somos seres humanos, podemos (e iremos) cometer erros, falhar. Precisamos compreender que, pelo diálogo, criamos um mundo da solidariedade, da cooperação. É difícil, mas se queremos criar um mundo democrático, é necessário. Para tentarmos nos orientar nos dilemas que nos encontram ao longo da vida, não basta apenas a razão, mas também a sensibilidade (sentimentos e emoções). Podemos criar uma bússola e uma balança internos (ARANHA, 2009, p. Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 10 217). A bússola aponta o "norte moral", aquilo que indica nossos valores pessoais. Para equilibrá-la, utilizamos a balança: em cada prato pesamos o que é mais importante para nós. O resultado pode ajudar. Para refletir ➔ Imoral é quando há imoralidade (ex: falta de pudor, pecado, indecência), há falta de moral. Desonesto, contrário à norma. ➔ Amoral é a pessoa que não tem senso do que seja moral ou desconhece determinado padrão moral. A questão moral para este indivíduo é desconhecida, estranha. Referências bibliográficas ALMEIDA, Guilherme Assis de. CHRISTMANM, Martha O. Ética e Direito: uma perspectiva integrada. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009. ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à Filosofia. 4. ed. São Paulo: Moderna, 2009. CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 3. ed. São Paulo: Ática, 1995. COTRIM, Gilberto; FERNANDES, Mirna. Fundamentos de filosofia. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016. Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 11
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