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124 CIRCUITOS CURTOS DE COMERCIALIZAÇÃO E OS DESAFIOS PARA A TERRITORIALIZAÇÃO DA REFORMA AGRÁRIA POPULAR Fernanda Aparecida Matheus17 Carlos Alberto Feliciano18 RESUMO: O avanço do agronegócio e suas consequências para a saúde humana e ambiental recoloca para a sociedade brasileira o debate sobre o papel que o uso, a posse e a propriedade da terra e dos bens da natureza cumprem para a produção e reprodução da vida. Este trabalho tem como objetivo discutir como a concepção de Reforma Agrária Popular, as ações que veem sendo desenvolvidas pelos movimentos socioterritoriais e os desafios enfrentados para sua territorialização se inserem neste contexto. A elaboração deste se deu a partir de revisão bibliográfica e da sistematização de entrevistas realizadas no âmbito da pesquisa de doutorado em andamento, intitulada “Circuitos curtos de comercialização e suas contribuições ao processo de espacialização e territorialização da reforma agrária popular e da agroecologia no estado de São Paulo”. PALAVRAS-CHAVE: Sistemas alimentares; Soberania Alimentar; Agroecologia; Aliança campo- cidade. INTRODUÇÃO O debate acerca dos desafios da territorialização da Reforma Agrária Popular está relacionado com aspectos sociais, econômicos e ambientais em múltiplas escalaridades e dimensões abrangendo desde a escala do campo de cultivo, da unidade de produção, que no caso das famílias assentadas é o lote, até chegar à organização dos sistemas alimentares em escala global. Compreendendo a Reforma Agrária Popular como um processo político- organizativo dinâmico e dialético que se materializa em distintas escalaridades e dimensões, tendo como fundamento promover transformações estruturais no âmbito da sociedade, que ao enfrentar condicionantes históricas e conjunturais busca construir instrumentos e metodologias de ação que possibilitem angariar o apoio da população para fortalecer-se enquanto projeto político na disputa com o agronegócio por terra, recursos, espaços e territórios 17 Doutoranda em Geografia, UNESP-FCT, bolsista CAPES, participante do CEGET-Presidente Prudente. Engenheira agrônoma, mestre em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe. Email: Fernanda.matheus@unesp.br 18 Doutor em Geografia, pesquisador III do Departamento de Geografia UNESP – Presidente Prudente. Email: carlos.feliciano@unesp.br 125 (MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA, 2014), podemos interpretar que os desafios para a territorialização das experiências de circuitos curtos de comercialização em si e os desafios para a viabilização econômica das famílias assentadas compõem parte dos desafios para a territorialização da Reforma Agrária Popular enquanto projeto político amplo diante da luta de classes. Nosso foco de análise são os circuitos curtos de comercialização, enquanto modalidade de compra, venda e distribuição que privilegia a dinâmica de contato direto entre produtores e consumidores, seja pelo encurtamento das distâncias geográficas entre o ponto de produção do alimento e o ponto de venda aos consumidores e/ou a eliminação de intermediários no processo de comercialização (DAROLT, LAMINE E BRANDEMBURG, 2013). Práticas essas orientadas pelo questionamento ao sistema alimentar submetido à lógica do capital (DAROLT, LAMINE E BRANDEMBURG, 2013; MCMICHAEL, 2016) e pelos princípios da solidariedade, respeito e cuidados com a natureza, valorização do alimento em seus aspectos culturais e políticos, soberania alimentar e afirmação da identidade camponesa (ROVER; LAMPA, 2013; FRANQUES; FRANCO; RISSATO; CARMELO; SIQUEIRA; BUQUERA; ALVARES; NUNES, 2018). Este trabalho compõe parte do projeto de pesquisa em andamento, intitulado “Circuitos curtos de comercialização e suas contribuições ao processo de espacialização e territorialização da reforma agrária popular e da agroecologia no estado de São Paulo” e tem como objetivo refletir sobre os desafios para a territorialização da Reforma Agrária Popular e como estes se concatenam com a construção das iniciativas de circuitos curtos de comercialização, organizadas por famílias acampadas e assentadas e suas organizações. A análise das experiências de circuitos curtos de comercialização envolvendo famílias assentadas e suas organizações no estado de São Paulo nos apontam alguns dos desafios colocados para a territorialização da Reforma Agrária Popular. Com base em relatos de entrevistas realizadas com assentadas e assentados e dirigentes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST nas regiões de Ribeirão Preto, Sorocaba, Pontal do Paranapanema e Promissão elencamos alguns elementos que nos permitem interpretar tais iniciativas, enquanto experimentação prática do discurso que vem sendo construído para 126 fundamentar a concepção de Reforma Agrária Popular e ferramenta para o diálogo com a sociedade. Assim sendo, propomos a sistematização dos desafios em duas categorias, uma se refere aos desafios político-organizativos, ambientais e econômicos internos aos assentamentos e suas organizações. Outra categoria diz respeito aos desafios político-organizativos do MST na relação com a sociedade e outras organizações sociais e políticas, enquanto movimento socioterritorial (FERNANDES, 2000), com atuação e influência em escala local, estadual, nacional e internacional. Apesar da proposição destas duas categorias, com a finalidade de facilitar a sistematização neste trabalho, é preciso ressaltar que os desafios apresentam interfaces que fazem dialogar as tarefas internas nos assentamentos e externas, na relação com a sociedade e na proposição de um projeto político de superação das relações capitalistas de produção. O texto está organizado em três tópicos, além da introdução e das considerações finais. No primeiro tópico, discorremos sobre os desafios internos, ou seja, aqueles relacionados à vida interna e a organização dos assentamentos; no segundo tópico apresentamos o debate sobre os desafios externos, que dizem respeito à relação dos assentamentos e do MST com a sociedade e no terceiro tópico propomos uma síntese dos principais desafios e elencamos algumas ações que convergem neste sentido. DESAFIOS INTERNOS: A CENTRALIDADE DO ASSENTAMENTO PARA A PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO DA VIDA E DE NOVAS RELAÇÕES Os desafios internos são aqueles intrínsecos a organização da vida nos assentamentos enquanto território de lutas e enfrentamentos ao latifúndio e ao agronegócio e de exercício cotidiano na construção de novas práticas e sociabilidades, baseadas no respeito e no cuidado com o ambiente e entres os seres humanos (GASPARIN; WITCEL; SANTOS (2021); MATHEUS; FELICIANO, 2021). E por sua vez, segundo Martins, Nunes e Gasparin (2021) também se constituem em foco de disputas políticas, econômicas e territoriais. Neste contexto, o primeiro desafio interno nos assentamentos diz respeito à permanência nos assentamentos e viabilização econômica das famílias 127 assentadas, com a superação da situação de precariedade a que estão submetidos grande parte dessas unidades territoriais e o acesso a condições de produção e comercialização a preços justos. Havendo, para tanto, necessidade de políticas públicas para o apoio à instalação de infraestruturas, subsídios para a produção agroecológica, agroindustrialização e comercialização e organização de um esquema de logística de escoamento. A organização interna nos assentamentos, a organização do território, o fortalecimento da base social e da coletividade, apresentam-se como fatores fundamentais, assim como a questão administrativa e a busca pelo aperfeiçoamento dos instrumentos e metodologias de planejamento e gestão das iniciativas de circuitos curtos de comercialização. “Pra você desenvolver um processo de comercialização você precisa estar organizado, não é simples, não é fácil e nem é de uma hora paraoutra, então exige um trabalho de organização” (ANGELO DIOGO MAZIN, ASSENTADO E DIRIGENTE DO MST NA REGIÃO DE PROMISSÃO/SP, EM: 05 AGO. 2021). A produção de alimentos saudáveis, através da agroecologia denota um amplo leque de dimensões atinentes à matriz tecnológica e a dimensão da falta de acesso a tecnologias que diminuam a penosidade do trabalho e possibilitem a produção livre de venenos, sem uso de agrotóxicos, adubos químicos e minerais de origem industrial. “As tecnologias produzidas hoje, são tudo para o agronegócio, tudo para monocultura, tudo para o grande capital, enquanto que para a agricultura familiar ainda é muito pouca tecnologia” (JOICE APARECIDA LOPES, ASSENTADA E DIRIGENTE DO MST NA REGIÃO DE PROMISSÃO, EM: 02 JUL. 2021). Bem como da organização interna dos assentamentos e da mobilização das famílias assentadas visando “internalizar do ponto de vista, de que é preciso produzir coisas saudáveis e é preciso mudar o jeito de se produzir” (GILMAR GERALDO MAURO, DIRIGENTE NACIONAL DO MST, EM: 21 MAI. 2021), promover a agroecologia enquanto sistema de produção, de viver e gerar vida, entender os seres humanos como parte do ambiente. Que quando você produz com a agroecologia, você gera vida em todos os sentidos, né. Quando você produz, a maneira de você viver, de lidar com a terra, de lidar com os alimentos, a produção consorciada, que você mexe na terra. E quando você começa a mexer na terra, então, tem várias vidas 128 ali, né. Que nós depende deles para poder gerar nossa produção. Então, isso você está ajudando também no sistema de produção, porque você também está mexendo, tem muitos seres vivos na terra (NIVALDA ALVES DE JESUS, ASSENTADA EM RIBEIRÃO PRETO, EM: 28 SET. 2021). Para tanto se sente a necessidade da sistematização das experiências, o aperfeiçoamento da práxis mediante o esforço de sistematização e teorização das experiências pregressas e em andamento, a valorização dos sujeitos envolvidos e a ampliação dos espaços e momentos de debates, experimentação, formação e capacitação das famílias. “Hoje a gente fala muito de agroecologia, porque nós participamos desses debates, porque a gente vivenciou, mas tem vários lugares que infelizmente não acompanham esse debate, não participam dessas atividades” (JOICE APARECIDA LOPES, ASSENTADA E DIRIGENTE DO MST NA REGIÃO DE PROMISSÃO, EM: 02 JUL.2021). As experiências de produção agroecológica e circuitos curtos de comercialização também são encaradas como dinâmicas que favorecem a construção de novas formas de sociabilidade, modificando as relações entre as pessoas, entre as pessoas e a coletividade e dos seres humanos com a natureza. De tal modo, que estas têm sido pautadas como ferramentas para incentivar a participação das mulheres e jovens nos processos produtivos, econômicos e decisórios e na vida comunitária, além de contribuir para romper com as desigualdades e opressão de gênero e de gerações. Na relação com seres humanos, essa questão da mulher, da juventude, das minorias, elas sempre estão em alta né, e de entender a juventude na atualidade, numa relação de expropriação de saberes anteriores e como é que traz esses jovens para ter referências nesse campo (MARIA RODRIGUES, ASSENTADA NA REGIÃO DE SOROCABA, EM: 24 SET. 2021). Portanto, elementos centrais que podem inviabilizar uma nova forma de organização popular não dependem exclusivamente de sua organização territorial. Alguns elementos que são e vão desde pautas diretamente ligadas à ausência de políticas públicas que fortaleçam a permanência das famílias, até mesmo o enfrentamento de questões vinculadas a relações de poder como desigualdade de gênero e geração, que são produto e produtores das relações sociais contraditoriamente imputadas pela sociedade capitalista patriarcal. 129 DESAFIOS EXTERNOS: ESTABELECER ALIANÇAS PARA ENFRENTAR O SISTEMA ALIMENTAR DO AGRONEGÓCIO A territorialização de uma concepção de reforma agrária que tem como base o questionamento da mercantilização da terra, dos recursos naturais e dos alimentos e a proposição de uma dinâmica de reprodução social baseada na democratização dos meios de produção e no estabelecimento do princípio do cuidado e do respeito na relação sociedade-natureza impõe desafios de caráter político, social, econômico, ambiental e ético (MARTINS; NUNES; GASPARIN, 2021). Exige um reposicionamento não apenas das camponesas e camponeses e suas organizações, mas da classe trabalhadora como um todo (THOMAZ JR. 2010). Deste modo, os desafios referentes à territorialização da Reforma Agrária Popular, portam uma dimensão externa a organização da vida e da produção nas áreas de assentamentos que relaciona a uma série aspectos da vida da em sociedade, contexto em que os circuitos de comercialização e a produção agroecológica assumem centralidade. Comercializar a produção das áreas de reforma agrária e romper com a lógica do mercado capitalista, estabelecer outro tipo de relação social entre quem consome com quem produz, dos seres humanos com o alimento e com seu processo de produção. Para as entrevistadas e os entrevistados é imprescindível que a relação não seja entre o comprador/consumidor e a prateleira, é preciso que quem está comprando conheça o processo de produção e as relações socioambientais envolvidas, as condições de trabalho e a organização do território, do uso do solo, da água e aos recursos naturais. Os relatos de entrevistas nos apontam que os desafios externos estão pautados pelo discurso da necessidade de demonstrar para a sociedade o papel da reforma agrária no enfrentamento à fome, na garantia de produção voltada para o abastecimento do mercado interno. a reforma agrária é importante, porque, é ela quem produz alimento, é a agricultura familiar, o pequeno produtor que de fato produz comida. A gente sabe bem, que 70% da comida que vai na mesa do povo é produzida e que o agronegócio ele não produz comida, ele produz commodities 130 (JOICE APARECIDA LOPES, ASSENTADA E DIRIGENTE DO MST NA REGIÃO DE PROMISSÃO, EM 02 JUL.2021). Soma-se a isto a argumentação sobre necessidade de espacializar e territorializar as iniciativas de circuitos de comercialização, como forma de promover o debate com a população urbana, fazer propaganda e articular apoio de outros segmentos da classe trabalhadora à luta pela reforma agrária e as lutas pela superação do modo capitalista de produção, além de incentivar os processos de construção de hortas urbanas, a organização comunitária e o princípio da solidariedade de classe. As iniciativas de circuitos curtos de comercialização, também podem contribuir para repensar a organização da vida em sociedade, novos arranjos para as cidades, mais próximas da produção, eliminar intermediários entre produtores e consumidores. Colaborar para pesquisas e ações que visem a transformação de resíduos orgânicos em insumos para a agricultura, um modo de fomentar a agroecologia e minimizar os impactos causados pelos resíduos nas cidades. Assim, as experiências de circuitos curtos de comercialização em andamento tem cumprido papel fundamental neste sentido, porém ainda estão restritas a um determinado público, sendo então, imprescindível promover condições de acesso à alimentação saudável às trabalhadoras e trabalhadores com menor poder aquisitivo nas periferias e criar outras possibilidades de produção de alimentos para comercialização a preços simbólicos no meio urbano. “Porque esse tudo por R$ 1,00 não é pra vender a comida, é pra fazer política com o povo, pra discutir, pra conversar” (GILMAR GERALDO MAURO, dirigente nacional do MST, em: 21 mai. 2021). Nesta perspectiva, a questão alimentar diz respeito não apenas ao acesso, mas de como a produção e consumo de alimentos se inserem na dinâmica de reprodução do capital. Hoje ela está quase inserida em um contextomaior de fazer frente ao capitalismo e a essa tendência imposta pelo capital de morte, de fazer com que essa comida capitalizada, essa comida mercantilizada imponha uma mudança estrutural na própria questão do metabolismo do sistema atual e à nossa vida no planeta Terra (KELLI CRISTINE MAFFORT, DIRIGENTE NACIONAL DO MST, EM: 20 AGO. 2021). 131 Deste modo, o debate dos circuitos curtos de comercialização e da Reforma Agrária Popular estão embutidos desafios referentes modificações nos hábitos alimentares, da qualidade dos alimentos, do controle das grandes corporações transnacionais na produção e distribuição, o que se traduz em um modelo de produção e consumo pautado pela destruição ambiental, pela simplificação dos agroecossistemas, pela padronização e artificialização dos alimentos, pelo elevado consumo de petróleo tanto na produção quanto no deslocamento dos alimentos, pelo uso de agrotóxicos e transgênicos. Trata-se de construir o enfrentamento aos danos ambientais provocados pelo agronegócio e fortalecer a agroecologia, as camponesas, os camponeses, os povos tradicionais em frações do território em que o uso e apropriação não estejam pautados em relações capitalistas de produção. E fazer dialogar a temática ambiental, a discussão da produção de alimentos, a luta pela reforma agrária e a luta de classes. PRINCIPAIS DESAFIOS E AS AÇÕES DO MST PARA E NA TERRITORIALIZAÇÃO DA REFORMA AGRÁRIA POPULAR A partir das entrevistas atuamos no sentido de identificar os desafios que estão colocados para a territorialização da Reforma Agraria Popular, tentando correlacioná-los as possíveis contribuições das experiências de circuitos curtos de comercialização. Neste sentido, pudemos afirmar tais iniciativas como potentes instrumentos para a promoção do debate político, como espaço de formação política e ideológica, para o estabelecimento de parcerias tanto políticas quanto técnicas. A seguir no quadro 1, apresentamos uma síntese dos desafios internos. Com base nos relatos de entrevistas já discutidos no tópico 1, conseguimos identificar 4 grandes desafios, estes por sua vez estão correlacionados a linhas de ação, que orientam um conjunto de ações e iniciativas no sentido de fortalecer os assentamentos enquanto territórios fundamentais para a materialização e territorialização da Reforma Agrária Popular. 132 Quadro 1 – Síntese dos desafios internos e ações relacionadas Desafios Linhas de ação Viabilizar econômica das famílias assentadas Lutas por acesso a políticas públicas Desenvolver processos agroindustriais e de comercialização com preços justos Estruturar processos de resistência ao agronegócio e enfrentamento ao projeto de privatização dos assentamentos Fortalecer a organização interna e a coletividade Desenvolver e aperfeiçoar instrumentos e metodologias de planejamento e gestão política, social, econômica e ambiental dos territórios Construir a agroecologia Espacializar, territorializar e fortalecer as experiências existentes Estimular processos de formação, capacitação, intercâmbios, experimentação e propaganda Forjar novas sociabilidades Combater a opressão e as violências de gênero e gerações Valorizar e dar visibilidade ao trabalho das mulheres e da juventude Incentivar a participação das mulheres e jovens nos processos produtivos, econômicos e políticos Organização: MATHEUS, F.A. (2021). Fonte: Relatos de entrevistas. No âmbito das iniciativas de circuitos curtos de comercialização ademais da ação de compra e venda de produtos da reforma agrária. Geralmente, cada grupo que se articula promove a distribuição de materiais informativos e de propagada; a realização de atividades de formação política e capacitação técnica, que envolvem debates sobre reforma agrária, agroecologia e produção agroflorestal, conjuntura, funcionamento da sociedade capitalista; mutirões de plantio e reflorestamento e momentos de confraternização que inclui o preparo e o consumo de alimentos agroecológicos, típicos e processados artesanalmente. Essas ações apresentam reflexos tanto externamente aos assentamentos na relação com a sociedade, quanto na mobilização e animação da base social assentada. 133 Quem acompanha algumas atividades, quem participa de algumas ações, quem participa das feiras agroecológicas, porque as feiras, não são somente uma feira, ela é uma feira, mas ela tem os debates sobre a questão do uso de agrotóxicos, ela tem as atividades desenvolvidas com esse tema, então é além de uma feira, ela vai ser também um trabalho de base, ela também ajudar fazer na prática aquilo que você tanto fala (JOICE APARECIDA LOPES, ASSENTADA E DIRIGENTE DO MST NA REGIÃO DE PROMISSÃO, EM: 02 JUL.2021). A seguir no quadro apresentamos um síntese com 3 grandes desafios no que se refere a relação dos assentamentos e do MST com a sociedade. As linhas de ação orientam iniciativas que dão visibilidade ao debate sobre reforma agrária e agroecologia e à produção e organização dos assentamentos. Quadro 2 – Síntese dos desafios externos e ações relacionadas Desafios Linhas de ação Enfrentamento à fome Desenvolver produção voltada ao mercado interno Lutas por políticas públicas Possibilitar o acesso das populações de menor poder aquisitivo e desempregadas a alimentos saudáveis Ampliar o contato e as relações com a sociedade e as alianças políticas Promover o debate sobre a importância da Reforma Agrária Popular e o consumo de alimentos saudáveis, os intercâmbios campo-cidade e as parcerias com instituições de pesquisa Realizar propaganda da Reforma Agrária Popular Apoiar as lutas da classe trabalhadora urbana Construir e fortalecer iniciativas de circuitos de comercialização, de organização comunitária e hortas urbanas Combater o agronegócio e o sistema alimentar baseada na lógica do capital Incentivar o consumo de alimentos saudáveis Denunciar o uso de agrotóxicos e transgênicos Envolver a classe trabalhadora urbana nas lutas contra a degradação ambiental e do trabalho Apoiar as lutas dos povos tradicionais na defesa dos seus territórios e modos de vida Organização: MATHEUS, F.A. (2021). Fonte: Relatos de entrevistas. 134 Atividades como as feiras da reforma agrária, realizadas em nível local, estadual e nacional, a comercialização de cestas agroecológicas promovem o contato das trabalhadoras e trabalhadores do campo e da cidade; contribui para a construção de uma identidade; reconecta as pessoas que vivem nas cidades com a terra, com a natureza e com a produção dos alimentos; desmistifica a imagem negativa que a imprensa impõe à sociedade. Demonstram a capacidade de produção, de mobilização e organização dos assentamentos e representam uma espécie de convocação para que a sociedade se mobilize em torno de um modelo de sistema alimentar e outro projeto societário. Vale frisar que a realização destas atividades extrapola o aspecto da comercialização e assume um caráter cultural, de formação, capacitação e de articulação política. CONSIDERAÇÕES – ALGUMAS ENTRE TANTAS POSSÍVEIS Pelo exposto ao longo do texto, observamos que os desafios identificados no âmbito da territorialização da Reforma Agrária Popular apresentam caráter de enfrentamento ao agronegócio e ao sistema alimentar baseado na lógica do capital. Assim, a luta pela reforma agrária e pela democratização do acesso a alimentos saudáveis é uma luta política pela transformação nas estruturas de poder, nas relações humanas e nas relações sociedade-natureza. Mas vale ressaltar que estas lutas congregam múltiplas dimensões e escalaridades e abrangem ações e iniciativas que vão desde as unidades de produção nos assentamentos, passando pelo assentamento enquanto território de disputa e em disputa, até alcançar a escala nacional e internacional de disputa porterras, territórios, recursos naturais, políticas públicas e modos de vida. E se materializam em ações cotidianas concretas internamente nos assentamentos e na relação entre assentamentos, MST e sociedade. Neste sentido compreendemos as experiências de circuitos curtos de comercialização em andamento no estado de São Paulo como práticas sociais, instrumentos e metodologias com efetivo potencial para contribuir no processo de territorialização da Reforma Agrária Popular, visto que colaboram para viabilizar economicamente as famílias assentadas, para a organização interna nos assentamentos, para a promoção da agroecologia, para o acesso de populações 135 de menor poder aquisitivo a alimentos saudáveis, para a construção de alianças e constituição de uma identidade entre trabalhadoras e trabalhadores do campo e da cidade tendo o alimento como elemento mobilizador e articulador. REFERÊNCIAS DAROLT, M. R.; LAMINE, C.; BRANDENBURG, A. A diversidade dos circuitos curtos de alimentos ecológicos: ensinamentos do caso brasileiro e francês. In: Construção social dos mercados. Agriculturas: experiências em agroecologia, v.10, n.2, jun. 2013. FERNANDES, B.M. Movimento social como categoria geográfica. Terra Livre, São Paulo, n.15, 2000. FRANQUES, B.; FRANCO, F. S.; RISSATO, J.; CARMELO, J.; SIQUEIRA, J.; BUQUERA, R. B.; ALVARES, S. R.; NUNES, T. P. Desafios e superação na comercialização de produtos orgânicos na região de Sorocaba. In: MING, L.C.; DO VAL, M.F.; FRANCO, F.S.; CARMO, M.S.; MOREIRA, M.S. (Org.). Plantando sonhos. Experiências em agroecologia no Estado de São Paulo. Feira de Santana: Sociedade Brasileira de Etnobiologia e etnoecologia, 2018. GASPARIN. G.; WITCEL, R.; SANTOS, M. Acampamentos e assentamentos. In: DIAS, A. P.; STAUFFER, A. B.; MOURA, L. H. G.; VARGAS, M. C. Dicionário de agroecologia e educação. 1. Ed. São Paulo: Expressão Popular; Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, 2021. MARTINS, A.; NUNES, D.; GASPARIN, G. Reforma agrária popular. In: DIAS, A. P.; STAUFFER, A. B.; MOURA, L. H. G.; VARGAS, M. C. Dicionário de agroecologia e educação. 1. Ed. São Paulo: Expressão Popular; Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, 2021. MATHEUS, F. A.; FELICIANO, C. A. Reforma agrária, agroecologia e os desafios para a construção de novas formas de relação sociedade-natureza durante e pós- pandemia. Retratos de Assentamentos, v.24, n.1, 2021. MCMICHAEL, P. Regimes alimentares e questões agrárias. 1. ed. São Paulo: Editora UNESP; Porto Alegre: Editora UFRGS, 2016. MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Programa agrário. Documento aprovado no VI Congresso do MST. São Paulo: MST, 2014. 136 ROVER, O. J.; LAMPA, F. M. Rede de agroecologia: articulando trocas mercantis com mecanismos de reciprocidade. In: Construção social dos mercados. Agriculturas: experiências em agroecologia, v.10, n.2, jun. 2013. THOMAZ JR., A. O Agrohidronegócio no centro das disputas territoriais e de classe no Brasil do século XXI. Campo-território, v.5, n.10, ago. 2010.
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