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Ética aplicada à prática profissional Neandro Vieira Thesing 1ª Edição Coordenação de Educação a Distância Faculdade de Direito de Santa Maria - FADISMA Copyright © 2020 - FADISMA - Todos os direitos reservados Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 1 ÉTICA APLICADA À PRÁTICA PROFISSIONAL Para início de estudo O estudo da ética ganhou bastante força nos últimos anos, apontando para vários caminhos. Por ser multidisciplinar, muitas áreas podem se unir a este ramo da filosofia, buscando ferramentas para refletir sobre os problemas práticos que surgem. Dessa maneira nasceram as várias éticas aplicadas: bioética, ética da informação, ética empresarial, ética da ciência e tecnologia e também ética de cada profissão. Com os(as) servidores públicos não é diferente. Aos servidores da segurança pública, em especial, algumas questões são importantes, devido à própria natureza da atuação profissional: deve haver conscientização sobre os riscos que os(as) ameaçam e sobre a justificação das ações levadas a cabo diante dos dilemas enfrentados cotidianamente. Nesta seção, iniciaremos falando sobre a ética profissional e a ética geral dos servidores e servidoras públicos, para em seguida tratarmos da responsabilidade social que diz respeito à função. Por fim, abordaremos discussões éticas específicas, correspondentes à prática do profissional em segurança pública. Tendo por base esses esclarecimentos iniciais, prosseguiremos com o estudo do conteúdo. Para isso, a temática está dividida em subtítulos, a contemplar: 1. Ética e vocação profissional; 2. Ética do(a) servidor(a) público(a); 3. Responsabilidade social dos(as) servidores(as) públicos. 1. Ética e vocação profissional Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 2 Toda profissão humana consiste na execução de tarefas. Agricultores, médicos, advogados, engenheiros, contadores, professores, policiais e todas as demais profissões, prestam serviços, beneficiando o profissional que desempenha a função, as outras pessoas e a sociedade. Como nos diz Antônio Lopes de Sá: "A profissão não deve ser um meio, apenas de ganhar a vida, mas de ganhar pela vida que ela proporciona, representando um propósito de fé" (SÁ, 2009, p. 164). Dessa maneira, além do trabalho prático de cada profissão, o saber-fazer (conhecimento), existe uma ação realizada por um sujeito. Se existe uma ação, é possível se falar em ética, principalmente porque na maioria das vezes nós não conseguimos nos desligar completamente das profissões que desempenhamos. O trabalho molda, até define, quem somos. No momento em que escolhe uma profissão, uma pessoa também escolhe seguir um conjunto de deveres profissionais. A atuação ética responsabiliza o indivíduo em relação à profissão que desempenha e ao ambiente onde trabalha. O trabalhador de qualquer área, no exercício de sua profissão, compromete-se com sua categoria profissional e seus valores. Pensem no Juramento de Hipócrates: "Prometo que, ao exercer a arte de curar, mostrar-me-ei sempre fiel aos preceitos da honestidade, da caridade e da ciência." (REZENDE, 2009, p. 42). O que chamamos, então, de ética profissional significa a adesão voluntária a um conjunto de normas estabelecidas como as mais adequadas para determinada profissão. Sela-se um compromisso. Entende-se assim, que não bastam apenas habilidades técnicas para que a profissão seja executada de forma adequada, com qualidade. Poderíamos dizer que a qualidade em qualquer profissão exige o cultivo de virtudes como zelo, honestidade, competência. É o norte de nossa bússola moral. GLOSSÁRIO Juramento de Hipócrates: é um juramento solene efetuado pelos médicos, na cerimônia de formatura, no qual juram praticar a medicina honestamente. Acredita-se que tenha sido escrito por Hipócrates, considerado o pai da medicina ocidental. Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 3 Antônio Lopes de Sá nos diz que quando a seleção da tarefa está "de acordo com uma consciência identificada com a escolha, dificilmente ocorrem as transgressões éticas, porque estas seriam violações da vontade, contrários ao próprio ser" (SÁ, 2009, p. 150). Ao pertencer a uma categoria profissional, o indivíduo assume um compromisso com a sociedade e com os colegas de profissão. Para percebermos mais claramente esta vinculação, o autor nos ensina que caso atue de maneira correta e competente, tanto eu, indivíduo, quanto a profissão serão enobrecidas. Se ocorre o contrário, por meio de uma conduta desrespeitosa com os princípios éticos da profissão, negativas com os outros (sociedade, outras pessoas), poderei desmoralizar toda uma categoria. Por exemplo: qual é a imagem que temos sobre os políticos profissionais no Brasil? Mesmo existindo os que realmente se preocupam com a representação da população, é a lógica da fruta apodrecida no cesto: acaba contaminando todas as outras. 2. Ética do(a) servidor(a) público(a) Sendo a ética a reflexão sobre nossas ações e seus efeitos diante dos resultados que buscamos, podemos aplicar este raciocínio à conduta dos ocupantes de cargos públicos. Nos últimos anos, o setor público tem sido alvo, principalmente em meios de comunicação e redes sociais, de uma caricaturização. Estereotipado como atrasado, precário, ineficiente, excessivamente burocrático e responsável pelo desperdício de recursos, é visto como um refúgio para aqueles que não desejam trabalhar com afinco ou querem usar de maneira inadequada a máquina pública. Mesmo não ignorando que existem falhas – bastante graves em muitos casos – não podemos generalizar e contribuir de forma destrutiva para a imagem do(a) servidor(a) e do serviço público. O debate ético, neste âmbito, deve contribuir para melhorar a qualidade dos serviços prestados, . Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 4 cultivando no poder público e em seus(uas) servidores(as) as virtudes necessárias para o bom andamento do serviço e o respeito aos usuários – e cidadãos. Para esse fim foram criadas leis com o objetivo de regulamentar as ações dos(as) servidores(as), inclusive sendo previstas punições em caso de descumprimento. Tais leis têm por função tornar público o padrão de conduta esperado para o(a) profissional, orientando o trabalho diário de cada servidor(a) e incentivando um comportamento adequado de modo a promover eficácia (fazer a coisa certa) e eficiência (fazer certo as coisas), consequentemente, a melhora na imagem do(a) servidor(a) e das instituições públicas perante a população. Antes de falarmos sobre as leis e decretos especificamente, é importante estabelecermos uma distinção entre ética e lei, ou ética e direito. Qual a relação entre ética e lei? Existem semelhanças e diferenças. Em primeiro lugar, ambas são conjuntos de normas que regem a vida em sociedade, necessárias para vivermos de maneira harmoniosa. O direito (e as leis) têm como características ser um conjunto de obrigações da comunidade sobre o indivíduo. É a regulação das relações entre as pessoas, visando o bem comum. Em um Estado de direito, contemporaneamente, o mais importante é a ação externa, não as razões internas. Ou seja, para o Estado não há diferença se obedeço às leis porque tenho medo da punição ou porque escolho conscientemente, o importante é cumpri-la. Se não cumprir, sofrerei punições: posso ser preso, ter de pagar uma multa etc. Isso é justamente o oposto da moral e da ética. Para a ética, o que importa é a convicção íntima. Na moral quem julga é o juiz interno, no direito o juiz externo. Se não desvio dinheiro público é porque acredito no meu direito e no direito do outro. Se não roubo só por medo da punição que sofrerei, meu ato é bom socialmente, mas não tem valor ético algum. Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 5 No momento que há coação externa, retira-se a possibilidade de escolha moral espontânea do indivíduo. Por exemplo: se estou em uma loja, planejando roubar uma mercadoria, e mudo minha intenção no momento em que vejo uma câmera de segurança, meu ato não foi moral, porque houve coação – emedo da punição. A lei deve respeitar os limites da ética e da moral? Será que devemos respeitar a lei, mesmo quando ela é injusta? Há casos em que obedecer a lei se torna moralmente errado, é quando ela exige de nós ações que trazem resultados legais ou morais negativos. A consciência moral, a reflexão do indivíduo, tem o direito de contestar o poder, mesmo que pague um preço alto por isso. A lei não pode ser absoluta, ter prioridade sobre a moral, e a ética é muito importante para reformá-la. Por exemplo: no Brasil a escravidão já foi legal e moral, e somente após pressão dos abolicionistas, séculos de fugas de escravos, revoltas e rebeliões, o trabalho escravo foi revogado. Assim, se as leis vigentes são injustas, é possível a desobediência civil. Aquilo que está amparado pela lei não precisa estar amparado pela moral. A moralidade não é coercitiva, a lei (o direito), sim. A partir disso, temos que pensar em alguns parâmetros legais que possam ajudar a refletir sobre o padrão moral da profissão. As Guardas Municipais não têm um Código de Ética geral, havendo autonomia para cada município incorporar em estatutos específicos códigos de conduta concernentes. Portanto, encontraremos alguns indicativos dessa natureza em leis que buscam guiar o servidor público. A primeira a ser abordada é a Lei 13.022 de 8 de agosto de 2014, o Estatuto Geral das Guardas Municipais. Conseguimos notar alguns princípios, expressos no capítulo II, Art. 3º: Art. 3º São princípios mínimos de atuação das guardas municipais: I - proteção dos direitos humanos fundamentais, do exercício da SAIBA MAIS O princípio da desobediência civil é uma ideia que inspirou movimentos contestadores contra leis consideradas injustas no mundo todo. Os exemplos mais célebres são os de Mahatma Gandhi (1869-1948), líder da independência indiana contra a colonização inglesa, e Martin Luther King Jr. (1929-1968), pastor protestante e um dos líderes dos movimentos pelos direitos civis dos negros norte-americanos, nos anos 1950 e 1960. Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 6 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13022.htm cidadania e das liberdades públicas; II - preservação da vida, redução do sofrimento e diminuição das perdas; III - patrulhamento preventivo; IV - compromisso com a evolução social da comunidade; e V - uso progressivo da força. Conseguimos perceber aqui indicativos para o comportamento do profissional virtuoso. Em primeiro lugar, os membros da Guarda Municipal têm princípios gerais a seguir, quais sejam: proteger os direitos humanos fundamentais a vida, zelando pelo exercício da cidadania e das liberdades de cada um. Há compromissos que são indicados também, fundamentalmente com a comunidade, diminuindo as perdas e reduzindo os sofrimentos naquele local. Como agente da segurança pública, a força pode ser utilizada, mas de maneira progressiva, gradual. No Capítulo III, Art. 4º da mesma lei, surgem outros indicativos através das funções a serem cumpridas, ou seja, a atuação profissional propriamente dita. Nos vários parágrafos da lei, estabelece-se que as Guardas Municipais devem realizar proteção patrimonial da cidade, zelando pelos bens, equipamentos e prédios, prevenindo e inibindo infrações penais ou administrativas e atos infracionais que atentem contra os bens, serviços e instalações do município. O patrimônio ecológico, histórico, cultural e arquitetônico do Município também deve ser preservado. Quando necessário, através de medidas preventivas e educativas, que podem ser realizadas nas instituições escolares municipais. Além do patrimônio, a população também deve ser protegida através do trabalho da Guarda Municipal, colaborando o(a) servidor(a) para a paz social, pacificando-se conflitos com os quais se entrar em contato. A comunidade deve ser ouvida. Para isso, deve haver articulação e colaboração com outros órgãos de defesa civil e da polícia administrativa. Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 7 Pode-se também exercer competências relativas ao trânsito, desde que atentando para o Código de Trânsito Brasileiro, Lei 9.503, de 23 de setembro de 1997. Em caso de flagrante delito, o(a) Guarda Municipal deve encaminhar o autor da infração ao delegado de polícia, preservando o local do crime, quando possível e sempre que necessário. Como exemplo de Código de Conduta para a Guarda Municipal, podemos citar o exemplo do município de São Bernardo do Campo, São Paulo, que através de leis complementares estabeleceu um código de conduta para os servidores do quadro, com finalidade de "definir os deveres, tipificar as infrações disciplinares, regular as sanções administrativas, os procedimentos correspondentes, os recursos, o comportamento e as recompensas dos referidos servidores." (SÃO BERNARDO DO CAMPO, 2010). Na falta de um código de conduta, a própria Constituição Federal de 1988 aponta os princípios constitucionais que são válidos para toda administração pública, no Art. 37: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. O princípio da legalidade consiste no cumprimento da Lei e do Direito. O princípio da impessoalidade impõe que todo ato do servidor público deve objetivar o interesse público, excluindo-se qualquer motivação pessoal ou individual. O princípio da moralidade diz que os atos devem ser honestos e convenientes. E o princípio da eficiência exige a atuação com presteza, objetivando alcançar resultados práticos, ou seja, a garantia do interesse público. Outro dos indicativos para a condução do trabalho do servidor pode ser o Decreto 1.171, de 22 de junho de 1994, que institui o Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal. Este documento esclarece os valores, regras e princípios da conduta de qualquer funcionário público. Cabe destacar que a maioria dos códigos de ética têm por função realizar a orientação, estimulando o comportamento ético, ou seja, tem função preventiva, não Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 8 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9503.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d1171.htm punitiva. 3. Responsabilidade social dos(as) servidores(as) públicos Estamos acostumados a pensar a moral a partir de proibições, do não. Por exemplo: nos 10 mandamentos, que são um código ético, a maioria estabelece o que não deve ser feito. Poderíamos pensar em uma moral propositiva? Cumprir a lei é suficiente para isso? Para um servidor público, essa questão é central, visto que além de cidadão de um Estado, ele ou ela tem como dever profissional fazer com que as leis sejam obedecidas. Por que é importante existir ética no serviço público? Qual a responsabilidade do servidor público? Quando falamos em Estado, falamos de uma instituição que tem por função primeira garantir o bem comum de uma determinada sociedade. O Estado existe para servir seus cidadãos, não o contrário. Quando cometemos uma ação, ela pode ter dois interesses: bens restritos ou bens comuns (SROUR, 2013). O bem restrito satisfaz interesses particulares (de uma pessoa ou grupo, organização, categoria profissional etc.). É diferente do bem comum, que satisfaz interesses gerais, abrange a coletividade como um todo. Esses interesses gerais também podem ser de dois tipos: interesses sociais, de uma sociedade particular (Brasil, Estados Unidos, Portugal etc.), ou interesses humanitários, abrangendo a humanidade como um todo. Neste sentido um(a) servidor(a) público, seja qual for seu grau na hierarquia administrativa, distingue-se radicalmente de um(a) trabalhador(a) das empresas privadas, porque tem um compromisso público, com o bem comum. Ao fazer uma escolha, seguindo uma vocação profissional determinada, deve atender a sociedade como um todo. Por isso que ele é um(a) servidor(a) público, a serviço do público, um(a) realizador(a) do bem comum, que é a finalidade Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 9 precípua do Estado,como já estabelecemos. Por conta dessa responsabilidade de ser um(a) agente do bem comum, no serviço público existem algumas responsabilidades das funções que são importantes de serem pensadas. Poderíamos dizer que a primeira diz respeito à corrupção. O que é a corrupção? A palavra tem origem latina, relacionada à ideia de deterioração. De maneira geral podemos seguir a definição dada pela Transparência Internacional: é o abuso de poder para ganhos privados. É um conjunto de práticas que ocorre para sustentar o poder, o status e a riqueza de determinados indivíduos ou grupos. Há o abuso de uma relação de poder estabelecida. O significado da palavra e a ação sugerem então que há uma ruptura, por meio de um processo. Nada é corrupto por natureza, não há essência ou estado corrupto em si – por mais que os desejos punitivistas assim o queiram. O objeto desta quebra são os laços sociais. Rasga-se o tecido social, deteriorando as relações entre os agentes e o resto da comunidade, transcendendo o pacto entre corruptor e corrompido em seus atos de conluio. "Por isso, a responsabilidade moral e jurídica dos que tomam parte de uma relação de corrupção transcende a situação concreta que protagonizam" (BARROS FILHO; PRAÇA, 2014, p. 27). Ocorre a quebra do contrato social. Sendo assim, a corrupção gera "a exclusão sistemática e permanente de certos segmentos da sociedade em proveito de outros" (BARROS FILHO; CORTELLA, 2014, p. 39). Clóvis de Barros Filho, apoiado em Mark Warren, defende que a exclusão se dá de maneira legal ou ilegal. O determinante para existir uma situação de corrupção é o fato de um grupo ou grupos excluírem da vida política (do poder) outro grupo ou grupos, beneficiando-se sistematicamente. Quebram-se os laços de solidariedade social em proveito próprio, desconsiderando o outro como um igual, eliminando a reciprocidade. GLOSSÁRIO A Transparência Internacional é uma iniciativa global de combate à corrupção e práticas relacionadas. Com sede em Berlim (Alemanha), foi fundada em 1993. Hoje é uma Organização Não Governamental (ONG) de caráter internacional com presença em mais de 100 países. Publica anualmente o Índice de Percepção da Corrupção (IPC), compilando dados de suas pesquisas e posicionamentos. INTERATIVIDADE Explore o site da Transparência Internacional no Brasil. Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 10 https://transparenciainternacional.org.br/home/destaques https://transparenciainternacional.org.br/home/destaques Notamos anteriormente uma das dimensões sociais da corrupção. Outra deve-se ao fato de ser ação conjunta, planejada, como consequência da ação de mais de um. Não há corrupção em isolamento, existe a cooperação de duas ou mais partes buscando vantagens mútuas. Percebe-se claramente que os custos da corrupção não são apenas financeiros. A corrupção está relacionada às ações humanas, ao comportamento e às intenções, logo, pode (e deve) ser discutida pela ética aplicada. No caso dos(as) servidores(as) públicos, ao cometer o ato corrupto, o sentido do bem comum, como falamos anteriormente, é completamente ignorado. Vê-se que o ato de corrupção é, também e principalmente, um dilema moral: Temos o indivíduo que se vê diante da possibilidade de um fantástico enriquecimento mediante um esforço mínimo. É claro que existe ali a possibilidade de ganho; ele imagina, num primeiro momento, todos os efeitos encantadores desse ganho [...]. Mas, em seguida, ele vislumbra também a possibilidade de ser pego, de cair em desgraça, de se ver em situação muito ruim. E aí se estabelece um duelo de afetos, como se fosse uma soma de vetores: de um lado a esperança de se dar bem e de outro o medo de se dar mal (BARROS FILHO, 2014, p.10). De um lado a escolha moral do indivíduo em aproveitar-se da situação (bem), de outro lado seu medo em ser pego (mal). A corrupção leva em conta aspectos morais, pressupostos na prática social. E é na balança da ética que esse comportamento será pesado. Se aceitarmos que o prejuízo principal cabe às relações sociais, e que o ato de corrupção ocorre entre agentes, nunca isoladamente, notamos a ligação com o campo da ética, visto ser esta o "exercício social da reciprocidade, respeito e responsabilidade. A ética, enquanto exercício da humanidade, nos confirma em nossa condição de seres que vivenciam, aprendem e trocam valores." (BITTAR, 2016, p. 25). Ao compreender nossa vida em comum, almejamos uma melhor convivência, um bem-viver ancorado na intersubjetividade, no Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 11 reconhecimento do outro como um semelhante, não o ignorando para realizar desejos individualistas. A variação dos atos de corrupção é ampla, indo desde o uso de bens/recursos públicos para interesses privados, como também a extorsão, tráfico de influências, propinas, fraudes, suborno, desvios de fundos, entre outros. Majoritariamente, como afirma Nucci (2015), são práticas ilícitas: "caracteriza-se, nitidamente, pela negociata, pelo pacto escuso, pelo acordo ilícito, pela depravação moral de uma pessoa". O Brasil possui uma vasta legislação que visa coibir a corrupção, seja em âmbito público ou privado, culminando com a Lei Anticorrupção, de 2014. De acordo com o Código Penal, Lei 10.763/2003, os crimes podem ser: condescendência criminosa (art. 320), inserção de dados falsos em sistema de informações (art. 313), improbidade administrativa (art. 1), concussão (art. 316), crime da lei de licitações (art. 89), tráfico de influência (art. 332), peculato (art. 312), corrupção ativa (art. 333) e passiva (art. 317), entre outros. A maior parte dos recentes casos notórios de corrupção, como o Mensalão e o Banestado podem transmitir a impressão de que é uma prática ligada apenas ao setor público. Contudo, esta visão é equivocada. A corrupção ocorre no setor privado e em organizações não governamentais (ONGs), sendo, na maioria das vezes, uma mescla de interesses entre o setor público e setores privados, como fica claro na Operação Lava-jato. Da mesma forma, ocorre em países desenvolvidos e em países subdesenvolvidos, com regimes políticos democráticos ou em regimes ditatoriais. O que varia é a intensidade e a apuração. A maneira como a maior parte da lei brasileira caracteriza a prática de corrupção também é responsável pela concentração de foco nos(as) agentes públicos. A presença de agentes públicos nos escândalos acima citados, por exemplo, deve ser vista como a ponta de uma rede que Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 12 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.763.htm https://www.transparency.org/ transcende não apenas os limites do serviço público, mas também as fronteiras dos Estados. O(A) funcionário(a) corrupto(a) "é apenas uma parte de uma engrenagem que envolve atores privados, que representam interesses econômicos ou políticos que não são explicitados na esfera pública." (AVRITZER, 2012, p. 13). Neste sentido, a associação comum da corrupção ao setor público pode estar atrelada ao paradoxo de sua percepção pela cobertura midiática: quando mais ocorre a notícia de combate, maior parece sua presença. Os casos que envolvem o setor público, possuem repercussão maior do que a ocorrência no meio privado. Devemos ultrapassar a dicotomia simplista entre setor público como local privilegiado da corrupção, em oposição ao setor privado virtuoso. A Transparência Internacional reafirma novamente a ideia de que os prejuízos das ações corruptas são coletivos e como exemplo, cita-se o aumento da desigualdade social nos países onde a corrupção é mais frequente: A grande corrupção prospera em tais configurações. Casos como a Petrobras e a Odebrecht no Brasil ou a saga do ex-presidente Viktor Yanukovych na Ucrânia mostram como a colusão entre as empresas e os políticos absorve bilhões de dólares em receitas das economias nacionais, beneficiando os poucos em detrimento de muitos. Este tipo de grande corrupção sistêmica viola os direitos humanos,impede o desenvolvimento sustentável e alimenta a exclusão social. (TRANSPARENCY INTERNATIONAL, 2017). Ao agente público deve ser claro que viver é estar com os outros, é conviver. Estamos todos entrelaçados, intersubjetividade corporal e psíquica, reciprocidade. Se alguém, sobretudo um agente estatal, age visando um bem particular, individual, fere a instituição à qual está ligado e um dos princípios fundamentais de sua atuação profissional: garantir e prezar pelo bem comum. Para Espinosa, um pensador holandês, o ser humano é mais livre na companhia dos outros do que na solidão. Os sujeitos livres são aqueles que "nunca agem com fraude, mas Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 13 sempre de boa-fé". Quando falamos de profissionais da segurança pública, outra questão ética precisa ser pensada: a relação entre ética e violência. Se estabelecermos uma linha desde os primeiros registros sobre as reflexões éticas, na Antiguidade, até hoje, podemos afirmar que a ligação fundamental é a questão da violência e de como evitá-la, diminuí-la e controlá-la. Quando uma sociedade (e sua cultura) define o que entende por mal, crime e vício, define concomitantemente sua contraparte, ou seja, os valores positivos, o bem e a virtude, como amparos para a integridade física e psíquica dos membros da comunidade e a conservação do grupo. Contemporaneamente, nós definimos e entendemos a violência como: "a violação da integridade física e psíquica, da dignidade humana de alguém" (CHAUÍ, 1995, p. 337). Por conta disso, o assassinato, a tortura, a mentira, o estupro, o roubo, a má-fé são considerados violência, imoralidade e crime, atentam contra a moral e contra a lei. Os grandes valores éticos são erguidos contra atos assim, fundamentados na violação. São aqueles nos quais buscamos reduzir a violência na relação com os outros, ao mesmo tempo em que procuramos manter a fidelidade a nós mesmos. Seremos cada vez mais nós mesmos quanto mais formos capazes de reciprocidade e solidariedade. A violência reduz um sujeito à condição de objeto. Para qualquer ponto de vista fundamentado na ética, na dignidade humana, todos somos pessoas e não podemos ser tratados como coisas. "Os valores éticos se oferecem, portanto, como expressão e garantia de nossa condição de sujeitos, proibindo moralmente o que nos transforme em coisa usada e manipulada por outros" (CHAUÍ, 1995, p. 337). O filósofo grego Epicuro escreveu: "o essencial para nossa felicidade é nossa condição íntima e dela somos senhores". Para ele, a justiça "não existe por si mesma, mas encontra-se sempre nas relações recíprocas, em qualquer Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 14 tempo e lugar em que existe entre os humanos o pacto de não causar nem sofrer dano." (CHAUÍ, 1995, p. 367). O ser humano carrega dentro de si a violência. Temos o potencial para agir dessa maneira. Ao mesmo tempo, temos o potencial para sermos sujeitos autônomos, senhores e senhoras de si, capazes de recusar o uso da força, a violência, por reconhecer no outro um semelhante. Apenas assim conseguimos habitar o núcleo da vida ética, estabelecendo a philia. Ou, como quis um judeu rebelde há mais de 2 mil anos: amarmos uns aos outros. Conclusão Os preceitos éticos estão sempre ligados à maneira como nós avaliamos se a moral serve ou não para nós, buscando o bem. Existe um limite? Podemos dizer que o limite é a dignidade do outro, as liberdades e direitos individuais. Algo será imoral e antiético quando romper com esse limite. Quando gerar um dano, um constrangimento: roubar, matar, agredir, violentar. A moral tem um caráter particularista. A ética, um caráter universalista. A lei coage e pune legalmente, a moral constrange. Então quando falamos em ética para servidores(as) públicos, devemos pensar também nos deveres que o Estado deve cumprir. Os(As) agentes dessa instituição podem promover o bem comum ou subtrair de todos para satisfazer seus interesses egoístas, dependendo de suas escolhas enquanto sujeito morais. Promovendo a justiça social, o(a) servidor(a) público ético permite que cada cidadão(ã), ao viver com dignidade, tenha condições de desenvolver uma melhor formação moral, atingindo todas as potencialidades que o ser humano carrega em si. Um país desenvolvido promove cidadãos(ãs) éticos(as). A reflexão e a ação ética aproximam as pessoas da felicidade e promovem a paz social. Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 15 Não há certezas e fórmulas no campo da ética. O coração da moral é quando nos encontramos sozinhos(as), diante de valores e deveres que adotamos como nossos. O que importa é o sujeito ético e não uma ética que seja a lista pronta do certo e do errado. Para refletir Em Análise do homem (Rio de Janeiro: Zahar, 1983), Erich Fromm nos diz: "O bem é a afirmação da vida, o desenvolvimento das capacidades do homem. A virtude consiste em assumir a responsabilidade por sua própria existência. O mal constitui a mutilação das capacidades do homem; o vício reside na irresponsabilidade perante si mesmo." (p. 27-28). Erich Seligmann Fromm foi um importante psicanalista, filósofo e sociólogo. Sua obra marcou o pensamento do século XX. Nascido em Frankfurt (Alemanha), em 1900, após a ascensão do nazismo, mudou-se inicialmente para a Suíça, depois para os Estados Unidos e México, lecionando em diversas universidades. Faleceu em 1980 na Suíça, deixando vasta obra. Revisão de conceitos A ética possui uma dimensão normativa (criar normas) e uma dimensão valorativa (criar valores), movendo-se não apenas na racionalidade, mas também no campo das paixões, dos desejos, das ações e dos princípios. De um lado temos os valores e normas que são externos e anteriores a nós, definidos pela cultura e pela sociedade na qual vivemos. De outro, todo ser humano pode ser um sujeito moral e, por isso, capaz tanto de interiorizar valores e normas existentes, tomar para si, quanto de criar novos valores e normas. Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 16 Toda profissão tem um padrão de comportamento desejável, uma ética profissional. Existem comportamentos incentivados, outros punidos. Moral e lei não são sinônimos. O(A) servidor(a) público da área da segurança não deve confundir moral e lei, tendo um duplo dever diante disso, o de promover o bem comum, esta sua responsabilidade social, e o de zelar pela imagem do Estado e de seus agentes. Referências bibliográficas AVRITZER, Leonardo et al. Corrupção: ensaios e críticas. 2. Ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. BARROS FILHO, Clóvis de; PRAÇA, Sérgio. Corrupção: parceria degenerativa. Campinas: Papirus 7 Mares, 2014. BARROS FILHO, Clóvis de; CORTELLA, Mário Sergio. Ética e Vergonha na Cara. 1. ed.: Papirus 7 Mares, 2014. BITTAR, Eduardo Bianca. Curso de Ética Jurídica. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. BRASIL. Lei nº 13.022 de 8 de agosto de 2014. Dispõe sobre o Estatuto Geral das Guardas Municipais. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/ l13022.htm. Acesso em: 10 jun. 2018. CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 3. ed. São Paulo: Ática, 1995. NUCCI, Guilherme de Souza. Corrupção e Anticorrupção. 1º Ed. São Paulo: Florense,2015. REZENDE, JM. À sombra do plátano: crônicas de história da medicina [online]. São Paulo: Editora Unifesp, 2009. SÁ, Antônio Lopes de. Ética profissional. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2010. SÃO BERNARDO DO CAMPO. Lei Complementar nº 7 de 7 de julho de 2010. Dispõe sobre a criação do novo Estatuto da Guarda Civil Municipal de São Bernardo do Campo. Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 17 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13022.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13022.htm SROUR, Robert Henry. Ética empresarial. 4. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL. Índice de percepção da corrupção 2016. Berlim: [s.n.], 2017. Versão 1.0 - Atualizada em 08 de maio de 2019 18
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