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0 1 Introdução A endometriose, uma condição ginecológica conhecida desde o século XVII, foi primeiramente detalhadamente descrita em 1860 por Von Rokitansky. Essa enfermidade pode ser definida pela presença de tecido que se assemelha à glândula e/ou estroma endometrial fora da cavidade uterina, predominantemente, mas não exclusivamente, na pelve feminina. Caracterizada como uma condição benigna, crônica, dependente de estrogênio e de natureza multifatorial A endometriose é uma doença inflamatória caracterizada pela presença de estroma e glândulas endometriais fora do útero, principalmente na região pélvica. Mulheres que se encontram no período reprodutivo, ou seja, entre a menarca e a menopausa, apresentam uma maior incidência de endometriose. A abordagem epidemiológica dessa condição é alvo de controvérsias devido a diversos problemas metodológicos, complicando uma análise precisa. Isso inclui a possibilidade de a endometriose ser assintomática e a necessidade de procedimentos cirúrgicos para alcançar um diagnóstico. Além disso, o diagnóstico nem sempre se baseia unicamente na histologia, visto que o endométrio aparentemente normal pode revelar lesões endometrióticas ao ser examinado histopatologicamente. Fatores como o tipo e a intensidade dos sintomas, a facilidade de acesso à laparoscopia e a descoberta incidental de endometriose em pacientes submetidas a cirurgias por outras razões (como laqueadura tubária, mioma ou tumor ovariano) também introduzem viés na avaliação da prevalência da doença. Tais considerações são cruciais para explicar a ampla variação nos relatos da prevalência da endometriose encontrados na literatura mundial. Estima-se que a endometriose impacte cerca de 10% das mulheres em idade reprodutiva, o que equivale a aproximadamente 100 milhões de mulheres globalmente. No entanto, é importante ressaltar que essa estimativa carece de confirmação. Estudos populacionais baseados em registros médicos revelaram uma incidência de 1,3 e 1,6 casos a cada mil pacientes hospitalizadas com diagnóstico cirúrgico ou histopatológico, respectivamente. Embora seja comumente diagnosticada durante o período 2 menstrual ativo, a endometriose pode ser identificada em mulheres tanto antes da primeira menstruação quanto após a menopausa. Existem relatos de estudos que documentaram o diagnóstico de endometriose em adolescentes com dor pélvica, ocorrendo antes da menarca. Após a menopausa, a prevalência da endometriose varia de 2% a 5%, podendo manifestar-se sob a forma de uma doença infiltrativa profunda, inclusive envolvendo o trato intestinal Etiopatogenia A etiologia e a patogênese da endometriose ainda permanecem parcialmente compreendidas. Diversas teorias foram propostas, mas nenhuma delas conseguiu explicar de maneira abrangente o surgimento e o desenvolvimento da endometriose em todos os seus aspectos. A teoria de Sampson, também denominada teoria da implantação ou menstruação retrógrada, tem ganhado destaque recentemente, sendo amplamente aceita por seu mecanismo que explica a presença de tecido endometrial ectópico. Contudo, essa teoria não resolve a questão de por que as células endometriais eliminadas pelas tubas na cavidade abdominal não seguem o mesmo comportamento em todos os casos, uma vez que o refluxo menstrual é observado em mais de 90% das mulheres, enquanto a endometriose afeta apenas 10% delas. Para o desenvolvimento da endometriose, as células endometriais regurgitadas pelas trompas devem manifestar capacidade de sobrevivência, adesão, proliferação, invasão e neovascularização, desafios que ainda necessitam de uma explicação mais abrangente Atualmente, há fortes indícios de que fatores imunológicos e inflamatórios desempenham um papel significativo no desenvolvimento da endometriose, e é justamente deste ponto que surgiu a ideia de dieta para endometriose, falaremos disso mais à frente. É amplamente reconhecido que mulheres com endometriose apresentam alterações no fluido peritoneal, incluindo modificações no número de células, na atividade celular e na produção de diversas citocinas. Essas mudanças, quando combinadas, favorecem ou induzem a proliferação endometrial ectópica. Nos pacientes com endometriose, há um aumento na quantidade de macrófagos no fluido peritoneal, mas as células natural killer (NK) 3 e os linfócitos T estão diminuídos. Dentre as principais citocinas encontradas no fluido peritoneal de pacientes com endometriose estão: interleucina (IL-1, IL-2, IL-4, IL-5, IL-6, IL-8, IL-10, IL-12, IL-13), interferon-γ, fator de necrose tumoral alfa (TNF-α), quimiocina regulada sob ativação, expressa e secretada por células T normais (RANTES), proteína quimiotática monocítica (MCP-1), fator estimulador de colônia de macrófago (MCSF), fator de crescimento transformante beta (TGF-β) e fator de crescimento vascular endotelial (VEGF) Diagnóstico O médico deve identificar os sintomas relacionados à endometriose em sua prática diária, pois essa é uma ferramenta crucial para o diagnóstico precoce da doença. Os sintomas clínicos observados durante o exame físico têm a capacidade de suscitar a hipótese diagnóstica em cerca de 70% dos casos. Infelizmente, até os dias atuais, a média estimada do período entre o início dos sintomas relatados pelas pacientes e o diagnóstico definitivo ainda é de aproximadamente sete anos. Estudos realizados em diferentes países apontam para um significativo atraso no diagnóstico da endometriose. O intervalo de tempo entre o início dos sintomas e a confirmação da doença tende a ser prolongado. Em uma pesquisa envolvendo mulheres com endometriose, foi identificada uma demora de 11,7 anos nos Estados Unidos e 7,9 anos no Reino Unido até o diagnóstico da condição. No Brasil, uma pesquisa semelhante conduzida na Universidade de Campinas revelou um período médio de 7 anos entre o início dos sintomas e o diagnóstico da endometriose. No entanto, para aquelas cujos sintomas iniciaram antes dos 19 anos, o tempo até o diagnóstico foi ainda mais extenso, alcançando uma média de 12,1 anos, dos quais 2 anos correspondem ao período médio até procurarem assistência médica. O diagnóstico da endometriose pode ser intuído pelos indícios e sintomas identificados durante a análise da história clínica e no decorrer do exame físico. Conforme dados divulgados pela Endometriosis Association em 2003, aproximadamente dois terços das mulheres diagnosticadas com endometriose relataram a manifestação inicial dos sintomas antes dos 20 anos de idade. 4 A dismenorreia destaca-se como o principal sintoma associado à endometriose, embora dor pélvica crônica não relacionada ao ciclo menstrual e dispareunia também sejam ocorrências frequentes. A infertilidade conjugal figura como outro achado comum nesse contexto. Manifestações como distensão abdominal, diarreia, obstipação intestinal e alterações no padrão menstrual também são observadas em mulheres afetadas pela doença. Ainda podemos classificar a endometriose em alguns estágios como: • Endometriose superficial peritoneal • Endometriose Ovariana Profunda • Endometriose Profunda Infiltrativa Os exames de imagem usados para diagnosticar a endometriose geralmente não são eficazes na detecção de lesões superficiais. As lesões com profundidade inferior a 5 mm são dificilmente visualizadas, quer seja por ultrassonografia transvaginal, ultrassonografia com preparo intestinal ou ressonância magnética. Apesar de todos os esforços direcionados ao diagnóstico prévio da endometriose, a confirmação da doença continua, em sua maioria, dependente da abordagem cirúrgica. A endometriose superficial não permite diagnósticos clínicos ou laboratoriais, e a suspeita geralmente conduz à confirmação preferencialmente por meio de laparoscopia. Para as lesões mais profundas, uma avaliaçãocuidadosa em centros e serviços especializados oferece uma alta probabilidade de diagnóstico clínico. Tratamento A endometriose deve ser abordada com uma doença crônica e merece acompanhamento durante a vida reprodutiva da mulher, momento no qual a doença manifesta seus principais sintomas (Practice Committee of the American Society for Reproductive Medicine, 2014). O tratamento clínico da endometriose pode ser prescrito para aliviar os sintomas dolorosos associados à doença. A utilização de terapia hormonal para 5 endometriose teve início há mais de cinco décadas e continua sendo uma prática atual. Nesse período, houve uma evolução significativa nos métodos, com o surgimento de novos medicamentos e composições, como contraceptivos orais, danazol, análogos do GnRH, gestrinona, inibidores da aromatase, dienogeste, DIU medicado com progesterona, entre outros. O tratamento clínico da endometriose visa criar alterações hormonais para induzir um estado de pseudogravidez, pseudomenopausa ou anovulação crônica. Portanto, não é indicado para tratar a infertilidade causada pela endometriose. O estado de hipoestrogenismo provocado por esses medicamentos leva à atrofia do endométrio ectópico, além de proporcionar o controle dos sintomas dolorosos, possivelmente pela redução da produção de prostaglandinas e citocinas, resultando em menor estimulação das fibras nervosas. Os medicamentos frequentemente empregados no tratamento clínico da endometriose incluem: • Estroprogestativos (cíclicos ou contínuos) • Progestágenos • Dispositivo Intrauterino (DIU) com levonorgestrel • Análogos do GnRH (hormônio liberador de gonadotropina) Os contraceptivos orais combinados, conhecidos como pílulas anticoncepcionais combinadas, induzem a supressão ovariana ao exercerem um feedback negativo na hipófise. Isso resulta na inibição da produção de estrogênio e na redução da síntese de prostaglandinas, o que, por sua vez, leva à diminuição do estado inflamatório. Tanto o uso cíclico quanto o contínuo desses contraceptivos têm se mostrado eficazes na melhora significativa dos sintomas de dismenorreia e dor pélvica acíclica associados à endometriose. Estudos indicam que o uso contínuo dos contraceptivos pode proporcionar resultados ainda mais satisfatórios na redução da dor em comparação com o uso cíclico. A boa tolerabilidade e o impacto metabólico reduzido tornam a terapia 6 estroprogestativa uma opção considerada efetiva no tratamento adjuvante dos sintomas relacionados à endometriose. O acetato de medroxiprogesterona demonstra eficácia no tratamento dos sintomas dolorosos associados à endometriose, seja administrado por via oral ou por via injetável de depósito. Estudos indicam que ambas as formas de administração são igualmente efetivas em comparação aos análogos do GnRH na redução da dor e na melhoria da qualidade de vida. A dose ideal por via oral ainda não está claramente definida. Na administração injetável, a prática comum é a aplicação intramuscular de 150 mg a cada 90 dias. Entre os efeitos colaterais mais relevantes estão acne, ganho de peso e sangramento irregular A decisão de realizar o tratamento cirúrgico da endometriose depende de vários fatores, incluindo o quadro clínico da paciente, suas características individuais, o desejo de gravidez, a presença de infertilidade e as particularidades das lesões. É crucial realizar uma avaliação pré-operatória abrangente para identificar o número, o tamanho e a localização das lesões, bem como o grau de invasão dos órgãos pélvicos, como ovário, vagina, septo retovaginal, região retrocervical e tratos urinário e digestivo. A falta de resposta adequada ao tratamento clínico, seja empírico ou não, é uma indicação para o tratamento cirúrgico. Durante a avaliação intraoperatória, é essencial realizar um inventário minucioso de toda a pelve e do abdome, a fim de observar todas as lesões e estabelecer a abordagem operatória mais apropriada. E a dieta? Já que a doença tem caráter inflamatório, uma dieta anti-inflamatória não seria uma base de tratamento? O argumento já morre na base, pois não existe dieta anti-inflamatória e sim um contexto que pode levar a uma inflamação crônica de baixo grau. 7 É importante destacar que os estudos que exploraram a relação entre padrões dietéticos e o tratamento da endometriose geralmente foram conduzidos em animais, como ratos e coelhos, apresentando uma considerável heterogeneidade nos resultados. Quando se trata de evidências em humanos, não há consenso que respalde a ideia de que um padrão dietético específico pode efetivamente tratar a endometriose. Alguns argumentam que o aumento nos casos ao longo dos anos está mais relacionado ao acesso a diagnósticos mais rápidos e precisos, bem como à disseminação de informações que incentivam as mulheres a procurarem cuidados médicos. 8 Considerações Finais A endometriose é uma condição desafiadora, frequentemente associada a quadros dolorosos intensos e/ou infertilidade, ambas as quais impactam significativamente a qualidade de vida das mulheres afetadas. Após o diagnóstico, a abordagem adequada requer uma equipe multidisciplinar, centrada nas queixas da paciente e na localização e extensão das lesões. É fundamental encarar a endometriose como uma doença crônica, demandando acompanhamento ao longo de toda a vida reprodutiva da mulher e não devemos extrapolar a nutrição, obviamente uma dieta qualitativa sempre deve ser orientada, porém o cuidado para não incentivar o abandono do tratamento correto, com base em falácias do tipo “estão te entupindo de hormônios” para trocar por alternativas naturais, deve ser mantido. 9 Referencias Kobayashi H, Higashiura Y, Shigetomi H, Kajihara H. Pathogenesis of endometriosis: the role of initial infection and subsequent sterile inflammation (Review). Mol Med Rep. 2014;9(1):9-15. doi:10.3892/mmr.2013.1755 Covens AL, Christopher P, Casper RF. The effect of dietary supplementation with fish oil fatty acids on surgically induced endometriosis in the rabbit. Fertil Steril. 1988;49(4):698-703. doi:10.1016/s0015-0282(16)59842-2 Jacobson TZ, Duffy JM, Barlow D, Farquhar C, Koninckx PR, Olive D. Laparoscopic surgery for subfertility associated with endometriosis. Cochrane Database Syst Rev. 2010;(1):CD001398. Published 2010 Jan 20. doi:10.1002/14651858.CD001398.pub2 Montenegro ML, Vasconcelos EC, Candido Dos Reis FJ, Nogueira AA, Poli-Neto OB. Physical therapy in the management of women with chronic pelvic pain. Int J Clin Pract. 2008;62(2):263-269. doi:10.1111/j.1742-1241.2007.01530.x Nnoaham KE, Hummelshoj L, Webster P, et al. Impact of endometriosis on quality of life and work productivity: a multicenter study across ten countries. Fertil Steril. 2011;96(2):366-373.e8. doi:10.1016/j.fertnstert.2011.05.090
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