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Direitos Humanos e Segurança Pública Neandro Vieira Thesing 1ª Edição Coordenação de Educação a Distância Faculdade de Direito de Santa Maria - FADISMA Copyright © 2020 - FADISMA - Todos os direitos reservados Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 1 DIREITOS HUMANOS E SEGURANÇA PÚBLICA Para início de estudo A Segurança Pública é um assunto complexo e delicado. O Brasil tem enfrentado graves problemas nesse campo, com o aumento da violência e da criminalidade em todo país, impulsionando a visibilidade do tema e a preocupação da sociedade como um todo. Em todas as últimas eleições foi uma questão central, nas diferentes esferas. Diante da precariedade da segurança, a urgência de combater o crime pode conduzir a opinião pública pelo caminho das soluções rápidas, frequentemente fruto de conclusões apressadas, de curto prazo, que posteriormente se mostram desastrosas. Fundamentadas em oposições primárias, ouvimos, vemos e lemos repetidas vezes as ideias que opõem forças da lei e da ordem (agentes da segurança pública), contra forças da desordem e do caos (bandidos). Nessa batalha do bem contra o mal, permite-se o sacrifício de direitos em troca da ordem pública. Nesse contexto de ânimos exaltados, Direitos Humanos e segurança pública parecem não combinar, sintetizando pólos opostos: a impunidade versus a guerra. Contudo, nas últimas décadas esse antagonismo entre a comunidade defensora dos Direitos Humanos e as forças policiais têm reduzido. Preconceitos antipolícia, de um lado, e alcunha de "defensores da bandidos", de outro, têm sido deixados de lado, em substituição à percepção de que há mais convergências do que divergências entre os dois campos. Veremos como os antagonismos herdados pelas instituições policiais e pelos defensores dos Direitos Humanos são simplificações que não se sustentam mais. O Brasil é uma democracia, com todos os seus problemas, mas Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 2 ainda uma democracia que deve ser protegida. Os agentes de Segurança Pública são indispensáveis para servir e proteger a cidadania, assegurando a todos o respeito a seus direitos e liberdades. Abordaremos, em um primeiro momento, como o objetivo de promover a segurança cidadã passa pela defesa dos grupos minoritários e historicamente vulneráveis da sociedade, trazendo algumas noções legais. Em seguida, abordaremos os próprios Direitos Humanos dos profissionais em Segurança Pública. Por fim, falaremos sobre como a Segurança Pública, o acesso à justiça e o controle e prevenção de violências e crimes são fundamentais para a promoção dos Direitos Humanos e a cidadania. Tendo por base esses esclarecimentos iniciais, prosseguiremos com o estudo do conteúdo. Para isso, à temática está dividida em subtítulos, a contemplar: 1. Proteção dos direitos das minorias e grupos vulneráveis: noções legais; 2. Direitos humanos dos profissionais em Segurança Pública; 3. Segurança pública, acesso à justiça e controle e prevenção de violências. 1. Proteção dos direitos das minorias e grupos vulneráveis: noções legais Para que exista a compatibilidade entre Direitos Humanos e eficiência na Segurança Pública, os servidores públicos devem perceber-se como cidadãos e cidadãs, cuja missão profissional é garantir e proteger direitos. Assim, as ações dos agentes devem estar respaldadas pelos instrumentos legais de proteção e defesa dos Direitos Humanos. Quando se trata de minorias, é fundamental compreender o que este termo significa. Para a Organização das Nações Unidas (ONU), minoria significa um grupo à Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 3 margem do poder e com características étnicas, religiosas ou linguísticas diferentes das majoritárias em um país. Assim, minorias são um grupo de pessoas tratadas sem igualdade. Em muitos casos pode haver coincidência de um grupo minoritário ser realmente a menor parte da população, contudo, não há relação numérica direta, de quantidade, ou melhor, não é o essencial para se definir uma minoria. O central é a relação de poder entre diferentes grupos, a exclusão das decisões e representação políticas, não tendo acesso às mesmas oportunidades. Na maioria das vezes, os grupos majoritários definem-se como padrão e comportamentos discriminatórios e preconceituosos também afetam os grupos minoritários. A identidade coletiva os torna "diferentes" dos demais indivíduos no âmbito do mesmo país, historicamente discriminados. No Brasil, existem vários grupos sociais que se encaixam na definição da ONU de minorias. Podemos citar os povos indígenas, por exemplo. "Índio" é um conceito que não existe para esses povos, pois é um termo genérico que homogeneíza uma ampla variedade de etnias. Em 1500, estima-se que eram cerca de 5 milhões de pessoas, habitando todo o território nacional. Hoje, não são 1% da população brasileira (em torno de 890 mil), falando mais de 170 idiomas, vivendo e transmitindo culturas diversas, formas de entender e de se posicionar no mundo, com aparência física diferente, deuses diferentes, técnicas agrícolas diferentes. São culturas indígenas, sempre no plural (MELATTI, 2007). As mulheres são uma minoria. Mesmo sendo a maioria numérica da população, não apenas no Brasil, mas em todos os países, foram historicamente afastadas do poder, dos estudos e do mercado de trabalho. Como exemplo, o direito ao voto (direitos políticos) só foi conquistado, no Brasil, em 1934 e até hoje as mulheres são menos de 10% dos parlamentares eleitos para o Congresso Nacional. Desde a inauguração de Brasília, em 1960, o Senado federal não Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 4 possuía banheiro feminino, que foi instalado apenas em 2016. Grupos vulneráveis são coletividades mais amplas de pessoas que, mesmo não pertencendo às minorias, necessitam de proteção especial em razão de fragilidade ou indefensabilidade, por exemplo: idosos, pessoas com deficiência, crianças. Muitas vezes, os conceitos de minoria e grupos vulneráveis se confundem, pois é comum minorias encontrarem-se em situação de vulnerabilidade. (MAZUOLLI, 2017, p. 273). A preocupação internacional com a defesa das minorias cresceu diante dos vários genocídios que aconteceram ao longo do século XX. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, a comunidade internacional tomou conhecimento sobre o Holocausto, quando o regime nazista assassinou mais de 5 milhões de judeus, homossexuais, ciganos, pessoas com deficiência e outras minorias nos campos de concentração e trabalhos forçados. Por que a defesa das minorias e grupos vulneráveis é importante? Para que a democracia leve em conta o princípio da justiça social, compreendeu-se que a igualdade formal ("todos são iguais perante a lei"), os Direitos Humanos de primeira dimensão, não foram suficientes para proteger determinadas pessoas que têm sua igualdade negada devido à condição socioeconômica. Dessa forma, ampliando o direito à igualdade, surge também como direito fundamental, o direito à diferença – e o respeito a esta. A igualdade, então, tem três vertentes: a) formal ("todos são iguais perante a lei"); b) igualdade material (justiça social e distributiva; critério socioeconômico); c) igualdade material de reconhecimento (gênero, orientação sexual, idade, raça, etnia e demais critérios) (PIOVESAN, 2005). Assim, a justiça ganha uma dimensão dupla: redistribuição e reconhecimento social. Internacionalmente, podemos citar várias Declarações, Pactos e Convenções para proteção das minorias, dentre eles: a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a SAIBA MAIS Justiça social diz respeito à igualdade direitos e solidariedade coletiva. É uma ideia relacionada ao comprometimento com o princípio da equidade e desenvolvimento de ações, por parte do Estado e da sociedade civil, voltadas para reduzir as desigualdades sociais geradas na própria dinâmica das sociedades. Em Uma Teoria da Justiça (1971), John Rawls defende que uma sociedade mais justa é benéfica para todos. Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 5 Convençãosobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial (1965), a Declaração dos Direitos das Pessoas pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas (1992), dentre outras. Mesmo assim, atualmente, muitas minorias têm seus direitos negados no mundo. A Constituição Federal de 1988 avançou em relação aos direitos das minorias, mesmo utilizando raramente o termo. Sobre o direito à diferença, por exemplo, no Art. 215 fica definido que o Estado tem o dever de garantir "o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais". Ao agir desse modo, o próprio Estado colabora para a diminuição da discriminação contra os grupos minoritários e vulneráveis, garantindo que toda população seja contemplada com aquilo que a própria Constituição garante: seus direitos fundamentais. O objetivo é, sempre, a inclusão social. Quando se trata das mulheres, apenas recentemente foram conquistados direitos em todo o mundo. Somente com a atuação do movimento feminista por direitos iguais, ao longo do século XX, que os Direitos Humanos das mulheres começaram a ser reivindicados com maior vigor, como no direito à igualdade formal, à liberdade sexual e reprodutiva, à reivindicação da igualdade salarial e econômica, redefinição dos papéis sociais, ao direito à diversidade (raça e etnia), acesso à justiça, dentre outros (MAZZUOLI, 2017, p. 275). As reivindicações feministas levaram à criação de uma proteção internacional, traduzida na Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, também chamada de "Carta Internacional dos Direitos da Mulher", promulgada em 1979. A partir desse documento, os Estados signatários passaram a ser obrigados a eliminar a discriminação contra a mulher e zelar por sua igualdade, autorizando as "discriminações positivas", por meio das quais os Estados podem adotar medidas temporárias para acelerar esse processo. Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 6 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm No Brasil, podemos citar como exemplo recente a criação da Lei Maria da Penha, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, obrigando o Estado a prevenir, e erradicar a violência doméstica contra a mulher, criando juizados especiais, alterando o Código do Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução penal nesse sentido. Ainda, a Lei 13.104/2015 alterou o art. 121 do Código Penal, instituindo no Brasil o feminicídio, acrescentando uma circunstância agravante para o crime de homicídio, incluído no rol de Crimes Hediondos. Sinteticamente, o feminicídio é a morte da mulher "por razões de gênero, em situações de violência doméstica e familiar, menosprezando ou discriminando à condição de mulher, praticado por homem ou mulher sobre mulher em situação de vulnerabilidade" (MAZZUOLI, 2017, p. 284). No último século houve um crescimento da população e aumento da expectativa de vida, na maior parte dos países do mundo. Com isso, cresceu o grupo de pessoas idosas que necessitam de assistência e seguridade social. Devemos lembrar que os Direitos Humanos asseguram o direito à segurança para todos(as) e aqueles(as) que se encontram alijados dos meios de subsistência. É nesse sentido que a ONU promulgou os Princípio das Nações Unidas para as Pessoas Idosas (1991). Posteriormente foram realizadas Assembleias Mundiais sobre o envelhecimento, reconhecendo que a idade é motivo explícito de discriminação. No Brasil, a Lei 10.741/2003 criou o Estatuto do Idoso, um marco dos direitos sociais no Brasil. Às pessoas com mais de 60 anos a legislação passou a determinar, além da garantia de prioridade, outros direitos como: envelhecimento sadio e livre de violência e discriminação, prestação alimentar, assistência social, acesso universal e igualitário ao Sistema Único de Saúde (SUS), dentre outros, objetivando valorizar a pessoa idosa e promover sua participação na sociedade. Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 7 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/L13104.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.741.htm http://portalms.saude.gov.br/sistema-unico-de-saude No outro extremo da faixa etária encontram-se as crianças e adolescentes. Suscetíveis à pobreza, fome, abuso sexual, pedofilia, marginalização, trabalho escravo, violência física entre várias outras formas de violações, os Estados têm o dever de prestar assistência e proteção eficaz, pela sua condição de imaturidade física e mental. Nesse sentido, em 1946 foi criado o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), cuja missão é assegurar os direitos de crianças e adolescentes. Em 1959 foi proclamada a Declaração Universal dos Direitos das Crianças e em 1989 a Convenção Internacional sobre os Direitos das Crianças, cujos pilares são: a não discriminação, o interesse superior da criança, a sobrevivência e desenvolvimento e a opinião da criança. No Brasil, a Lei 8.069/1990 estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente, garantindo proteção integral em virtude de fatores biológicos, psicológicos, sociais e culturais, eliminando a concepção do antigo (e atualmente revogado) Código de Menores. Este era um "Código Penal do Menor", disfarçando penas sob proteção, fixando um parâmetro preconceituoso de análise da infância e juventude: o menor em situação irregular, quando, na verdade, irregular estavam a família (que o abandonou) e o Estado (que não o protegeu) (MAZZUOLI, 2017, p. 306). As pessoas com deficiência também podem ser consideradas como minorias. De acordo com a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de 2008, são todas aqueles que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, impedidos ou barrados, por conta disso, de participar de maneira plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. As maiores impossibilidades das pessoas com deficiência devem-se ao cerceamento de Direitos Humanos como a liberdade de ir e vir (prejudicada pela falta de acessibilidade em diversos locais), e carência de plenas SAIBA MAIS O Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência é um indicador, desenvolvido pela Secretaria Nacional de Juventude em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que une dados considerados chave na determinação da vulnerabilidade dos jovens à violência, tais como taxa de frequência à escola, escolaridade, inserção no mercado de trabalho, taxa de mortalidade por homicídios e por acidentes de trânsito. Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 8 https://nacoesunidas.org/agencia/unicef/ https://nacoesunidas.org/agencia/unicef/ http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/single-view/news/indice_de_vulnerabilidade_juvenil_a_violencia_2017_desig/ http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/single-view/news/indice_de_vulnerabilidade_juvenil_a_violencia_2017_desig/ http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/single-view/news/indice_de_vulnerabilidade_juvenil_a_violencia_2017_desig/ http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/single-view/news/indice_de_vulnerabilidade_juvenil_a_violencia_2017_desig/ condições de emprego. No Brasil, a Convenção da ONU de 2008 foi incorporada com status de Emenda Constitucional. A Lei 13.146/2015, promulgou o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Entre outras medidas, classifica o que é deficiência, prevê atendimento prioritário aos deficientes em instituições públicas e privadas, trata sobre a inclusão no trabalho, o direito ao transporte e à mobilidade, estabelece normas de acessibilidade e fixa penas para quem induz ou incita discriminação (MAZZUOLI, 2017, p. 357). Por fim, trataremos sobre a defesa à diversidade sexual com os Direitos Humanos das pessoas lésbicas,gays, bissexuais, transexuais, travestis, transgêneros e intersexuais (comunidade LGBTQ+). Em muitos países existem leis que discriminam pessoas em razão de sua identidade, orientação ou conduta sexual, prevendo prisão ou banimento para pessoas que mantiverem relação sexual com pessoas do mesmo sexo. No Brasil – e na América Latina como um todo – há uma grande rejeição de jovens (em virtude da sua orientação sexual) por parte da família e altos índices de violência. Em 2012 foram registradas mais de 3 mil agressões e 300 assassinatos. A militância da comunidade LGBTQ+ conseguiu que a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirasse de seus documentos a consideração da homossexualidade como doença mental e passasse a considerá-la como orientação sexual, em 1990. O termo homossexualismo foi substituído, a partir de então, por homossexualidade, pois o prefixo -ismo designa doenças. Em 2011 o Supremo Tribunal Federal brasileiro reconheceu como válida (e com efeitos de entidade familiar) a união civil de pessoas do mesmo sexo, havendo a possibilidade de registro de filhos. Em 2018, o STF decidiu que transexuais e transgêneros podem mudar o registro civil sem necessidade de cirurgia de redesignação sexual ou autorização judicial, reconhecendo o direito à diferença e a Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 9 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm pluralidade. Em junho de 2019, o STF decidiu criminalizar a homo e transfobia como crime equivalente ao racismo até a criação de uma lei específica. O caminho em direção à efetivação de direitos ainda é longo no Brasil. Apesar disso, nos últimos anos foram criadas políticas públicas visando à igualdade. As ações afirmativas no ensino superior têm garantido acesso a negros, negras e indígenas. A exigência que cada partido tenha, no mínimo, 30% de candidatas mulheres nas eleições busca ampliar a participação feminina na política. A promulgação de leis que garantem adaptações no espaço físico de prédios e vias públicas para pessoas com deficiência. Percebemos que para o profissional da Segurança Pública atuar eticamente precisa levar em conta os direitos das minorias e grupos vulneráveis, demonstrando a relação existente entre o Estado Democrático de Direito e seus cidadãos(ãs), que são, em última medida, a quem se deve prestar os serviços públicos. É necessário, acima de tudo, respeitar as pessoas e agir em prol da justiça social. Por que oprimir mais minorias que já são tão oprimidas? 2. Direitos humanos dos profissionais em Segurança Pública Direitos humanos e atuação do profissional em Segurança Pública ainda se opõem no imaginário social. Herdamos de nosso recente passado autoritário práticas policiais incompatíveis com o espírito democrático e cidadão. Os promotores dos Direitos Humanos têm, há décadas, realizado denúncias contra os abusos de poder. Tais ações precisam ser vistas como contribuições às instituições de segurança pública, ampliando o espaço para os(as) profissionais que desejam realizar eticamente o seu dever, e depurando os elementos corrompidos. Desde o lançamento do primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos, em 1996, pensa-se de maneira específica a relação entre agentes da Segurança Pública protagonistas, Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 10 conscientes de seu papel como agente para a promoção dos Direitos Humanos e da Cidadania. Os Direitos Humanos não separam quem tem farda de quem não tem. Hoje, o estudo dos Direitos Humanos faz parte de todos os currículos das escolas e academias formadores das forças de Segurança Pública. Muitas instituições de segurança pública têm arraigadas em suas hierarquias e estruturas de poder práticas de violência, como arbitrariedades, tortura e impunidade, criando um círculo vicioso de insegurança e ineficiência. Práticas autoritárias são sempre portas abertas para a corrupção. Podemos pensar, por exemplo, o caso das milícias na cidade do Rio de Janeiro. Por conta disso, quando se fala em Direitos Humanos para as instituições de segurança pública devemos pensar em diretrizes e objetivos estratégicos para a diminuição dessas violências, dentro e fora das organizações. Quais são as normas de Direitos Humanos e princípios humanitários aplicáveis à função de profissional da Segurança Pública? O Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (2010), quando trata dos profissionais de Segurança Pública, indica algumas ações programáticas, como a garantia do repasse de verbas federais aos estados e municípios, de modo a proporcionar a aquisição de equipamentos de proteção individual. Também recomenda a criação de um serviço especializado no sistema de saúde pública para acompanhamento permanente da saúde mental dos profissionais. Ao mesmo tempo, propõe a criação de um seguro para casos de acidentes incapacitantes ou morte em serviço para profissionais, garantindo a reabilitação e reintegração ao trabalho nos casos de deficiência adquirida no exercício da função. Para o equilíbrio psicológico de cada profissional é também importante pensar na saúde da própria instituição. A hierarquia, fundamental para qualquer órgãos de segurança, Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 11 não deve ser confundida com humilhação, manutenção da ordem com perversidade. Nos rituais de formação, durante o treinamento, muitos futuros profissionais são submetidos a estresse psicológico e situações humilhantes, a fim de instigar o ódio contra o "inimigo", em uma lógica de guerra incompatível com a segurança cidadã e a democracia. A hierarquia é utilizada como pretexto para o exercício de personalidades sádicas. Como nos diz Balestreri: a "verdadeira hierarquia só pode ser exercida com base na lei e na lógica, longe, portanto, do personalismo e do autoritarismo doentios". O respeito a superiores não pode ser imposto através do medo e da humilhação. Não há respeito sem admiração. Sendo fundamental para o bom funcionamento dos órgãos de segurança pública, a hierarquia assenta-se no exercício da liderança dos superiores, "o que pressupõe práticas bilaterais de respeito, competência e seguimento das regras lógicas e suprapessoais". (BALESTRERI, 1998, p. 12) Tanto o excesso quanto a falta são prejudiciais quando se trata de hierarquia. A debilidade hierárquica pode passar a imagem de descaso e desordem do serviço público. Legalmente, os direitos dos profissionais de Segurança Pública encontram-se na Portaria Interministerial entre o Ministério da Justiça e a Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República, publicada (e em vigor) no dia 16/12/2010 no Diário Oficial. A Portaria estabelece as Diretrizes Nacionais de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos dos Profissionais de Segurança Pública. A Portaria Interministerial SEDH/MJ nº 2 têm 67 diretrizes, divididas em 14 temáticas, refletindo em boa parte o Programa Nacional de Direitos Humanos 3. São eles: Direitos Constitucionais e Participação Cidadã, Valorização da Vida, Direito à Diversidade, Saúde, Reabilitação e Reintegração, Dignidade e Segurança no Trabalho, Seguros e Auxílios, Assistência Jurídica, Habitação, Cultura e Lazer, Educação, Produção de Conhecimentos, Estruturas e Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 12 Educação em Direitos Humanos e Valorização Profissional. Percebemos que os servidores públicos da segurança não devem apenas atuar de acordo com uma cultura dos Direitos Humanos, mas têm, eles e elas, sua dignidade profissional e pessoal garantidos por estes princípios. 3. Segurança pública, acesso à justiça e controle e prevenção de violências Quando se fala de público temos como referência a noção de interesse coletivo. A Segurança Pública é a sensação de bem-estar de uma comunidade, definida como [...] conjunto das ações preventivas e reativas, de natureza pública, que, em resposta ao fenômeno da criminalidade, volta-se ao alcance ou à manutenção da ordem pública e que tem como fim último proporcionar aos indivíduos, na convivência social, a fruição de relações pautadasno direito básico de liberdade, garantidas a segurança jurídica – proteção contra repressão autoritária do Estado – e a segurança material – proteção contra agressões de todo tipo. (FILOCRE, 2010, p. 13). No que tange órgãos de Estado, a Segurança Pública não é uma atividade de responsabilidade exclusiva das forças policiais. Integram também o Ministério Público, a Defensoria Pública e o Judiciário como um todo. A Segurança Pública "é o bem-estar social, associado à paz e à ordem da comunidade em várias acepções e aspectos; essa modalidade de segurança não tem por base, exclusivamente, o combate ao crime". (NUCCI, 2016, p. 48). A principal finalidade das políticas de Segurança Pública é garantir a cidadania da comunidade, de todos, mesmo os que cometeram crimes. Através disso, tem-se a garantia do acesso universal à Justiça, um dos direitos fundamentais para todos, se queremos realmente construir uma segurança comum e cidadã. Poucas categorias profissionais se comparam, em potencial, aos agentes da segurança quando se trata de zelo e Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 13 promoção da cidadania. Como nos diz Balestreri (1998): pela autoridade legal e moral que possuem, as forças policiais e demais agentes de segurança são o vetor mais promissor no processo de redução das violações aos Direitos Humanos. Os agentes da segurança pública podem ser, se quiserem, protagonistas na defesa de direitos e da cidadania. Precisamos substituir o velho paradigma por: "Segurança Pública com Direitos Humanos". A ação dos profissionais de Segurança Pública eficiente e profissionalizado deve obedecer a padrões de excelência que são, de um lado, vinculados ao compromisso ético com os Direitos Humanos, e de outro, na ação técnica. Nenhuma das partes deve ser comprometida em detrimento da outra. Apenas dessa forma o(a) profissional dará resposta eficiente aos anseios de justiça da sociedade, obedecendo aos parâmetros do Estado democrático, sem prejuízo da eficiência e da força na prevenção e repressão ao crime. Conclusão Os graves problemas que o Brasil enfrenta na área da Segurança Pública precisam ser compreendidos como parte da formação e do desenvolvimento da sociedade brasileira e de suas instituições. A tradição autoritária, componente da realidade sociocultural brasileira e latino-americana, moldou o profissional das forças de segurança com truculência. A resolução dos desafios à Segurança Pública não recai unicamente no governo. Os mais diversos agentes sociais envolvidos devem ser implicados, unindo Estado, seus agentes, a sociedade civil, o mercado, o maior número de protagonistas possível. A segurança deve ser pública – portanto, nossa. Diz respeito a todos nós. Nós que somos cidadãos e cidadãs e Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 14 desejamos um país mais justo para todos. Acreditar e defender que a violência seja resolvida somente através de ações e políticas repressivas é simplificar o problema. Os servidores públicos da segurança têm como dever ético servir e proteger, de acordo com os princípios constitucionais e a legislação. A eficiência profissional das forças de segurança pública, se realmente comprometida com esse dever, não pode defender repressões ilegais, ignorando os padrões previstos para uso legal da força. A paz social não é construída com guerra. O que se constrói com a lógica da guerra é mais medo e insegurança para a população, que desacredita as instituições responsáveis pelo cumprimento da lei quando nem sequer estas as cumprem. O uso abusivo da força cria mais violência, gerando descrédito dos órgãos de segurança junto à opinião pública. Para se rever velhos paradigmas precisamos de coragem, pois nossas ações e nossas ideias já estão moldadas há tempos. Todos temos preconceitos, fruto de imagens pré-concebidas herdadas do passado. Mas mudar cabe a nós, no presente. Se o passado continua nos prejudicando é porque fomos nós, hoje, que o mantivemos vivo. Para se perceber como um cidadão, ético, o agente municipal de segurança pública deve olhar para si mesmo e às suas circunstâncias, para a relação do eu com o mundo. É necessário refletir-se diante do espelho, para evitar ser levado pela pressão das situações-limite nas quais constantemente trabalha. Uma conduta profissional assertiva, pautada no respeito aos direitos e garantias individuais de todos, promovendo os Direitos Humanos e a democracia como valores, constrói reconhecimento e respeito às Guardas Municipais junto da população. A demanda por segurança é uma das mais básicas da humanidade. Historicamente, explica o nascimento do Estado, por exemplo. Aqueles e aquelas que conseguirem garantir isso à população serão vistos como protagonistas da Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 15 sociedade e da segurança cidadã. O medo que sentimos diante do aumento da violência pode nos levar a conclusões perigosas para nossa segurança, individual e pública. Uma política repressiva, implementada por ações sensacionalistas e imediatistas deve ser evitada. Em seu lugar devemos exigir um policiamento apoiado na comunidade, em acordo com outros segmentos, educação, esporte, cultura, lazer, saúde. Nosso desenvolvimento deve ser a grande arma contra a violência. As Guardas Municipais podem ter um importante papel nesse sentido. Para refletir "[As forças de Segurança Pública] como instituição de serviço à cidadania em uma de suas demandas mais básicas — Segurança Pública — tem tudo para ser altamente respeitada e valorizada. Para tanto, precisa resgatar a consciência da importância de seu papel social e, por conseguinte, a autoestima. Esse caminho passa pela superação das sequelas deixadas pelo período ditatorial: velhos ranços psicopáticos, às vezes ainda abancados no poder, contaminação anacrônica pela ideologia militar da Guerra Fria, crença de que a competência se alcança pela truculência e não pela técnica, maus-tratos internos a policiais de escalões inferiores, corporativismo no acobertamento de práticas incompatíveis com a nobreza da missão policial." (BALESTRERI, 1998, p. 13). Ricardo Brisolla Balestreri é educador, licenciado em História, especialista em Psicopedagogia Clínica e em Terapia de família. Membro da Secretaria Nacional de Segurança, do Comitê Nacional de Educação para Direitos Humanos. Possui diversas participações como consultor para órgãos públicos e empresas privadas na área da Segurança Pública. Presidiu a Anistia Internacional – Seção Brasil. Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 16 Revisão de conceitos ➔ Minorias sociais: não se refere à quantidade de pessoas. Minoria significa um grupo à margem do poder e com características étnicas, religiosas ou linguísticas diferentes das majoritárias em um país. ➔ Direito à diferença: desdobramento do direito humano à igualdade. Os encontros com a diversidade sempre geram riqueza. É importante que se mantenha e se ressalte essa noção de que o ser humano é diverso, e o respeito pela diferença, pelo outro com as suas diferenças. Referências bibliográficas BALESTRERI Ricardo Brisola. Direitos Humanos: coisa de Polícia. Passo Fundo: CAPEC Paster Editora, 1998. FILOCRE, Lincoln D’Aquino. Direito de segurança pública. Limites jurídicos para políticas de segurança pública. Coimbra: Almedina, 2010. MAZZUOLI, Valério Oliveira. Curso de Direitos Humanos. 4ª edição. Método, 03/2017. Disponíve em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/97885309 80436/cfi/6/2!/4/2/2@0:0. Acesso em: 04 jul. 2018. MELATTI, Julio Cezar. Índios do Brasil. São Paulo: Edusp, 2007. NUCCI, Guilherme de Souza. Direitos humanos versus segurança pública. Rio de Janeiro: Forense, 2016. PIOVESAN, Flavia. Ações Afirmativas sob a perspectiva dos Direitos Humanos. In: BRASIL. Ações Afirmativas e o Combate ao racismo nas Américas. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. p. 35-43. Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 17 https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788530980436/cfi/6/2!/4/2/2@0:0https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788530980436/cfi/6/2!/4/2/2@0:0
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