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ISSN: 2358-6923 111 A PRODUÇÃO E A COMERCIALIZAÇÃO AGROECOLÓGICA COMO FERRAMENTAS PARA MATERIALIZAÇÃO DA CONCEPÇÃO DE REFORMA AGRÁRIA POPULAR: A EXPERIÊNCIA DA CSA ASSENTAMENTO RODEIO Fernanda Aparecida Matheus Doutoranda em Geografia, FCT/UNESP. Bolsista CAPES. Eng. Agrônoma, UFRRJ. Especialista em Estudos Latino-americanos, UFJF/ENFF. Mestre em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe, IPPRI-UNESP/ENFF. Marisa de Fátima da Luz Agricultora assentada. Pedagoga, UERGS. Especialista em Educação do Campo e realidade brasileira, UFPR. Especialista em Educação do Campo e Agroecologia, USP. Resumo: A concepção de Reforma Agrária Popular é uma construção teórica e política, pautada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, parte da análise da imprescindibilidade da reforma agrária no país e da constatação da impossibilidade, na atualidade, da sua realização nos moldes clássicos, em virtude da desfavorável correlação de forças política na sociedade. Este artigo se propõe a discutir a experiência da “Comunidade que Sustenta a Agricultura” (CSA) do assentamento Rodeio, município de Presidente Bernardes, no contexto do debate da Reforma Agrária Popular e das iniciativas de comercialização que se inserem no conceito da agroecologia e de circuitos curtos de comercialização. Foi desenvolvido a partir de revisão bibliográfica e trabalho de campo, com entrevista coletiva semiestruturada. Palavras-chave: Circuitos curtos de comercialização. CSA. Agroecologia. Reforma Agrária. Introdução A concepção de Reforma Agrária Popular é uma construção teórica e política elaborada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, expressa no programa agrário aprovado no VI Congresso Nacional, realizado em fevereiro de 2014. Propõe um programa de reforma agrária pautado na disputa pela terra, pelos meios de produção, pelo território, pela tecnologia e pelos bens da natureza, como forma de enfrentamento ao modelo do capital para a agricultura. Os enfrentamentos com o capital, e seu modelo de agricultura, partem das disputas das terras e do território. Mas, se ampliam para as disputas sobre o controle das sementes, da agroindústria, da tecnologia, dos bens da natureza, da biodiversidade, das águas e das ISSN: 2358-6923 112 florestas (MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA, 2014, p.32). O programa de Reforma Agrária Popular, propõe transformações estruturais na sociedade, a democratização da terra e dos meios de produção e o enfrentamento ao projeto hegemônico do capital para a agricultura (CALDART, 2016; FRIGOTTO, 2016). Trata-se de uma proposição que se insere no contexto do debate proposto por Raffestin (1993) da disputa pelo território e dos bens da natureza, incluindo os alimentos, como elemento da disputa de poder. Efetivamente, a concepção de Reforma Agrária Popular representa o esforço em discutir e propor as bases para a construção de um projeto societário, fundamentado pelas necessidades classe trabalhadora, no tocante à apropriação, gestão e uso da terra, do território e dos bens da natureza. Logo coloca a necessidade de construir metodologias e ferramentas que ampliem o diálogo com a sociedade, visando à articulação de lutas e ações conjuntas (THOMAZ JÚNIOR, 2008; CALDART, 2016; CALDART, 2019; FRIGOTTO, 2016). A fundamentação teórica e prática que tem sido construída para sustentação da Reforma Agrária Popular, prima pela defesa do alimento como direito humano não submetido à lógica do lucro. Nesta perspectiva a agroecologia tem sido afirmada como princípio orientador da matriz produtiva e tecnológica. Como forma de enfrentar os impérios agroalimentares (VAN DER PLOEG, 2008) e produzir alimentos e outras matérias-primas essenciais para a satisfação das necessidades humanas fundamentais (MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA, 2014; CALDART, 2016; CALDART, 2019; MARTINS, 2018). Com base no aproveitamento do potencial da natureza, em produzir energia através da fotossíntese (MACHADO; MACHADO FILHO, 2014). Para Caldart (2016) e Frigotto (2016) a tarefa de implementar a agroecologia não pode se restringir aos trabalhadores do campo. Para os autores, é preciso que os trabalhadores urbanos, assumam a agroecologia como parte do projeto de emancipação da classe. Até porque, os trabalhadores urbanos sofrem de forma direta as consequências do processo de mercantilização dos alimentos. São estes e estas trabalhadores (as) que nas cidades consomem alimentos de má qualidade, contaminados por agrotóxicos e adquiridos a preços elevados. Os autores Machado e Machado Filho (2014), Primavesi (2016) e Bezerra et al. (2018), nos permitem interpretar a agroecologia como um conjunto de princípios e práticas que se vinculam ao bem-estar da humanidade, de forma que transcende a questão da alimentação. Pois, contribuem com aspectos da recuperação de áreas ISSN: 2358-6923 113 degradadas e da conservação dos solos, das águas e da biodiversidade e permite a recomposição da vegetação nativa. Associado ao debate mais amplo de projeto societário, o programa de Reforma Agrária Popular, reafirma a necessidade de criar as condições para a garantia da qualidade de vida das famílias assentadas. Isso tanto em termos de acesso a serviços essenciais, como saúde, educação, cultura e lazer, quanto no aspecto da infraestrutura produtiva e geração de renda (MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA, 2014). No contexto da geração de renda, o apontamento se dá no sentido de fortalecer as formas associativas, cooperativas e comunitárias na produção, na agroindustrialização e na comercialização. Organizar a produção e comercialização com base em todas as formas de cooperação agrícola, como mutirões, formas tradicionais de organização comunitária, associações, cooperativas, empresas públicas e empresas sociais (MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA 2014, p.42). As análises de Borges e Nunes (2017); Souza, Michelotti e Ferreira (2017); Chã et al. (2017) destacam a pertinência do papel que o desenvolvimento de formas de comercialização que privilegiam o contato direto entre o produtor e o consumidor cumprem na dinâmica de disputa pelo território travada entre os movimentos socioterritoriais e o agronegócio (FERNANDES, 2000). De acordo com Borges e Nunes (2017) as iniciativas de comercialização da produção agroecológica dos assentamentos de forma direta, com o contato entre produtor e consumidor, eliminam a especulação exercida pelos atravessadores na revenda dos alimentos. Proporciona ao consumidor, acesso a alimentos de boa qualidade a preço acessível, valoriza a produção e o trabalho dos produtores e contribui para a elevação da autoestima dos camponeses. Se constituem, assim, em ferramentas de combate ao modelo do capital e de disputa pela terra, controle das sementes, tecnologia, biodiversidade e bens da natureza. Ou em outras palavras, consiste em instrumental que contribui para a materialização da concepção de Reforma Agrária Popular. Para Bezerra et al. (2018); Franquez et al. (2018), as experiências de comercialização de produtos agroecológicos, oriundos de assentamentos, no estado de São Paulo demonstram um significativo esforço das famílias assentadas em produzir e disponibilizar para autoconsumo e para a sociedade, alimentos saudáveis e a preços acessíveis. ISSN: 2358-6923 114 Dentre as experiências de comercialização baseadas no princípio de contato direto entre produtores e consumidores no estado de São Paulo, encontra-se o sistema de economia associativa CSA (Comunidade que sustenta a agricultura). Que integra a definição de circuitos curtos de comercialização, sendo caracterizado pela organização de consumidores com a finalidade de apoiar agricultoresde base ecológica e contribui para a produção de alimentos sem agrotóxicos, a valorização do trabalho camponês e a conservação do meio ambiente, onde as responsabilidades, riscos e benefícios da produção são compartilhados por produtores e consumidores “coprodutores” (FERREIRA NETO et al., 2018) (DAROLT; LAMINE; BRANDEMBURG, 2013). Uma das iniciativas de CSA em áreas de assentamentos está sendo desenvolvida pelas famílias do assentamento Rodeio, localizado no município de Presidente Bernardes, região do Pontal do Paranapanema. Experiência foco da discussão proposta por este trabalho, procurando refletir sobre a produção e a comercialização da produção agroecológica como instrumento para o fortalecimento das lutas pela terra e da materialização da concepção de Reforma Agrária Popular. A metodologia utilizada para a construção deste artigo baseou-se em revisão bibliográfica, observação participante e realização de entrevista coletiva semiestruturada. Tal opção se fundamenta na tentativa das autoras em debater o assunto a partir do discurso coletivo das famílias assentadas participantes da CSA. A realização da entrevista se deu a partir de uma reunião, articulada especificamente para este fim, em que os membros assentados (as) da CSA: Claudecir A. da Silva, Lúcia H. S. Xavier, José Aparecido G. Maia e Marisa F. da Luz foram solicitados a relatar a trajetória de lutas que deu origem esta comunidade, o processo de discussão e organização da produção agroecológica e a comercialização na modalidade CSA, no assentamento Rodeio. Também, fez se a opção, em comum acordo com os membros assentados(as) da CSA, pela elaboração conjunta do texto com uma das assentadas que participa diretamente da construção da experiência. Assim, identificamos na experiência de produção e comercialização através do CSA, no assentamento Rodeio, espaços de produção e autoconsumo de uma diversidade de alimentos saudáveis, demonstrando uma condição de retomada de novas relações socioambientais, de sociabilidade e de viabilidade econômica e assim contribuindo para o processo de materialização da reforma agrária popular. Cenário da luta pela terra na região do Pontal do Paranapanema: a conquista do assentamento rodeio em Presidente Bernardes/SP ISSN: 2358-6923 115 A construção desta sessão é resultado do relato da entrevista semiestruturada coletiva51, em diálogo com autores que debatem a questão agrária na região. Buscando enfatizar os aspectos históricos sobre o quadro da luta pela terra no Pontal do Paranapanema e o processo de consolidação do Assentamento Rodeio no município de Presidente Bernardes. O assentamento Rodeio, localizado no município de Presidente Bernardes, criado pelo governo do estado de São Paulo em 1997, com 65 famílias, ocupa área de 1.861,39 hectares. Na década de 1990 outros sete assentamentos foram instalados no município: Água Limpa I, Estância Palú, Santa Eudóxia, Santo Antonio, Quatro Irmãs, Água Limpa II e Florestan Fernandes. Segundo Miralha (2006) a implantação dos assentamentos provocou expressivas modificações na paisagem do município. A movimentação de pessoas e a diversidade de plantações e criações, quebrou a monotonia da paisagem conformada pelo latifúndio. O município atualmente com população de 13.570 pessoas (BRASIL, [2019]), de acordo com dados do censo demográfico de 2000 apresentou dados demonstrando ligeiro crescimento populacional Miralha (2006). Segundo o autor, a implantação dos assentamentos no município impactou a dinâmica populacional, dinamizou a economia local pelo aumento do número de consumidores no comércio e pela colocação em circulação de recursos, provenientes das linhas de créditos e destinadas a construção de habitações e infraestrutura produtiva. As famílias assentadas na fazenda Rodeio, participaram da ocupação que deu origem ao acampamento Taquaruçu, em outubro de 1995, no município de Sandovalina. Destas, foram selecionadas 65 famílias, que se deslocaram e montaram acampamento na fazenda Rodeio, em 10 de março de 1997. Já em 20 de setembro de 1997, inicia-se o parcelamento da área e a ida das famílias para os lotes. Lotes com tamanho total entre 17 e 20 hectares, sendo que as famílias podiam optar por residir em uma parcela do lote localizada na Agrovila ou não. Neste sentido foram apresentadas duas propostas de tamanho de lotes na agrovila – de 800 m2 e 10.000m2. A maioria das famílias optaram por lotes com tamanho de 10.000m2 (1 hectare). Porém as distâncias dos lotes de moradia do lote de plantio, associado a falta de infraestrutura nos lotes da agrovila, como falta de energia elétrica, fizeram com 51 Entrevista realizada com 4 membros assentados(as) da CSA Rodeio, reunidos(as) em 05 de outubro de 2019, no assentamento Rodeio. Reunião articulada especificamente para este fim, com duração de 4 horas. ISSN: 2358-6923 116 que muitas famílias desistissem da agrovila e se mudassem definitivamente para o lote de cultivo. A criação do assentamento Rodeio é resultado da intensificação dos processos de lutas pela terra no Pontal do Paranapanema na década de 1990. Compõe o quadro de conflitos e disputas territoriais em torno das terras devolutas na região. Para Leite (1981) o processo de ocupação do território da região do Pontal do Paranapanema tem como ponto central a ocupação ilegal e irregular de terras devolutas, com a legitimação da posse e da propriedade de grandes extensões, mediante processo de grilagem. Um modelo fundado na exploração e expulsão das populações pobres dos seus territórios, excluindo-as da posse da terra resulta na conformação do latifúndio (FELICIANO, 2007). Diante desse contexto histórico, a partir da década de 1990, começa a ocorrer uma ofensiva da luta pela terra na região. Neste período, o MST intensifica suas ações no Pontal do Paranapanema. Através de massivas ocupações, os trabalhadores sem terras, disputam grandes extensões de terras e exigem do governo estadual a regularização das terras públicas devolutas. A década de 1990 é marcada pelos conflitos entre trabalhadores sem terras e grileiros, decorrência da organização de grandes acampamentos, como é o caso do acampamento Taquaruçu, de onde se originou o grupo que ocupou a fazenda Rodeio, que chegou a ter em torno de 600 famílias, que aos poucos foram sendo distribuídas em outras ocupações e conquistando assentamentos. A espacialização e territorialização do MST na região, questiona a estrutura fundiária e a grilagem de terras e produz intensos conflitos e disputas territoriais. Ao ponto do Pontal se tornar um dos principais focos de disputas entre o MST e latifundiários, no Brasil. E ser palco da criação da União Democrática Ruralista - UDR, marcando o auge da contraofensiva do latifúndio ao processo de luta pela terra e reforma agrária (SOBREIRO FILHO, 2012). A intensificação das lutas pela terra no Pontal, segue a dinâmica das lutas nacionais. Como podemos observar no gráfico a seguir, a década de 1990 se configura como o período de auge das ocupações de terras, no Pontal e no país. ISSN: 2358-6923 117 Figura 1: Gráfico comparativo entre o número de ocupações no Brasil no Pontal, período de 1988-2013 Fonte: Boletim Dataluta 2012 (2013). Organização: MATHEUS, F. A.; LUZ, M. F. (2019). O gráfico a seguir, figura 3, destaca os anos em que houve maior número de assentamentos criados no país. Se comparado com o gráfico anterior, conclui-se que em certa medida há coincidência entre o período de intensificação das ocupações de terras e o período em que o maior número de assentamentos são criados. Figura 3: Número de assentamentos criados no Brasil, 1988-2013 Fonte: Boletim Dataluta 2012 (2013). Organização:MATHEUS, F. A.; LUZ, M. F. (2019). Uma das interpretações possíveis do que demonstra os dois gráficos analisados anteriormente, é que há uma relação de mão dupla entre a intensificação do número de ocupações e a criação de assentamentos. De tal modo que o maior número de ocupações força a ação do Estado, criando assentamentos. E por sua vez a criação de novos assentamentos incentiva a organização de novos acampamentos. Este aspecto é relevante para a discussão da Reforma Agrária Popular, pois coloca o desafio de construir assentamentos viáveis social, ambiental e ISSN: 2358-6923 118 economicamente, que favorecem o surgimento de novos acampamentos, que vão contribuir para pressionar o Estado a criar novos assentamentos. Aí reside a contribuição da agroecologia e da comercialização que privilegia o contato direto entre produtor e consumidor, os denominados circuitos curtos de comercialização. Agroecologia e circuitos curtos de comercialização e o processo de construção da CSA Assentamento Rodeio A constituição da CSA em que participam 3 famílias do assentamento Rodeio, segundo depoimentos dos(as) agricultores(as) membros52, é resultado da confluência de vários fatores. Os quais serão descritos ao longo do tópico que segue. Para os(as) entrevistados(as) o surgimento da CSA deve ser analisado no contexto das lutas pela terra no Pontal, do histórico da cooperação agrícola e das práticas agroecológicas desenvolvidas pelo MST. A discussão sobre a organização social e produtiva das famílias no assentamento, remete ao processo de organização das famílias no acampamento. A afirmação é que o grupo de discussão do acampamento se transformou no organizador da produção no assentamento. Em 1997 as famílias recebem, através da Cocamp (Cooperativa de Comercialização e Prestação de Serviços dos Assentados do Pontal), a doação de um trator equipado com implementos agrícolas. Para administração do trabalho realizado pelo trator, se constitui um coletivo, que será transformado em 2000 na Associação APAR (Associação de Produtores Assentados da Rodeio). Atuante até os dias atuais. De acordo com a entrevista a produção agrícola e pecuária é desenvolvida individualmente nos lotes familiares. E a APAR atua na perspectiva de incentivar a cooperação, através da prestação de serviços e comercialização. Surgiu como um núcleo da Cocamp, que pretendia atuar também na comercialização e industrialização. Na última década, a associação atuou operacionalizando projetos do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Atualmente tem trabalhado na implantação de um projeto de agroindustrialização – unidade de beneficiamento de alimentos minimamente processados. 52 Entrevista realizada com 4 membros assentados(as) da CSA Rodeio, reunidos(as) em 05 de outubro de 2019, no assentamento Rodeio. Reunião articulada especificamente para este fim, com duração de 4 horas. ISSN: 2358-6923 119 Em 2009 a APAR dá início ao 1º projeto do PAA, com participação de 8 famílias. Em 2014 amplia a atuação no programa, atendendo 70 famílias do assentamento Rodeio e assentamentos vizinhos. Para os(as) entrevistados(as) o PAA fez surgir a olericultura como alternativa ou complemento de renda à produção leiteira, no assentamento Rodeio. O leite foi a linha de produção que se estabeleceu nos assentamentos na região do Pontal, devido às condições de solos e de clima. Entretanto a cooperativa regional - Cocamp, não conseguiu viabilizar o projeto de laticínio, como proposto. Com o tempo as famílias começaram a sentir dificuldades em se viabilizarem economicamente com a produção de leite. Os custos permanecem constantes, porém com tendência decrescente das receitas. Com o PAA a olericultura representava uma renda segura e não exige grandes investimentos. Nos últimos 2 anos, principalmente, as modificações sofridas pelo programa PAA, as dificuldades em estabelecer relações com as prefeituras para operacionalização do PNAE e os cortes de recursos para o apoio à comercialização institucional provocaram a necessidades das famílias assentadas a procurar outras formas de comercialização. Fazendo crescer o debate e a construção de experiências baseadas nos princípios dos circuitos curtos de comercialização, dentre os quais se destaca a CSA. Com relação a CSA, apesar da participação de apenas três famílias na experiência no momento atual. Segundo a compreensão dos(as) entrevistados(as), tal iniciativa compõe o quadro de ações da APAR, que está empenhada em difundir o debate da agroecologia e em buscar alternativas de comercialização para o conjunto das famílias do assentamento Rodeio. As primeiras conversações sobre a possibilidade da produção orgânica no assentamento, surgiram de contatos da APAR com instituições de assistência técnica e extensão rural da região - Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (CATI) e Fundação Instituto de Terras do estado de São Paulo (ITESP). A origem da CSA está inserida neste contexto de discussão da produção orgânica e agroecológica no assentamento. Assim, as famílias que já vinham discutindo sobre a produção orgânica e agroecológica, tiveram contato com um produtor orgânico, que tem uma loja em Presidente Prudente para comercializar sua produção própria, mas também adquire a produção de terceiros. O interesse da loja de produtos orgânicos, em adquirir a produção das famílias assentadas, encontrou dificuldades no fato das famílias não terem produção em escala e com certificação orgânica. Como forma de fortalecer a produção das ISSN: 2358-6923 120 famílias, a solução encontrada foi entrar em contato com a CSA Brasil, para desenvolver uma experiência de comercialização sem a necessidade da certificação orgânica por empresas certificadoras. Segundo relato da entrevista, 40 famílias participaram do início das discussões sobre a produção orgânica. Conforme o debate foi se aprofundando, o número de famílias participantes decaiu. A princípio 7 famílias assumiram o compromisso da produção orgânica, porém após as visitas aos lotes e o estabelecimento dos procedimentos necessários para a produção, apenas 4 famílias aceitaram a proposta de construção de CSA. Atualmente, apenas três continuam construindo a experiência. Para a criação da CSA foram realizadas reuniões entre as famílias assentadas, representantes da CSA Brasil e pessoas da comunidade urbana de Presidente Prudente interessadas em participar da experiência. Outra ação realizada foram as visitas, por membros da CSA Brasil e interessados em se tornarem coprodutores(as) aos lotes das famílias assentadas interessadas. Na concepção da CSA, coprodutores(as) é a denominação dada aos consumidores (FERREIRA NETO et al., 2018), (DAROLT; LAMINE; BRANDEMBURG, 2013), que se reivindicam não apenas como consumidores, mas como corresponsáveis pelo processo de produção. No início do processo foram 23 pessoas interessadas em participar na condição de co-produtores. Número que se ampliou e oscilou entre 36 e 56 nos três primeiros meses. Com o amadurecimento das conversas, várias pessoas desistiram do processo e outras se integraram. Atualmente o número de coprodutores(as) oscila entre 40-45 pessoas/semana. Segundo os(as) entrevistados(as), nem todas as pessoas que aderem inicialmente a proposta conseguem entender os aspectos relevantes para o sucesso da iniciativa. Como a compreensão da sazonalidade da produção agrícola e a impossibilidade de produzir determinados produtos em função das condições de solo e clima. A experiência da CSA Presidente Prudente completou 1 ano em setembro de 2019. Dentre os coprodutores participantes são médicos, psicólogos, nutricionistas,pequenos empresários. Além do público que compõe o quadro de coprodutores ser diversificado no que se refere às distintas profissões, também há diversidade quanto ao aspecto dos posicionamentos político partidário. O que segundo, os(as) entrevistados(as) não representa um limite a proposta, pelo contrário representa um potencial para dialogar com diferentes setores da sociedade sobre a questão da reforma agrária e das terras devolutas no Pontal. ISSN: 2358-6923 121 Num primeiro momento havia receio de pautar o tema da reforma agrária, mas hoje já se tem momentos de conversas, ainda pontuais e espontâneos sobre reforma agrária e terras devolutas. A relação campo-cidade pauta a questão da produção de alimentos saudáveis, abre espaço para acreditar que é possível apresentar a luta pela reforma agrária e a produção de alimentos. É visível a preocupação da sociedade com as atuais liberações de agrotóxicos (ENTREVISTA). O funcionamento prático da CSA se dá da seguinte forma. Cada coprodutores contribui com uma cota mensal no valor de R$ 150,00 - parte deste valor R$ 5,00 fica para compor um fundo, o restante é rateado entre as famílias produtoras. Assim, cada família de agricultores(as) participante recebe mensalmente, em torno de R$ 1.600,00 a R$ 2.000,00. As entregas são realizadas semanalmente, em cada entrega há o compromisso dos agricultores de levar 2 tipos de folhosas, 4 legumes – incluindo tubérculos, 1 tipo de tempero, 1 tipo de fruta e 1 proteína animal (preferencialmente ovos). Atualmente são entregues em torno de 15 tipos diferentes de alimentos semanalmente, com estimativa de entrega de aproximadamente 300 quilos em cada. Inicialmente havia um controle da produção entregue, este procedimento foi abandonado. Mas por considerá-lo um instrumento importante para avaliação do processo, se considera a possibilidade de retomá-lo. A partir da entrevista, pode-se verificar uma expressiva diversidade de alimentos produzidos e entregues. Os coprodutores se beneficiam da produção de mais de 20 tipos de alimentos diferentes. É importante frisar que a disponibilidade dos alimentos depende de aspectos relacionados à sazonalidade. Logo há uma diferenciação nas espécies vegetais disponíveis ao longo do ano. Quadro 1: Relação de alimentos produzidos e entregues pelos agricultores da CSA Rodeio Olerícolas - frutos Olerícolas - folhosas e flores Frutas Raízes e tubérculos Temperos abóbora alface mamão mandioca cebolinha abobrinha almeirão banana cenoura salsinha tomate cereja couve limão rabanete coentro berinjela couve flor manga batata doce hortelã maxixe brócolis abacate beterraba ISSN: 2358-6923 122 pimentão rúcula jabuticaba amora acerola Fonte: Entrevista com agricultores. Organização: MATHEUS, F. A.; LUZ, M. F. Para os(as) agricultores(as) que participam da experiência, a CSA é uma possibilidade de apresentar a produção de alimentos saudáveis para os coprodutores, que passam a conhecer o modo de produção de alimentos e o modo de vida no assentamento. Se estabelece, assim um compromisso entre quem está produzindo e quem está consumindo. “As visitas dos coprodutores e seus familiares, aos lotes de produção é uma experiência importante para que conheçam o assentamento. É uma possibilidade de construir processos de intercâmbio e desenvolver outras atividades” (ENTREVISTA). A entrada de novos membros agricultores(as) na CSA está condicionada ao compromisso de construir um processo de produção com bases na agroecologia. De acordo com os(as) entrevistados(as) representa uma espécie de “prêmio” para quem acredita na produção agroecológica. Os desafios para a materialização da reforma agrária popular e a CSA Assentamento Rodeio A entrevista realizada com os(as) assentados(as)53 que estão construindo a experiência da CSA Rodeio, aponta alguns elementos para pensar os desafios para a materialização da reforma agrária popular, de modo especial, nos aspectos referentes à organização da produção nos assentamentos, a geração de renda para as famílias assentadas e a relação com a sociedade. A realidade muitas vezes dificulta a opção pela agroecologia, nem sempre existe tecnologias e insumos disponíveis. Os assentamentos são instalados em áreas degradas e em se tratando da região do Pontal, os solos são arenosos e de baixa fertilidade e as altas temperaturas é outro fator que converge como fator limitante para a produção agrícola. Entretanto, há que se ressaltar que no assentamento Rodeio, as famílias já evitavam o uso de agrotóxicos, desde o período em que a Associação organizava as entregas para os programas de comercialização institucional. E “cada 53 Entrevista realizada com 4 membros assentados(as) da CSA Rodeio, reunidos(as) em 05 de outubro de 2019, no assentamento Rodeio. Reunião articulada especificamente para este fim, com duração de 4 horas. ISSN: 2358-6923 123 vez mais as pessoas estão percebendo as possibilidades de fazer diferente, se percebe uma mudança de conceito” (ENTREVISTA). Assim, o desafio é conciliar a realidade, os aspectos da paisagem com o compromisso político e a vontade em produzir agroecologicamente. A CSA, a exemplo da produção agroecológica, de modo geral, envolve toda família. Há uma série de tarefas exigem mais de uma pessoa para sua execução. No caso da CSA, além do volume de trabalho na produção, há muito trabalho também na organização das entregas, que envolvem a colheita, a limpeza e o acondicionamento dos alimentos. A compreensão do conjunto da família é importante, as expectativas da família em relação ao retorno econômico e a participação familiar na organização do trabalho condicionam a opção pela agroecologia. As famílias que têm resistência a produção agroecológica, são influenciadas pela ideologia dominante, suas necessidades são pautadas pela expectativa de um padrão de vida capitalista. Não há incentivos estatais, falta políticas públicas de apoio. Por exemplo, o Estado poderia realizar a certificação da produção orgânica e/ou agroecológica e não deixar este procedimento tão relevante para a comercialização da produção nas mãos das empresas certificadoras. Os grupos de produção agroecológica mantidos na base da confiança mútua, são importantes, um sabe e avaliza que os outros membros do grupo não usam agrotóxicos. Mas apresenta o limitante de condicionar a comercialização a determinados espaços, como feiras e entregas diretas, não permite a venda em lojas de produtos especializados. O que representa um empecilho para que outros(as) assentados se interessem pela produção agroecológica. As CSAs são alternativas de comercialização importantes, especialmente em regiões, como a que está localizado o assentamento Rodeio, distante de grandes centros consumidores. Porém a questão da escala de produção é um limite. Para os(as) assentados(as) a CSA contribui para o planejamento e oferece condições para a produção agroecológica, sendo uma proposta que prima pelo cultivo de espécies mais adaptadas à região, menos exigentes em insumos. E leva em consideração o aspecto da sazonalidade, incentivando o consumo de alimentos da época. O diferencial da construção das experiências de CSA no contexto da reforma agrária, está na coletividade, pois não se adota a lógica de manutenção de um agricultor individualmente. Outro diferencial está relacionado ao tamanho da unidade da produção. De modo geral, as outras experiências de CSA são organizadas a partir ISSN: 2358-6923 124 unidades de produção menores que os lotes destinados às famílias nos assentamentos. Considerações finais A Reforma Agrária Popular representa o esforço do MST de manter empauta o debate sobre a questão agrária e as lutas pela terra, em uma conjuntura desfavorável e com desigual correlação de forças entre a classe trabalhadora e o capital. Com exceção de um breve período na década de 1990, em que o Estado se sentiu pressionado, pelos processos de luta que ecoaram na sociedade, a realizar um processo de distribuição de terras, com a criação de assentamentos, as famílias de trabalhadores rurais sem terras se deparam com a inoperância e o descaso estatal. Em alguns casos, inclusive, o Estado se apresenta convivente com os processos de apropriação ilegal e irregular de terras públicas, mediante a prática da grilagem, como é o caso do Pontal do Paranapanema (SOBREIRO FILHO, 2012). Os princípios da reforma agrária popular pautada pela análise da necessidade de conquistar o apoio da sociedade com vistas a construção de um projeto societário baseado na democratização da propriedade da terra e dos meios de produção, coloca a reforma agrária como instrumento de luta pela transformação social. Ou seja, a luta pela reforma agrária se apresenta como um dos pontos centrais da luta de classes e como meio para as melhorias nas condições de vida, não somente para os trabalhadores rurais, mas do conjunto da classe trabalhadora. Tendo como bandeira de luta a produção e o acesso a alimentação saudável. A agroecologia como forma de garantir a produção de alimentos saudáveis e acessíveis aos trabalhadores urbanos, questiona o modelo produtivo que é base do agronegócio. Um modelo de produção baseado na degradação humana e ambiental. Com a adoção de práticas, como desmatamentos, uso intensivo de agrotóxicos, dentre outras que intoxicam os seres humanos e o ambiente. As diversas práticas de produção e comercialização de produtos agroecológicos, desenvolvidas nas áreas de assentamentos, com a participação de outros setores da sociedade, que privilegiam o contato direto entre produtores e consumidores e a corresponsabilização dos consumidores pelo processo de produção dos alimentos, como é o caso da CSA, ainda são pontuais e enfrentam uma série de limitações e desafios. Como demonstrado ao longo deste trabalho de análise da experiência da CSA do assentamento Rodeio. ISSN: 2358-6923 125 Entretanto, tais iniciativas relacionadas a produção agroecológica e aos circuitos curtos de comercialização compõem o quadro de ações no contexto da proposição da Reforma Agrária Popular e materializam a concepção do programa político do MST. A ampliação destas iniciativas o debate com outros segmentos da sociedade e afirma a reforma agrária, não apenas como uma política corporativa, que atende aos interesses de um segmento social, mas uma política universal capaz de influenciar na qualidade de vida do conjunto da sociedade. A produção agroecológica e a corresponsabilização dos consumidores pelo processo de produção de alimentos saudáveis. Contribui do ponto de vista ambiental para a conservação e recuperação de solos, água e biodiversidade. Do ponto de vista econômico, para a geração de renda para as famílias assentadas e acesso da população urbana aos alimentos com preços mais acessíveis. E do ponto de vista político-social constrói outras formas de sociabilidade, a partir do contato direto entre trabalhadores rurais e urbanos. Referências BEZERRA, L.P; FRANCO, F.S.; ESQUERDO, V.F.S.; BORSATTO, R. Participatory construction in agroforestry systems in family farming: ways for the agroecological transition in Brazil. 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