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�������� ������ � ��� � ���������������������������� �������� ��� �� E24 Educação infantil [recurso eletrônico] : para que te quero? /Carmem Maria Craidy, Gládis Elise P. da Silva Kaercher, organizadoras. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre : Artmed, 2007. Editado também como livro impresso em 2001. ISBN 978-85-363-1162-3 1. Educação Infantil. I. Craidy, Carmem Maria. II. Kaercher, Gládis Elise P. da Silva CDU 373.2 Catalogação na publicação: Juliana Lagôas Coelho – CRB 10/1798 Educação Infantil 139 á-gua! (...) Isso! Água! Bem fresquinha! Bem gostosa! Pra matar a sede! (...) Cadê a água que tava aqui no copo? (...) Tá na barriga do Marcelo, tá? E assim por diante... Caso Marcelo não se anime ou não entre no jogo de aten- der ao seu desafio de que fale com a boca e não com gestos o que quer, o fato de o adulto ter verbalizado o nome da coisa desejada – “água”, por exemplo –, e não simplesmente tenha providenciado, em silêncio, o que a criança deseja, já é uma contribuição importante para que a criança, num tempo que é seu, vá se soltando, balbuciando, pronunciando sons que se assemelham ao que ela tanto quer. A TELEVISÃO E O VÍDEO Nos dias de hoje, a televisão tem sido uma companhia frequente na vida de nossas crianças, ocupando muitas vezes o lugar da companhia do pai e da mãe, seja com o consentimento, com a negligência ou a falta de recursos das próprias famílias. Estruturadas em outros moldes, as famílias de hoje nem sempre contam com o pai e a mãe; muitas vezes, as crianças são criadas por uma terceira pessoa da família, como uma avó, por exemplo; ou então, en- quanto os adultos da casa trabalham, elas ficam aos cuidados de uma vizinha, que, não raro, é poucos anos mais velha que as próprias crianças. Além do mais, quando os adultos – pai, mãe, enfim – chegam do trabalho, começa, principalmente para as mulheres, uma outra jornada de trabalho – a domésti- ca –, na qual a mulher vai encaminhar o banho das crianças, preparar o que comer – muitas vezes prepara o jantar daquele dia e já deixa pronta a comida do almoço do dia seguinte –, numa sucessão de tarefas indispensáveis à orga- nização e à manutenção dos cuidados básicos da vida das crianças – como higiene e saúde –, na qual as conversas sobre como foi o dia das crianças, as brincadeiras com os filhos, os momentos de contar histórias, cantar juntos, os carinhos, acabam excluídos, sem tempo, sem lugar na rotina. É nessas horas, geralmente, que entra a televisão: enquanto a mãe prepara o jantar, o pai poderia estar organizando o banho dos filhos. Mas nem sempre isso acontece. O que vemos é uma mãe assoberbada, que dá graças a Deus que as crianças se interessam e ficam assistindo à tevê enquanto ela pode preparar o que comer para todos. A hora de comer é quase sempre silenciosa e quando acabam de jantar, estão quase todos tão mortos de sono e cansaço, que os afetos e as falas acabam-se reduzindo aos “boa-noite”, “durma bem”, “a bênção, mãe, a bên- ção pai”. Por que será que é tão difícil para os adultos terem conversas signi- ficativas e prazerosas – para ambos – com seus filhos? Mas, pensando bem, se repararmos com cuidado, vamos nos dar conta que mesmo entre eles – mari- do e mulher – a conversa é pouca. Por que será? Com quem, então, as crianças vão aprender o significado, a extensão, as regras, as maravilhas do ato de falar? Com a televisão? Com as profissionais da creche e da pré-escola? 140 Craidy & Kaercher Durante o dia, de volta da escola, seja na casa da vizinha que toma conta, ou junto com a avó que fica em casa, as crianças também estão diante da tevê – em geral, em silêncio, sem conversar com ninguém sobre o que estão vendo e ouvindo na telinha mágica. Sim, porque esses adultos que tomam conta das crianças, em geral, exercem um papel de supervisão básica em relação aos cuidados e à segurança delas; muito raramente brincam ou conversam com elas. A cargo de quem fica, então, o desenvolvimento da linguagem oral das crianças? Em que contextos a linguagem se desenvolverá? Com que agentes essas crianças interagirão para que a linguagem oral possa ser exercida com sentido e fluência? Pois bem. Diante de tudo o que foi dito até agora em relação à qualidade de interação dos adultos junto aos pequenos, as horas de companhia que a tevê faz às crianças trazem muitas contribuições ao desenvolvimento da lin- guagem oral delas. Por quê? Porque apresentam às crianças inúmeras situa- ções em que a fala é algo fundamental para conduzir as vidas dos persona- gens que se relacionam nas tramas que as crianças tanto gostam, seja os dese- nhos animados, os programas educativos ou as novelas. Porque através da programação da tevê as crianças têm acesso a modelos de falantes que, em geral, ao se expressarem verbalmente, se aproximam mais da maneira das pessoas instruídas falarem, possibilitando a elas conhecer a maneira correta de falar, como também comparar com os jeitos de falar dos demais adultos e crianças com os quais se relacionam. E olhe que até na televisão as pessoas instruídas ou que fazem personagens instruídos nas novelas, por exemplo, cometem erros, às vezes até grosseiros, de concordância, conjugação, enfim. Além da maneira culta de falar, as crianças também têm acesso a um repertó- rio vocabular mais extenso e diversificado, devido à variedade da programa- ção, incluindo aí as propagandas comerciais. Nesse sentido, até mesmo mui- tos pais e profissionais de creche e pré-escola teriam que aprender com a televisão. No entanto, tanto em casa como na escola, não adianta nada deixar as crianças sozinhas na frente de uma tevê, assistindo a algum programa ou a uma fita de vídeo, se o adulto não as acompanha nas incursões sobre o que estão vendo. Perguntar às crianças por que gostam de um programa e não de outro; o que elas gostam mais e menos do programa; que personagens elas gostam ou não e por quê; discutir o capítulo da novela ou o episódio do pro- grama do dia – como o “Castelo Ra-tim-bum”, por exemplo –; contar também com livro, a história a que vão assistir ou já assistiram no vídeo – como o “Rei Leão” ou “Branca de Neve”, por exemplo –, fazendo comparações entre a ver- são do livro e a do vídeo; “desmontar” a história, pedindo que as crianças a recontem, digam quem são os personagens, saber que parte acham mais triste e mais alegre, qual dá mais medo, e assim por diante, são situações de funda- mental importância não só para o desenvolvimento da linguagem oral das crianças como também para a vida afetiva e emocional das mesmas. Carinho, atenção, interesse, expressos através de conversas e bate-papos – e até de Educação Infantil 141 broncas e discussões mais sérias e não menos necessárias – sobre atitudes das crianças ou questões relativas à organização do cotidiano, de leitura de histó- rias, de assistir juntos e comentar um programa da tevê, do simples folhear de revistas comentando sobre as figuras, de cantorias em conjunto, de saudações calorosas, de observações e brincadeiras verbais em relação a momentos da rotina, entre outros exemplos – são imprescindíveis para se exercer e desen- volver o afeto e a linguagem oral das crianças e dos adultos – e essas práticas não são uma exclusividade da escola de educação infantil. Nem, tampouco, devem perder espaço para a companhia da televisão. LENDO E ESCREVENDO COM AS CRIANÇAS Não é por acaso o emprego, no gerúndio, dos verbos ler e escrever, no título e subtítulo deste texto. Essa forma do verbo quer dizer que, na educação infantil, estaremos, em processo, lendo e escrevendo com as crianças, ou seja, começaremos a exploração da linguagem escrita com elas e continuaremos a fazê-lo – sem o compromisso ou o objetivo de afabetizá-las – até o final deste período da escolaridade. Isso não quer dizer, no entanto, que estamos fugindo da raia, ou que não é da nossa responsabilidade atender as demandas das crianças em relação à leitura e à escrita. Ao contrário, devemos estar prepara- dos para responder às crianças à altura de sua curiosidade – para não desper-diçarmos suas potencialidades, para não lhes negar o conhecimento a que têm direito, para não desanimá-las e confundi-las, nem empobrecê-las nas suas iniciativas de se relacionar com a complexidade do mundo. Para evitar- mos este tipo de desigualdade e constrangimento, devemos estar teórica e praticamente informados, atualizados e isso é possível quando investimos na continuidade de nossa formação profissional, quando refletimos sobre o pro- cesso de construção de nossa própria atividade pessoal. Quer dizer, portanto, que prática e concretamente, com base tanto na nossa experiência quanto nos nossos estudos sobre as teorias que se tem pro- duzido sobre ler e escrever na educação infantil, estaremos enveredando com as crianças pelo universo maravilhoso da leitura e da escrita, do jeito mais simples e direto que existe, ou seja, lendo e escrevendo junto com elas. Isso mesmo, seguindo a trilha apontada pelo poeta Carlos Drummond de Andrade, que nos diz que “amar se aprende amando”. Pois é, andar de bicicleta também se aprende andando de bicicleta; nadar, nadando; desenhar, desenhando; andar e falar, andando e falando; dirigir um carro, dirigindo; tocar um instrumento, tocando; cozinhar, cozinhando; costurar, costurando; operar um computador, falar uma outra língua, namorar, separar-se, casar-se, ser mãe, ser pai, enfim... A lista é ilimitada. Na nossa vida de adultos, é só começarmos a pensar e já nos damos conta das coisas que aprendemos a partir da prática refletida, de ações concretas e das avaliações dessas ações, da vivência com e sobre os 142 Craidy & Kaercher objetos que nos desafiaram, por desejo ou necessidade, a conhecê-los, a desvendá-los. Com as crianças, na hora de ler e escrever, não é diferente. Tanto para as crianças quanto para os adultos, este processo de ação e reflexão sobre o ato de ler e escrever passa por uma fase que, se não for muito bem explorada, certamente comprometerá o êxito desta empreitada. Sabem qual? A de entender por que se deve, se precisa ler e escrever. Em outras palavras, qual é o sentido da leitura e da escrita na vida das pessoas. Em outras palavras ainda, pra que se deve aprender a ler e escrever, qual o uso, a utilida- de dessa linguagem na vida cotidiana? Ou seja, qual a função social da escrita? Se o adulto aprende, através das dificuldades impostas pela realidade – como a negativa ou a exclusão diante de trabalhos melhores, para os quais é preciso saber ler e escrever; ou na rotina diária, quando precisa tomar um ônibus, escrever uma carta ou deixar um bilhete para alguém, preparar uma lista de supermercado ou entender as anotações que o dono do armazém fez na sua caderneta; ou ainda entender os termos de um documento que requer sua assina- tura, firmando contratos ou acordos, entre outros exemplos –, qual o sentido e o valor de saber ler e escrever na sociedade em que vivemos, é preciso, em relação às crianças, discutir o valor dessa linguagem tanto na vida delas – pre- sente, imediata, cotidiana –, quanto os motivos pelos quais ela existe neste pla- neta. Nesse sentido, seria importante investigar junto com elas onde é que encontramos as letras, tanto no mundo em que elas vivem como no mundo de modo geral. Além disso, por que será que elas estão lá? Para que será que elas servem? Será que elas sempre existiram ou foram inventadas em alguma épo- ca específica da história da humanidade? E com que objetivo? O que as crian- ças poderiam aprender, descobrir, inventar, se soubessem ler e escrever? No entanto, é importante lembrar, essas pesquisas e discussões só farão sentido se houver da parte das crianças indícios de que estão interessadas nesse universo da leitura e da escrita. Do contrário, é nadar contra a corrente ou, pior; é forçar a barra. Alguém já disse que quando alguma coisa faz senti- do para alguém, esse alguém consente em organizar suas energias, seus co- nhecimentos adquiridos, seu tempo, para se dedicar e aprender aquela coisa que lhe faz sentido. Do contrário, se não lhe faz sentido, não tem por quê. Num trocadilho, tal afirmação ficaria escrita da seguinte maneira: COM SENTIDO = CONSENTIDO SEM SENTIDO = NÃO CONSENTIDO Pois bem, com as crianças, principalmente com elas, é assim também. E isso se aplica a qualquer aprendizado que os adultos queiram apresentar e explorar junto a elas, seja na escola de educação infantil, seja em casa, com a família, vizinhos, etc. Por outro lado, se não devemos nadar contra a corrente ou forçar a bar- ra, também não podemos nos fazer de desentendidos, fingindo que não estamos nos dando conta do interesse das crianças pelas questões relativas à leitura e à escrita, porque decidimos, a priori, que estas questões devem ser trabalha- Educação Infantil 143 das apenas a partir da primeira série do primeiro grau. Até lá, finjo que não ouço, não vejo, não sei e nego às crianças o direito que elas têm de receber informações a respeito de uma linguagem através da qual, ao explorá-la junto com seus colegas e mestres, terá a possibilidade de se relacionar consigo mes- ma e com o mundo numa outra qualidade de interação. Atentos e sensíveis às crianças, podemos partir do princípio paulofreireano que não há ninguém que saiba tudo nem ninguém que ignore tudo. Partir do princípio que as crianças já sabem sempre alguma coisa a respeito do que querem aprender, e que devemos ser capazes de fazer esse conhecimento que elas trazem vir à tona. Registrar esse conhecimento, pois só o que está regis- trado possibilita avaliação, seja escrita, desenho, fotografia, recorte e colagem, etc. (Como dá para você saber que cara você tinha quando era bebê, se não tiver uma fotografia daquela época? Como comparar o seu traço no desenho ou sua letra no decorrer dos anos? Como acompanhar os processos de compo- sição da figura humana ou de escrita de uma mesma palavra – a palavra “macaco”, por exemplo: A A O, MA A O, MA CA O, MACACO – pelas crianças, se você não organizou um arquivo de desenhos e de escritas dos seus alunos? Como avaliar se as crianças estão recortando com mais precisão, colando sem exagerar na cola ou deixar orelhas nos cantos das figuras, se você não tiver um acervo de produções dessa natureza? Ah! E não se esqueça de colocar o nome da criança e a data em que a produção foi realizada, senão tudo conti- nua igual!). Valorizar esse conhecimento, ainda que ele esteja desorganizado, equivocado. Problematizá-lo – através de pesquisas a fontes diversas de infor- mações: livros, jornais, revistas, enciclopédias, vídeos, passeios, relatos de familiares, especialistas, dos próprios colegas de sala, etc., para que a criança repense o que sabe, confirmando ou transformando suas hipóteses, criando outras novas, tornando mais complexo seu modo de pensar e de agir, sentin- do-se cada vez mais segura e autônoma no seu jeito de olhar e interagir com o mundo ao seu redor. É importante criar – e garantir – na rotina do grupo, situações em que as crianças e sua professora ou o adulto responsável pelo grupo leiam e escre- vam, explorando as relações entre a utilização da linguagem escrita com a organização do mundo em que vivem. Exemplos: – confeccionar livros de histórias, com textos e ilustrações das crianças (a professora pode e deve participar como escriba, de acordo com a realidade do grupo, registrando o texto no momento de sua criação; as crianças o copiariam num segundo momento, na forma definitiva do livro, por exemplo); – confeccionar livros que tratam de assuntos específicos que o grupo esteja estudando, como por exemplo: o fundo do mar, os desertos, o céu, os animais, a cidade ou o bairro onde moram, etc. (além dos desenhos das próprias crianças, recortes de jornais e revistas, cartões 144 Craidy & Kaercher postais, encartes publicitários de lojas, supermercados, etc. podem compor graficamente esses livros); – estabelecer correspondência, enviando cartas a colegas da própria clas- se, a crianças de outras escolas ou a familiares, investigando assuntos diversos (as escolas que tiverem computador podemutilizá-lo para tanto, através dos e-mails dos correspondentes); – fazer convites para festividades da escola ou da sala de aula; – realizar atividades culinárias, a partir de receitas (para as quais é preciso ler, quantificar, reconhecer ingredientes, fases do processo de preparação, tempo de produção). As receitas mais gostosas, aprova- das pelas crianças, podem compor o caderno de receitas do grupo; – ler e escrever (copiando ou criando) poesias. Cada criança pode ter seu livro de poesia, no qual vai organizar as poesias que mais gostou – de autores de livros que conhece –, juntamente com as poesias que ganhou de cada amigo. Os desenhos que vai fazer para ilustrar suas próprias poesias, bem como os desenhos que pode eventualmente ganhar dos amigos poetas, podem compor esse livro, que vai crescen- do ao longo do ano, sempre que a criança achar mais uma poesia que goste, ou ganhe uma outra de mais um amigo; – criar agendas com o endereço, o telefone e a data de aniversário dos amigos (às vezes, as crianças querem colocar os signos do zodíaco dos amigos também). Elas são muito apreciadas pelas crianças, principal- mente quando se dão conta que, na 1a. série, muitas delas não vão estudar mais juntas; – elaborar jornais e revistas criados pelo próprio grupo – com textos, fotos, desenhos, etc. –, é um recurso que também agrega, integra e relaciona diversas linguagens. Enfim, quanto mais se pensa e se registra, quanto mais se realiza, mais ideias se tem em relação à diversidade de produções que podemos realizar com as crianças, através das quais elas vão se dando conta do sentido da leitura e da escrita no mundo em que vivem, ao mesmo tempo em que vão se conhecendo nos desafios propostos pela relação com essa linguagem: – Pro- fessora, “MUITO” é com “N”? Como é que é o “L” mesmo? Enfim, na companhia, na parceria dos adultos que as acompanham nes- tes desafios – entre tantos outros desafios que o universo da educação infantil lhes coloca – crianças e adultos vão dialogando – consigo mesmos, uns com os outros, com o mundo –, buscando se conhecer melhor, conhecer melhor os outros e o mundo. Nos registros que fazemos desses processos, vamos registrando fragmen- tos de nossas histórias singulares e coletivas, armazenando pedaços de nossa memória e da memória do mundo. Vamos ficando por escrito, desenhados, esculpidos, pintados, fotografados, em fitas de vídeo k-7, em compact discs, Educação Infantil 145 nos imortalizando um pouquinho nesses suportes de memória, uma vez que, cada um, na sua hora, vamos todos partir. Registrar-se, registrar nossa humanidade, em diferentes linguagens, des- de que se nasce, é algo que podemos e devemos fazer na educação infantil; para, junto com as crianças, irmos nos olhando, nos acompanhando, nos re- vendo, nos transformando; nos aprendendo, aprendendo a nos produzir e, coletivamente, produzir melhor nossa humanidade. MAS A GENTE ESCREVE E LÊ SÓ PALAVRAS? Sabemos que as letras são uma invenção dos seres humanos. Igual a to- das as outras que eles já criaram – como o automóvel, a casa, o carreteiro de charque e a ambrosia, a luz elétrica e o raio laser, a meia de nylon e os perfu- mes, o cinema e a televisão –, as letras surgem para atender suas necessida- des, para dar-lhes conforto e prazer. Isso mesmo! As letras não estavam espa- lhadas pela natureza, como o sol, as árvores, os rios, os animais, com suas cores e formas, grandezas e sons. Não havia nada parecido com elas na natu- reza, nada – diferente do que aconteceu com o desenho! Quando os homens começaram a desenhar, eles tinham a natureza e os próprios seres humanos como modelos; cada um desenhava como sabia e como conseguia, tendo ao alcance dos olhos ou na memória o objeto ou cena que queria representar. Mas desenho é uma coisa e letra é outra, bem diferente. Tanto é assim que as próprias crianças, quando estão entre os três e quatro anos se dão conta dessa diferença e dizem para a professora, na hora da história: “... só que hoje conta assim ó, com estas coisas que estão aqui embaixo, ó!” (apontando no livro as frases que contam a história). Que fique bem entendido, no entanto, que essa distinção praticamente só irá acontecer se as crianças tiverem, através do tra- balho intencional de suas professoras, o investimento em contar e explorar histórias, das mais diversas formas, chamando a atenção das crianças para as diferentes marcas gráficas que compõem as páginas dos livros, que são as ilustrações e o texto. Do contrário, esse tipo de pedido das crianças pode nun- ca vir a acontecer... Pois bem! O que diferencia o desenho das letras é justamente o fato de que o desenho procura representar algo que já existe enquanto forma, cor, tamanho, textura, densidade, enfim, respeitando o princípio ou critério de semelhança física em relação ao que se quer representar. Já em relação às letras, trata-se de uma escolha puramente arbitrária dos seres humanos. Quer dizer que é imotivado, isto é, que não existe necessariamente nenhuma rela- ção entre as letras e as coisas que elas querem representar; que não existe nenhuma necessidade natural ou real que ligue uma coisa à outra. Tanto é assim que “flor” é flower em inglês, fleur em francês, fiore em italiano e Blume em alemão; “sol” é sun em inglês, soleil em francês, sole em italiano e Sonne
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