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LITERATURA INFANTIL LITERATURA INFANTIL Literatura infantil João Olinto Trindade JuniorJoão Olinto Trindade Junior GRUPO SER EDUCACIONAL gente criando o futuro Nesta disciplina, abordaremos os conceitos sobre um tipo particular de literatura, a infantil, bem como os demais conceitos relacionados a ela. Analisaremos estudos e linhas de pesquisa que lançam múltiplos olhares sobre esses textos, levando em consideração sua relação – diacrônica e anacrônica – para a formação de crianças e adolescentes. Isso posto, pode-se a� rmar que há toda uma tradição literária voltada para promover a interação do indivíduo com o mundo (fantástico e imaginário) e mostrar de que for- ma isso auxilia na percepção do real do sujeito que vai sendo construída. Por esse viés, re� etiremos sobre como essa vertente literária tem potencial para fa- vorecer o desenvolvimento cognitivo do indivíduo em formação, de maneira lúdica e criativa. Além disso, iremos explorar como uma série de estratégias de leitura podem ser desenvolvidas, logo nas primeiras etapas da vida, no âmbito familiar e escolar. Além da discussão sobre o que de� ne uma literatura como “infantil” e qual sua função na sociedade em que é produzida, discorreremos sobre uma rica tradição de textos – tanto no Brasil quanto no mundo – que surgiu e continua se reinventando com o decorrer das épocas. Bons estudos! SER_PEDA_LITE_CAPA.indd 1,3 16/10/20 17:34 © Ser Educacional 2020 Rua Treze de Maio, nº 254, Santo Amaro Recife-PE – CEP 50100-160 *Todos os gráficos, tabelas e esquemas são creditados à autoria, salvo quando indicada a referência. Informamos que é de inteira responsabilidade da autoria a emissão de conceitos. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem autorização. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido pela Lei n.º 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal. Imagens de ícones/capa: © Shutterstock Presidente do Conselho de Administração Diretor-presidente Diretoria Executiva de Ensino Diretoria Executiva de Serviços Corporativos Diretoria de Ensino a Distância Autoria Projeto Gráfico e Capa Janguiê Diniz Jânyo Diniz Adriano Azevedo Joaldo Diniz Enzo Moreira João Olinto Trindade Junior DP Content DADOS DO FORNECEDOR Análise de Qualidade, Edição de Texto, Design Instrucional, Edição de Arte, Diagramação, Design Gráfico e Revisão. SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 2 16/10/20 17:33 Boxes ASSISTA Indicação de filmes, vídeos ou similares que trazem informações comple- mentares ou aprofundadas sobre o conteúdo estudado. CITANDO Dados essenciais e pertinentes sobre a vida de uma determinada pessoa relevante para o estudo do conteúdo abordado. CONTEXTUALIZANDO Dados que retratam onde e quando aconteceu determinado fato; demonstra-se a situação histórica do assunto. CURIOSIDADE Informação que revela algo desconhecido e interessante sobre o assunto tratado. DICA Um detalhe específico da informação, um breve conselho, um alerta, uma informação privilegiada sobre o conteúdo trabalhado. EXEMPLIFICANDO Informação que retrata de forma objetiva determinado assunto. EXPLICANDO Explicação, elucidação sobre uma palavra ou expressão específica da área de conhecimento trabalhada. SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 3 16/10/20 17:33 Unidade 1 - Literatura infantil: conceitos e origens Objetivos da unidade ........................................................................................................... 12 O estatuto da literatura infantil ......................................................................................... 13 A função da literatura infantil ........................................................................................ 15 A origem da literatura infantil ........................................................................................... 23 Contos de fadas: dos primórdios aos dias de hoje ........................................................ 30 A literatura infantil brasileira ............................................................................................ 36 Sintetizando ........................................................................................................................... 42 Referências bibliográficas ................................................................................................. 43 Sumário SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 4 16/10/20 17:33 Sumário Unidade 2 - Ideologia no Texto Infantil Objetivos da unidade ........................................................................................................... 46 Representação da sociedade: normas e valores ........................................................... 47 Representação da criança no texto literário infantil ................................................. 53 Sensibilização e aproximação lúdica da criança com a linguagem poética .......... 59 A importância da exteriorização – personagens e acontecimentos fantásticos .... 66 O sobrenatural familiar ................................................................................................... 68 Literatura e amadurecimento ........................................................................................ 69 Sintetizando ........................................................................................................................... 78 Referências bibliográficas ................................................................................................. 79 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 5 16/10/20 17:33 Sumário Unidade 3 - Escola e formação do leitor Objetivos da unidade ........................................................................................................... 82 Escola e formação do leitor ............................................................................................... 83 A importância da leitura e da literatura na escola ........................................................ 85 Estratégias de leitura em sala de aula ......................................................................... 90 Brincadeiras com palavras, sons e imagens ................................................................. 93 Leitura e leitores .............................................................................................................. 95 Didática da literatura infantil ......................................................................................... 97 Responsabilidade da escola e do professor na formação do leitor ......................... 107 A sala de aula enquanto espaço de construção ..................................................... 108 O ensino da literatura ................................................................................................... 112 Políticas e práticas educacionais .............................................................................. 113 Sintetizando ......................................................................................................................... 116 Referências bibliográficas ............................................................................................... 117 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 6 16/10/20 17:33 Sumário Unidade 4 - Métodos de ensino favoráveis à formação do leitor Objetivos da unidade ......................................................................................................... 120 O papel da família, da escola e da sociedade na promoção da leitura .................. 121 A formação de leitores no Brasil ................................................................................ 123 Processos lúdicos ......................................................................................................... 127 Leitura e formação ........................................................................................................ 129 Biblioteca escolar ..............................................................................................................131 A função formadora ...................................................................................................... 133 A animação de uma biblioteca infantil ......................................................................... 135 Fisiologia da biblioteca infantil .................................................................................... 139 A natureza da leitura em ambientes escolares ........................................................ 141 Sintetizando ......................................................................................................................... 150 Referências bibliográficas ............................................................................................... 151 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 7 16/10/20 17:33 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 8 16/10/20 17:33 Olá alunos(as)! Nesta disciplina, abordaremos os conceitos sobre um tipo particular de li- teratura, a infantil, bem como os demais conceitos relacionados a ela. Analisa- remos estudos e linhas de pesquisa que lançam múltiplos olhares sobre esses textos, levando em consideração sua relação – diacrônica e anacrônica – para a formação de crianças e adolescentes. Isso posto, pode-se afi rmar que há toda uma tradição literária voltada para promover a interação do indivíduo com o mundo (fantástico e imaginário) e mos- trar de que forma isso auxilia na percepção do real do sujeito que vai sendo construída. Por esse viés, refl etiremos sobre como essa vertente literária tem potencial para favorecer o desenvolvimento cognitivo do indivíduo em formação, de ma- neira lúdica e criativa. Além disso, iremos explorar como uma série de estraté- gias de leitura podem ser desenvolvidas, logo nas primeiras etapas da vida, no âmbito familiar e escolar. Além da discussão sobre o que defi ne uma literatura como “infantil” e qual sua função na sociedade em que é produzida, discorreremos sobre uma rica tradição de textos – tanto no Brasil quanto no mundo – que surgiu e continua se reinventando com o decorrer das épocas. Bons estudos! LITERATURA INFANTIL 9 Apresentação SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 9 16/10/20 17:33 Dedico esta disciplina aos professores – nos seus mais variados perfi s, vocações e ciclos de ensino – que buscam desenvolver estratégias para trazer seus alunos ao mundo maravilhoso da leitura. O professor João Olinto Trindade Ju- nior é doutor em Teoria da Literatura e Literatura comparada pela UERJ (2019), é especialista em Planejamento, Imple- mentação e Gestão da EaD pela UFF (2016) e possui mestrado em Literatura Portuguesa pela UERJ (2013). Além dis- so, é graduado em Letras: Português-Li- teratura pela Unisuam (2010). Como professor, atua nos seguintes segmentos educacionais: Educação Bá- sica, Superior e Pós-graduação (presen- cial e EaD), EJA e Pronatec. Como produtor de conteúdos, atua como conteudista, revisor, parecerista e designer educacional. É parecerista de revistas acadêmicas da área de Letras, Educação e Direito. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2506819258004448 LITERATURA INFANTIL 10 O autor SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 10 16/10/20 17:34 LITERATURA INFANTIL: CONCEITOS E ORIGENS 1 UNIDADE SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 11 16/10/20 17:36 Objetivos da unidade Tópicos de estudo Conceituar a literatura infantil; Abordar a existência da literatura voltada para o público infantil, bem como sua função sociocultural. O estatuto da literatura infantil A função da literatura infantil A origem da literatura infantil Contos de fadas: dos primór- dios aos dias de hoje A literatura infantil brasileira LITERATURA INFANTIL 12 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 12 16/10/20 17:37 O estatuto da literatura infantil Literatura infantil, juvenil, infantojuvenil: essas terminologias são relativa- mente comuns e participam do vocabulário de muitos. No entanto, o concei- to precede a nomenclatura. A maioria das pessoas, ao serem questionadas sobre o que vem a ser literatura infantil, provavelmente responderia que se trata de textos voltados para crianças e adolescentes, abrangendo contos, fábulas, romances e outras manifestações fi ccionais. Todavia, alguns poderiam alegar que os livros da saga Harry Potter da es- critora J. K. Rowling, por exemplo, não podem ser meramente taxados de lite- ratura infantil. Apesar da abordagem da temática adolescente e do processo de descoberta, temos uma sequência de livros infl uenciados pela tradição da literatura inglesa, e até mesmo pelos romances de cavalaria, como o impor- tantíssimo A demanda do Santo Graal. Da mesma forma, apresentar os mundos extraordinários de L. Frank Baum (O mágico de Oz) e de Lewis Carroll (Alice no país das maravilhas) como “apenas” literatura infantil é um reducionismo, mesmo em se tratando de escritores que são comumente associados a esse tipo de produção. Assim, pensar o estatuto da literatura infantil abrange necessariamente essa discussão: o que a difere de outras que também recebem o título de “li- teratura”? De acordo com Antonio Candido, a literatura infantil pode ser con- siderada um gênero literário como todos os demais, já que, para ele, o texto literário abrange criações dotadas de elementos poéticos, em todas as culturas e sociedades, o que inclui “folclore, lenda, chiste e até as formas mais comple- xas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações” (1989, p. 112). Dessa maneira, há uma produção fi ccional que objetiva desen- volver nos mais novos o hábito da leitura a partir de textos que buscam criar estratégias de leitura e facilitação. É nesse ponto que nos deparamos com a literatu- ra infantil como um instrumento que auxilia na formação do sujeito, posto que ela atua como veículo educativo em prol do efeito que gera “no comportamento do leitor em fase de for- mação” (CARVALHO, 1989, p. 194). LITERATURA INFANTIL 13 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 13 16/10/20 17:37 Mas qual é a abordagem dada a essa literatura em sala de aula? É comum aquela crença de que o indivíduo deve começar sua leitura por obras descri- tas como mais leves, partindo posteriormente para outras mais significativas. Entretanto, essa dita leveza também é abordada como sinônimo de valora- ção, o que ocorre porque somos levados a taxar textos literários como “maio- res” e “menores”, “introdutórios” e “avançados”. Esbarramos, então, no estatuto da literatura infantil – real, e de fato – nos dias de hoje: a criança gosta de O menino maluquinho, de Ziraldo, mas aprende que “literatura de verdade” é Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Já no ensino médio, na disciplina de literatura, passará longe de uma Lygia Bojunga; com sorte, abordará Monteiro Lobato, dividido ente produção “adulta” e “infantil”; lerá Gabriela, em vez de O gato malhado e a andorinha Sinhá, ambos de Jorge Amado; ou transitará por A hora da estrela, sem nunca ter a chance de discutir em sala Como nasceram as estrelas, parte de uma pro- dução de Clarice Lispector voltada para crianças. Abordamos o estatuto da literatura infantil ao questionar sua recepção e classificação: literatura apenas para crianças? A que é indicada nos livros paradidáticos? Ou, talvez, aquela indicada pelo Ministério da Educação para a formação da capacidade crítica e analítica da criança durante o desenvolvi- mento da capacidade de leitura? Figura 1. O contato da criança com a leitura. Fonte: Shutterstock. Acesso em: 04/09/2020. LITERATURA INFANTIL 14 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 14 16/10/20 17:38 A função da literatura infantil Não faz muito sentido dizer para uma criança, por exemplo, que Peri é mais esperto que Emília. O infante é constantemente confrontado com uma literatura que, por vezes, foge de sua capacidade interpretativa, ao passo que aquela que se adequa ao seu nível de formação crítica é depreciada. É em uma época como a atual, quando a criança se vê cercada por um tur- bilhãotecnológico, que a literatura infantil oferece um brilhante caminho para crianças e adolescentes. CURIOSIDADE Você já parou para pensar sobre a infl uência dos demais meios de comu- nicação no processo de leitura das crianças? Se antes conhecíamos os contos de fadas por intermédio de nossos pais, por exemplo, hoje há toda uma geração que teve contato com essas mesmas histórias por intermé- dio de fi lmes e animações, os quais, por si só, agregam novas leituras aos mesmos textos, permeados de valores – novos e ressignifi cados. Uma vez que determinada produção literária é adjetivada como infantil, e en- tendendo que esse termo não signifi ca, ao pé da letra, uma literatura menor, surge a dúvida: qual a sua fi nalidade? Esse título advém do fato de muitos acharem que ela é somente lida por crianças? Tendo isto em mente, pode-se arriscar e afi rmar que muitos adultos leram Artemis Fowl – o menino prodígio do crime (2013), por exemplo, livro no qual há um resgate dos contos de fadas nos dias de hoje. Talvez o termo “infantil” se refi ra aos textos separados para serem publi- cados em livros paradidáticos, como já apontado anteriormente, ou sancio- nados pelo MEC para auxiliar no desenvolvimento da formação de leitores críticos. Mas devemos destacar que, entre explicações, motivações e contri- buições, essa é uma literatura que pode ser utilizada como agente formador do indivíduo em uma idade específi ca, de forma espontânea e direcionada: é a criança que aprende a ler com os pais, recebe contos de presente de seus avós ou participa de rodas de leitura em sala de aula. A literatura in- fantil vai além, inclusive, ao contribuir para a formação da consciência de mundo em crianças e jovens. Ao pensar em função, é comum evocar os conceitos de “planejamento”, “meta”, “objetivo”. E é nesse ponto que entra a escola, espaço de aprendizagem LITERATURA INFANTIL 15 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 15 16/10/20 17:38 formal por excelência. Atualmente, há inúmeras críticas sobre o modelo atual da escola, bem como suas heran- ças oriundas do século XIX, época na qual havia necessidade de capacitação massiva da população. Todavia, é na escola que a criança interage, de ma- neira sistemática, com a cultura “for- mal”, o que agrega à instituição uma importância histórica, vindo a ser um espaço privilegiado para impulsionar mudanças significativas na sociedade devido a responsabilidade que lhe é atribuída na formação do indivíduo. A escola é um espaço que foi criado para dar respostas aos anseios e ne- cessidades da sociedade, e pouco mudou desde então. Para fins de compara- ção, observe como determinados institutos federais oferecem um ensino mé- dio técnico diferenciado de acordo com a região, de modo que cursos como Educação do Campo e Meio Ambiente serão mais encontrados em regiões interioranas do que nas grandes capitais litorâneas. Já nessas capitais, os ins- titutos tendem a oferecer cursos de eletrotécnica e mecânica, por exemplo. O ensino de literatura em sala de aula segue essa premissa. Como aponta Coelho (2000), o ensino da literatura está associado ao da língua, de modo que ter contato com o texto literário objetiva possibilitar ao aluno o domínio das variedades do discurso verbal, a fim de que ele possa ser um sujeito pleno. Isso ocorre pelo fato desse indivíduo ter acesso, por meio do discurso literário, ao arcabouço sociocultural do meio em que vive. Recorde seu aprendizado sobre os ciclos econômicos no Brasil. O que aconteceu com São Paulo após os ciclos do algodão e do café? Neste caso, você pode ler Cidades mortas (2009), de Monteiro Lobato, e compreender melhor o que ocorreu com várias cidades do Vale do Paraíba que dependiam de determinados produtos influenciados por ciclos econômicos. Ou pode ler Caçadas de Pedrinho (2003), do mesmo autor, para compreender que um país não é feito apenas de ciclos econômicos, mas de hábitos e costumes de um povo, os quais perduram através dos tempos. LITERATURA INFANTIL 16 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 16 16/10/20 17:40 É por meio do texto literário, e desse confronto entre o fatual e o factual, que o leitor pode refletir entre o real e o imaginado, desenvolvendo suas leituras do mundo. Nesse ponto, torna-se necessária uma literatura que atenda aos aceitos de determinada parcela da população. Aqui, pode-se pensar “mas eu escutei histórias do meu pai” ou “minha avó contava histórias da carochinha pra mim quando criança”. Isso poderia significar que há uma literatura infantil anterior à sua variedade escrita e, pode-se dizer, antes de se conceber a noção de infância. No que a literatura infantil, da maneira que a concebemos atualmente, é diferente das histórias tradicionais? Essa é uma questão em discussão até os dias de hoje. Contudo, é necessário chamar a atenção para um ponto: o impulso para ler, observar e compreender o espaço em que vive e os seres e coisas com que convive é condição básica do ser humano. Desde que a inteligência hu- mana teve condições para organizar, em conjunto coerente, as formas e si- tuações enfrentadas pelos homens em seu dia a dia, estes foram impelidos a registrar, em algo durável, aquelas experiências marcantes. Estudando a história das culturas, observamos como a literatura foi um veículo essencial, seja de maneira oral ou escrita, para as principais formas pela qual essa herança foi transmitida. Desta maneira, a tradição transmiti- da e retransmitida é um poderoso elemento para a mudança da sociedade. É nesse sentido que vemos na literatura infantil o agente ideal para a forma- ção de uma mentalidade crítica. Essa afirmação faz parecer que, por literatura infantil, queremos dizer “literatura didática”. De certa forma, não é algo de todo equivocado. Porém, conforme atesta O estatuto da literatura infantil (2003), deve-se pensar na dupla função desse tipo de discurso literário, principalmente por seu viés pedagógico: tanto transmite normas morais quanto possibilita a compreen- são do real, das experiências existentes por meio da contação de histórias. É por isso que o chamado livro para crianças não tem forma fixa, podendo abordar até mesmo temáticas adultas como a perda, a morte e o sofrimento. O livro infantil não envolve apenas a história sendo contada, mas também sua forma e seu elemento estético. É por isso que pode ser considerado como uma forma de manifestação artística que possibili- LITERATURA INFANTIL 17 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 17 16/10/20 17:40 ta a produção de um espaço carregado de textualidades plurissignificativas para o leitor, colaborando com sua forma de interagir com o mundo. Todavia, há um contraponto entre o fazer literário pelo viés da estética para a criança. É por isso que, para dar continuidade à discussão, é impor- tante observar que em Seis passeios pelo bosque da ficção (1994), Umberto Eco aborda o conceito de autor-modelo e como este, em seu processo de construção ficcional, cria um leitor-modelo, presumível. Em suma, todo tex- to possui seu leitor, seu público-alvo. Dentre as questões culturais, estéticas e morais, permanece uma pergunta: quem é o autor-modelo da literatura infantil, e qual é o leitor-modelo que ele busca conceber diante do seu pro- cesso de criação ficcional? Antes de dar prosseguimento ao conteúdo, cabe evidenciar como esse assunto abre cada vez mais espaço para outras perguntas. Pensar na função da literatura infantil envolve isso: quem é o leitor, qual seu contexto, como se dá a divulgação de determinado conteúdo. Uma série de pesquisadores se debruçou nisso, visto que não se trata somente de falar sobre uma lite- ratura voltada para crianças, mas sim abordar conceitos mais essenciais, como o que seria de fato a criança, por exemplo. Pode parecer estranho, mas na Grécia antiga as crianças eram alfabetiza- das por meio da Ilíada, obra de Homero que discorre sobre a guerra de Troia. Contudo, tratava-sede uma parte muito restrita da população. Por meio des- sa obra, esses indivíduos também aprendiam os princípios da cultura grega, seus elementos e suas marcas culturais. Claro, toda essa prática só foi possí- vel por causa de uma habilidade fundamental do ser humano: a leitura. O ato de ler é uma conquista do processo evolutivo da humanidade, pois é a fonte de toda a memória de um povo, como cultura, ideias e todas as outras coisas elaboradas e conservadas pelo homem. Assim, a palavra é caminho fundamental para evolução de um povo. Em face da realidade em constante transformação, torna-se cada vez mais urgente uma reflexão sobre a educação e o ensino, uma vez que é nessa área que os novos princípios ordenadores da sociedade serão definidos. É uma discussão profícua que atinge, principalmente, o âmbito da língua e da lite- ratura. Embora pareça pouco provável que a palavra seja a responsável pela evolução de um povo, devemos nos lembrar de que, segundo Coelho: LITERATURA INFANTIL 18 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 18 16/10/20 17:40 O verdadeiro impulso evolutivo de um grupo sociocultural ocorre ao nível da mente, ao nível da percepção de mundo que cada indivíduo vai apreendendo desde os primeiros anos como membro de uma comunidade. Muitos, porém, tardaram a des- cobrir – ou ainda não o fizeram – que o caminho fundamental para se atingir este nível é a Palavra. Ou melhor, é a Literatura, - imagem abreviada de algo mais amplo, a vida real, que passa a ser demudada em arte (2010, p. 14). A literatura, e em especial a in- fantil, tem uma tarefa fundamental a cumprir nesta sociedade em trans- formação: a de servir como agente de formação, seja no espontâneo convívio leitor/livro, seja no diálogo leitor/texto, estimulado pela escola. É ao livro, à palavra escrita, que atri- buímos a maior responsabilidade na formação da percepção de mundo das crianças e jovens. Leitura presume escrita, registro. Transmissão de saberes. A partir do mo- mento em que passa a dominar o código escrito, o indivíduo pode executar habilidades que antes, quando as possuía, eram limitadas, como a reflexão, mãe da filosofia. Ao escrever, pode-se registrar ideias e depois consultá-las, aumentando a quantidade de informação para além das limitações da mente. Vale destacar que o ato de ler envolve um processo de adaptação e in- serção em um campo diferente para as crianças, que é o dos significados e signos que a palavra pode transmitir. Sobre esse processo de apropriação dos códigos e signos de leitura, Yunes e Pondé afirmam que: Para a criança, o processo psíquico de identificação (a interação de subjetividade que nos lança para dentro dos livros) é ain- da mais forte; daí a necessidade de o escritor ter consciência plena do seu mistério. Os papéis propostos pelos personagens são vividos pela imaginação infantil com a força de um drama real. Por esta via, texto e leitor se fundem - o que acentua a LITERATURA INFANTIL 19 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 19 16/10/20 17:41 possibilidade de impressão, sobre a consciência do leitor, dos modelos de comportamento e dos conflitos vividos (ideologia) no universo. A leitura, para a criança, bem mais que um meio de evasão ou de socialização, é um meio de representação do real. Desse modo, o texto ajuda-a a reelaborar o real, sob a forma do jogo e da ficção (1996, p. 41). Ou seja, ao ler, crianças e adolescentes estão se apropriando dos códigos da leitura e codificando as mensagens presentes – de maneira explícita e implícita – nos textos literários infantis de modo a reelaborar o seu mundo real. Logo, o texto infantil passa a ser um instrumento importante para pro- porcionar à criança e/ou adolescente a descoberta do mundo real a partir do mundo lúdico. O ato de ler não corresponde somente ao entendimento de um tex- to (escrito ou não). Assim, a leitura necessita que o leitor mobilize o seu universo para atualizar o universo do texto e, assim, fazer sentido. Eliana Yunes (1989) afirma ainda que aprender a ler é se familiarizar com textos de diferentes esferas sociais a fim de desenvolver uma atitude crítica, perceber as diferentes vozes dos textos e, desse modo, ser capaz de se apropriar de cada ideia ou palavra apresentada. A palavra lúdico está muito presente nos dias de hoje: trabalho, compro- missos, aprendizagem e mesmo na EaD, quando tratamos do princípio de gamificação da aprendizagem. Há um sentido para isso, posto que muito do que aprendemos, na medida em que somos uma espécie de animais sociais, o fazemos por meio de jogos e brincadeiras. Das partidas de futebol, nas quais os times precisam dividir os papéis, até os jogos de videogame, que propiciam uma diversão maior quando reúnem duas ou mais pessoas, internalizamos melhor determinados saberes quando os associamos a atividades lúdicas. Não é estranho imaginar, dessa maneira, a literatura infantil como um espaço de terapia e recreação (CARVALHO, 1989), pois é um ambiente que, por meio de sua estrutura comunicativa, transmite a cultura de um grupo sociocultural, além de propiciar uma interação entre o discurso do adulto e o da criança em uma troca intersemiótica. Se faça a seguinte pergunta: é possível ensinar Filosofia para uma crian- ça, discorrendo sobre Sócrates, Aristóteles e Platão? Jostein Gaarder, escri- LITERATURA INFANTIL 20 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 20 16/10/20 17:41 tor norueguês, procurou de maneira divertida realizar essa tarefa por meio do livro O mundo de Sofia (2007). Curiosamente, a maneira lúdica e didática por meio da qual ele escreveu um romance sobre a história da Filosofia faz com que o livro seja lido por pessoas de todas as idades. Ocorreu, nesse caso, uma negociação intersemiótica, na qual um escri- tor – e professor de filosofia – remodelou seu discurso para transmitir seus saberes para um outro tipo de leitor, uma criança. Ou seja, uma linguagem direcionada para a criança, mas construída a partir das concepções de mun- do de um adulto, com suas morais e condutas adquiridas ao longo da vida. Dessa maneira, a literatura infantil atua tanto como objeto de diversão como ferramenta que contribui para o processo formativo, o desenvolvi- mento da cognição e o amadurecimento crítico da criança e do adolescente. Nesse sentido, as estudiosas literárias Lajolo e Zilberman (1985) refletem sobre a literatura infantil como uma ferramenta de construção sociocultu- ral do sujeito. Essa literatura atua em uma sociedade constantemente em evolução com o papel de agente intermediário na concepção de mundo real, por meio de questionamentos sobre valores morais, sociais e culturais que estão presentes na sociedade. Assim, a literatura infantil, nessa medida, “é levada a praticar seu engano formativo, o qual não se confunde com uma incumbência pedagógica. Com efeito, ela dá conta de uma atividade a que está voltada toda a cultura – a de conhecimento do mundo e do ser” (p. 25). É por isso que há toda uma tradição de pesquisadores que considera útil e pedagógico o desenvolvimento de metodologias a partir do uso da literatura infantil visando a formação do indivíduo, uma vez que propicia o contato com questões sociais, levando-o a interagir com a função social do texto literário. Os livros infantis são pontes que ligam o mundo imaginário ao real de maneira a proporcionar novas descobertas ao sujeito quanto ao mundo que o rodeia, bem como inseri-lo na magia e fantasia sem se desconec- tar do real. Assim, as histórias infantis são mecanismos para crianças e jovens abrirem as janelas da curiosidade, de forma a descobrirem o novo com prazer e entusias- mo, visto que a literatura possui essa artimanha de proporcionar descobertas reais por meio do lúdico. LITERATURA INFANTIL 21 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 21 16/10/20 17:41 Figura 2. Criança lendo. Fonte: Shutterstock. Acesso em: 03/09/2020. Desse modo, a leitura é considerada, háséculos, o mais importante meio de passatempo, divertimento e, principalmente, fonte de informação e co- nhecimento. Isso porque é por meio dela que o sujeito se constrói e se de- senvolve social e culturalmente, a partir do momento em que compreende o universo que está entreposto. Assim, segundo Zilberman e Magalhães: uma leitura lúdica e desconjuntada de finalidades pedagógicas pode ser um importante mecanismo para os alunos aprende- rem a gostar de ler e interpretar os diferentes discursos lite- rários. O texto literário pode ser uma atividade lúdica quando dirigida à ficção e à poesia (1982, p. 57). Percebe-se que a leitura literária pode trazer conceitos da vida real da criança por representar em suas histórias infantis aspectos do cotidiano, bem como o conhecimento prévio de mundo da criança, proporcionando a ela descobrir sentidos e contextos que fazem parte da formação de si e do universo. Vale destacar que a base teórico-bibliográfica sobre literatura infantil é vasta, com vários teóricos que discutem essa literatura em diferentes vertentes, como no campo pedagógico e/ou da arte. Essas duas vertentes são válidas na discussão literária, uma vez que a literatura como arte está relacionada ao papel que assume, configurando-se como lúdica, interati- LITERATURA INFANTIL 22 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 22 16/10/20 17:42 va, ilustrativa e de receptividade com o público infantil. Ademais, pode ser pedagógica no sentido de contribuir com a formação do sujeito, mas é importante ressaltar que o livro literário infan- til vai muito além dos conceitos pedagógicos. A origem da literatura infantil Até o presente momento, muito foi dito sobre a função da literatura infantil, sua relação com as práticas cotidianas e escolares e como essa produção textual é alvo de análise estética e pedagógica. Entretanto, você já deve ter ouvido falar da expressão “forma-função”, na qual a função de determinada coisa delimita sua forma. E, por formação, também que- remos dizer a origem de determinada coisa, o porquê de ela ter certas características. É por isso que precisamos, aqui, abordar o processo formativo da lite- ratura infantil, desde suas primeiras manifestações até o surgimento da- quelas que serão responsáveis pela atribuição do termo “literatura infan- til”. Queremos, com isso, tentar responder a uma grande questão: contos de fadas sempre foram considerados literatura infantil? Todo conceito agrega um significado, devendo ser utilizado em um con- texto específico. É por isso que é possível afirmar que o termo “literatura infantil” é recente, e o que pode ser evocado por essa nomenclatura, nas delimitações estabelecidas, remete ao século XVII. Este era um tipo de li- teratura que tinha forma mais estética e/ou educacional, em virtude de a criança dessa época ser considerada como um ser pequeno, sem suas próprias concepções de mundo, e seu período infantil configurava-se so- mente como uma fase que o indivíduo deveria percorrer até chegar a fase produtiva de adulto. Em suma, nesse período a literatura infantil ainda não era uma litera- tura tão específica, visto que não havia distinção de faixa etária ou desen- volvimento cognitivo para se abordar o discurso literário. Observe o que foi dito anteriormente sobre a resposta social cobrada das instituições de ensino: segundo Lajolo e Zilberman (2007), o mesmo se esperava da literatura associada a determinado estrato social. LITERATURA INFANTIL 23 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 23 16/10/20 17:42 ASSISTA A relação entre escola e literatura é tão antiga quanto é produtiva. Com a centralização dos processos edu- cacionais por meio de diferentes órgãos que ditam as ementas, gradativamente surgem projetos de leitura que interligam escola e literatura infantil. Recomendamos o excelente documentário Ler para sonhar – O mundo da literatura infantil, produzido pela TV Justiça. Nele, nos deparamos com os usos e opiniões desse gênero literário, em sala de aula, por aqueles que desenvolvem projetos de leitura: os professores. Como revela Samuel (2002), Aristóteles já apontava as funções cogni- tivas, estéticas e catárticas da literatura. Posteriormente, foi engendrada a função político-social, que seria a forma de conceber a sociedade e rea- lizar críticas à mesma. E, bem mais adiante, a função lúdica, voltada para o entretenimento. No entanto, todas elas estão intrinsecamente ligadas a um elemento que será desenvolvido com o passar dos séculos: o conceito de público. Embora seja possível apontar a função político-social desde textos como Édipo Rei, muito de sua reflexão atual tem origem em uma produção literária que começa a surgir como resultado de um movimento estético- -filosófico conhecido como Renascimento. Entre os séculos XIV e o século XVI, surge um movimento que representou o rompimento com os valores religiosos e filosóficos predominantes no período da Idade Média, e conse- quentemente consolidou a imagem do homem como o universo da ciência, antes imperceptível nas ciências anteriores. Assim, com a valorização do pensamento cientifico e racional alicerçada à cultura europeia, os modelos de comportamento humano e de conhecimento se transformam. A isso se somou a Revolução Francesa, iniciada no século XVIII, que também contribuiu com a formação de um novo conceito de indivíduo, além de visar a produtividade e o lucro para a sociedade. Assim, o pensamento renascentista-industrial influenciou toda uma forma de conceber o mundo: se antes estudar era reservado aos abastados, agora se torna uma necessidade para alcançar um mundo melhor. É preciso capacitar toda uma população para que a sociedade transcenda suas dificuldades. LITERATURA INFANTIL 24 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 24 16/10/20 17:42 Desse modo, com a Revolução Industrial foi necessário criar mão de obra especializada e qualificada para desenvolver diversos tipos de ser- viços no meio industrial, e com isso a escola se adequou a esse papel de qualificar o sujeito, proporcionando ensinamentos voltados ao ato de ler, escrever e de contar. Portanto, o ensino germanizado das escolas em vir- tude da Revolução Francesa, que foi um movimento político-social, pro- porcionou o caminho para a modernidade, bem como o acesso aos meios de produção. Esse foi um dos contextos que mais influenciaram o desen- volvimento da literatura infantil. Lajolo e Zilberman (2007) apontam isso ao evidenciar como a Revolu- ção Industrial instigou o surgimento do que viríamos a chamar de uma literatura voltada para crianças. A partir dela, decorreram transformações significativas no alicerce social, em todas as seções. Por meio da industria- lização, a sociedade homeopaticamente experienciou a modernização, e este foi um reflexo da necessidade de se adaptar aos modelos modernos emergentes no campo da educação. Isso gerou maior atenção ao merca- do de livros, desenvolvendo conceitos como layout e aperfeiçoamento do material como um todo. Observe como o aumento da população letrada também possibilita o surgimento de tipos de leitores e, ainda mais, de segmentos. É provável que, um dia, seus pais tenham lhe dito para “estudar se quiser ser alguém na vida”. Contudo, “estudar”, prática dos religiosos e da elite letrada, passa a ser um objeto de desejo, um anseio da população como um todo. Se an- tes muito do capital simbólico dessa elite envolvia o domínio dos recursos e de uma formação clássica, agora essa formação passa a ser vista como mecanismo de ascensão social. O sucesso da Revolução Industrial será um dos motores da Revolução Francesa. Devido ao comprometimento com as ideias racionais e a valori- zação do pragmatismo, segundo Carvalho (1989), há uma espécie de ojeriza com a abordagem da fantasia na literatura produzida nessa época, visto que contrapunha o mo- delo da revolução científica. Nesse momento, a questão da criança não é abordada pois ela nãoexistia, à época, enquanto um LITERATURA INFANTIL 25 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 25 16/10/20 17:42 conceito. Se Piaget discorre sobre a questão da aprendizagem da criança em meados do século XX, pode-se dizer que ele é um herdeiro direto de Jean Jacques Rousseau, que publicou Emílio, ou da educação (1762), obra que permitiu que a literatura infantil trilhasse novos caminhos e se envol- vesse com a ética e questões pedagógicas (CARVALHO, 1989). Esse livro mudou a concepção que se tinha à época por abordar a criança como um ser para além de um adulto em formação, com suas capacidades crítica, criativa e cognitiva em processo e formação. Foi necessário analisar um determinado período – transitando por épo- cas anteriores e posteriores ao Renascimento – para delimitar uma deter- minada produção literária. É necessário entender o pensamento do es- critor e o contexto de sua formação para abordar uma produção literária concebida ao longo das épocas. Isso porque os primórdios do que se convencionou chamar de literatu- ra infantil ocorre pelo resgate de histórias anteriores que remetem a tex- tos gregos e romanos (pode-se dizer que isso é um efeito do Renascimen- to), influenciando a literatura europeia e, posteriormente, com reflexos no Brasil, até o período posterior ao Modernismo. Tal fato ocorreu com a produção de Monteiro Lobato, um marco na história da literatura infantil brasileira. Pode-se, com isso, apontar que o surgimento da literatura infantil ocor- reu no século XVII, na Europa, embora existam alguns teóricos que apon- tam que essa literatura surgiu primeiramente na Índia, Egito ou Oriente (COELHO, 2010). Essa produção literária, conhecida como clássica, pode ser rastreada até seus ancestrais, como a novelística popular medieval, que por sua vez tem suas raízes mais remotas em certas fontes orientais (Índia) ou, mais precisamente, indo-europeias. Muito da literatura infantil recebeu essa influência das fábulas greco- -latinas, que continham narrativas de personagens antropomorfizados com o intuito de transmitir ao leitor mirim a imagem do ser humano com suas verdadeiras características, ou seja, suas virtudes e defeitos, bem como apresentando uma narrativa de vertente moralizadora. Há uma sé- rie de textos que são reflexo de sua época e se alimentam desse material fabulesco, conforme afirma Coelho: LITERATURA INFANTIL 26 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 26 16/10/20 17:42 como exemplo dessas influências, podemos citar: As fábulas (1668), de La Fontaine; os Contos da mãe gansa (1691-1697), de Charles Perrault; Os contos de fadas (8 vols., 1696-1699), de Mme. D’Aulnoy; e Telêmaco (1699), de Fénelon. Esses foram os livros pio- neiros do mundo literário infantil, à sua época (2010, p. 75). Muitos desses textos produzidos mantinham uma forte intertextuali- dade com as pontes greco-latinas, a exemplo das Fábulas de Esopo. Isso permitiu o surgimento de textos que, por meio de suas fábulas populares, proporcionaram uma ampliação da literatura, porém mantendo o caráter moralizador. Jean La Fontaine (1621-1695) foi um escritor do período do classicismo francês que, com um pensamento intelectual rebelde para sua época, contribuiu para a Revolução Francesa após um século de sua mor- te. Curiosamente, esses textos eram apreciados nas cortes e nos saraus literários promovidos pela elite francesa, de modo que termos como “es- critor de textos infantis” é um título posterior. EXPLICANDO La Fontaine foi um poeta e fabulista francês, autor de diversas fábulas conhecidas. Iniciou sua carreira de escritor em 1650, escrevendo peças de teatro e tentando em seguida a poesia. Inspirado em Marot, Malherbe e Ovídio, publicou madrigais, baladas e epístolas em que mistura poesia e prosa. Influenciado por Boccaccio e Ariosto, escreveu Contes et nouvelles en vers (1664), obra que, por seu imoralismo, não foi bem aceita. Entretanto, apesar da variedade dessas formas ou gêneros “nobres”, La Fontaine se imortalizou com uma forma literária popular então considerada “menor”: a fábula. Esses primeiros textos foram escritos entre os séculos XVII e XVIII, período em que não havia a concepção de infância. Ocorre que o conceito de infância viria a surgir, nessa época, como consequência da Revolução Francesa e, na onda dos valores burgueses que passariam a estar em voga, o conceito de fa- mília nuclear, mais limitado e restrito (ZILBERMAN, 2003). Ao valorizar núcleos menores, valoriza-se também o tempo de formação, as fases da vida e a ligação entre os membros. Isso é reflexo de uma mudança de paradigmas: enquanto em Romeu e Julieta, de Shakespeare, há um conflito entre grupos familiares ri- vais, em Senhora, de José de Alencar, temos uma discussão sobre validade do amor diante do casamento por conveniência. LITERATURA INFANTIL 27 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 27 16/10/20 17:42 Segundo Zilberman, a valorização da família trouxe uma nova concepção de infância, o que proporcionou a educação para os pequenos: A nova valorização da infância gerou maior união familiar, mas igualmente os meios de controle do desenvolvimento intelectual da criança e a manipulação de suas emoções. Literatura infantil e escola, inventada a primeira e reformada a segunda, são convoca- das para cumprir essa missão (2003, p. 15). Um escritor importantíssimo desse período foi Charles Perrault (1628- 1703). Sua escrita aproximou o público infantil – incluindo, também, o con- ceito de “leitor-criança” – das obras literárias, ao apresentar textos que mes- clavam elementos da cultura popular à época. Sua obra mais conhecida, Contos da mãe gansa, teve ampla divulgação entre o público infantil. Assim como La Fontaine, Perrault não entra para a história literária como poeta clássico, mas sim criador de uma literatura popular pouco apreciada pelo gosto estético de sua época, porém que ao mesmo tempo o perpetua entre os grandes escritores da literatura infantil. O século XIX, fruto cultural das revoluções burguesas, trouxe uma nova for- ma de entender o mundo, o que gerou reflexos na literatura. Conceitos imate- riais, como o sonhar, o imaginar, a religião, a crença, a esperança, o gênio criati- vo, a liberdade estética e o apreço pelos elementos da cultura local (a chamada cor local) trouxeram novos elementos para o discurso literário daquela época. É aqui que irá surgir muito daquilo que chamamos de “tradição”: com o surgi- mento e amadurecimento dos modernos estados nacionais, há a busca pelos valores originais de determinado povo, o que agregará valores considerados legítimos da terra (COELHO, 2010). Assim, no campo dos estudos literários, é durante o período do Romantismo que se pode evidenciar a produção dos irmãos Grimm, a qual mescla caracterís- ticas românticas e folclóricas, recolhendo lendas e contos orais, registrando-os e transmitindo-os para a população em geral. Esse material, de teor folclórico, foi recolhido entre os anos de 1812 e 1822, dando origem à obra Contos de fadas para crianças e adultos (Kinder- und Hausmärchen). Foi uma verdadeira recolha etnográfica com elementos culturais alemães, além de outras lendas que faziam parte da cultura europeia, mas que foram assimiladas pelos alemães. LITERATURA INFANTIL 28 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 28 16/10/20 17:42 Mas, como trata-se de uma litera- tura que aponta a emergência dos no- vos valores burgueses, essa literatura trará questões inéditas para o texto literário, como o sentimentalismo e o individualismo. Uma vez que a litera- tura gradativamente passa a se par- ticionar, representar um novo tipo de indivíduo e suas frações, esses valores também são redistribuídos. Há, por exemplo, narrativas que promovem uma relação entre os conflitos do cotidiano e o embate com a natureza. Exemplo disso é como muitas obras direcionadas atualmente para crianças, mas que não o eram especificamente em suas épocas, agregam o arromânti- co da superação e da aventura, como em Aventuras de Robinson Crusoé (1719), de Daniel Defoe; Vinte mil léguas submarinas (1870), de Júlio Verne e Pinóquio (1883), de Carlo Collodi. Outras, como Viagens de Gulliver (1726), de Jonathan Swift, abordam a crítica social do século XVIII; a obra Novos contos de fadas (1856), da Condessa de Ségur, traz uma visão mais realista – e menos crua, como nos contos dos irmãos Grimm – dessas narrativas, e Coração (1886), de Edmondo De Amicis representa o princípio do romance moderno no século XIX, com a tentativa de fomentar a identidade nacional italiana. Muitos desses escritores buscavam, por meio dos seus textos, criar, ou me- lhor, expor, a identidade cultural de seus povos, de maneira que o Estado Nacio- nal pudesse ter a legitimidade de ser a continuidade de uma nação/povo/cultura. Essa iminência do homem europeu sobre as forças da natureza começa a ser revista no século XX, com vertentes que promovem um diálogo cultural mais equidado com outras culturas. A literatura infantil de aventura reinventa- -se e, ao negociar espaços, produz novas obras. É o surgimento de uma nova safra de narrativas associadas ao chamado realismo maravilhoso, no qual há histórias que decorrem no mundo real “que nos é familiar ou bem conhecido, e no qual irrompe, de repente, algo de mágico ou de maravilhoso (ou de absurdo) e passam a acontecer coisas que alteram por completo as leis ou regras vigen- tes no mundo normal” (COELHO, 2010, p. 170). LITERATURA INFANTIL 29 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 29 16/10/20 17:43 Lembre-se: muitas das narrativas clássicas infantis, de cunho sobrenatural ou não, apresentavam ou um mundo que possuía características insólitas, a exemplo de narrativas como Branca de Neve, na qual a magia já faz parte do sta- tus quo; ou levavam o indivíduo para um lugar além do costumeiro, como em As viagens de Gulliver. Nessa nova leva de textos que exploram percepções do real, em que aquilo que chamamos de comum apresenta caracteres incomuns, teremos obras como Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, na qual há a valorização de um mundo mágico que é ao mesmo templo um refl exo de nossa realidade. De maneira surpreendente, o maravilhoso se confunde com o racio- nal, ou seja: a narrativa traz aspectos do fantástico fazendo críticas à realidade de sua época. Essa mescla entre real e sobrenatural será uma das vertentes da literatura infantil mais exploradas no século XX, infl uenciando uma geração de escritores até os dias de hoje. Carroll, em suas obras, abordou as opções dessa fusão de mundos, agregando ao texto infantil elementos do absurdo, da falta de sen- tido, da graça e do lúdico. É curioso imaginar que, em pleno século XIX, havia escritores que produziam discursos literários na contramão das narrativas ro- mânticas nacionalistas, de modo a, inclusive, resgatar o elemento sombrio e cru de muitos contos de fadas. É por isso que obras como Pinóquio, de Collodi, e Peter Pan, de Barrie, incluem-se nessa tendência, promovendo uma crítica ao próprio modelo vigente da literatura infantil (COELHO, 2010). Contos de fadas: dos primórdios aos dias de hoje Vivemos em uma época na qual o mercado se especializou em escri- tores por nicho. Peças de teatro Infantil, novelas infantis, filmes infantis, músicas infantis, romances infantis: a descoberta e desenvolvimento do conceito de “criança” impulsionou a sociedade para novos caminhos. E essa origem está nos contos de fadas, os quais, originariamente, tinham um caráter oral. É relativamente comum ouvirmos que determinada história tem uma versão diferente, na qual as coisas acontecem de outra forma. Isso ocorre porque, na origem, esses contos possuíam variações. Há contos que eram transmitidos de maneira diferente de acordo com a região, acrescentando LITERATURA INFANTIL 30 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 30 16/10/20 17:43 um detalhe ou outro – como aquelas versões de Chapeuzinho Vermelho que você provavelmente já ouviu, mas desacreditou. São contos muito antigos, associados ao folclore de um povo e, por isso, ancestrais. Ocorre que, à medida que passam a ser registrados na modalidade escrita, determina- das versões começam a ser cristalizadas. CURIOSIDADE Você já assistiu ao filme Malévola, da Disney? No final, o narrador da his- tória diz “e foi assim que aconteceu embora, talvez, com o tempo, mudem um detalhe ou outro”. O texto brinca com esse conceito, pois apresenta a história da Bela Adormecida sob o ponto de vista da Malévola. Trata-se de um filme revisionista, na medida em que mostra o passado com base em valores contemporâneos. Porém, também mostra como certas versões dos contos de fadas passaram a ser mais aceitas do que outras e, consequen- temente, se perpetuaram. Com base nisso, é possível afirmar que a publicação de Contos da mãe gansa, de Perrault, proporcionará o surgimento da produção literária in- fantil nos moldes como a conhecemos e concebemos até os dias de hoje. Muitas dessas histórias chegaram ao conhecimento do escritor por parte de sua mãe e nos salões de paris, o que já aponta como ele estava tendo acesso a versões de outros textos. Originalmente, esses textos tinham raízes em narrativas célticas, bre- tãs e indianas, as quais, gradativamente, foram se mesclando com outras fontes e sofrendo adaptações e, em alguns casos, perdendo seu sentido original (COELHO, 2012). Assim, posteriormente o escritor lançará outras obras igualmente importantes, como A bela adormecida no bosque, Chapeu- zinho vermelho, O barba azul, O gato de botas, As fadas, A gata borralheira, Henrique do topete e O pequeno polegar. Com isso, podem-se apontar dois acontecimentos fundamentais cau- sados pela produção literária de Perrault: pela primeira vez na história ocorre um surto na produção de literatura infantil, a ponto de, à posteriori, outros escritores também receberem esse título: o de escritores de litera- tura infantil, como La Fontaine; o outro foi a ascendência do gênero conto de fadas como o preferido por outros escritores para a produção de uma literatura direcionada para crianças. Soa estranho falar em “surto”, mas LITERATURA INFANTIL 31 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 31 16/10/20 17:43 lembre-se que a prensa móvel foi criada por Gutenberg no século XV, o que propiciou uma liberação da inteligência criativa dos indivíduos. Portanto, percebe-se que Perrault trouxe para a literatura infantil o mundo de sonho e magia, o que caracterizou, em sua época, o enfraque- cimento do racionalismo clássico, que valorizava a razão. Com o enalteci- mento do imaginário, do impossível, do sonho, essa literatura se fortale- ceu e se tornou um gênero literário “oficial”. Essa produção literária passará por um novo momento no século XIX devido ao advento do Romantismo e a busca pela cultura local. Aqui, as narrativas folclóricas voltaram a ser presença marcante no campo da lite- ratura infantil no momento em que o Romantismo e Realismo disputavam o mesmo espaço, trazendo a valorização da reconstrução do mundo ima- ginário e maravilhoso. Desse modo, a literatura se alicerça com novo estilo e técnica. Esse período foi denominado o século do ouro da literatura in- fantil, visto que esta passou a atingir todos os tipos de classe social, tendo contato com os mais importantes entretenimentos literários. No começo do século XIX, a literatura infantil ganhou novos rumos e alcançou uma expansão significativa com textos literários de sucesso gra- ças aos irmãos Grimm. Ambos eram linguistas que realizavam pesquisas sobre o folclore alemão, e um de seus objetivos era conceber o estudo do que viria a ser a língua alemã. Um de seus resultados foi o recolhimento de contos orais que posteriormente, em 1812, no espírito do Romantismo, foram lançados em uma coleção de contos de fadas. É a partir desse mo- mento que o termo “contos de fadas” passa a significar “literaturainfantil”. Pode-se dizer que, a partir disso, o gênero começou a se consolidar, uma vez que já delimitava um leitor-modelo estabelecido: o público in- fantil. Isso também influenciou suas principais característi- cas, como a preferência por histórias que emanam fantasia e magia. É esse modelo que será seguido poste- riormente por escritores como Hans Christian Andersen, em Contos (1833), Lewis Carroll, em Alice no país das maravilhas (1863), Collodi, em Pinóquio (1883) e James Barrie, em Peter Pan (1911) (LAJOLO; ZILBERMAN, 2007). LITERATURA INFANTIL 32 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 32 16/10/20 17:43 Foi com as obras dos irmãos Grimm que a literatura infantil chegou ao leitor mirim, com suas narrativas baseadas no folclore e nas tradições populares, revelando um mundo de fantasia para todas as crianças de vá- rios lugares do mundo. Consequentemente, suas obras se tornaram uma literatura universal. É possível apontar, dentre as obras dos irmãos, contos como Branca de neve e os sete anões, Cinderela, A gata borralheira, A touca mágica, O pequeno polegar, O pássaro de ouro, entre outros. Figura 3. A popularização dos contos de fadas. Fonte: Shutterstock. Acesso em: 04/09/2020. Talvez tenha gerado estranhamento A gata borralheira ter sido referencia- da como um texto dos irmãos Grimm e, anteriormente, de Perrault. Lem- bre-se do que foi dito: são contos presentes na tradição oral, no folclore dos povos. Ocorre que muitos foram suavizados nos salões parisienses, mas mantiveram seu caráter mais cru nas versões alemãs. E, com o adven- to do mercado editorial infantil, até mesmo as versões dos irmãos Grimm atingem o público mirim com suas devidas adaptações. No século XIX, com o aumento dos jornais, surge o romance de folhe- tim: obra literária publicada em capítulos até atingir sua conclusão. Muitos clássicos que conhecemos hoje foram lançados assim e, posteriormente, em formato de livro. O mesmo ocorre com obras que hoje possuem o for- mato de novelas e romances, mas originalmente eram publicados em jor- LITERATURA INFANTIL 33 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 33 16/10/20 17:43 nais como uma sequência de contos interligados. Cada história em si era independente, mas o escritor precisava finalizar aquele trecho de forma que o leitor desejaria ler a continuação na semana seguinte. Foi assim que surgiram clássicos como Pinóquio, do italiano Carlo Col- lodi, considerado um livro literário universal por trazer uma obra ficcional de cunho filosófico que retrata o sentimento existente entre pai e filho, de- monstrando o arrependimento de um filho alicerçado a questões morais e o antagonismo entre o bem o mal, entre outros aspectos que demarcam universalidade. A inovação estética e experimental promovida pelo autor de Pinóquio fez com que surgisse uma obra fundamentalmente desenvol- vida e polissêmica em todo o seu dualismo filosófico: “boneco de pau, filho humano; no seu pluralismo despretensioso de reações humanas; na rea- lização de uma verdadeira obra de ficção – Pinóquio é um tipo de literário universal” (CARVALHO, 1989, p. 112). Figura 4. Pinóquio, um arquétipo literário. Fonte: Shutterstock. Acesso em: 04/07/2020. As proposições apresentadas em Pinóquio não são aleatórias: perceba que há um trajeto que considera o caráter pedagógico do texto literário, culminan- do em uma produção literária pós-Revolução Francesa que precisa dar conta de uma crescente população letrada. Porém, uma população letrada que não tem tradição literária não está plenamente habituada à leitura dos clássicos. E, uma vez que há direcionamento para uma parte da população, é por meio LITERATURA INFANTIL 34 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 34 16/10/20 17:44 da narrativa curta que determinadas questões passam a ser abordadas, na brevidade de um jornal. Outro clássico infantil foi Alice no país das maravilhas (1865), de Lewis Carroll. Nessa obra-prima da literatura inglesa, o autor traz um mundo mágico por meio de uma aventura fantástica em um lugar no qual tudo acontece ao contrário do mundo real. Essa obra correu o mundo por meio de várias adaptações e demar- cou o mundo da fantasia, embora Carroll tivesse outra intenção: a de “ridiculari- zar o esnobismo, as arbitrariedades e os vícios de uma época” (CARVALHO, 1989, p. 113). Se debates literários ocorriam livremente em saraus, o autor trazia essas mesmas discussões para o texto infantil. Segundo Coelho, a importância da obra reside na seguinte constatação: Ao se divulgar como obra-prima da Literatura Infantil, Alice no país das maravilhas perdeu o estilo peculiar de Carroll: a verdadeira in- tencionalidade da criação realizada desapareceu completamente. O que ficou foi o sentido do mágico, do maravilhoso ou do absur- do que pode ser encontrado dentro do cotidiano comum e prosai- co; e que Carroll foi um dos que primeiro que o descobriram para o mundo de ontem e de hoje (2010, p. 173). Outra obra igualmente significativa – e um dos motivos desse período ser conhecido como século de ouro da literatura infantil – será a obra Peter Pan, de James M. Barrie, que ficou conhecido no mundo todo, encantando as crian- ças com suas aventuras na Terra do Nunca. Peter Pan, o menino que não que- ria crescer e que desejava viver apenas em aventuras, trouxe fantasia, magia e humor, tornando-se um sucesso imediato entre o público infantil. Essa obra tem como característica apresentar a existência de uma tradição já consolidada de escritores de literatura infantil. Barrie era leitor dos textos de vários escritores, como Charles Dickens. Embora tenha sido um escritor e dramaturgo profícuo, o que o consagrou mundialmente foi a criação de Peter Pan. Essa encantadora personagem do universo literário infantil aparece pela primeira vez no conto O pequeno pássaro branco (escrito em 1896 e publicado em 1902). Por influência do empresário de suas peças, esse conto é transfor- mado em peça teatral: Peter Pan, o menino que não queria crescer. O sucesso da personagem levou Barrie a escrever outros contos, Peter Pan nos jardins de Kessington, em 1907, e Peter Pan e Wendy, em 1911. LITERATURA INFANTIL 35 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 35 16/10/20 17:44 Figura 5. Peter Pan, ícone da liberdade na Londres vitoriana. Fonte: Shutterstock. Acesso em: 04/07/2020. Essa tradição literária que trabalha e reinventa o gênero do conto de fadas perdura até os dias de hoje. Uma das mais belas obras literárias da literatura infantil, O Pequeno Príncipe, do escritor francês Antoine de Saint-Exupéry, ca- racteriza-se como um livro-poema universal. Trata-se de uma obra-prima em todos os seus aspectos, permeada por um lirismo subjetivo e crítico. O texto possui uma abordagem de extraordinária beleza e delicadeza, além de estar carregado de um grau de originalidade sem igual na fi cção, cuja fantasia está explícita, gerando absoluta felicidade e sentimento crítico em cada página. Os contos de fadas, ora como histórias isoladas, ora como textos seriados, perduraram e, por sua estrutura mercadológica, continuam até os dias de hoje. Abordaremos, em outras unidades, como outros te- mas vão sendo explorados, e como esses textos tornam-se signi- fi cativos em suas épocas. A literatura infantil brasileira É a partir do Romantismo e da independência do Brasil que se torna uma questão a busca por uma literatura nacional e que representasse um estado recém-formado. É também nesse período que surge uma literatura infantil influenciada, por exemplo, pela literatura francesa de La Fontaine e Perrault, apresentados ao Brasil por intermédio de Portugal. Assim, a LITERATURA INFANTIL 36 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 36 16/10/20 17:44 literatura infantil no Brasil começou a se consolidar a partir do século XIX, conscientizando os leitores so- bre uma literatura específica para a criança. Carvalho (1989) atesta que Contos da Carochinha, de Alberto Figueiredo Pimentel,teria sido a primeira publi- cação do gênero. Entretanto, a autora também ressalta a relação com a esco- la ao afirmar em seus estudos sobre li- teratura infantil no Brasil, por meio de um traçado histórico, que foi a partir de 1820, mesmo ano de formação do Co- légio Caraça, que a literatura e a escola se tornaram restritas, ou seja: somente as classes social e economicamente dominantes tinham acesso à educação e às obras infantis consideradas clássicas. Segundo Cunha (1999, p. 20), “no Brasil, a produção literária para crian- ças se inicia com obras de teor pedagógico e, ainda por cima, são adap- tações de textos portugueses, o que demonstra a subserviência cultural colonial”. Vale destacar que, para a autora, a legítima literatura infantil brasileira foi iniciada efetivamente com o surgimento das obras de Mon- teiro Lobato, por ele ser um escritor que proporcionou a diversidade de te- mas, contextos e gênero literário, trazendo personagens que ultrapassam os estilos convencionais literários e criando, com isso, seu próprio estilo e universo ficcional. Nesse sentido, surge José Bento Monteiro Lobato na literatura infantil brasileira com suas obras Narizinho arrebitado, Sítio do Pica-pau Amarelo, Reinações de Narizinho e outras que revolucionaram o campo da literatura infantil no país, com textos que retratavam a realidade social e cultural e com personagens contemporâneos, como a boneca de pano, Emília. Em O Sítio do Pica-pau Amarelo, por exemplo, Lobato, por meio de uma série de histórias, trouxe aspectos da vida rural, como fazendas de café, com intuito de revelar as questões nacionais do País, bem como histórias com aspectos folclóricos, narradas por uma cozinheira negra, que repre- LITERATURA INFANTIL 37 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 37 16/10/20 17:45 sentavam os valores morais e culturais de um povo. E, logo em seguida, “adotando postura iconoclasta perante os valores culturais populares, Monteiro Lobato promove a cozinheira do sítio a narradora titular em His- tórias da Tia Nastácia” (LAJOLO; ZILBERMAN, 1985, p. 65). Figura 6. O Saci, elemento do folclore brasileiro resgatado na obra de Lobato. Fonte: Shutterstock. Acesso em: 04/07/2020. Observe como Histórias da Tia Nastácia tem uma proximidade temática com a obra de Perrault, Contos da mãe gansa. Não é aleatório: uma geração de escritores lia, nos jornais brasileiros, os contos de Perrault, traduzidos por Machado de Assis. As histórias da Tia Nastácia seguiam o mesmo estilo de contação de histórias como causos populares e regionais, resgatando elementos do folclore e da cultura oral. Cabe então a discussão: literatura infantil no Brasil, ou do Brasil? Para Nely Novaes Coelho (2010), essa separação é feita por Monteiro Lobato. O autor promove uma ruptura com os estereótipos literários por meio da adaptação das narrativas europeias ao contexto brasileiro, e abre possibi- lidades para novas ideias que circulavam pelo ambiente. Assim, o mesmo Lobato realizou adaptações dos clássicos europeus, fa- zendo com que interagissem com a cultura brasileira. Personagens como Peter Pan, inclusive, visitavam o Sítio do Pica-pau Amarelo. Monteiro Lobato, ao realizar adaptações de obras clássicas, apresentava a intenção de levar às crianças o conhecimento da tradição, seja com seus heróis reais ou fictí- LITERATURA INFANTIL 38 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 38 16/10/20 17:45 cios, as conquistas da ciência, entre outros, e também questionar com elas as verdades concebidas. No entanto, Lobato propõe no campo literário infantil a ficção e a magia a partir do contexto da realidade nacional, lan- çando mão da representação da relação familiar, da vida no campo e do folclore afro-brasileiro. Portanto, vale ressaltar que na literatura infantil brasileira, além de Monteiro Lobato, vários outros autores dessa época se destacaram, a exemplo de “Coelho Neto e Olavo Bilac (Contos pátrios), Tales de Andrade (Saudade), Arnaldo de Oliveira Barreto (A festa das aves), entre outros” (LA- JOLO; ZILBERMAN, 2007, p. 27-28). Figura 7. Emília e Visconde de Sabugosa. Fonte: Shutterstock. Acesso em: 04/07/2020. Assim, a partir de Lobato, sugiram novos escritores de narrativas infan- tis com perfil inovador, como ocorre com as revistas em quadrinhos, que trouxeram outra forma de leitura, bem como a televisão, que transformou as leituras dos livros infantis em seriados de entretenimento para crianças e jovens. Um exemplo é a inesquecível série infantil O sitio do pica-pau Amarelo, adaptada da obra de Monteiro Lobato e produzida pela Rede Glo- bo. Nely Novaes aponta que: em 1950, a revista em quadrinhos Pato Donald é introduzida no Brasil (a Ed. Abril SP cria o sistema de postos de venda para distri- buição em quase todo o território nacional). A partir daí ́ abre-se LITERATURA INFANTIL 39 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 39 16/10/20 17:46 o nosso mercado às Produções de Walt Disney. Registre-se tam- bém, no âmbito da literatura quadrinizada, a voga das revistas de terror (cuja popularidade se mantém até h́oje, não só em revistas, como em filmes, no cinema e na televisão) (2010, p. 275). Atualmente, a literatura infantil brasileira encontra-se alinhada aos no- vos tempos, mostrando-se preocupada com as questões sociais, culturais, políticas e especialmente com as diferenças sociais, uma vez que todo o tipo de diversidade (gêneros, etnias, raças) está inserida na sociedade bra- sileira, possibilitando ao indivíduo a busca para compreender o diferente. Assim, percebe-se que os escritores do nosso século apresentam, em suas narrativas, um contexto voltado a essas questões, de maneira a proporcio- nar à criança ou ao jovem a oportunidade de vivenciar histórias do mundo mágico que lhes aproximem da sua própria realidade. Nesse sentido, para Zilberman, a literatura infantil contemporânea bra- sileira apresenta-se no seu melhor tempo: A literatura brasileira experimenta um momento particularmen- te favorável: estatisticamente, cresceu o número de publicações originadas de autores nascidos no Brasil; diversificaram-se os gê- neros em que um escritor pode se manifestar, estendendo-se as opções dos modelos mais elevados da ficção e da poesia à pro- dução para a imprensa, para o cinema ou para o público jovem; profissionalizam-se os criadores de arte, adotando a prática de agentes literários, que medeiam as relações com editores, tradu- tores e divulgadores no campo cultural (2007, p. 183). Desse modo, observa-se que os literatos infantis estão se adequando à nova criança da atualidade, inserida na era da tecnologia digital, da internet e dos jo- gos interativos, de maneira a buscar meios de interagir e conquistar os pequenos leitores por meio das mídias sociais, como a hipermídia, que é a “encadeação eletrônica de palavras, sons e imagens, e o hipertexto – múltiplos textos em po- tencial, que só se completam pela ação do leitor” (NASCIMENTO, 2007, p. 8). O hipertexto possibilita ao leitor a liberdade de interação com o texto e incorpora vários elementos eletrônicos, com a diferença de que o foco parece estar em técnicas exclusivas, como por exemplo o site Glide, que apresenta uma exploração interativa da linguagem visual. LITERATURA INFANTIL 40 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 40 16/10/20 17:46 Desse modo, percebe-se que a literatura infantil no Brasil passou por uma significativa mudança desde os tempos idos do século XX, e, ao chegar ao século XXI, adequou-se às inovações tecnológicas, assim como acom- panhou o progresso na área educacional, continuando assim a ser uma ferramenta fundamental para o desenvolvimento cognitivo da criança. Mesmo a literatura infantil alicerçada a novas tecnologias continuará proporcionando ao leitor mirim o contato com o mundo mágico e com o maravilhoso, de forma a conceber o seu mundo real a partir de uma cons- trução crítica e reflexiva do contexto social em que está inserida. DICAUm exemplo está disponível no portal Literatura Digital, em O jogo do gato poeta, um projeto de literatura digital de Ana Mello, que incentiva a crian- ça a ter o gosto pela leitura. “Uma imagem, 80 textos, descubra em qual deles está o nome do gato. Mas cuidado, você só tem sete vidas. Quer dizer, sete chances”. LITERATURA INFANTIL 41 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 41 16/10/20 17:46 Sintetizando Nessa unidade, abordamos a literatura infantil enquanto instrumento de formação da criança, uma vez que a mesma tem um papel importante no de- senvolvimento do indivíduo como ser social. A função de contar histórias para os pequenos pressupõe uma influência direta na construção de cada indivíduo e da sociedade, pois é por meio dos livros infantis que a sociedade transmite normas, conceitos, valores e cultura, perpassando diversas gerações. Desse modo, percebe-se que a literatura infantil deve exercer um papel de intermédio entre o real e o imaginário, de maneira a permitir que o leitor reflita e questione o seu papel social e sobre si mesmo. As premissas abordadas consideram o trajeto histórico da literatura infan- til, de suas origens até a atualidade, no Brasil e no mundo. Abordou-se, dessa maneira, sua inserção no mercado editorial, bem como seu reflexo para toda a sociedade e, principalmente, como nos dias de hoje ela é utilizada cada vez mais como um instrumento para ampliar a capacidade criativa da criança e inseri-la no universo da leitura. LITERATURA INFANTIL 42 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 42 16/10/20 17:46 Referências bibliográficas CANDIDO, A. Direitos Humanos e literatura. In: FESTER, A. C. R. (Org.) FES- TER, A. C. R. (org.). Direitos humanos e... São Paulo: Brasiliense; Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, 1989. COELHO, N. N. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Mo- derna, 2000. COELHO, N. N. O conto de fadas. São Paulo: Ática, 2012. COELHO, N. N. Panorama histórico da literatura infantil/juvenil: das origens indo-europeias ao Brasil contemporâneo. São Paulo: Manole, 2010. COLFER, E. Artemis Fowl: o menino prodígio do crime. 16. ed. Rio de Janeiro: Record, 2013. CUNHA, M. A. A. 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LITERATURA INFANTIL 44 SER_PEDA_LITE_UNID1.indd 44 16/10/20 17:46 IDEOLOGIA NO TEXTO INFANTIL 2 UNIDADE SER_PEDA_LITE_UNID2.indd 45 16/10/20 17:34 Objetivos da unidade Tópicos de estudo Apontar os elementos ideológicos inerentes ao texto infantil; Delimitar uma série de estratégias ficcionais utilizadas para a construção do texto direcionado ao público infantil. Representação da sociedade: normas e valores Representação da criança no texto literário infantil Sensibilização e aproximação lúdica da criança com a lingua- gem poética A importância da exteriorização – personagens e acontecimentos fantásticos O sobrenatural familiar Literatura e amadurecimento LITERATURA INFANTIL 46 SER_PEDA_LITE_UNID2.indd 46 16/10/20 17:34 Representação da sociedade: normas e valores A palavra ideologia nos soa estranha: somos capazes de associá-la a pon- tos diferentes e divergentes – políticos, científi cos, religiosos –, mas ignoramos sua essência: visão de mundo. A forma de compreender um discurso, o “funil” por meio do qual todo entendimento a nós chega. Assim, ideologia pode ser defi nida como a forma de se ver e interpretar o mundo, e por meio de ambos, a realidade nos atinge. Porém, e nos apropriaremos de um princípio de Roland Barthes, vivemos em um mundo feito de palavras. Os conceitos, a forma de compreender o mundo, o sentido que damos às coisas, tudo isso chega até nós por meio das palavras, dos discursos que construímos. Damos sentido, criamos conceitos, partimos para outros pressupostos - tudo por meio dos sentidos ali implícitos. Outro pesquisador, Mikhail Bakhtin, aponta como as práticas culturais do- minantes se diluem na comunicação (2008), ou seja: como há ideologias dentro da língua que são, por si só, formas de perpetuação do status quo. É por isso que a palavra, signo linguístico por excelência, é inerentemente ideológico. Barthes vai mais além, e afi rma que os signos de que a língua é feita, os signos só existem na medida em que são reconhecidos, isto é, na medida em que se repetem; o signo é seguidor, gregário; em cada signo dorme este monstro, um estereótipo: nunca posso falar senão recolhendo aquilo que se ar- rasta na língua. Assim que enuncio, essas duas rubricas se juntam em mim, sou ao mesmo tempo mestre e escravo: não me contento com repetir o que foi dito, com alojar-me confortavelmente na ser- vidão dos signos: digo, afi rmo, assento o que repito (1987, p. 15). É ai que habita esse servilismo da própria língua. Ela não apenas nos faz dizer, mas nos obriga: toda forma de discurso, de contação de algo, está im- bricado de uma série de ideologias e discursos, dominantes ou não. Estes são representativos de determinadas visões de mundo, sejam elas vitoriosas ou ignoradas. Dessa maneira, há um conjunto de valores que se perpetuam nas mais diversas formas. O texto literário não escapa desse princípio. Até mesmo um texto que se propõe a ser um contradiscurso, por defi nição, um movimento contra ideoló- LITERATURA INFANTIL 47 SER_PEDA_LITE_UNID2.indd 47 16/10/20 17:34 gico, já carrega em si uma visão de mundo, outra ideologia. O que são textos clássicos, como A Ilíada, ou Os Lusíadas, senão o discurso dos vitoriosos? O que é, então, uma obra como Tarzan, com o discurso das narrativas de aventura que serve como contação da vitória da empreitada colonial inglesa? Ou as diversas narrativas românticas brasileiras, do período indianista, senão uma tentativa de justificar o discurso do país recém-formado, em busca do que viria a ser a brasilidade? Esse princípio, claro, não se desassocia do texto literário infantil, mesmo antes de sua delimitação. Uma vez que o texto literário é a arte da palavra que representa a variedade ficcional do discurso dominante, há uma produção ficcional para a criança, em diferentes períodos, que não se desassocia de seu teor ideológico. Na Grécia Antiga, a obra A Ilíada, na qual é contada a guerra de Troia, era lida em sala de aula como se fosse um evento histórico. Nós mesmos não sabemos, de
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