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Catalogação na Fonte Elaborado por: Josefina A. S. Guedes Bibliotecária CRB 9/870 P974 2018 Psicologia em saúde, educação e assistência social / Tatiana Benevides Magalhães Braga ... [et al.] (Organizadores) - 1. ed. - Curitiba: Appris, 2018. 257 p. ; 21 cm (Educação, tecnologias e transdisciplinaridade) Inclui bibliografias ISBN 978-85-473-1778-2 1. Psicologia social. 2. Assistência social. I. Braga, Tatiana Benevides Magalhães ... [et al.], orgs. II. Título. III. Série. CDD 23. ed. – 302. Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT. Editora e Livraria Appris Ltda. Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês Curitiba/PR – CEP: 80810-002 Tel: (41) 3156-4731 | (41) 3030-4570 http://www.editoraappris.com.br/ http://www.editoraappris.com.br/ Editora Appris Ltda. 1ª Edição - Copyright© 2018 dos autores Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda. Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010. FICHA TÉCNICA EDITORIAL Augusto V. de A. Coelho Marli Caetano Sara C. de Andrade Coelho COMITÊ EDITORIAL Andréa Barbosa Gouveia - UFPR Edmeire C. Pereira - UFPR Iraneide da Silva - UFC Jacques de Lima Ferreira - UP Marilda Aparecida Behrens - PUCPR EDITORAÇÃO Fernando Nishijima ASSESSORIA EDITORIAL Bruna Fernanda Martins DIAGRAMAÇÃO Jhonny Alves dos Reis CAPA Jhonny Alves dos Reis REVISÃO Andrea Bassoto Gatto Mariana Laura Janaína Cunha Ferreira GERÊNCIA COMERCIAL Eliane de Andrade GERÊNCIA DE FINANÇAS Selma Maria Fernandes do Valle COMUNICAÇÃO Carlos Eduardo Pereira | Igor do Nascimento Souza LIVRARIAS E EVENTOS Milene Salles | Estevão Misael CONVERSÃO PARA E-PUB Carlos Eduardo H. Pereira COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO EDUCAÇÃO, TECNOLOGIAS E TRANSDISCIPLINARIDADE DIREÇÃO CIENTIFICA Dra. Marilda A. Behrens – PUCPR Dra. Patrícia L. Torres – PUCPR CONSULTORES Dra. Ademilde Silveira Sartori – UDESC Dra. Iara Cordeiro de Melo Franco – PUC Minas Dr. Ángel H. Facundo – Univ. Externado de Colômbia Dr. João Augusto Mattar Neto – PUC-SP Dra. Ariana Maria de Almeida Matos Cosme – Universidade do Porto/Portugal Dr. José Manuel Moran Costas – Universidade Anhembi Morumbi Dr. Artieres Estevão Romeiro- Universidade Técnica Particular de Loja/ Equador Dra. Lúcia Amante – Univ. Aberta/Portugal Dr. Bento Duarte da Silva – Universidade do Minho/Portugal Dra. Lucia Maria Martins Giraffa – PUCRS Dr. Claudio Rama – Univ. de la Empresa/Uruguai Dr. Marco Antonio da Silva – UERJ Dra. Cristiane de Oliveira Busato Smith – Arizona State University /EUA Dra. Maria Altina da Silva Ramos – Universidade do Minho/Portugal Dra. Dulce Márcia Cruz – UFSC Dra. Maria Joana Mader Joaquim – HC-UFPR Dr. Edméa Santos – UERJ Dr. Reginaldo Rodrigues da Costa - PUCPR Dra. Eliane Schlemmer – Unisinos Dra. Romilda Teodora Ens – PUCPR Dra. Ercilia Maria Angeli Teixeira de Paula – UEM Dr. Rui Trindade – Univ. do Porto/Portugal Dra. Evelise Maria Labatut Portilho – PUCPR Dra. Sonia Ana Charchut Leszczynski – UTFPR Dra. Evelyn de Almeida Orlando – PUCPR Dra. Vani Moreira Kenski – USP Dr. Francisco Antonio Pereira Fialho – UFSC Pareceristas Ad Hoc Allan Saffiotti Beatriz de Pala Souza Carmem Lúcia B. Tavares Barreto Henriette Tognetti Penha Morato Kleber Barreto Paula Carpinetti Aversa Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista Sashenka Mezza Mosqueira Simone Dalla Barba Walckoff Aos atores que constroem a assistência em políticas públicas brasileiras: profissionais, pesquisadores, participantes. AGRADECIMENTOS A realização das pesquisas e experiências que compõem este livro não teria sido possível sem o apoio material, institucional e financeiro das seguintes instituições, cuja dedicação os autores agradecem: Universidade Federal de Uberlândia; Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Rede Municipal de Ensino de Poços de Caldas - MG; Secretaria de Saúde de Poços de Caldas - MG; Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais; Irmandade Nossa Senhora do Rosário de Catalão - GO; Rede de Atenção Psicossocial da Secretaria Municipal de Saúde de Uberlândia. PREFÁCIO A coletânea de textos que se apresenta intitulada Psicologia em saúde, educação e assistência social é uma daquelas produções que esperamos ler quando estamos atuando no campo das políticas públicas em saúde e em educação. Muito ouvimos sobre as dificuldades vividas no campo da escolarização e da saúde mental. Dois campos que dialogam diariamente, por meio de um número significativo de crianças e adolescentes que, ao não se beneficiar da escola a eles oferecida, são encaminhados aos postos de saúde, às unidades básicas, aos pediatras, psicólogos e demais profissionais da área para que possam encontrar em que dimensão da vida esses estudantes possuem dificuldades, problemas, transtornos que justificariam suas dificuldades na escolarização. A produção de diagnósticos de transtornos das mais variadas origens é constatada nos dias de hoje, retirando das políticas educacionais e de saúde a responsabilidade pela baixa qualidade da escola e dos serviços que temos no campo da saúde e da saúde mental. Como romper com esse círculo vicioso que medicaliza as dificuldades escolares? Como criar condições para que os estudantes possam apropriar-se do conhecimento socialmente acumulado e possam viver uma relação educativa, em que valores humanos e sociais estejam no centro das práticas educacionais? Tais perguntas têm norteado a relação educação e saúde mental nos últimos tempos, fazendo parte de importantes discussões nas áreas de Psicologia Escolar e Educacional, Saúde Mental, Educação Básica e Serviço Social. Esta coletânea desenvolvida por professores e psicólogos que atuam nos dois campos, da saúde e da educação, revela que é possível pensar e atuar nesses dois campos, de maneira crítica, considerando os sentidos e os significados atribuídos por adultos, adolescentes, crianças e suas famílias. Preconceitos, discriminações, humilhações são processos sociais que precisamos considerar como constitutivos da subjetividade humana, principalmente daqueles que se encontram em situações de desigualdade social, que pertencem às comunidades afrodescendentes, indígenas, quilombolas, que vivem a deficiência em seus corpos, que foram excluídos da escola regular, dentre outras. Portanto, a Psicologia, nesta coletânea, ao considerar as dimensões históricas e sociais que constituem esse indivíduo, promove um conjunto de práticas de psicólogos e psicólogas que passam a intervir nesse campo de forças, além de propor alternativas de superação e de enfrentamento. Busca nos referenciais teóricos da fenomenologia, da filosofia da diferença, no movimento da Psicologia Institucionalista, ou ainda, nos princípios que regem os movimentos sociais, a luta antimanicomial e a educação inclusiva, promover procedimentos emancipatórios de coleta de informações, realizar ações de acolhimento nos equipamentos de saúde e construir e implementar instrumentos que hoje potencializam uma visão de humanização na compreensão e no tratamento de portadores de sofrimento mental. Ler este livro é conhecer um pouco mais de uma Psicologia que luta para inserir no campo das políticas públicas a pessoa humana como centro. Para melhor exprimir as propostas desta coletânea, inspiramo-nos em uma frase do psicólogo Ignácio Martín-Baró, militante das causas populares, quando ele afirma que “Realizar uma Psicologia da Libertação exige primeiro conquistar a libertação da Psicologia”. E esse é o caminho percorrido por estes jovens psicólogos e psicólogas que buscam construir uma Psicologia que se liberte das amarras de compreender osofrimento, a humilhação, a violência como aspectos meramente individuais para compreendê-los no contexto social de sua produção. Ao compreender dessa forma, possibilitam que tais práticas transformem-se em políticas sociais, para que todos a elas acessem e se beneficiem. Convido a todos e todas para ler e pôr em prática as importantes contribuições desta obra. Marilene Proença Rebelo de Sousa Professora Titular do Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade da Universidade de São Paulo São Paulo, 09 de agosto de 2018. SUMÁRIO 1 O PERFIL SOCIODEMOGRÁFICO E A INCIDÊNCIA DE TRANSTORNOS MENTAIS COMUNS EM CONGADEIROS, DA IRMANDADE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO, DA CIDADE DE CATALÃO/GO Ricardo Wagner Machado da Silveira, Fernanda Tomé Limírio, Frederico Guerreiro Ferreira, Hugo Godoi Peixoto, Juliana Cavalcante do Nascimento Vieira, Lady Daiane Martins Ribeiro, Maria de Lourdes da Cunha Piqui, Marilia Cardoso Figueiredo, Mayara Lemes Cardoso, Nívia Mara Alves Rodovalho, Núbia Mical da Silva Nascimento INTRODUÇÃO 1.1 METODOLOGIA 1.2 DESCRIÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS 2 CARTOGRAFIAS DE UM PROCESSO DE ANÁLISE INSTITUCIONAL EM UM CAPSAD - CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL ÁLCOOL E DROGAS: OS DESAFIOS DA POLÍTICA DE REDUÇÃO DE DANOS Ricardo Wagner Machado Silveira, Diogo Rezende, Willian Araújo Moura INTRODUÇÃO 2.1 SOBRE A ANÁLISE INSTITUCIONAL 2.2 SOBRE A METODOLOGIA SOCIOANALÍTICA 2.3 SOBRE O PROCESSO IMPLICACIONAL 2.4 MAPEANDO O CAMPO DE FORÇAS 2.5 IMPLICANDO-SE REFERÊNCIAS 3 DEVIRES E DRIVERS DA CLÍNICA: ACONTECIMENTOS NO ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO Dami Silva e Ricardo Wagner Silveira 3.1 PERSPECTIVA METODOLÓGICA 3.2 REFERÊNCIAS TEÓRICO E CONCEITUAL 3.3 DEVIRES E DRIVERS DA CLÍNICA CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS 4 GRUPOS DE ATENÇÃO PSICOLÓGICA E CUIDADO AO SOFRIMENTO HUMANO: DA INTERSUBJETIVIDADE À DIMENSÃO ÉTICO-POLÍTICA TATIANA BENEVIDES MAGALHÃES BRAGA 4.1 GRUPOS DE ATENÇÃO PSICOLÓGICA CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS 5 PSICOLOGIA E POLÍTICAS PÚBLICAS: A CLÍNICA-ESCOLA DO CURSO DE PSICOLOGIA DA PUC MINAS EM POÇOS DE CALDAS Ronny Francy Campos, Tommy Akira Goto 5.1 CONCEPÇÃO E OBJETIVOS DA CLÍNICA-ESCOLA DE PSICOLOGIA 5.2 ESTRUTURA TÉCNICA E FUNCIONAMENTO 5.3 ORGANIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO DOS ESTÁGIOS OBRIGATÓRIOS 5.4 SISTEMATIZAÇÃO DO SERVIÇO DE ATENDIMENTO DA CLÍNICA-ESCOLA REFERÊNCIAS 6 PLANTÃO PSICOLÓGICO NA COMUNIDADE: ATENÇÃO PSICOLÓGICA NA PLURALIDADE DO CONTEXTO SOCIAL Tatiana Benevides Magalhães Braga, Sashenka Mezza Mosqueira 6.1 A COMPREENSÃO DE PLANTÃO PSICOLÓGICO E DE CARTOGRAFIA CLÍNICA 6.2 O PLANTÃO PSICOLÓGICO NA CLÍNICA-ESCOLA DA PUCMINAS (2010-2013) 6.2.1 Maria: a necessidade de um projeto de vida 6.2.2 João e o desejo de aprender 6.2.3 Sabrina e a tentativa de compreender suas relações 6.2.4 Daniela, Ricardo e o casamento 6.3 PLANTÃO PSICOLÓGICO E SEUS DESDOBRAMENTOS Ã Ó 6.4 PLANTÃO PSICOLÓGICO E ALGUMAS REFLEXÕES REFERÊNCIAS 7 INCLUIR EXCLUINDO: UM OLHAR FENOMENOLÓGICO SOBRE A EXPERIÊNCIA DE INCLUSÃO DE UMA ALUNA COM DEFICIÊNCIA FÍSICA NO ENSINO REGULAR Tatiana Benevides Magalhães Braga, Flainy Caroline da Silva 7.1 A REMEMORAÇÃO AUTOBIOGRÁFICA COMO MÉTODO 7.2 APRESENTANDO LAURA: CONDIÇÕES CLÍNICAS E PSICOSSOCIAIS 7.3 A TRAJETÓRIA DE TRATAMENTO 7.4 O CONTATO COM O CENÁRIO DA PESQUISA 7.5 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES: A EXPERIÊNCIA E APONTAMENTOS PARA A EDUCAÇÃO REFERÊNCIAS SOBRE OS AUTORES 1 O PERFIL SOCIODEMOGRÁFICO E A INCIDÊNCIA DE TRANSTORNOS MENTAIS COMUNS EM CONGADEIROS, DA IRMANDADE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO, DA CIDADE DE CATALÃO/GO Ricardo Wagner Machado da Silveira Fernanda Tomé Limírio Frederico Guerreiro Ferreira Hugo Godoi Peixoto Juliana Cavalcante do Nascimento Vieira Lady Daiane Martins Ribeiro Maria de Lourdes da Cunha Piqui Marilia Cardoso Figueiredo Mayara Lemes Cardoso Nívia Mara Alves Rodovalho Núbia Mical da Silva Nascimento INTRODUÇÃO No Brasil, a história das investigações epidemiológicas de base populacional é limitada a um número ainda restrito de pesquisas, especialmente na área de saúde mental. Os estudos com populações clínicas, realizados principalmente em função de facilidades logísticas, apresentam, caracteristicamente, um grande problema relativo à extrapolação dos achados, uma vez que as pessoas que se consultam costumam ter características especiais que as diferenciam das demais. Existe, via de regra, uma concentração de casos mais graves ou com pior evolução (como nos casos dos registros hospitalares), que limita a compreensão sobre a doença e suas características associadas (REGIERS; ROBINS 1991 apud SOARES, MARI; LIMA, 1999). Nas últimas décadas, no entanto, um número crescente de pesquisas epidemiológicas tem sido conduzido no Brasil. As vantagens desses estudos de base populacional são óbvias: 1) melhores informações proporcionam ações em saúde mais bem orientadas, mais efetivas; 2) os inquéritos com arcabouço metodológico adequado podem também ser analíticos e não apenas descritivos, permitindo a exploração de hipóteses etiológicas e maior conhecimento sobre os problemas de saúde da população (ROTHMAN, 1986 apud SOARES, MARI; LIMA, 1999). A identificação de fatores de risco é um aspecto fundamental na saúde pública na medida em que, a atenção básica em saúde visa à promoção e à prevenção de doenças. Nesse sentido, a pesquisa epidemiológica possibilita o planejamento de ações de prevenção da saúde mental na saúde coletiva, minimizando os fatores de risco à saúde e mobilizando de recursos comunitários para a promoção da saúde e da saúde mental na comunidade. De acordo com Barreto (2003), a pesquisa em Saúde Coletiva tem por objetivo produzir conhecimentos que, em última instância, tornem concretas as nossas visões e desejos relacionados com a saúde da população e nos ajude a construir novas alternativas no sentido da prevenção das doenças, da promoção da saúde e da organização de um sistema equânime de saúde. Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a mera ausência de doença. Contudo, para os epidemiologistas, as definições são extremamente simples, como: “doença presente” ou “doença ausente”; geralmente, os critérios diagnósticos são baseados em sinais, sintomas e resultados de exames. A utilização de critérios simples é justificada devido ao fato de que algumas doenças dependem de diagnósticos e tratamentos rápidos, para redução da mortalidade, principalmente em países em desenvolvimento (BEAGLEHALE; BONITA; KJELLSTRON, 2000). Por isso, é importante uma reflexão sobre o conceito de epidemiologia. O termo epidemiologia era usado para definir o estudo das epidemias ou enfermidades infecciosas agudas (COOPER; MORGAN apud COUTINHO 1987). Atualmente, segundo Lilienfeld (1983), citado pelo mesmo autor, essa ciência tem sido reconhecida como o estudo dos padrões das enfermidades nas populações, assim como dos fatores que influenciam tais padrões. Para Rouquayrol e Silva (1998), é a ciência que estuda o que ocorre sobre a população, ou seja, seu enfoque é a saúde- doença no âmbito do coletivo. De acordo com a Associação Internacional da Epidemiologia (IEA) e com o Dicionário de Epidemiologia (LAST, 1983 apud ROUQUAYROL; SILVA, 1998), epidemiologia é o estudo dos fatores que determinam a frequência e a distribuição das doenças nas coletividades humanas. São três os objetivos da Associação Internacional de Epidemiologia: descrever a distribuição e a magnitude dos problemas de saúde nas populações humanas; proporcionar dados essenciais para o planejamento, execução e avaliação das ações de prevenção, controle e tratamento das doenças; estabelecer prioridades e identificar fatores etiológicos na gênese das enfermidades (ROUQUAYROL e GOLDBAUM, 1999). Nesse sentido, a epidemiologia é o instrumento privilegiado para orientar aatuação da saúde pública, fornecendo pistas para diagnose de doenças transmissíveis e não transmissíveis; estudo da morbidade e mortalidade, a fim de traçar um perfil da saúde-doença nas coletividades humanas. Para Rouquayrol e Goldbaum (1999), mediante a contribuição da epidemiologia desenvolvem-se os trabalhos preventivos de vacinação e de vigilância epidemiológica. De certa forma, é uma ciência que estabelece ou indica e avalia os métodos e processos usados pela saúde pública para prevenir doenças e desenvolver a saúde física e mental. Kleinbaum, Kupper e Morgenstern (1982) apud Coutinho (1987) apontam duas razões para o uso de populações em pesquisa epidemiológica: primeiro, porque o objetivo final é a melhoria das condições de saúde da população; e segundo, porque a população é necessária para se fazer inferências causais sobre a relação entre certos fatores e determinadas doenças. Um dos grandes desafios da epidemiologia crítica é a busca da explicação dos problemas de saúde dos distintos grupos populacionais, cuja ênfase é a relação entre as condições de vida e seus determinantes histórico- estruturais, a compreensão das representações sociais acerca do conceito de saúde-doença, eaatenção à saúde dos diversos grupos. Tal desafio implica na necessidade de um planejamento integrado e autogestivo, em que os especialistas e a população sejam atores e autores das respostas sociais aos problemas que se apresentam (TEIXEIRA, 1999). Com o surgimento da psiquiatria e da psicologia comunitária, o tratamento passa a ir além da prescrição de fármacos ou internação dos considerados doentes (RAMOS, 1994). Para tanto, a epidemiologia em saúde mental passa a ter vários propósitos: descrever os estados de saúde da população por meio das frequências das doenças nos vários grupos; descobrir tendências importantes; compreender padrões locais de enfermidades; predizer os números de casos de diferentes transtornos da saúde e sua distribuição nas populações; descrever a história natural das doenças; classificar a etiologia de enfermidades ao combinar dados de pesquisas epidemiológicas com informações provenientes de outras disciplinas; servir de base para o estabelecimento e a avaliação de procedimentos preventivos ou de controle das enfermidades; e, ainda, fornecer fundamentos para implantação de serviços de saúde. Serapioni (2000) refere que a realização de um estudo epidemiológico em saúde mental justifica-se pela possibilidade de réplica e generalização, oferecida por seu caráter quantitativo, o qual, ademais, é guiado à busca da gravidade e das causas dos fatos sociais, além de servir-se de procedimentos controlados. Para Bernik (2001) o aumento do interesse nos aspectos epidemiológicos, sociais e econômicos dos transtornos mentais associa-se à preocupação com os custos crescentes dos serviços de atenção à saúde mental. Segundo ele, em estudo comparativo realizado por esse mesmo autor, constatou-se que, hoje, os transtornos ansiosos têm prevalência muito maior do que se pensava. Apesar das diferenças metodológicas e culturais, estudos realizados na Europa, EUA e Brasil são confluentes em apontar os transtornos ansiosos e fóbicos como o principal problema de saúde mental da população. O transtorno de pânico, por incidir em uma população jovem, está entre os transtornos mentais que se estendem por um maior número de anos de morbidade. Este capítulo está ligado de forma interdisciplinar ao projeto de extensão “Memória e Patrimônio Cultural no Sudeste Goiano” que, juntamente com outras áreas do conhecimento, busca aproximações com as manifestações culturais populares típicas da região, com políticas públicas voltadas para a área da saúde e da cultura, visando ao resgate da cidadania dos atores sociais diretamente e indiretamente ligados a esse movimento popular. O público-alvo da pesquisa foi o grupo de congadeiros, representado pela Irmandade Nossa Senhora do Rosário e pela Associação de Congadas da cidade de Catalão/GO, que tradicionalmente realiza a festa em louvor a Nossa Senhora do Rosário, evento comunitário que se edificou em função da religiosidade. A festa mobiliza toda a cidade e gera benefícios econômicos, culturais, afetivos e religiosos. É uma manifestação popular que entrelaça razões religiosas à dança e a música, que são formas de homenagear a Santa da devoção dos congadeiros. Esse ritual religioso realiza-se há mais de um século, e apesar das pesquisas históricas, não se sabe ao certo como se iniciaram os festejos. Existem apenas histórias e mitos sobre o início dessa celebração, sendo que o mais provável é que sua origem foi influenciada pelas Congadas de Minas Gerais. Os congadeiros contam que as congadas são, na verdade, uma conquista dos escravos, que receberam do patrão um dia para celebrar a fé, porém não poderiam se afastar da senzala, então realizavam os rituais de acordo com os que faziam na África, utilizando tambores, danças, cantorias e roupas coloridas. Como não podiam cultuar suas divindades, pois eram consideradas pagãs, escolheram santos que tinham histórias semelhantes às deles: Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e Santa Efigênia (MACEDO, 2007). Atualmente, a festa em homenagem a Nossa Senhora do Rosário divide-se em duas partes: a propriamente religiosa e a festiva. A primeira se inicia nove dias antes do Domingo da festa (2º Domingo de outubro), a outra está concentrada no ranchão (a grande barraca da festa), e nas barraquinhas de venda que se instalam aos arredores da “Igreja do Rosário” (MACEDO, 2007). A agregação de barraquinha no festejo surgiu da dificuldade que inicialmente os congadeiros enfrentavam para trazerem alimentos, roupas e objetos necessários a sua subsistência, das fazendas para a cidade. Eles se agrupavam construindo tendas para guardarem seus mantimentos transportados por carros de boi e as utilizavam como pousadas. Atualmente, comerciantes de todo Brasil levam e vendem suas mercadorias nas proximidades da igreja do Rosário, aproveitando o grande fluxo de pessoas que participam dessa grande festa. Para isso é necessário que sejam autorizados pela Prefeitura do município e paguem uma taxa, uma espécie de aluguel do espaço da rua. Parte das arrecadações provindas dessa locação é destinada à Irmandade Nossa Senhora do Rosário (MACEDO, 2007). Os rituais da festa acabam por produzir sua estrutura organizacional, podendo ser de homenagens ou de organização geral da Festa. Nessa organização ritualística destacam-se os ternos dos congos, a menor unidade ritual da congada, formada por dançarinos e pessoas capazes de tocarem instrumentos rústicos. Cada terno possui um capitão, e acima desse capitão há somente o general, que é o representante dos ternos junto à Irmandade. A junção de todos os ternos é o Congado, que representa a segunda esfera nas relações. Outra esfera dentro dessas relações é o Reinado, formado pela família real, que recebe homenagens e atenção especial nos dias em que a festa acontece. O general e o rei da Irmandade são escolhidos pela diretoria da Irmandade. Por fim, a esfera mais complexa dentro das relações rituais, a Irmandade propriamente dita, constituída por um presidente, um vice-presidente, um secretário, um tesoureiro, e todos os “irmãos”, que são os dançarinos. A Irmandade é a instituição mais representativa dos congadeiros junto aos representantes da Igreja e organizadores da festa. O presidente da Irmandade tem poder sobre a Congada (que é a junção dos ternos) e o Reinado (BRANDÃO, 1985). Dentre as realizações mais importantes da Festa em louvor a Nossa Senhora do Rosário podemos destacar a entrega da Coroa, que é o momento em que os ternos de congos saem em cortejo da casa do festeiro do ano e percorrem um trajeto até onde se encontra o casal responsável por comandar o evento do ano seguinte. A coroa é o objeto que inspira a maioria das músicas da congada, ressaltando quegrande parte da celebração religiosa gira em torno da coroação (MACEDO, 2007). Estima-se que haja entre três a quatro mil congadeiros participando dos ternos e um grupo de até quinze mil pessoas que acompanham os dançadores pelas ruas de Catalão, no domingo que antecede a entrega da Coroa. Por ocasião da entrega da Coroa, houve anos em que se estimou a presença de sessenta, setenta até cem mil pessoas envolvidas com esse momento das celebrações. Com o passar do tempo outros aspectos, além dos religiosos, vão se destacando, como os políticos e econômicos, gerados pela importância que essa manifestação cultural atingiu na comunidade. Esses elementos são fundamentais para analisarmos as relações sociais contidas na realização da festa, como a escolha dos futuros festeiros e de integrantes de determinados grupos responsáveis pela arrecadação de recursos financeiros e o reconhecimento social que essas funções lhe concedem (PRADO, 2003). A festa se torna alvo de grandes investimentos, ganhando o apoio da Prefeitura e de diversos patrocinadores. A divulgação da festa é veiculada em nível nacional, estimulando o turismo na cidade de Catalão. Devido ao grande impacto na cultura regional, o estudo desse movimento religioso é foco de interesse acadêmico e multidisciplinar, e de modo geral tratam-se de estudos científicos que objetivam a mobilização das pessoas envolvidas nas congadas, para que possam promover iniciativas que garantam autonomia da Irmandade, a partir da gestão dos recursos produzidos na realização da festa de Nossa Senhora do Rosário. O projeto de pesquisa e extensão “Memória e Patrimônio Cultural no Sudeste Goiano”, propõe- se a buscar benefícios que levem à melhoria na qualidade de vida dos participantes do movimento de congada e garanta cidadania da comunidade, direta ou indiretamente, envolvida com o movimento. A Psicologia, como uma área voltada para o estudo e pesquisa da saúde mental, oferece contribuições na compreensão dos modos de produção de subjetividade1 constituídos nos grupos de congada, tanto na perspectiva da sua conformação aos modos dominantes de vida impostos pelo sistema capitalista vigente como na perspectiva da invenção de outras formas de existência − coletivas e individuais − que também possam promover processos de autoanálise, autogestão e busca de autonomia e protagonismo da comunidade no atendimento de suas diversas demandas. O levantamento epidemiológico dos transtornos mentais da comunidade foi realizado tendo como instrumento o SRQ-20 (Self Report Questionnaire) derivado de quatro outros instrumentos já existentes e desenvolvido por Harding. O instrumento é recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para estudos comunitários e atenção primária à saúde. Além das informações sobre saúde mental obtidas na entrevista, pesquisaram-se também informações sobre as características sociodemográficas da população-alvo, com o intuito de fazer aproximações com os modos de subjetivação construídos nesse grupo social e as inter- relações entre perfil sociodemográfico e condições de saúde mental. A pesquisa procura indicar aspectos como acesso da comunidade à rede pública de atendimento em saúde e saúde mental e o grau de resolutividade alcançada por esse sistema de cuidados. Com isso, pretende-se mobilizar e sensibilizar a comunidade em relação à necessidade de conhecimento das suas condições de saúde e a necessidade de se desenvolver ações que possam promover a saúde mental, prevenir a incidência de transtornos mentais, tratar e reabilitar os pacientes com sofrimento psíquico agudo/crônico e suas famílias. 1.1 METODOLOGIA Antes de abordar a metodologia adotada, vale apontar as condições nas quais ela foi sendo concebida. Os participantes do projeto foram professores do curso de psicologia e alunos iniciantes, do primeiro ano de graduação, portanto jovens ainda inexperientes no campo da pesquisa científica. Todavia essa prerrogativa não foi de todo um empecilho para que o trabalho acontecesse. O projeto desenvolvido surge vinculado a outro, denominado “Memória e Patrimônio Cultural no Sudeste Goiano”, coordenado pelo professor Luiz Carlos do Carmo, atual coordenador de extensão e cultura da Universidade Federal de Goiás/Campus Catalão. A proposta dessa parceria era fazer um cadastro com características sociodemográficas da comunidade pesquisada, na tentativa de levantamento de um perfil dos congadeiros contendo: idade, sexo, estado civil, escolaridade, naturalidade, renda per capita e familiar, entre outros. A primeira direção tomada foi a realização de pesquisa bibliográfica na área de epidemiologia em saúde mental para buscar subsídios que pudessem alicerçar nossa produção. A tentativa era compreender como são realizadas atualmente as pesquisas nesse campo do conhecimento. Entendemos que a metodologia de pesquisa de um trabalho comunitário e social deve ser um dispositivo2 que visa à produção de conhecimentos e à formação de profissionais comprometidos com os interesses das comunidades exploradas, dominadas e segregadas na sociedade. A intenção era trabalhar com o método da pesquisa- ação3 e da pesquisa participante,4 em que todo processo de investigação implica numa intervenção, na qual a metodologia possa servir como um instrumento de luta e transformação social e os pesquisadores possam colaborar, por meio da troca de saberes e experiências, com as pessoas da comunidade. Levando em consideração a população-alvo, encontramos na pesquisa quantitativa um modo adequado de alcançar os objetivos estimados. Organizamos, para isso, um roteiro sociodemográfico e anexamos o instrumento SRQ-20,5 um Instrumento de Rastreamento de Transtornos Mentais Comuns, versão para a língua portuguesa, recomendado pela Organização Mundial de Saúde e que se mostra coerente com a proposta metodológica da pesquisa. O questionário elaborado continha, no total, cinquenta e nove questões, sendo apenas quatro abertas, referentes aos tipos de atividades físicas praticadas, problemas de saúde, seus respectivos tratamentos e eficácia alcançada ou não. Quanto ao levantamento epidemiológico em saúde mental na comunidade, utilizamos vinte questões de fácil resposta (tipo sim/não), retiradas do SRQ-20. Um dos grandes benefícios desse levantamento está na geração de conhecimentos sobre o risco e/ou incidência de transtornos mentais comuns a fim de subsidiar o planejamento e gestão de ações de promoção, prevenção, tratamento e reabilitação em saúde mental desta população. Os congadeiros a serem entrevistados deveriam possuir algum vínculo com a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. O primeiro contato e o agendamento das entrevistas seriam feitos por algum representante da Irmandade, que deveria acompanhar o pesquisador durante a realização das entrevistas, caso fossem realizadas no domicílio dos entrevistados. Havia a alternativa de fazermos a pesquisa durante encontros promovidos pelos dançadores, que se iniciavam sempre com o cerimonial do terço. Eram reuniões semanais, nas quais cada grupo se encontrava nas residências dos capitães, e funcionavam como um tipo de preparação religiosa para a festa. Por meio dessas orações, os dançadores clamam por auxílio divino para que todos os preparativos e a própria apresentação final ocorram da melhor maneira possível. Contudo, nenhumas das possibilidades apresentadas se fizeram suficientemente adequadas ao contexto social do trabalho e concluímos que a população-alvo não seria atingida, pois a maioria dos congadeiros somente estaria presente durante os ensaios, que ocorrem um pouco antes da festa. Tomamos essa direção e começamos a aplicar o instrumento durante os ensaios para a festa, sendo o ensaio geral6 a situação mais apropriada. Durante a coleta de dados foram surgindo algumas intercorrências, impedindo o cumprimento da proposta tal qual foi estabelecida inicialmente. O instrumento foi aplicadoaos indivíduos da população congadeira com idade igual ou superior a quinze anos, entre os meses de setembro e outubro de 2007. As situações para a aplicação do instrumento foram variadas, dependendo do funcionamento dos ternos e da adesão à pesquisa por parte dos capitães. Nos casos em que a receptividade do capitão era maior, as entrevistas puderam ser realizadas com mais facilidade, devido ao grande respeito e compromisso dos integrantes do terno com seus líderes. Como foi dito anteriormente, pretendíamos assistir aos ensaios para depois aplicarmos o questionário, porém não funcionou bem assim. Muitos ensaios ocorriam na rua, os batuques dos congadeiros e sua alegria eram contagiantes, não se via expressão de cansaço em seus rostos, de modo que nosso trabalho se deu em meio a toda essa euforia precedente à festa. Os tambores, o paralelepípedo da calçada, as costas do próprio companheiro de dança serviam como apoio para que eles pudessem responder o questionário; muitos responderem às questões se apoiando nos carros, na palma da mão, que se transformava em mesa naquele momento. Encontramos algumas pessoas que reclamavam do tamanho do questionário; alguns analfabetos respondiam com a ajuda dos alunos, que liam as questões e marcavam as respostas; outros congadeiros se recusavam por estarem exaustos, com preguiça de ler, pensar e ouvir. Em meio a esse contexto sui generis, apareceram inúmeras histórias referentes a situações da vida particular de alguns participantes. Ouvimos relatos de tentativas de suicídio e dos motivos para tais atitudes, outros desejavam desabafar com os “psicólogos”. Deparamo-nos com indivíduos alcoolizados que falavam, incansavelmente, sobre todos os tipos de assuntos, imagináveis e inimagináveis para aquele momento. Percebemos também idosos que nos viram como netos e buscaram o mínimo de atenção que todo ser humano merece. Um exemplo que vale ressaltar foi o de uma mulher casada e mãe de dois filhos, que confessou a um dos alunos pesquisadores que estava pensando em se matar por não ver mais sentido na vida, visto que havia pouco tempo havia perdido a mãe, pessoa que ela amava demais, e por sentir-se insignificante, sem valor para seu marido. Essas intercorrências foram significativas, pois colocaram os pesquisadores diante do que há de inusitado e singular sempre presente no encontro entre pessoas, quando se propõe a conhecê-las e, escutá-las, mesmo que não se tenha condições de corresponder a todas as suas expectativas ou às dos pesquisadores da área de Psicologia, profissionais ou futuros profissionais que têm a vocação de cuidadores de pessoas. Os pesquisadores tiveram a rica oportunidade de se inserir na comunidade, exercitando o lugar e a postura pertinentes ao papel de pesquisador e constatar, entender a relevância desse movimento religioso e da organização em comunidade para a vida das pessoas envolvidas. O passo seguinte da pesquisa foi a organização dos dados coletados para sua análise estatística e qualitativa e, por fim, de posse de todas as considerações sobre os dados coletados, pretendíamos realizar uma reunião com o maior número de representantes da Irmandade Nossa Senhora do Rosário/Associação dos Congadeiros de Catalão, para apresentar os dados coletados e as análises feitas, a fim de propiciar a tomada de consciência coletiva sobre o perfil sociodemográfico dos congadeiros encontrado, sobre a possível incidência de transtornos mentais nessa comunidade e as reflexões e ações possíveis a serem implementadas para lidar com realidade retratada pela pesquisa. 1.2 DESCRIÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS A seguir apresentamos a Tabela 1, com todos os dados que compõem o perfil sociodemográfico encontrado dos congadeiros que fazem parte da Irmandade Nossa Senhora do Rosário, mediante uma amostragem com intervalo de confiança de 95% em relação à possível caracterização de toda a comunidade. TABELA 01 – PERFIL SOCIODEMOGRÁFICO DOS PESQUISADOS (2008) Características da Amostra Número de pessoas % Margem de Erro (IC95%) Sexo Masculino 139 58,90% 6% Feminino 97 41,10% 6% Idade (anos) 15-24 94 39,83% 6% 25-34 47 19,92% 5% 35-44 33 13,98% 4% 45-54 26 11,02% 4% 55-64 11 4,66% 3% 65 ou mais 4 1,69% 2% Não respondeu 21 8,90% 4% Estado Civil Solteiro 124 52,54% 6% Casado 75 31,78% 6% Separado 12 5,08% 3% Viúvo 10 4,24% 3% Amasiado 12 5,08% 3% Não respondeu 3 1,27% 1% Moradia Casa própria 171 72,46% 6% Casa alugada 44 18,64% 5% Casa cedida 8 3,39% 2% Casa financiada 5 2,12% 2% Outra situação 4 1,69% 2% Zona rural 0 0,00% 0% Não respondeu 4 1,69% 2% Condições de moradia Precária 3 1,27% 1% Moderada 42 17,80% 5% Boa 191 80,93% 5% Renda Familiar Menos de 1 salário 28 12% 4% 1 salário 38 16% 5% 2 salários 74 31% 6% 3 salários 47 20% 5% Mais de 3 salários 45 19% 5% Não respondeu 4 2% 2% Escolaridade Analfabeto 3 1% 1% 1ª a 4ª (C e I) 27 11% 4% 5ª a 8ª (C e I) 61 26% 6% 1º ao 3º (C e I) 108 46% 6% Universitário 25 11% 4% Não respondeu 12 5% 3% Doenças Sim 34 14,41% 4% Não 194 82,20% 5% Não respondeu 8 3,39% 2% Total com TMC 55 23% 5% Total sem TMC 181 77% 5% FONTE – PESQUISA DE CAMPO (2008). ORG. SILVEIRA, R. W. M. A Tabela 1 é resultante de um emparelhamento dos dados brutos obtidos a partir do instrumento SRQ-20, e do questionário sociodemográfico composto por 36 perguntas, trinta fechadas e seis abertas. Vale ressaltar que esse questionário foi elaborado em conjunto com o professor Luís Carlos do Carmo, coordenador do projeto de extensão “Memória e Patrimônio Cultural no Sudeste Goiano”, ao qual a nossa pesquisa esteve vinculada. O levantamento do perfil dos congadeiros investigou os seguintes fatores: sexo, idade, estado civil, condições de moradia, renda familiar, escolaridade, incidência de doenças orgânicas e tratamentos realizados. Dentre os oito fatores investigados, seis deles apontam para relações entre a incidência de transtornos mentais: sexo; estado civil; condições de moradia; renda familiar; escolaridade; doenças orgânicas prevalentes que acabam por confirmar os dados estatísticos presentes em pesquisas epidemiológicas em saúde mental. Na maioria das pesquisas de epidemiologia em saúde mental e com grupos populares, o perfil sociodemográfico da população investigada é composto, principalmente, por mulheres e pessoas de baixa renda, entretanto os dados obtidos na presente pesquisa são, em sua maioria, relativos à população masculina. No total da amostra de 236 indivíduos pesquisados, 139 (58,90%) são do sexo masculino e apenas 97 (41,10%) do sexo feminino. O perfil da população pesquisada é predominantemente formado por pessoas do sexo masculino (58,90%); com idade entre 15 e 24 anos (39,83%); solteiros (52,54%); residem em casa própria (72,46%); com boas condições de moradia (80,93%); possuem renda familiar média de dois salários mínimos (31,35%); escolaridade que varia entre 1° e 3° ano colegial (45,76%); e em sua grande maioria não possui outras doenças (82,20%). Considerando o perfil encontrado na Tabela 1, é digno de nota o fato de que 50% dos indivíduos tem renda inferior a um salário mínimo (corresponde 12% dos entrevistados no total) e de acordo com pesquisa realizada por Ludernir e Filho (2002), verifica-se a importância da renda familiar relacionada com os TMC, e com seus achados concluíram, diferentemente, que a renda familiar não é um fator que seja indicativo de TMC, mas as condições de moradia e escolaridade. Outras pesquisas, no entanto, apontam que a renda familiar e o grau de escolaridade podem exercer influências sobre o aparecimento de TMC (MARAGNO et al. 2006; COSTA; LUDERMIR, 2005). Baixa renda e baixa escolaridade contribuem para a prevalência desses transtornos. A dificuldade financeira pode exercer enorme influência sobre o aparecimento dos TMC: de acordo com Patel, Kleinmann e Lima (2003), pessoas com baixa rendasentem vergonha das condições em que vivem e os TMC estão relacionados com sentimentos de falta de esperança, sentem-se desvalorizados ou, em outras palavras, inúteis. A pessoa que não possui nenhum tipo de renda sente-se dependente de outra pessoa e insegura, portanto, está propenso a desenvolver algum tipo de transtorno mental comum. Em nossa pesquisa encontramos um bom nível de escolaridade e se relacionarmos incidência de TMC com nível de escolaridade não poderemos confirmar com os dados apresentados na tabela esta correlação na amostra estudada. Indivíduos com baixa escolaridade, podem também viver em condições precárias de moradia e, consequentemente, possuírem renda consideravelmente baixa. Assim, a prevalência de TMC torna-se cada vez maior. Além disso, quanto mais se tem acesso à educação, a probabilidade de se ter melhores empregos, saúde psicológica e autoestima são maiores. Vale ressaltar, que o convívio social e/ou familiar pode influenciar na permanência ou não do indivíduo na escola. A necessidade precoce de trabalhar para ajudar no sustento familiar constitui um dos maiores motivos de evasão escolar no Brasil atualmente (LUDERNIR e FILHO, 2002). A baixa renda e baixa escolaridade associam-se às condições de moradia em que a população pesquisada vive. Ora, se alguém recebe menos de um salário mínimo e possui pouca escolaridade, é de se inferir que suas condições de moradia não sejam das melhores. Esse fator destoa um pouco com o perfil do indivíduo que foi encontrado na presente pesquisa: grande parte dos entrevistados possui casa própria e nem concluiu o ensino médio, deixando, assim, de ser um fator matematicamente válido na avaliação de prevalência de TMC. Mas a questão é que o que ocorre é o oposto, na maioria das pesquisas. A classe social na qual o indivíduo está inserido também exerce influência sobre esse aspecto, pois quanto mais alta sua classe, melhores condições de vida a pessoa possui e, portanto, menor as chances de apresentar algum transtorno mental (LUDERNIR e MELO FILHO, 2002). Apesar dos dados referentes ao estado civil e idade poderem ser considerados sincrônicos (a maior parte da população pesquisada consiste em indivíduos solteiros e em idade entre 15 e 24 anos), apenas o estado civil foi considerado matematicamente válido para a ocorrência de transtorno mental no que se refere ao cálculo de nível de significância. Os solteiros representam mais da metade da população pesquisada (52,54%), mas o nível de significância não aponta forte indicativo de transtornos mentais, P = 0,14 (faltam referências à literatura especializada na área).O que a pesquisa assinala é que os TMC são mais frequentes entre os entrevistados que são separados, casados e viúvos, mas, principalmente, entre separados e viúvos. Essas ocorrências podem variar de acordo com o sexo: mulheres casadas têm mais chance de ter depressão do que as solteiras. Com os homens, ocorre o contrário. A população de viúvos, apesar de representar apenas 4,24% da amostra pesquisada, apresenta um índice significativo de incidência de TMC. De acordo com a literatura especializada (PATEL, KLEINMANN e LIMA, 2003), a solidão, dentre outras vicissitudes da velhice, pode ser considerada um importante aspecto que se associa à incidência de TMC. Outro fator a ser investigado de forma mais aprofundada na amostra pesquisada é a relação de doenças orgânicas (34 pessoas que corresponde a 14,41% da amostra) com TMC. A literatura especializada afirma que doenças físicas predispõem o desencadeamento de TMC em decorrência das limitações e sofrimento físico e psíquico que podem acometer tais pessoas. Essa correlação entre doenças físicas e incidência de TMC é relativamente alta e pode ser também associada a fatores socioeconômicos e condições de moradia. Outro aspecto a considerar é o uso de medicamentos, que podem ter efeitos colaterais, provocando ou agravando sinais e sintomas de TMC. De acordo com COELHO (2006), em sua pesquisa também se encontra uma relação íntima entre TMC e doenças orgânicas, e afirma que muitos médicos tendem a negligenciar a influência de TMC a doenças orgânicas, tendo em vista que são as doenças orgânicas que interessam a eles. CONSIDERAÇÕES FINAIS As pesquisas epidemiológicas sobre a incidência de transtornos mentais comuns na comunidade, de modo geral, são escassas no país, e não temos conhecimento de nenhuma pesquisa desse tipo com integrantes de um movimento genuinamente popular, como é a congada. Portanto, vale destacar a originalidade deste estudo por alguns motivos, sendo um deles o fato de ter sido realizado com os congadeiros da cidade de Catalão, que compõem o mais significativo movimento popular da cidade e região; outro motivo é o fato de que a coleta dos dados foi realizada, e não teria como ser de outra forma, durante a festa de Nossa Senhora do Rosário, momento único em que todos os congadeiros estão reunidos nesse evento festivo que justifica a própria existência desse movimento popular e religioso. Além disso, o fato da pesquisa ter sido realizada por um grupo de estudantes do primeiro ano do curso de Psicologia demonstra a importância de atividades acadêmicas desde o início da formação profissional que possam levar ao desenvolvimento de habilidades investigativas e o compromisso com a produção de conhecimentos científicos na área. As congadas no Brasil se multiplicam em várias localidades. Sua disseminação e amplitude não permitem que se dê conta de todas as ocorrências, isso porque o movimento tem como característica fundamental a não institucionalização. Segundo Paula (2000), trata-se de “[...] movimentos de luta contra as imposições da cultura de massa, embora sejam tentados a fazê-lo, são os grupos de resistência cultural na tentativa de se legitimar uma identidade cultural”. Em Catalão, a congada é um movimento organizado em torno da busca da preservação das suas raízes africanas por meio da dança, das coreografias, das cores, da alegria e da festa, sendo o mais importante a celebração grupal da fé homenageando Nossa Senhora do Rosário. Trata-se deum movimento que resiste aos processos de institucionalização e burocratização, afirmando sua identidade nas manifestações populares espontâneas que produz. Em contrapartida, os congadeiros passaram a reconhecer a necessidade de se construir uma organização institucional mínima para que o movimento possa ser reconhecido pelos órgãos públicos e privados, como entidade representativa de uma comunidade organizada e, dessa forma, ter maiores possibilidades de fortalecimento de sua autonomia financeira, jurídica e social. Nesse sentido, o levantamento sociodemográfico para construção de um perfil aproximado da comunidade que compõe esse movimento popular, cultural e religioso, foi um dos nossos objetivos, juntamente com a tentativa de mapear indicativos de incidência de transtornos mentais comuns na amostra pesquisada. Para concluir, destacamos a análise de alguns dados relevantes na pesquisa O primeiro deles é o fato de que a maioria da população pesquisada é composta por homens jovens, população que comumente não aparece como sujeito de pesquisas sociodemográficas e epidemiológicas na área da saúde. Concluímos que essa particularidade da população pesquisada está relacionada com um aspecto tradicional e cultural da festa de Nossa Senhora do Rosário e da Congada, que é o fato de que os congadeiros sempre foram, em sua maioria, homens. Somente nos últimos anos é que surgiu um único terno formado por mulheres, tanto que esse terno ainda não é bem aceito pelos ternos mais tradicionais e antigos na festa. Outro aspecto a considerar é o perfil da população pesquisada, pois quando se fala de movimentos populares como a congada, geralmente são compostos por população de maioria negra e historicamente marginalizada e, portanto, mais vulnerável a baixas condições financeiras e de escolaridadee idade relativamente mais avançada, mas diferentemente disso, encontramos uma população jovem, na maioria com o ensino médio completo ou incompleto, casa própria e boas condições de moradia e ausência de problemas físicos. Por outro lado, trata-se de uma população de baixa renda familiar e com um indicativo de alto índice de transtornos mentais comuns, o que corrobora com os dados encontrados em outras pesquisas epidemiológicas em saúde mental realizadas. Concluímos que as boas condições de moradia e ensino da população jovem investigada decorrem do esforço de seus progenitores em oferecer-lhes melhores condições de vida, mas ainda assim, a baixa renda familiar e o indicativo de alta incidência de transtornos mentais apontam para as dificuldades financeiras e psicológicas enfrentadas por essa população. Os altos índices que apontam para incidência de transtornos mentais comuns encontrados se comparados com os índices encontrados na literatura especializada sobre o assunto nos coloca a demanda de investigar de forma mais aprofundada esse fato. Por fim, esperamos que o perfil encontrado nessa pesquisa por amostragem possa contribuir para os processos de autoanálise desse movimento popular e autogestão de práticas que correspondam aos anseios dos congadeiros, protagonistas dessa importante manifestação cultural e religiosa. REFERÊNCIAS BARRETO, M. L. Os determinantes das condições de saúde das populações: qual o papel do sistema de saúde? 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Ciência & Saúde Coletiva, v.4, n. 2, p. 287-303, set. 1999. * Este texto foi publicado originalmente na Espaço em Revista. 11(1), 2009. 2 CARTOGRAFIAS DE UM PROCESSO DE ANÁLISE INSTITUCIONAL EM UM CAPSAD - CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL ÁLCOOL E DROGAS: OS DESAFIOS DA POLÍTICA DE REDUÇÃO DE DANOS Ricardo Wagner Machado Silveira Diogo Rezende Willian Araújo Moura INTRODUÇÃO Atualmente, percebe-se um grande crescimento de demandas quanto à saúde das pessoas que abusam ou são dependentes de álcool e/ou drogas, como mostram algumas pesquisas epidemiológicas (CARLINI, A.; CARLINI, - COTRIN, 1991; CARLINI, A., GALDURÓZ, NOT e NAPPO, 1997, 2002; NOTO, A.R.; CARLINI, 1995; ALMEIDA et. al., 1992), sem mencionar que, como enfatizam Silveira e Moreira (2006), a questão do uso e abuso de substâncias psicoativas tem estado bastante em voga na mídia, em campanhas eleitorais e estratégias governamentais. Historicamente, o uso dessas substâncias tem sido significado e tratado como pecado, crime e, mais recentemente, como doença, culminando numa guerra às drogas. Diante disso, consideramos necessário ampliar os focos de análise e significação abarcando, na medida do possível, os contextos complexos onde as histórias de vida acontecem. Assim sendo: Temos a urgência da tolerância e da necessidade de mudança de paradigma: continuar excluindo o dependente que não consegue ou não deseja a sobriedade colocaria todos em risco. As estratégias pragmáticas da Redução de Danos começam a desmanchar as trincheiras da ineficaz “guerra às drogas”. Abre-se espaço para se falar de serviços “amigáveis” ao dependente. Finalmente, acenamos para o grande desafio: entender o outro, o diferente, e incluí-lo. A moderação frente ao objeto de desejo passa a ser uma alternativa possível. (SILVEIRA e MOREIRA, 2006, p. 4). Surge a Redução de Danos (RD) como política e prática de saúde pública fundamentada na ideia de minorar o efeito deletério do consumo de drogas por meio de diversos procedimentos, como a distribuição de seringas entre usuários de drogas injetáveis e a substituição de drogas mais disfuncionais do ponto de vista biopsicossocialpara as menos disfuncionais. Contudo, mais do que isso, RD é uma mudança na relação do sujeito com a droga a partir da autonomia dele e da não priorização da abstinência para que o tratamento se realize, isto é, uma possibilidade das pessoas fazerem sua própria história. “É tratar as pessoas não pelo que elas têm ou pelo que aparentam, mas pelo que elas são como seres singulares” (LANCETTI, 2006, p. 61). A RD é uma das políticas atuais privilegiadas pelo Governo Federal para o tratamento do abuso e dependência de álcool e outras drogas, juntamente com a implantação da rede substitutiva de atenção à saúde mental, que encontra nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) um de seus mais importantes dispositivos. O Ministério da Saúde (BRASIL, 2004) apresenta como princípios e diretrizes da política de Saúde Mental a desinstitucionalização e a reorientação do modelo assistencial com vistas à humanização no tratamento de portadores de sofrimento mental, privilegiando os casos mais graves, como neuróticos graves, psicóticos, egressos de internações psiquiátricas, os que fazem abuso e/ou sofrem de dependência de álcool e outras drogas. Essa política vem se efetivando por meio da reestruturação dos serviços de saúde mental com a implantação de novas tecnologias de cuidado, a reformulação das leis, a construção de um lugar para a loucura, o resgate da cidadania do usuário do SUS, a redução gradual dos leitos psiquiátricos e a ampliação da rede substitutiva que garanta o cuidado em saúde mental. Os Caps são estabelecimentos que visam a acolher os pacientes com transtornos mentais, pretendendo fortalecer os laços sociais do usuário e integrá-lo ao território onde vive, além de prestar atendimentos médico e psicológico. Nessa perspectiva, ante o crescimento de demandas quanto à saúde das pessoas que abusam ou são dependentes de álcool e/ou outras drogas, o Ministério da Saúde, em 2002, cria o CAPSad, que se torna serviço de referência na rede de saúde mental para implementação das políticas de promoção da saúde, prevenção e tratamento dos pacientes com abuso/dependência de álcool e drogas (BRASIL, 2004). O CAPSad deve funcionar como instância de planejamento e implementação de múltiplas estratégias de redução de riscos e danos causados pelo abuso e dependência de substâncias psicoativas, propiciando o fortalecimento de fatores de proteção da saúde, prevenção e tratamento por meio de intervenção terapêutica eficiente, inserção comunitária e colaboração de outros segmentos sociais. Os CAPSad devem oferecer atendimento diário a pacientes que fazem um uso prejudicial de álcool e outras drogas, permitindo o planejamento terapêutico dentro de uma perspectiva individualizada de evolução contínua. Possibilita ainda intervenções precoces, limitando o estigma associado ao tratamento. Assim, a rede proposta se baseia nesses serviços comunitários, apoiados por leitos psiquiátricos em hospital geral e outras práticas de atenção comunitária (ex.: internação domiciliar, inserção comunitária de serviços), de acordo com as necessidades da população-alvo dos trabalhos. Os CAPSad desenvolvem uma gama de atividades que vão desde o atendimento individual (medicamentoso, psicoterápico, de orientação, entre outros) até atendimentos em grupo ou oficinas terapêuticas e visitas domiciliares. Também devem oferecer condições para o repouso, bem como para a desintoxicação ambulatorial de pacientes que necessitem desse tipo de cuidados e que não demandem por atenção clínica hospitalar. (BRASIL, 2004, p. 24). Tendo como um de seus compromissos fundamentais as diretrizes de políticas públicas para a saúde mental citadas acima, realizamos a pesquisa Análise Institucional do Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas (CAPSad) da Rede de Atenção à Saúde Mental, cujo objetivo inicial era lidar com os impasses e problemas de gestão de processos técnicos, organizacionais e do trabalho em equipe que têm dificultado a realização da missão desse serviço de saúde mental na rede pública de saúde da cidade, propiciando espaços de reflexão, gerando novos saberes e novas práticas e que tem como um de seus resultados o presente capítulo. Temos a Análise Institucional como um de nossos principais intercessores, uma referência teórico/metodológica que tem nos ajudado a problematizar as histórias contadas e não contadas no cotidiano desse serviço, tendo em vista a explicitação dos não ditos, a criação de possibilidades de um maior protagonismo de todos os atores que compõem essa complexa realidade analisada. A intenção é que a análise, gestão e avaliação contínua dos processos seja sempre coletiva, potencializando a criação de saberes e práticas inovadoras e heterogêneas. 2.1 SOBRE A ANÁLISE INSTITUCIONAL A Análise Institucional é uma das correntes do Movimento Institucionalista, um movimento transdisciplinar que rejeita padrões e verdades pré-concebidas, luta contra toda forma de discriminação, exploração e dominação social, utiliza conceitos e instrumentos desenvolvidos para a análise e intervenção nas instituições, visando à autoanálise e à autogestão dos coletivos envolvidos (BAREMBLITT, 2002; L’ABBATE, 2003; PEREIRA e PENZIM, 2007). As instituições se caracterizam por ser um sistema de normas, que incluem os modos como os indivíduos concordam, ou não, em aderir a essas normas e, assim, as relações sociais reais e as normas sociais também fazem parte do conceito de instituição. A instituição não atua a partir do exterior para regular a vida de grupos ou condutas dos indivíduos, mas “atravessa todos os níveis dos conjuntos humanos e faz parte da estrutura simbólica do grupo, do indivíduo” (LOURAU, 2004b, p. 71). O CAPSad pode ser visto como um estabelecimento, lugar onde se “materializam” as instituições, as normas e regras que se concretizam por meio de dispositivos técnicos, instalações, procedimentos e redes comunicacionais que enunciam a composição de forças instituintes e instituídas em jogo num dado contexto ou processo a ser analisado. O instituinte refere-se às forças de contestação e à capacidade de renovação e transformação institucional. Já na dimensão instituída, podemos perceber a ordem estabelecida, os valores e os modos de representação e de organização considerados normais. O instituinte e o instituído constituem os dois polos de forças que dinamizam a vida institucional das organizações, estabelecimentos e equipamentos sociais (LOURAU, 2004a, 2004b, 2004c; BAREMBLITT, 2002). Para iniciar uma Análise Institucional, é fundamental compreender institucionalmente a dinâmica do estabelecimento. No nosso caso, trata-se de compreender melhor o pedido de análise e intervenção que nos foi feito pela equipe do CAPSad, em que condições esse pedido se produziu, quais os aspectos conscientes, manifestos e voluntários desse pedido, quais os aspectos inconscientes, latentes ou não ditos. É preciso, então, fazer uma análise da produção da demanda. Enquanto analistas institucionais, temos a necessidade de fazer uma análise contínua de nossa implicação, de nosso compromisso sócio-econômico- político-libidinal, com a tarefa investigativo-interventiva a que nos propomos realizar. A título de esclarecimento, nosso maior intuito não é analisar com a devida profundidade o processo implicacional ocorrido – consideramos essa uma empreitada que merece a produção de um estudo à parte. Nossa maior intenção é apresentar, de forma clara e concisa, todo o processo de investigação-intervenção realizado, com destaque para alguns efeitos produzidos pelos analisadores: roda de autoanálise e observação participante. O pesquisador/analista institucional deve atentar-se e procurar identificar os chamados analisadores, fenômenos produzidos espontaneamente pela própria dinâmica institucional ou construídos pelos pesquisadores, com finalidade investigativo-interventiva, por serem eles constituídos de materialidade expressivaheterogênea, que manifestam e denunciam aspectos institucionais conflitantes, reprimidos, inconscientes, ao mesmo tempo em que contêm os elementos para dar início ao processo de seu próprio esclarecimento. Segundo Lourau (2004b, p. 69- 70): “[...] é o analisador que realiza a análise [...] chama-se analisador, em uma instituição de cura, aos lugares onde se exerce a palavra, bem como a certos dispositivos que provocam a revelação do que estava escondido”. O papel do pesquisador/analista institucional é criar condições para que os analisadores possam evidenciar-se, sendo assumidos e autoanalisados por seus protagonistas. Não cabe ao analista institucional o papel de explicar ou interpretar materiais de análise, mas, trazer à tona os elementos que compõem um conjunto e transformar a palavra terapêutica em palavra política, liberada e liberadora. Baremblitt (2002) diz que as diferentes escolas do Movimento Instituinte se propõem a apoiar e irromper nos coletivos processos de autoanálise e autogestão, os dois objetivos básicos do Institucionalismo. A autoanálise seria um processo coletivo em que acontece a produção e apropriação de saberes acerca de si mesmo, saberes muitas vezes desqualificados como ignorantes pelos saberes científicos instituídos. A autogestão é simultânea e articulada com o processo de autoanálise, uma vez que, enquanto se autoanalisa, o coletivo se auto-organiza e se autogere, isto é: “A autogestão visa participação e a transformação da comunidade que se autodirige, se autocritica (autoanálise) e estabelece diretrizes, pautas e leis para o êxito de seu empreendimento” (PEREIRA, 2001, p. 136). Os processos de autoanálise e autogestão, ao mesmo tempo em que são os objetivos principais das intervenções institucionalistas, são também os próprios meios para realizá-las. A nosso ver, a autoanálise e a autogestão, como operadoras de uma análise institucional, têm grande coerência e ressonância com os princípios de corresponsabilização pelos processos de saúde-doença- cuidado defendidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), cujos atores sociais envolvidos são protagonistas de práticas inovadoras ou conservadoras de uma política de promoção, prevenção, reabilitação e reinserção social dos usuários da rede de atenção em saúde mental. Fazer a análise institucional de um serviço como o CAPSad implica uma análise das instituições que atravessam e influenciam a constituição dos saberes e práticas produzidas por esse estabelecimento dentro de um contexto social e historicamente determinado. Por isso, trata-se de um esforço em mapear a relação de forças instituintes e instituídas, que foram construindo historicamente o serviço e que configuram o campo de análise, o cotidiano de práticas de gestão, organização, planejamento, execução e avaliação das atividades realizadas pelo CAPSad na atualidade. Para tanto, façamos um sucinto resgate de fatos marcantes na história da implantação e manutenção do estabelecimento em análise. Em 2005, foi criado o CAPSad II, pela Secretaria Municipal de Saúde da cidade e, durante os primeiros três anos, o serviço privilegiava a lógica da abstinência com pouca adesão dos usuários ao serviço, com uma coordenação definida por critérios mais políticos que técnicos e uma equipe terapêutica despreparada para o trabalho com os usuários de drogas e suas famílias. No final de 2008, com a demanda crescente de atendimento na área, o serviço enfrentava grandes dificuldades quanto à integração da equipe e inoperância do serviço, o que culminou numa intervenção feita pela coordenação de saúde mental local que visava à reestruturação do serviço, balizada pela política de Redução de Danos. Definiu-se uma nova coordenação, eleita pela própria equipe de profissionais, e o processo de reestruturação do projeto clínico- institucional do serviço ganhou força. Nessa mesma época, várias comunidades terapêuticas do município foram fiscalizadas e fechadas a partir de denúncias feitas ao Ministério Público de maus- tratos e cárcere privado de usuários que procuravam esses estabelecimentos. A partir desse processo de fiscalização e intervenção nas comunidades terapêuticas, foi se constituindo uma fecunda aproximação entre os gestores dos serviços de saúde mental local e as instâncias jurídicas e legislativas municipais, que levaram a um debate mais ampliado sobre a política municipal de prevenção e tratamento ao uso abusivo e à dependência de álcool e outras drogas. Como era de se esperar, a demanda de atendimento e de acolhimento de crises no CAPSad aumentou de forma abrupta e significativa. Foi nesse contexto profícuo de crise e mudança que a coordenadora do CAPSad nos convidou a realizar a pesquisa-intervenção aqui relatada, que teve início no primeiro semestre de 2009 e continua em curso. 2.2 SOBRE A METODOLOGIA SOCIOANALÍTICA A Análise Institucional pressupõe a participação de todos os atores sociais envolvidos de forma autoanalítica e autogestiva, desconsiderando padrões, caminhos prontos e verdades pré-concebidas: A análise institucional implica um descentramento radical da enunciação científica. Mas, para consegui-lo, não basta dar a palavra aos sujeitos envolvidos – às vezes uma questão formal, inclusive jesuítica. Além disso, é necessário criar as condições de um exercício total, paroxístico mesmo, desta enunciação. A ciência nada tem a ver com medidas justas e compromissos de bom-tom. Romper, de fato, as barreiras do saber vigente, do poder dominante, não é fácil [...] É todo um novo espírito científico que precisa ser refeito. (GUATTARI, 1977 citado por LOURAU, 2004b, p. 66). Para tanto, foi necessária a escolha de uma metodologia de pesquisa coerente com tais pressupostos teóricos e políticos e que pudesse responder à altura às demandas presentes no campo de intervenção-investigação. Para Isso, elegemos o método de pesquisa-intervenção por considerá- lo mais coerente com nossas intenções, pela riqueza em possibilidades de efetivação prática e pela produção de dados. O método de pesquisa-intervenção se caracteriza por ser uma forma de realizar pesquisa que parte de um modo de ação não prescritivo, sem regras nem objetivos previamente formulados, sem que com isso se tenha aqui uma ação sem direção. O processo investigativo “[...] se faz por pistas que orientam o percurso da pesquisa sempre considerando os efeitos do processo do pesquisar sobre o objeto da pesquisa” (PASSOS, KASTRUP e ESCÓSSIA, 2009, p. 17). Dessa forma, a pesquisa se faz de maneira indissociada da intervenção, de modo que a própria prática de pesquisar trará em si práticas interventivas que irão agir diretamente conectadas com todas as forças em movimento na instituição, para que o percurso da pesquisa se trace na processualidade e complexidade dos acontecimentos investigados. O processo investigativo-interventivo caracterizou-se por pesquisas bibliográficas e documentais, pela busca e levantamento dos analisadores históricos de tal estabelecimento, assim como por uma inserção direta na rotina do serviço mediante dois dispositivos analisadores construídos: as observações participantes da rotina de trabalho ao longo da semana e a constituição de reuniões quinzenais com a equipe de trabalhadores do CAPSad (chamadas “rodas de autoanálise e autogestão”), visando a um melhor conhecimento da história e da estrutura do CAPSad, de seus protagonistas e suas relações, das forças instituintes e instituídas em jogo naquele contexto. 2.3 SOBRE O PROCESSO IMPLICACIONAL Para a análise da implicação dos pesquisadores, realizávamos sistematicamente nossa roda de autoanálise, com a finalidade de aprofundamento do estudo e domínio dos referenciais teórico-técnicos que fundamentam a pesquisa, para a análise dos dados e da implicação, do planejamento de ações e avaliação das mesmas em cada etapa do processo. Na fase exploratória do campo de análise e intervenção, estabelecemos umprimeiro levantamento dos problemas prioritários, identificando expectativas, apoios e resistências, convergências e divergências de posições no coletivo analisado como parte do que é tradicionalmente chamado de diagnóstico. Aqui, ocorreu prioritariamente a análise da produção da demanda, isto é, quais seriam as razões explícitas e implícitas que levaram a ocorrência da análise institucional do CAPSad, lembrando que uma demanda implícita refere-se a tudo aquilo que o grupo solicitante não consegue enxergar, seja por questão de recalcamento, repressão ou desconhecimento. Vale dizer que, na análise da demanda, um dos aspectos mais relevantes foi a análise da oferta de nossos serviços, o que implicava questionar: quais os motivos implícitos e explícitos que levaram a coordenadora do CAPSad e sua equipe a nos demandar uma análise institucional? Quais as fantasias e expectativas que se estabeleceram em torno de nosso trabalho enquanto analistas institucionais? Enfim, em que medida a demanda foi influenciada pela oferta de serviços de um grupo de pesquisadores e pretensos analistas institucionais? A análise da implicação passa pela análise da demanda e da oferta numa tentativa de desconstrução das ilusões da neutralidade analítica. De qualquer modo, é sempre o analisador quem dirige a análise. E o importante para o investigador é tudo aquilo que lhe é dado por sua posição nas relações institucionais. Desde o início e durante algum tempo, fomos investidos de várias expectativas salvacionistas por parte da equipe que compunha a roda de autoanálise. Por várias vezes, escapávamos desse lugar, tentando desviar a atenção da roda pra ela mesma e suas potencialidades de resposta a qualquer das demandas em pauta. Outras vezes, arriscávamos uma atitude mais diretiva, “correspondendo” às expectativas salvacionistas, pois avaliávamos que, naquele momento, essa era a melhor saída para os impasses que se impunham, sempre tendo em vista a busca da autoanálise e autogestão do coletivo. Sempre foi de fundamental importância o exercício sistemático de análise das implicações (feito pela equipe de pesquisadores) do papel que desempenhávamos em cada acontecimento vivido e seus efeitos no contexto de análise e intervenção. Partindo do princípio de que os grupos deveriam se tornar protagonistas de suas histórias por meio de sua autoanálise, criamos dois dispositivos analisadores: a roda de autoanálise e as observações participantes, ferramentas que podem gerar acontecimentos e devires, que podem responder a uma dada urgência, que, em última instância, estão a serviço da produção de novos modos de ser e se relacionar enquanto coletivo organizado em busca de novas formas de ser equipe, de cuidar e ser cuidado, de fazer uma clínica ampliada, engajada politicamente na luta pela cidadania e reinserção social dos usuários de drogas. No tortuoso acontecer das rodas de autoanálise e autogestão, num movimento descontínuo que oscilava entre a autogestão criativa e instituinte e a sujeição conservadora e instituída, a equipe foi tecendo outro importante analisador na/da sua rotina, as assembleias, em que todos os atores que fazem parte do serviço tinham, ou pelo menos deveriam ter, o poder da voz e do voto. Ao final de cada uma das observações participantes e das rodas de autoanálise com a equipe do CAPSad, era feito o registro por escrito de tudo o que havia acontecido para posterior análise dos dados produzidos em rodas da equipe de pesquisadores. À medida que começou a funcionar, a roda de autoanálise e autogestão foi gradativamente propiciando a explicitação dos conflitos, tornando-se manifesto o jogo de forças em embate, os desejos, interesses e fantasmas dos segmentos organizacionais, fazendo com que a instituição mostrasse suas contradições, seus limites e possibilidades (BAREMBLITT, 2002; L’ABBATE, 2003). 2.4 MAPEANDO O CAMPO DE FORÇAS Um dos resultados esperado foi que a roda se tornasse uma atividade incorporada na rotina do serviço e que pudesse funcionar efetivamente como instância de autoanálise das práticas ali realizadas, operando como autogestora de novas práticas e saberes, alimentando circuitos de troca, mediando aprendizagens recíprocas e/ou associando competências. É por estarem em roda que os atores sociais envolvidos criam possibilidades à realidade vivida no cotidiano. Durante a realização da pesquisa-intervenção, apareceram nas rodas realizadas junto à equipe do CAPSad várias queixas recorrentes: dificuldades de comunicação na equipe e entre turnos; a insuficiência de recursos para fazer funcionar uma potência terapêutica devido à falta de capacitação profissional e de reconhecimento do papel específico de cada um; a falta de integração e solidariedade dos membros da equipe no manejo dos casos; a burocratização das práticas e da rotina do serviço; a falta de recursos e materiais básicos para o funcionamento do serviço e a desvalorização do profissional de saúde, sempre muito mal remunerado e desmotivado para o trabalho. Além disso, a lida diária com casos difíceis e complexos gera na equipe um sentimento de insuficiência e fracasso terapêutico quando a meta restringe-se à abstinência. A nosso ver, boa parte da equipe tinha grande dificuldade em aderir à implantação da política de Redução de Danos, que opera na contramão de práticas instituídas de exclusão “asséptica” dos que não aderem à lógica da abstinência e de terror e repressão ao uso de drogas, com a criminalização e preconceito ao dependente de álcool e outras drogas. É realmente difícil deslocar-se do lugar comum em que prevalece uma clínica pautada exclusivamente pela lógica da abstinência e do corte abrupto do uso da droga, para ascender a uma clínica que irá trabalhar o mais próximo possível da pessoa que usa a droga, que não consegue ou não quer abster-se dela e, a partir desse lugar, ir construindo, gradativamente, delicadamente, um vínculo, um lugar de negociação e terapêutica exequível, em que o usuário possa mobilizar seu lado saudável e passar a cuidar, mesmo que minimamente, da própria vida. Trata-se de uma clínica que não se conforma com os ditos “casos perdidos”, que não desiste nunca, que não reduz o paciente à sua dependência, mas consegue vislumbrar um projeto de vida, de autonomia e de liberdade quando o que se apresenta aos nossos olhos parece ser um projeto hedonista e mortífero. O que acontecia no CAPSad era uma dificuldade da equipe em lidar com a ideia de uma clínica que visa à construção da liberdade do paciente, que é muitas vezes confundida com uma espécie de libertinagem e conivência com a dependência de álcool e outras drogas. Questões que surgem em algumas rodas de autoanálise estão ligadas a isso. Vários membros da equipe se perguntavam sobre os parâmetros dessa liberdade. Até que ponto se pode lidar com o paciente, colocando limites com assertividade sem que isso se torne controle e disciplina despótica. Os terapeutas pareciam estar em busca de protocolos objetivos, supostamente seguros e resolutivos, como forma de se esquivarem do desafio de construção processual de uma clínica que se fortalece a partir da construção de redes solidárias e de cuidado que são gestados, muitas vezes, em contextos inóspitos, em que a precariedade das condições de vida e o risco iminente da recaída fazem parte do cotidiano vivido. Era claramente perceptível na equipe a dificuldade em saber acolher o paciente resistente ao tratamento, em crise, que não consegue parar de usar drogas e alcançar a almejada abstinência. Até que ponto acolher? Qual o limite entre continência e contenção? Essas eram questões sempre presentes e, assim, o acolhimento se tornou tema fundamental a ser problematizado pela equipe no dia a dia: como devemos agir em relação ao portão de entrada do serviço? O paciente pode sair quando quiser, drogar-se e depois voltar quando lhe convier? É relevante dizer que a roda de autoanálise
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