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Caso Clínico de Verônica ➢ Veronica, filha mais jovem de um casal de quatro filhos. ➢ Pais foram questionados sobre as dificuldades da filha, não sabendo certamente responder à algumas questões. ➢ Pais queixam-se da grande diferença de Veronica e seus irmãos. Menina era pouco tolerante às frustrações, vivia constantemente irritada, se descontrolando quando não era compreendida. Veronica apresentava grave comprometimento verbal, não conseguindo expressar as palavras de forma clara. Este processo foi iniciado aos 2 anos de idade, quando começou a dizer frases que não tinham sentido, e que depois foram perdendo compreensão. Terapeuta observa que os pais se queixavam muito da falta de independência motora da menina. Era apaixonada pela lua, e embora tivesse medo intenso do escuro, sempre ia para a cama sozinha e por dormir poucas horas, acordava bem cedo. É possível que Veronica esteja experimentando um sentimento prazeroso ao ser aninhada e cuidada por sua mãe todos os dias. Veronica sempre preferiu brincar sozinha. Gostava de estar com sua boneca em seus braços ou inserindo objetos quaisquer que fossem, em sua boca. Pais negam a filha tenho experimentado algum tipo de masturbação. Após a primeira entrevista com os pais, foi proposto seis sessões semanais (deixando claro que poderia durar anos e com resultados imprevisíveis). Foi colocado que nesse processo poderia aparecer dúvidas e falta de esperanças, mas que não poderia lhe passar informações sobre a análise, que continuassem com sua modalidade educativa, e que eles mesmos adequassem suas condutas às modificações de Verônica, conforme à necessidade. 1º período de análise - 4 meses, com 6 sessões semanais, seguido de 1 mês de interrupção - 5 meses, com 6 sessões semanais, interrompido pelas férias de verão, reiniciando no ano seguinte sem interrupções até Novembro, onde deu-se por encerrado o 1º período. A mãe tinha dificuldades externas e internas para dedicar tempo e contato para com a filha, por isso uma moça foi morar com a família para se dedicar exclusivamente à Verônica. As atividades de Verônica incluíam exercícios e jogos, visando a favorecer o desenvolvimento motor; um mínimo de aprendizagem escolar, (de letras e números), alternado com desenhos livres e o ensinamento de pequenos trabalhos manuais e domésticos, como pôr a mesa, fazer sobremesas, costurar e bordar. Após esse período, pode ingressar em uma escola de campanha como ouvinte; Observou uma melhora no seu contato afetivo com outras crianças; O progresso continua, passando de uma cara inexpressiva e dramática, das primeiras sessões à uma menina alegre e quase “normal”. Ainda é uma criança que, vem adaptando-se às exigências ambientais, brinca pouco, sendo sua aprendizagem escolar muito precária. A mesma dificuldade que apresentou para o uso das palavras apareceu agora no uso dos números e letras. É capaz de repeti-los e copiá-los, mas sem compreender seu significado. O PRIMEIRO PERÍODO DO TRATAMENTO Descreviam-na como uma menina muito estranha principalmente do ponto de vista do pediatra e seu aspecto impressionou a psicanalista, assim como seus alaridos de raiva e medo; Tinha quatro anos e oito meses. “Era magra, alta para sua idade, com olhar inexpressivo. Em seu rosto havia algo dramático e tosco, um estranho contraste entre olhar inexpressivo e um rito que imprimia eu sua boca algo parecido a um sorriso. Suas mãos, de dedos finos, estavam sempre frias.” (ABERASTURY, 1982, p.166) Ao ser apresentada , estendeu a mão , fez uma pequena reverência de modo automático e entrou na sala de jogos, sem evidenciar angústia pela separação da mãe que ficou na sala de espera. Psicanalista aponta neste início a monotonia e a dificuldade dos primeiros meses do tratamento: Na primeira sessão, ignorando o que havia ao redor, foi para a torneira, abriu-a e colocou as mãos em contato com a água. “ Parecia alucinada e ria ou gritava aterrorizada quando se molhava”; “Sua limitada relação com o mundo expressava-se no consultório, na relação exclusiva com a água.” Ignorava tudo que a rodeava, os conteúdos da caixa – “que só olhava – “ esta era a posição que ela mostrava diante do mundo exterior (ABERASTURY, 1982, p.167); O significado da água segundo a autora, trazia aspectos tanto dela quanto da mãe da paciente e esta usava em sua conversa particular para determinar o bom e o mau, se não respondia a seu mando se assustava e a jogava fora; a água fora, a assustava ainda mais, pois pensava que podiam machucá-la, o que a paralisava e paralisava os objetos maus, sem poder para desvencilhar-se deles internamente ou jogando-os fora; “Completei a interpretação dizendo que a mãe, longe dela e deixando-a sozinha, era como a água que assustava, e eu, acompanhando-a e tentando entendê-la, e era como a água boa, a quem ela sorria.” (ABERASTURY, 1982, P.168) Este jogo, com poucas modificações, foi pauta de várias sessões. Foi observado nas expressões de seu rosto quando tocava a água ou a derramava, o aumento do medo e da tensão muscular, quando a água caía fora da pia; Esta ação foi interpretada como uma tentativa de tirar de dentro dela, de sua mãe e da analista tudo que assustava e paralisava. Seriam estas as coisas das quais não podia falar; que quando sussurrava falava à água-mãe do seu desejo de ter amigos ou inimigos quando os colocavam dentro ou fora dela e se caso não respondessem aos seus desejos se desesperava. Numa outra sessão, quando estava distraída, sem interpretar a analista foi surpreendida por um jato de água nos olhos e despertá-la desta maneira era uma forma de pedir que estivesse sempre alerta para entendê-la e curá-la. Neste episódio houve a compreensão de que o vínculo estabelecido entre ambas, estava suficientemente forte para que houvesse a agressão com a água. A mudança no vinculo transferencial tinha uma importância por causa da informação da mãe de que era um bebê tranquilo, que nunca pedia nada. A água correndo na pia, transbordando e caindo no chão desta vez não causou ansiedade e foi interpretada como o leite, que de forma incondicional poderia estar disponível no peito para curar-se, desejando que o fluxo não se interrompesse como o cordãozinho que a uniu a sua mãe quando estava no seu ventre. Havendo assim uma conexão entre as palavras e representada pelo leite da terapeuta, penetrando na mente e alimentando a paciente. Na sessão seguinte comeu sujeiras do chão e chupou a água que tinha derramado da pia . Este fato foi interpretado como sendo o quarto em que a criança se encontrava e era como estar na barriga da mãe, alimentando-se da terapeuta sendo forçada a comer sujeiras e água ruim, o que causou-lhe crises de desespero e medo. Foi explicado para a paciente que ela sentia que tanto a analista quanto a mãe “a atacava por dentro com a água e as sujeiras, obrigando-a a ficar com elas dentro e impedindo que se curasse” e que também o fato dela não falar “era porque sairiam de sua boca lixo e água suja.; que necessitava guardar tudo dentro, embora fossem coisas ruins, eram melhores que ficar vazia.”(ABERASTURY, 1982, p. 168) Perdeu durante as sessões a capacidade de andar e a linguagem que adquiriu durante o tratamento. Nesta regressão manifestou-se o sintoma que os pais confirmaram ser a repetição de um outro ocorrido aos nove meses, que era um ruído com a garganta, seguido de um espasmo, uma espécie de soluço. O que sugeria estarem relacionados a dentição, o caminhar e o som desarticulado. “Voltou a brincar na pia, repetindo os primeiros jogos. Parecia tão alucinada como o princípio.”(ABERASTURY, 1982, p.170) Nesta ocasião, olhou para a caixa de brinquedos, que nunca tinha tocado e que agora apontava com os olhos, como se fossem todas as coisas que havia ignorado. Verônica levou à análise um disco, que utilizava de maneira exaltada. Simbolicamente, a garota demonstrava,com manipulações do disco, que havia nela palavras que procurava arrancar; sons encerrados que queria colocar para fora. Melanie Klein (1981) destaca que, já nos primeiros anos de vida, as crianças experimentam não apenas impulsos sexuais e angústia, como também sofrem grandes desilusões e fantasias. Essas fantasias são expressas pela criança através de desejos e experiências de uma forma simbólica, através de jogos e brinquedos. O JOGO COM O DISCO KLEIN: POSIÇÃO ESQUIZO-PARANOIDE Em certo momento da análise de Verônica, a menina retorna a um jogo com água, parecendo alucinada. Aberastury interpreta que a analista era como a água, quando entendia Verônica e a queria, a fazia se sentir bem, mas quando não a compreendia e não lhe dava o que necessitava, era percebida como má e terrível; a responsável por lhe roubar as palavras. Para Klein, a posição esquizo-paranoide é caracterizada por uma divisão entre os objetos bons e maus, amor e ódio; nesse estágio o bebê organiza suas percepções por meio dos processos projetivos e introjetivos, esses processos são perturbadores quando as experiências más predominam sobre as boas (SEGAL, 1975). KLEIN: POSIÇÃO DEPRESSIVA Na última sessão de Verônica, a garota levou à analista um ramo de flores e expressou afeto e emoção. Antes de sair, pediu para levar um frasco de plástico com que tinha brincado nas últimas sessões, que Aberastury aponta como inquebrável. A analista interpreta que este objeto significava a segurança da garota de que seu vínculo não seria quebrado. Nota-se, no final da análise, maior maturidade emocional de Verônica, apresentando características de uma posição depressiva. A posição depressiva, para Melanie Klein, conforme apontado por Segal (1975), é caracterizada como a fase no qual o bebê reconhece seu objeto total (mãe) e se relaciona com ele. Nessa relação de reconhecimento do objeto total, o bebê começa a ver isso tudo em uma pessoa só, e não como objetos separados. FRAGMENTOS DA CARTA DO PAI Maneja as coisas com cuidado e habilidades, procura desmontar sua caixinha de música com a intenção de conhecer o seu conteudo e em seguida a traz para consertamos. Fala muito e capta quase tudo; as vezes diz palavras que nos surpreendem. Sabe o que quer e busca os meios de consegui-lo, faz pequenos servicos como recolher coisas do chao e colocar no lugar, levar a cesta de papeis quando é solicitada, procurar pano de chao e secar se derrama agua. Pode procurar um brinquedo definido: sua caixa, sua boneca, um livro. Poe e tira roupa sozinha e vai para a cama sem companhia quando se sente cansada. Quando lhe preparam o banho, tira a roupa e se lava. Nao gosta de ter os sapatos desamarrados e pede para que alguem os arrume. Entretem-se desenhando ou recortando. Assim como parecia ignorar a mae, agora é muito carinhosa com ela e exige ve-la. No segundo período da análise, brincou durante muitas sessões de conduzir o elevador. A passagem do térreo para o primeiro andar, representava sua casa; também no sentido contrario. Sendo interpretado a separação que a obrigava ao tratamento. Após algum tempo de análise quando Verônica voltava para a casa costumava escutar uma caixa de música, chamando diversas vezes o nome da terapeuta. Agora sentia a dor da separação por não ter a terapeuta em casa. No final desse período, a mãe de Verônica observou que ela já era capaz de prever as consequências de seus atos. Contou que cada vez falava mais e melhor, nomeava objetos e cores. As crises de raiva tinham diminuído, porém, sofria frequentes depressões. SEGUNDO PERÍODO DA ANÁLISE Verônica apresentava bom aspecto físico, contudo, apresentou-se com raiva, ressentimento, desconfiança e medo, tanto no seu olhar, quanto em suas atitudes. Aberastury interpreta essas características em seu retorno como receio que tivessem ocorrido mudanças em cada uma delas e em sua relação e tanto da longa separação entre elas e entre Verônica e seu pai. As angústias de separação, as crises de ansiedade e a raiva com a analista, representavam sua negação da enfermidade, pois o tratamento necessitava ser separada do pai, assim como sua mãe, em sua interpretação, havia separado ela do pai. TERCEIRO PERÍODO DA ANÁLISE Verônica apresentava-se com dificuldade para caminhar e também regrediu na linguagem, fatos que só ocorriam na presença da analista. Aberastury interpretou e comunicou à Verônica que ela tentava mostrar algo que lhe ocorrera no passado, quando começava a caminhar, não falava e sofria muito, por isso, nas sessões, chorava muito e não queria ali permanecer, bem como apresentando o comportamento de um bebê de três meses. Aberastury interpreta que essas atitudes e ações de Verônica como bebê, representavam seu sofrimento por não poder ser compreendida quando bebê e que não podia ficar de pé, caminhar e falar. Como manejo clínico com a criança, sempre eram feitas interpretações correspondentes às suas posturas e atitudes, sempre sublinhando o vínculo materno do passado, que segundo o relato da mãe era um bebê tranquilo e que expressava medo de ser atacada, confiando na analista e sentindo-se protegida por ela. Também foi interpretado um entra e sai nas salas do consultório, que ela escapava dos perigos destrutivos e escapava do medo de receber seu pai dentro de si. Interpretando esse material Aberastury esclarece que essas ações representavam uma relação de transferência da mãe para a analista que a separava do pai e a relação com o pai – “pênis- vagina”. As angústias em relação às flores e aos cachorros eram deslocamentos da elaboração que Verônica fazia acerca da distância que se criava entre ela e o pai e a pretensão de substituir a imagem interna da mãe que impunha uma separação com o pai. No tratamento foi permitida a elaboração da busca pelo pai e expressadas suas necessidades orais e de contato. E compreendida que em sua mente a separação espacial e distância real eram vivenciadas como distâncias entre os momentos passados e os presentes. Essas interpretações conduzidas com Verônica permitiram que ela elaborasse e recorda-se momentos de união entre e com os pais, ela e a analista, permitindo que os conservassem em seu coração e em sua cabeça. Elaborando assim a distinção de momentos, recordações e espacialidades, permitindo as vivências distintas entre pessoas e lugares e a recuperação de imagens e momentos passados em sua memória. Elementos esses que significaram grande progresso para sua vida psíquica. Aberastury em suas considerações finais afirma que Verônica não apresentou recordações devido sua intensa regressão transferencial e que sua neurose apareceu aos nove meses, apresentando dificuldade respiratória, estranho ronco e fobias múltiplas, período que coincidem com o aparecimento dos dentes e do começo do caminhar. Contudo, apenas com mais análise é que seria possível o surgimento na memória e o encontro dos fatos exteriores desencadeadores ocorridos nessa fase de sua vida. Com o passar do tempo foi compreendido que em Verônica estavam confundidos tempo e espaço e que a ideia da viagem (viajava para outra cidade com a mãe para fazer o tratamento), e da união dos pais não estavam inter-relacionados, como também não estavam o passado, o presente, e o futuro. Nota-se, no final da análise, maior maturidade emocional de Verônica, demonstrando a grande vantagem da psicanálise com crianças em poder proporcionar uma modificação subjetiva profunda. Para Klein (1991), a análise contribui em muito para fortalecer o ego ainda frágil da criança e o ajuda a desenvolver-se, aliviando o peso excessivo do superego, que o pressiona muito mais severamente do que ao ego dos adultos. CONSIDERAÇÕES FINAIS ABERASTURY, A. Psicanálise da Criança: teoria e técnica. Porto Alegre: Artmed, 1982. KLEIN, M. Obras Completas de Melanie Klein – Inveja e gratidão e outros trabalhos. 1946 – 1963. Rio de Janeiro:Imago, 1991. SEGAL, H. Introdução à obra de Melanie Klein. Rio de Janeiro: Imago, 1975. ZIMERMAN, D. E. Vocabulário contemporâneo de psicanálise. Porto Alegre: Artmed, 2008. REFERÊNCIAS
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